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MURPHY, Timothy Eugene. Cosmopolita queer: boemia e belonging em uma cidade no meio do nada. 1. ed. Teresina (PI): EDUFPI, 2022. 173 p.

MURPHY, Timothy Eugene. Cosmopolita queer: boemia e belonging em uma cidade no meio do nada. 1. ed.Teresina (PI): EDUFPI, 2022. 173

O antropólogo Timothy Murphy é hoje professor associado e chair de Estudos Urbanos da Worcester State University. Estadunidense, ele morou em Teresina, capital do Piauí, na região Nordeste, em duas ocasiões. Na primeira delas, em 2003, rumou para a cidade para lecionar inglês. Em busca de informações, encontrou quase nada na biblioteca da cidade onde vivia na época, e menos ainda em suas pesquisas na internet. Assim, teve de confiar na descrição de um conterrâneo que o indicou para o trabalho: a população teresinense era de cerca de 1 milhão de habitantes, a cidade era quente, longe da praia e tinha uma única loja do Mc Donald´s.

Para chegar à cidade, passou quase 24 horas em trânsito a partir do aeroporto de Chicago, nos Estados Unidos. E no avião que o levou à capital do Piauí, um voo doméstico no Brasil, havia ele e mais três pessoas.

Enquanto o avião pousava, olhei pela janela, intrigado pelas texturas e cores vibrantes das densas manchas de florestas de palmeiras e da terra cor de laranja. Pouco antes de aterrissar, vislumbrei dois jovens garotos sem camisa jogando futebol em uma estrada de terra. Para mim, era a confirmação final - não importa quão clichê fosse - de que eu estava prestes a encontrar esse lugar que eu vinha tentando tanto imaginar. Isso, eu pensei comigo mesmo, é o Brasil. (Murphy, 2022, p. 8)

Contudo, outro clichê que Murphy parece ter aprendido ao viver não apenas “na” cidade, mas também “a” cidade, é que as aparências enganam. O lugar “no meio do nada” acabou se revelando um ambiente que, além das estradas de terra, do futebol “pé no chão”, da pobreza e da aparente simplicidade e “interioridade”, também dava seus primeiros sinais de progresso socioeconômico, resultado de políticas públicas implementadas a partir do primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado justamente no ano em que chegou a Teresina.

Foram políticas de distribuição e aumento de renda, criação de empregos e, por consequência, ampliação do acesso a bens de consumo que culminaram na formação da “Nova Classe C” brasileira. Além disso, houve a expansão das tecnologias de informação e comunicação (TIC), a ampliação do acesso à internet e também de redes sociais. O “o meio do nada” foi se transformando em “ali”.

Em sua primeira estada, Murphy conheceu “a galera”,

Uma comunidade alternativa bastante unida, formada por mulheres e homens que tentavam estabelecer um sentimento de belonging em um mundo em expansão, com habitantes de classe média socialmente conservadores e preocupados com o status. (Murphy, 2022, p. v)

A “galera”, uma denominação nativa, ressalta o autor, demonstrava anseios de pertencimento e ao mesmo tempo de diferenciação. Enquanto na boemia essas pessoas expressavam o que o autor vai descrever como queerness, conceito que será explicado adiante, nas relações familiares e profissionais, notadamente marcadas pelo conservadorismo, essa “alternatividade” era negociada - ou, melhor, ocultada. Formada por mais de 200 pessoas, segundo Murphy, a comunidade reunia vários espectros da classe média brasileira, desde jovens formados que trabalhavam e ajudavam no sustento de suas famílias até profissionais bem-sucedidos, moradores dos então novíssimos condomínios de luxo que começavam a surgir em Teresina. Cosmopolitas e locais. Enfim, um grupo social que “borrava” fronteiras a partir de suas relações.

E foi a galera que fez com que Murphy, após alguns anos de volta a seu país, retornasse à capital piauiense de 2009 a 2010. Dessa vez para sua pesquisa de doutorado em Antropologia pela University of California - Davis. Estudo que baseia este livro, lançado originalmente em inglês em 2019 pela Editora Palgrave Macmillan, nos Estados Unidos, e editado em português em 2022 pela Editora da Universidade Federal do Piauí - EDUFPI.

Nesse intervalo de tempo, Murphy notou que a galera cresceu e se tornou mais “amorfa” - e Teresina também. “As normas, outrora altamente restritas em torno da aparência das pessoas em espaços de mobilidade social ascendente, haviam diminuído significativamente” (Op. cit., p. vi). Ainda assim, a busca pelo belonging continuava para muitos dos integrantes do grupo.

Entre o belonging e o be-longing

Belonging”, em português, significa “pertencimento”. Essa é uma das primeiras noções que Murphy trata ao analisar a galera e suas relações em Teresina. É preciso explicar que a cidade é a única capital do Nordeste que não está localizada no litoral. Portanto, não atrai turistas, sejam do Brasil ou do exterior, que costumam lotar as demais capitais nordestinas em busca de suas belas praias.

Isso, porém, não “isola” os integrantes da galera do mundo “de fora”, que, em maior ou menor grau, e com vieses diferentes, passou a ser o “eldorado” para parte da emergente classe média teresinense de então. Além das experiências fora da cidade, por meio de viagens, vale lembrar que as redes sociais digitais não apenas diminuíram as distâncias geográficas como eliminaram muitas fronteiras.

Assim,

Por um lado, esta história fala da identificação e vinculação de um grupo de pessoas a uma cidade. Por outro lado, fala da falta de identificação e da insatisfação de um grupo de pessoas com aquela cidade e das maneiras como essas pessoas são levadas a construir um tipo diferente de lugar ali mesmo, às vezes para o desfrute dos outros, mas principalmente para si. (Murphy, 2022, p. 12)

Essa aparente contradição faz com que o autor proponha a noção de “be-longing in the world at home” - pertencimento no mundo em casa. “Be” significa “ser ou estar”, e “longing”, “desejar”. Assim, “‘be-longing’ é a experiência de desejo que ocorre quando alguém tenta assegurar um lugar de direito para si mesmo tanto ‘no mundo’ quanto ‘em casa’” (Op. cit., p. 13). O que, segundo Murphy, transforma os integrantes da galera em outsiders, na concepção de Howard Becker.

O que se percebe, porém, é que, se a galera é, em determinados momentos, outsider no sentido de desviante de um “ser/estar” da nova classe média teresinense, também negocia esse desvio, sobretudo quando se trata da realidade material. Assim, qualquer tentativa de se estabelecer uma identidade para esse grupo se mostra falha, aponta o autor. Circulando entre o dentro e o fora, o diferente e o similar, suas posições também se moldam nas relações fora da galera, na vida cotidiana. “Belonging” e “be-longing”, assim, parecem adquirir nuances situacionais.

“Cosmopolitas locais”: o “de fora” e o “de dentro” amalgamados

Como um grupo de uma cidade “no meio do nada” pode ser cosmopolita? Para Murphy, a galera é uma representação do que ele chama de “cosmopolitismo local”. E tal conceito mostra-se bastante procedente, não apenas para essa “turma” específica de Teresina, mas também para outros grupos sociais de cidades geográfica e socialmente classificadas como “de interior”, como pude observar em minha pesquisa sobre homoerotismo masculino e envelhecimento no Rio de Janeiro e no Extremo Sul da Bahia e foi apontado anteriormente por Gontijo e Erick (2015)GONTIJO, Fabiano; ERICK, Igor. 2015. Diversidade sexual e de gênero, ruralidade, interioridade e etnicidade no Brasil: ausências, silenciamentos e... exortações. Aceno - Revista de Antropologia do Centro-Oeste. vol. 2, no 4, p. 24-40., Lopes (2016)LOPES, Moisés Alessandro de Souza. 2016. Algumas observações sobre as homossexualidades em “contextos interioranos”: lançando questões “fora dos centros”. Amazônica Revista de Antropologia. vol. 8, no 1, p. 24-37. e Passamani (2018)PASSAMANI, Guilherme R.. 2018. Batalha de confete: envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal-MS. Rio de Janeiro: Editora Papéis Selvagens. 252 p., em pesquisas sobre gênero e (homos)sexualidade em contextos interioranos brasileiros.

O autor discorre sobre as discussões acadêmicas que vêm questionando a noção de cosmopolitismo, sobretudo a partir do processo de globalização. Afinal, no âmbito comunicacional, a evolução das TICs inegavelmente facilitou e acelerou o acesso a culturas e lugares longínquos e variados por meio da tela do computador e, atualmente, do celular.

Assim, a própria noção de “no meio do nada” parece cair por terra. Murphy cita Gregory Clancey, que afirmou que “o ‘no-meio-do-nada’ pode de fato ser uma lenda urbana inconscientemente sustentada por nosso foco em uma rede urbana hierárquica de proporções globais” (Clancey apud Murphy, p. 10). Dessa forma, o autor ressalta que, para quem é ou vive no “meio do nada”, o cosmopolitismo não começa ou se encerra nos grandes centros urbanos nacionais ou globais, mas sim no lugar de onde se é e onde se está.

Voltemos à Teresina, uma cidade que viu sua população aumentar quase dez vezes em cerca de 70 anos. O Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a capital do Piauí tinha, no ano passado, 866.300 moradores. Esse crescimento populacional se deve bastante a migrações internas, no próprio estado do Piauí. Ou seja, muitos habitantes da cidade são do interior piauiense ou tem parentes lá - inclusive gente da galera, como pontua Murphy. Pessoas que foram para a “cidade grande”, Teresina, em busca de oportunidades. Mais uma vez, borram-se os limites entre interior e metrópole, rural e urbano, cidades “ordinárias” e cidades “cosmopolitas”.

Entretanto, sua localização - seja por estar na região Nordeste, ainda a mais pobre do país, seja no interior do estado mais pobre dessa região - faz com que Teresina seja vista por seus habitantes e também por quem lá não vive como um lugar “no meio do nada”. Sensação reforçada pelo clima quente - que a faz receber de alguns dos integrantes da galera a alcunha de “Terehell”, associando o calor da cidade ao inferno: “é porque o diabo mora aqui”, disse um membro da galera. Nesses deslocamentos da galera entre o cosmopolita e o local, Murphy faz uma instigante proposta de colocar o calor teresinense como “personagem principal da história”.

O calor é tido como símbolo do atraso, não apenas em Teresina, mas no Nordeste como um todo. Assim, os anseios de um “fora” desenvolvido, branco - a racialização inegavelmente perpassa, ainda que dissimuladamente, nas noções de “atraso” e “progresso” - e sobretudo frio marcam a classe média teresinense conservadora. A mesma classe média que, de acordo com Murphy, chama de “chique” tudo aquilo que parece ter vindo “de fora” ou que se mostre com um símbolo de status. Ainda que, como pontua o autor em relação a Teresina, a classe média “tradicional” e conservadora lamente que o “chique” acabe sendo borrado entre quem de fato tem e quem performa ter. Situação perceptível também em outras cidades brasileiras a partir do surgimento da Nova Classe C.

A galera se equilibra nesses termos. Assim, se alguns, mais abastados, têm apartamentos e carros com ar condicionado - algo “chique” -, outros têm de se virar apenas com ventiladores. Ainda assim, a vida cotidiana se torna uma “negociação” com o clima, quando se entra e sai de ambientes climatizados ou não e se circula pela cidade.

Queerness, boemia e as negociações do cotidiano

Murphy propõe o conceito de queerness como uma marca distintiva da galera. Entretando, seu uso analítico de queer não se refere ao uso leigo desse termo como parte da comunidade LGBTI norte-americana (uso este ainda diferente da apropriação política do termo por públicos latino-americanos). Assim, para o autor, “o ethos queer da galera refere-se a identificações com modos de vida alternativos e não normativos existentes nas margens da sociedade convencional” (Murphy, 2022, p. 70). Esses modos de vida “à margem” e “alternativos” envolvem outras articulações que vão além do gênero e da sexualidade - que são “borrados” por integrantes da galera, mas não se mostram como uma marca “identitária” do grupo.

Ao fomentar coletivamente uma vida em torno de estéticas, práticas e perspectivas de vanguarda e não convencionais - um processo que se desenrola através de vários tipos de eventos, projetos e interações - a galera se mantém como uma comunidade centrada no interesse em relação ao não-familiar, ao novo e ao estranho. Por outro lado, a queerness da galera refere-se à abordagem utilizada nas construções do self e da comunidade - ambos entendidos como desconectados, em fluxo e flexíveis, livres de qualquer noção de identidade estável ou essencial. (Ibid, p. 70)

Nesse sentido, o queerness reconhece e permite “uma abertura para novas experiências e a possibilidade de se tornar algo diferente do que a sociedade dominante permite” (Ibid, p. 71).

É no que Murphy chama de “boemia noturna” - importante lembrar que as temperaturas em Teresina são mais amenas à noite, ele ressalta - que a galera cria para si tempo e espaço onde o queerness se evidencia. “Ocorrendo apenas à noite e em locais e ambientes sempre diferentes, a boemia noturna é onde a galera momentaneamente manifesta-se como um todo integrado (Murphy, 2022, p. 74).

Ao mencionar que a boemia e o estilo de vida boêmio não são novidade, o autor distingue o movimento da galera em relação a outros exercícios boêmios mundo afora. Embora haja similaridades, para Murphy “a configuração da galera representa uma ressignificação da boemia por não ser um elemento permanente nem facilmente localizável no cenário de Teresina (Ibid, 75).

Manifestando-se à noite em uma ampla variedade de locais, essa boemia espacial e temporalmente mutável não se restringe a nenhum setor específico da cidade. É fragmentada, parcial e dinâmica; tanto que não é reconhecida pela grande maioria dos teresinenses. (Ibid, p.75)

Entretanto, a alternatividade (queerness) da galera tem seus limites. Se a noite ameniza o calor teresinense e cria o ambiente para essas interações, o amanhecer trás consigo não apenas as temperaturas mais elevadas, mas o cotidiano, a necessidade de sobreviver e de suprir necessidades materiais. É neste momento que o cosmopolita costuma ceder espaço ao local. Sobretudo nas relações familiares e também profissionais, destaca Murphy. Os “diferentões” e as “diferentonas” da boemia noturna são substituídos por pessoas que têm de negociar com outros grupos, frequentemente conservadores, as relações do dia a dia. Afinal, a fluidez também precisa ser capaz de se moldar em momentos oportunos.

Idealizações

O livro de Murphy é uma rica etnografia de Teresina, e sua apresentação da galera mostra nuances pouco conhecidas das relações e do cotidiano em uma cidade que ainda é considerada “no meio do nada”. Entretanto, em determinados momentos, o autor parece idealizar tal grupo, talvez por ter se surpreendido em verificar que na capital do Piauí também há pessoas “alternativas” ou “outsiders”. O que, pelo fato de ser estadunidense, reflete alguma dose de etnocentrismo.

Tal idealização talvez tenha feito Murphy não se atentar para um questionamento interessante: ao criticar padrões e normas e procurar se diferenciar destes, a galera também não está criando novos padrões e normas? Ao se mostrar “sem identidade”, queer, como aponta o autor, a galera não estaria forjando uma nova identidade?

Por fim, teria sido bem interessante se Murphy relatasse mais, como é de praxe na etnografia após a “virada reflexiva” da década de 1980, a reação das pessoas da galera - e porque não de outros grupos sociais de Teresina - a ele. Não apenas como pesquisador, mas sobretudo como um estrangeiro que vivia na e a cidade. A curiosidade sobre a visão do outro/da outra ficou pairando no ar.

Referências bibliográficas

  • GASPARI, Alexandre. 2023. “Não sou velho, só tenho mais idade”: envelhecimento, homoerotismo e masculinidades entre homens de meia idade no Rio de Janeiro e Extremo Sul da Bahia Tese, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
  • GONTIJO, Fabiano; ERICK, Igor. 2015. Diversidade sexual e de gênero, ruralidade, interioridade e etnicidade no Brasil: ausências, silenciamentos e... exortações. Aceno - Revista de Antropologia do Centro-Oeste vol. 2, no 4, p. 24-40.
  • LOPES, Moisés Alessandro de Souza. 2016. Algumas observações sobre as homossexualidades em “contextos interioranos”: lançando questões “fora dos centros”. Amazônica Revista de Antropologia vol. 8, no 1, p. 24-37.
  • PASSAMANI, Guilherme R.. 2018. Batalha de confete: envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal-MS Rio de Janeiro: Editora Papéis Selvagens. 252 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2023
  • Aceito
    13 Nov 2023
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