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DAS, Veena. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Unifesp. 296 p.

DAS, Veena. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. Bruno, Gambarotto. São Paulo: Unifesp, 296

A influência do trabalho de Veena Das, uma das mais prestigiosas antropólogas da atualidade, entre acadêmicos brasileiros é eminente e pode ser rastreada a partir de uma série de produções editoriais de diferentes tipos. Ao longo dos últimos 25 anos, foram publicadas traduções pontuais de capítulo de livro e de conferência (Das, 1999DAS, V. 1999. “Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos”. RBCS. Vol. 14, no 40, p. 31-42. e 2011DAS, V. 2011. “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu. No 37, p. 9-41.), resenhas (Pereira, 2010PEREIRA, P. P. G. 2010. “Violência, gênero e cotidiano: o trabalho de Veena Das”. Cadernos Pagu. No 35, p. 357-369.; Vieira, 2010VIEIRA, S. A. 2010. “DAS, Veena. 2007. Life and words: violence and the descent into the ordinary. California: University of California Press. 281pp.”. Mana. Vol. 16, no 2, p. 517-520.; Bispo, 2018BISPO, R. 2018. “DAS, Veena. 2015. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press. 256 pp.”. Mana. Vol. 24, no 1, p. 275-279.; Engel, 2020ENGEL, C. 2020. “Rumor, intimidade e a vida que transborda das palavras de Veena Das”. Novos Debates. Vol. 6, no 1-2, p. 1-7.; Parreiras, 2021PARREIRAS, C. 2021. “Tessituras, texturas, treliças e tramas: o cotidiano, o ordinário e a tarefa da antropologia”. Sociologia & Antropologia. Vol. 11, no 3, p. 1101-1106.; Marques, 2023MARQUES, T. 2023. “A escrita da dor e a violência ordinária”. Ponto Urbe. No 31, p. 1-5.), entrevistas (Misse et al, 2012MISSE, M. et al. 2012. “Entre palavras e vidas: um pensamento de encontro com margens, violências e sofrimentos - Entrevista com Veena Das.” Dilemas. Vol. 5, no 2, p. 335-356.; Ferreira et al, 2021FERREIRA, L. et al. 2021. “Antropologia, desejo e texturas da vida: uma entrevista com Veena Das”. Sociologia & Antropologia. Vol. 11, no 3, p. 749-789.), verbete (Parreiras e Lacerda, 2021PARREIRAS, C.; LACERDA, P. (24.07.2021). “Violência - Veena Das” [online]. Enciclopédia de Antropologia, Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/violencia-veena-das. Acesso em: 04 de nov. 2023.
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), comentários e debates dos livros (Vianna, 2020VIANNA, A. 2020. “Vida, palavras e alguns outros traçados: lendo Veena Das”. Mana. Vol. 26, no 3, p. 1-20.; Rui, 2023RUI, T. 2023. “Apresentação: leituras (com)partilhadas de Textures of the Ordinary”. Mana. Vol. 29, no 2, p. 1-5.) e até mesmo um dossiê na revista Sociologia & Antropologia dedicado à recepção de seus estudos no Brasil. No entanto, o recente movimento de tradução para o português de suas obras completas representa uma verdadeira ampliação do acesso ao que vem sendo produzido na teoria antropológica contemporaneamente, principalmente para discentes de graduação e pós-graduação.

Iniciado com a tradução de Vida e palavras: a violência e sua descida ao ordinário (Das, 2020DAS, V. 2020. Vida e Palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.), o público lusófono é agora brindado com a versão de Aflição: saúde, doença, pobreza (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.). Através de seus escritos, temos sido instados a pensar e repensar os modos pelos quais as distintas modalidades e faces do sofrimento são tematizadas e teorizadas nas ciências sociais. Nesse sentido, a tradução de Aflição revela-se especialmente importante para pesquisadores dos campos das ciências humanas e saúde que tratam de questões como desigualdades sociais, acesso precário a serviços e tecnologias de saúde, relações de gênero e transformações nas configurações familiares a partir da necessidade de cuidado contínuo de um parente, atribuição de significados às experiências de adoecimento, itinerários terapêuticos tortuosos, busca por diferentes tipos de terapêutica e práticas de cura e diagnóstico, fronteiras entre a “medicina popular” e a biomedicina, entre outras.

O livro é resultado de um esforço coletivo empreendido por acadêmicos de diferentes áreas ligados ao Instituto de Pesquisa Socioeconômica em Desenvolvimento e Democracia (ISERDD), uma organização de pesquisa - que eventualmente também presta assistência médica, educacional e jurídica a famílias pobres com as quais trabalham - composta por membros da Universidade de Delhi. Assim, devido aos aspectos que marcaram a condução da investigação, mais do que contribuições teóricas que articulam pobreza, padecimento e possibilidades de cura, Aflição traz também importantes avanços e questionamentos metodológicos.

O material apresentado na obra é fruto de uma pesquisa etnográfica de longa de duração, já que foram cerca de 14 anos acompanhando as transformações nas condições de saúde da população urbana de áreas empobrecidas de Nova Delhi. Ao longo do texto, Das demonstra como é possível - e, em certas ocasiões, até mesmo incontornável - tratar conjuntamente de instrumentos e dados de cunho qualitativo e quantitativo, de modo a desfazer uma certa relação de oposição que se construiu em torno deles. Para compor suas ponderações e análises, ela lança mão tanto de narrativas e descrições de situações presenciadas ao longo do trabalho de campo quanto de dados de caráter mais quantitativo, como as informações coletadas por meio de surveys aplicados recorrentemente durante as diferentes fases da pesquisa.

Além disso, ao combinar trechos de suas observações pessoais anotadas em seus diários de campo e relatos feitos e/ou obtidos por outros membros da equipe da pesquisa, Das também coloca em xeque umas das concepções mais arraigadas acerca do método etnográfico: a ideia de que o etnógrafo conduz seu trabalho de pesquisa de modo individual e isolado dos seus pares. Ainda que essa não seja uma discussão inédita no Brasil - afinal, desde o final dos anos 2000, autoras como Sigaud (2008)SIGAUD, L. 2008. “A collective ethnographer: fieldwork experience in the Brazilian Northeast”. Social Science Information. Vol. 47, no 1, p. 71-97. vêm debatendo as particularidades envolvidas em uma investigação etnográfica coletiva e longitudinal -, em Aflição temos um exemplo de como o trabalho somado de um grupo heterogêneo de investigadores que conduzem uma pesquisa no decorrer de vários anos oportuniza reflexões sobre mudanças no perfil epidemiológico de certas populações, acerca de transformações nas taxas de prevalência de determinadas doenças e no que se refere aos efeitos do adoecimento crônico em dinâmicas e relações familiares.

No que diz respeito às contribuições teóricas contidas em Aflição, é possível notar algumas continuidades e descontinuidades em relação aos livros anteriores. No plano das permanências, é perceptível seu incessante interesse em etnografar minuciosamente como as pessoas resistem e insistem em refazer suas vidas após passarem por experiências devastadoras. Na esfera das rupturas, cabe pontuar que, se em trabalhos precedentes, Das buscou compreender de que maneira os eventos críticos (Das, 1995DAS, V. 1995. Critical Events: an anthropological perspective in contemporary India. Nova Delhi: Oxford University Press. e 2020DAS, V. 2020. Vida e Palavras: a violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp.) - como, por exemplo, o desastre do complexo industrial de Bhopal, a violência envolvida na partição da Índia e o massacre desencadeado pelo assassinato de Indira Gandhi - afetam, modificam profundamente e são posteriormente absorvidos no cotidiano daqueles que foram direta ou indiretamente atingidos por esses acontecimentos, em Aflição, o foco encontra-se naquilo que ela chama dos “quase-eventos”, uma noção elaborada a partir de um diálogo crítico com alguns autores, em especial o livro Economies of Abandonment, de Elizabeth Povinelli (2011)POVINELLI, E. 2011. Economies of abadonment: social belonging and endurance in late liberalism. Durham: Duke University Press..

Em relação às suas considerações acerca da ideia de “abandono” e da consequente distinção entre “evento” e “quase-evento”, Das argumenta que Povinelli compreende os “quase-eventos” como coisas que nem acontecem e nem deixar de acontecer, obscurecendo relações de causa e efeito, de modo que os episódios sejam pensados como suscitados por seres impessoais e sem uma agência que possa ser localizada ou determinada. Já os eventos provocam reflexões e demandam respostas éticas e políticas. Assim, Das afirma que a autora acaba privilegiando o Estado ao vê-lo como um agente transcendental da vigilância que paira “acima do fluxo da vida cotidiana” (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.: 30) e que é responsável por transformar os quase-eventos em eventos.

Ao desenvolver sua própria noção de “quase-evento” em estrita conexão com as experiências de adoecimento, Das a define como situações que, embora não acarretem imediatas suspensões e/ou transformações na vida cotidiana, produzem um ambiente de suspeitas e apreensões quanto ao que pode acontecer. Logo, ao tratar de diferentes formas e episódios de padecimento, ela discute como adoecer implica um sofrimento que tanto pode ser normalizado e absorvido pela vida ordinária (a ponto de não ser dramático o suficiente para chamar atenção) quanto pode se transformar em algo maior que envenena o cotidiano (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.: 37). É essa possibilidade de conversão de “quase-evento” em “evento crítico” que causa o sentimento de Aflição, categoria utilizada para nomear o livro e descrever como as pessoas se sentem diante de variados cenários marcados por incertezas, hesitações e desassossegos.

Levando em consideração a centralidade da “descida ao ordinário” - isto é, a assimilação do sofrimento na vida ordinária após situações e/ou episódios disruptivos - na obra da autora, é preciso pontuar que o momento da tradução de Aflição é também bastante oportuno, uma vez que estamos, aos poucos, retomando nossas rotinas após um período marcado pela radical transformação das atividades do dia a dia provocada por uma doença. Assim, as reflexões formuladas por Das em Alfição nos ajudam a pensar fenômenos sanitários contemporâneos como, por exemplo, uma certa normalização da Covid-19 e sua tentativa de incorporação ao rol de “gripes comuns” que atingem sazonalmente as populações.

Por último, antes de passar propriamente ao conteúdo do livro, gostaria de sublinhar que as ponderações de Veena Das sobre doenças que se “cronificam” e passam a desgastar lenta e incessantemente o cotidiano dos que habitam os territórios da pobreza têm inspirado discussões e comparações entre Brasil e Índia no que diz respeito ao acesso a redes de serviços e tecnologias de saúde. É notável, por exemplo, sua influência em trabalhos que discutem as relações entre cuidado, gênero e família, tal como presente nos artigos de Pierobon (2022)PIEROBON, C. 2022. “O duplo fazer dos corpos: envelhecimento, adoecimento e cuidado na vida cotidiana de uma família”. Cadernos Pagu. No 64, p. 1-16. e Pierobon e Fernandes (2023)PIEROBON, C.; FERNANDES, C. 2023. “Cuidar do outro, cuidar da água: gênero e raça na produção da cidade”. Estudos Avançados. Vol. 37, no 107, p. 25-44.. Além disso, sua obra também é fundamental para a elaboração das minhas próprias concepções acerca de uma necrogovernança (Freire, 2019FREIRE, L. 2019. A gestão da escassez: uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e a corrosão das possibilidades de sobrevivência das pessoas. Em diálogo com suas passagens sobre a possibilidade dos “quase eventos” se transformarem em eventos catastróficos e sua relação com a distribuição diferenciada das oportunidades de vida, busco pensar o necrogoverno como uma dimensão menos ostensiva e mais rotinizada da função assassina do poder soberano e, na medida em que é mais normalizada e habitual, torna-se obscura e difícil de capturar etnograficamente.

Passo agora para as discussões dos sete capítulos que compõem Aflição. No primeiro capítulo (“Como o corpo fala”), Das retoma suas observações de campo para discutir como as pessoas buscam tornar as doenças algo “conhecível”. Em diálogo com autores que trabalham com a ideia de “narrativas da doença”, ela tematiza as formas pelas quais os sujeitos acionam termos e categorias oriundos de diferentes sistemas médicos na tentativa de produzir um significado para a experiência de adoecimento e, consequentemente, uma certa coerência e normalização desses episódios. Um dos pontos que merecem destaque nesse capítulo é o mapeamento feito a partir das diferentes formas de pensar a normalidade da doença entre seus interlocutores. Assim, Das discute que há narrativas de uma “normalidade natural”, cujos exemplos são os mal-estares provocados pelas estações, pela idade, pelo crescimento dos dentes em um bebê etc.; e de uma “normalidade social”, que descrevem as doenças causadas pelas condições materiais em que os pobres vivem, como, por exemplo, a “síndrome de pressão baixa”.

Os três capítulos seguintes - isto é, os capítulos “2. Uma criança aprende a doença e a morte”, “3. Doença mental, instituições psiquiátricas e singularidade das vidas” e “4. Ligações perigosas: tecnologia, parentesco e espíritos indomáveis” - abordam trajetórias de doenças dentro de uma mesma família. Os capítulos são apresentados no formato de estudo de caso e, como diz a autora, “cada caso mostra como uma doença se dispersa por pessoas, relacionamentos e tecnologias” (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.: 41). No segundo capítulo, Das narra o percurso de adoecimento e morte por tuberculose de Meena a partir da perspectiva de Mukesh, seu filho. Um dos pontos centrais deste capítulo é a atenção dada ao modo como as crianças aprendem e registram os ritmos biológicos marcados por nascimentos, doenças e mortes.

O capítulo três explora como a loucura do jovem Swapan é capaz de gerar efeitos perturbadores para todos os membros de seu núcleo doméstico, de modo a envolver também os parentes mais distantes e até mesmo os vizinhos. Focando em um componente relacional e questionando definições biomédicas de doenças mentais, Das argumenta que o sujeito da loucura nunca é um indivíduo, mas sempre um conjunto de relações que são ameaçadas pelo adoecimento. Além disso, tratando das dificuldades colocadas pelo paradigma humanitário que preconiza a não institucionalização e o cuidado marcado pela atenção familiar de pacientes de saúde mental, ela busca “rastrear a fragilidade das relações e da experiência revelada quando a loucura não pode ser absorvida no cotidiano” (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.: 106-7). Com isso, Das busca criticar autores do campo da antropologia e sociologia da saúde que tendem a equalizar as ideias de “abandono familiar” e “negligência do Estado”. Para a autora, esses dois fenômenos não são necessariamente comparáveis, o que torna necessário tomar cuidado ao tentar descrever etnograficamente as duas situações como faces distintas de um mesmo processo de neoliberalização.

No quarto capítulo, a autora demonstra como novas tecnologias médicas transformam as relações de cuidado entre as famílias que habitam as regiões empobrecidas de Nova Delhi e expandem as redes de obrigações de parentesco ao, por exemplo, transformar a aquisição de um novo medicamento (que comprometerá o orçamento do comprador) em uma espécie de responsabilidade moral para com o enfermo. Retomando uma discussão iniciada no capítulo anterior, Das questiona a ideia de “abandono familiar” e o descreve não como um “ato de vontade”, mas como uma “exaustão da vontade” e uma incapacidade de continuar a oferecer cuidado diante de condições materiais, afetivas e sociais muito adversas.

O capítulo cinco (“O curandeiro hesitante e a escuridão dos nossos tempos”) se concentra na história de vida de Hafiz Mian, um amil (curandeiro muçulmano). Ao contextualizar as práticas de cura executadas pelo amil, Das descreve um cenário no qual é difícil separar os “curandeiros tradicionais” dos “praticantes do ocultismo”, demonstrando que o que é visto como “conhecimento” por uns é tido como “feitiçaria” por outros. Por meio das memórias e da interpretação que Mian faz de sua trajetória, ela discute como as habilidades e capacidades de cura herdadas pelo curandeiro oscilam entre o estatuto da benção e da maldição.

No capítulo seis (“Medicamentos, mercados e cura”), Das parte da constatação de que a saúde pública indiana discute muito mais a questão do acesso do que a qualidade dos serviços médicos. Ela apresenta um conjunto de dados que evidenciam a existência do “acesso” nos bairros pobres, ainda que muitos dos profissionais disponíveis não tenham formações específicas e/ou treinamento formal na área médica, uma vez que a maioria atua nos campos das medicinas aiurveda e unani (“medicina alternativa”). Além disso, a autora nota também que a maior parte dos praticantes nos lugares onde fez campo atende apenas no setor privado e que as instituições públicas são mais utilizadas pelas populações de classe média do que pelos pobres. Com isso, Das conclui que “há pouca dúvida de que, em termos de competência dos praticantes para reconhecer e diagnosticar uma doença ou avaliar adequadamente os medicamentos que ministram ou prescrevem, a qualidade do atendimento recebido pelos pacientes dentro desse meio é muito ruim” (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.: 190).

O sétimo capítulo (“Discurso de saúde global e a visão do planeta Terra”) traz uma sensível alteração na escala das discussões. Se nos capítulos anteriores Das esteve firmemente ancorada em material etnográfico, no último capítulo ela trata da produção de consensos muito mais amplos sobre saúde como um “bem público global” e a transformação que isso acarreta nas políticas públicas voltadas para prevenção e tratamento de doenças que acometem principalmente os pobres e marginalizados. Mais do que promover equidade no acesso a serviços e tecnologias, o discurso sobre saúde global tem privilegiado mecanismos de vigilância que objetivam neutralizar a propagação de doenças e mantê-las longe das populações dos países mais abastados. Em outras palavras, Das se pergunta de que maneira a ênfase na biossegurança dos países desenvolvidos afeta a distribuição de recursos e priorização de doenças no âmbito global, atualizando o debate sobre “doenças negligenciadas”.

Além disso, Das expõe como campo da antropologia da saúde contribui para repensar oposições clássicas das ciências sociais - em especial os binômios indivíduo/sociedade e público/privado - a partir de discussões feitas na área da saúde global. Na medida em que saúde e doença se configuram como uma espécie de interesse geral, as fronteiras entre esses elementos são borradas, pois já não há mais um consenso acerca da distinção entre “doenças públicas” transmissíveis (que são um perigo para a sociedade ou uma população e que demandam políticas coletivas) e “doenças privadas” não transmissíveis (que são classificadas como “doenças de estilo de vida” e que, portanto, caberia ao sujeito individual dar conta de sua prevenção e tratamento).

Na “Conclusão: pensamentos para depois de amanhã”, Das recupera as diferentes formas que a doença assume ao longo do texto para reforçar perguntas, dilemas e incertezas apresentadas anteriormente e oferecer ao leitor indagações para futuros projetos de pesquisa. Isto é, na última parte do livro, Das recoloca dúvidas para as quais ela afirma que não é possível dar respostas simples ou prontas. No entanto, creio que o trecho que melhor exprime essa perspectiva e resume Aflição encontra-se não em suas considerações finais, mas em sua introdução quando ela escreve: “vejo esse livro, portanto, como uma abertura à conversação, mais do que o fim de uma viagem. As análises e descrições etnográficas sobre pobreza, prevalência de doenças ou estado de saúde que ofereço comportam certa hesitação. O que consegui mostrar é a distribuição diferenciada de oportunidades de vida e o surgimento de aspirações por parte dos pobres para a melhoria de suas condições materiais e sociais” (Das, 2023DAS, V. 2023. Aflição: saúde, doença, pobreza. São Paulo: Editora Unifesp.: 42-43).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2023
  • Publicado
    07 Nov 2023
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