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RAO, Rahul. Out of Time: The Queer Politics of Postcoloniality. New York: Oxford University Press, 2020. 262 p.

RAO, Rahul. Out of Time: The Queer Politics of Postcoloniality. 1. ed.New York: Oxford University Press, 2020. 262

Em uma análise que interrelaciona marcadores de diferença como sexualidade e gênero, raça, castas, e nacionalidade, e observando o que chama de queerização, na tentativa de evitar e superar redução do termo à sexualidade, Rao aprofunda uma leitura da relação entre tempo e espaço nas relações entre Norte e Sul Global. O autor engaja-se com uma reflexão advinda da teoria queer, de crítica aos efeitos de assimilação por meio da homonormatividade, ou, ainda, do que ele chama de crononormatividade hegemônica. A proposta é analisar as retóricas do passado e do futuro queer, especialmente considerando o impacto dessa normatividade no contexto pós-colonial, assim como o impacto da pós-colônia nessa normatividade.

De início, é importante notar que o autor parte de uma disciplina com tradição heterogênea, que reúne referências de diversas outras áreas do conhecimento, mas que, na obra, logra em produzir reflexões sobre os estudos pós-coloniais, as teorias queer, interseccionalidades e sobre a teoria política. A obra apresenta uma análise da relação entre percepções e ideais de nação, em uma leitura sobre como a sexualidade e o gênero, a homossexualidade e a homofobia, a transexualidade e a transfobia, informaram e informam esses processos histórica e economicamente. Por isso, o subtítulo proposto de uma política queer da pós-colonialidade informa como a afirmação do eu e diferenciação do outro se dão a nível da nação e do internacional.

Sendo assim, o livro apresenta uma crítica do espaço e do tempo da modernidade Ocidental, na tentativa de provincializá-la e de demonstrar a forma com que sujeitos e populações são colocados em posições de atraso temporal. Essa articulação do espaço-tempo serve à construção de uma crítica dos ideiais de nação, que são baseados em noções de gênero e sexualidade. Mais especificamente, a crítica espaço-temporal permite traçar e descrever a produção do Outro homossexual e da homofobia como produtos coloniais, ou como produtos de um atraso histórico-temporal das regiões do globo que ocupam a posição de pós-colônia. O autor analisa e contrasta os discursos que contestam que “a homossexualidade é Ocidental” ou que “a homofobia é Ocidental”.

Rao ilustra: a noção básica hegeliana mapeou o tempo no espaço em que a África foi imaginada como o passado da Europa, enquanto a Europa seria o futuro de todos, para demonstrar a reprodução de uma justificativa civilizatória. Posteriormente, surge uma justificativa baseada na noção de desenvolvimento e, na análise desse contexto, o autor contribui para a literatura pós-colonial que entende distintos processos coloniais como testes da superioridade europeia. No caso do autor, os estudos de caso focados em Uganda e na Índia permitem aprofundar a análise no contexto da colonização britânica na África e na Ásia, mas que também convergem com a literatura que analisa os processos coloniais nas Américas como espaços de testes de teorias contratualistas, que figuraram como espaços para testar e comprovar a existência de um estado de natureza preservado antes da colonização dos Europeus.

Três instrumentos analíticos se destacam como premissas, ou como resultados da obra em si: as noções de homonacionalismo, homoromantismo e homocapitalismo. A primeira, cunhada por Jasbi Puar (2007)PUAR, Jasbir K. 2007. Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times. Durham, NC: Duke University Press., permite analisar como a aceitação, incorporação, ou conquista de direitos LGBT são mobilizados como novos marcadores para a antiga divisão entre civilizados e selvagens. Nessa dinâmica, o nacionalismo é recriado em Estados que se superiorizam por incluírem a existência e os direitos de sujeitos marginalizados por gênero e sexualidade, mesmo que nos termos de uma homonormatividade. A métrica do desenvolvimento é, portanto, reforçada. Já a segunda, homoromantismo é cunhada pelo autor e refere-se ao argumento de que a homofobia é um construto colonial, uma herança da colonização e um sentimento importado, em uma tática retórica de ativismos queer que produz efeitos como um apagamento da agência de atores que perpetuam a homofobia em contextos pós-coloniais e do Sul Global, atores que seriam mera manipulação de grupos externos em um ahistoricismo que não sucede avançar a pauta LGBT.

Rao exemplifica como é possível conceber um movimento aparentemente irreconciliável: ser homofóbico e ser decolonial. A negociação dos termos do gênero torna-se central para observar a homossexualidade como uma espécie de ameaça à integridade moral de uma nação africana. Na sua análise da Church of Uganda (Igreja de Uganda), afirma: “reconhecer a possibilidade de uma homofobia decolonial é compreender que a descolonização promete apenas uma forma mais democrática de tomar decisões; não pressupõe que essas decisões terão necessariamente resultados emancipatórios” (p. 90). No capítulo 3, intitulado “Re-membering Mwanga, Mourning the Martyrs” (Re-lembrando Mwanga, Enlutado os Mártires), o autor classifica as reações quanto à memória quanto à sodomia e/ou homossexualidade de Kabaka Mwanga II entre desinteresse, deslocamento e negação. Essas diferentes reações, que flutuam entre um aparente impacto menor da sexualidade de Mwanga na relação de ugandenses entrevistados com a espiritualidade cristã revivida na celebração dos mártires, e uma representação dessa sexualidade como pivô do martírio daqueles que recusaram o Kabaka, o autor conclui que a desidentificação de Esteban Muñoz (1999)MUÑOZ, José Esteban. 1999. Disidentifications: Queers of Color and the Performance of Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press. é uma tática útil para a relação dos kuchus com esse passado. Tanto pela própria citação de Muñoz quanto pela proposta de romper com a lógica dominante de um texto, discurso ou herança cultural, Rao pauta ainda a possibilidade de uma prática decolonial emancipatória, recriando o passado.

Por último, o homocapitalismo se instaura no contexto neoliberal com a promessa de um futuro de crescimento e produtividade que depende da incorporação dos direitos LGBT pelo Estado. Podemos conceber esse aparato ideológico do homocapitalismo como um recurso a uma lógica econômica específica, e ao futuro, para justificar a necessidade de superação do contexto homofóbico em contextos como o indiano, conforme assinalado pelo autor. A título de exemplo, Rao observa um mapa produzido por ativistas LGBT indianos, publicado em 2006, que marca em laranja os países em que a sodomia era criminalizada naquele momento, enquanto o restante do globo era marcado em branco. O mapa trazia a seguinte questão: ‘somente os países coloridos em laranja continuam a criminalizar a sodomia. A qual mundo a Índia deve pertencer?’ Os países coloridos em laranja eram majoritariamente subsaarianos, caribenhos e asiáticos.

Em uma ideologia forjada na interação entre ativistas LGBT pertencentes a uma elite, utilizando os termos do autor, e tecnocratas em Instituições Financeiras Internacionais, a reparação e a inclusão passa a se dar em termos de uma reconfiguração do queer como um novo modelo ideal de sujeito capitalista que é essencial para o crescimento econômico. O progresso torna-se atrelado à inclusão da população LGBT, em um liberalismo queer global, e as nações pós-coloniais que ainda não incorporaram essa premissa estariam em um estágio temporalmente, e moralmente, anterior àquelas que já o fizeram no Norte Global. Ou seja, alcançar o patamar de nação desenvolvida depende da adoção de uma lógica neoliberal na qual figurem os novos sujeitos moralmente aceitos, isolando os processos históricos por meio dos quais a homofobia se instaurou, ou seja, tornando-a um aspecto cultural pertencente a dada nação. Rao argumenta que esse desejo de inclusão apaga a influência da precariedade material e econômica que criou terrenos para o surgimento desses pânicos morais quanto à sexualidade e ao gênero.

Essa visão do progresso atrelado aos direitos de minorias, que projeta um futuro-no-presente, não destaca a metonímia que a marginalização por gênero e sexualidade carrega, conforme analisado na obra, as hierarquias de nacionalidade, raça e casta. De maneira talvez contraditória, a noção de que os Estados “sempre existiram”, sempre estiveram lá, sanciona a narrativa de que a homofobia e a homosexualidade são produtos endógenos. A homofobia e a homosexualidade são espacializadas. As propostas do autor de historicizar o lugar, em vez de espacializar a homofobia, por exemplo, possibilitam analisar como os espaços se tornam estabilizados justamente por incorporar ou renegar o desejo queer.

No capítulo “Spectres of Colonialism” (Espectros do Colonialismo), esmiuça-se a recriação de lógicas homonacionais e homoromânticas na incapacidade de um ato de responsabilização britânica pela instauração de leis anti-sodomia no contexto de sua colonização. Rao transita entre passado e futuro da culpa britânica: por um lado, a necessidade de expiar-se por meio do reconhecimento da culpa, mas que automaticamente aloca a culpa em um passado que não pode mais ser reparado; e, por outro, a tentativa de se responsabilizar por isso tornando-se novos salvadores daqueles hoje oprimidos e criminalizados por herança dessas leis. O autor chama atenção para o silenciamento da descartabilidade de corpos racializados, da islamofobia e do pânico moral quanto aos migrantes e refugiados, assim como para a recusa de uma retratação pela escravidão com recurso a distintos argumentos de isenção ou impossibilidade da responsabilidade histórica, de responsabilização pelo passado, por vezes justificado em um argumento de anacronismo moral.

Podemos analisar, então, o recurso à culpa como a busca por um alívio moral, uma vez que os direitos LGBT tornaram-se sinônimo de modernidade global, ou indicativo de progresso nacional. Seja por meio do reconhecimento da culpa ou por meio de propostas de reparação, quem figura como centro de agência, no papel de salvador, de civilizador, é o sujeito, e o Estado, britânico. A negociação e o fluxo de recursos materiais para uma reparação pela escravidão, conforme aponta o autor, seria de uma ordem de grandeza inadmissível para o Estado Britânico, enquanto o processo de identificação da causa LGBT com o desenvolvimento e a modernização transformam o argumento baseado nos direitos humanos de populações marginalizadas por sexualidade e gênero em uma justificativa econômica para a inclusão. No capítulo 5, “Queer in the Time of Homocapitalism” (Queer no Tempo do Homocapitalismo), o autor explora as condições neoliberais dessa inclusão, que separa corpos produtivos e improdutivos, em uma lógica conjunta do homonacionalismo e da homonormatividade.

Uma das formas que o Banco Mundial utilizou para sustentar a importância dos direitos LGBT foi por meio de pesquisas que demonstram o custo econômico da queerfobia. A exclusão e o preconceito prejudicam a produtividade possível de sujeitos LGBT. O autor discorda veementemente da leitura de que o argumento econômico seria apenas um complemento ao argumento dos direitos humanos, apontando para a razão neoliberal que reduz a vida a termos econômicos, em um processo que esvazia o conteúdo moral e subversivo de categorias políticas como soberania, direitos e democracia. Ou seja, se os direitos humanos são submetidos como meios para o crescimento econômico, eles são subordinados e dependem desses fins para existir. A promessa do futuro, de uma vida boa que ainda não chegou, garante a hegemonia da razão neoliberal.

Rao termina a sequência de capítulos com uma análise do recurso a uma categoria atraso, em “The Nation and Its Queers” (A Nação e seus Queers), em um extenso estudo de caso sobre o contexto indiano. Movimentos trans articulam essa noção em um paralelo aos dalits, no sistema de castas, para conquistar emancipação e reparação. Nesses termos, criou-se um paralelo entre os dalits marginalizados por seu atraso no passado, e os trans do presente. A estratégia de mobilização do atraso, ou do atrasado, permite vislumbrar uma emancipação possível, recorrendo a um queer que já existiu na tradição indiana no passado, seja dalit ou, ainda, hijra (por mais que uma hijra possa ser dalit, e essas intersecções sejam por vezes ignoradas). Em vez de um recurso ao queer como futuro, como categoria que representa desenvolvimento e progresso, temos o apelo ao atraso como uma legitimação específica ao contexto indiano, que marca os dalits e, então, os queers que recorrem a essa posição de atrasados como legítimos requisitantes perante o Estado.

Nesse contexto, enquanto a homossexualidade é construída como produto da modernidade, o sujeito trans cria uma figuração utópica na hijra, que sempre esteve presente. Na medida em que não se pode esgotar ou reduzir a sujeição da hijra a termos de uma marginalização por gênero, Rao a coloca como uma figura fronteiriça. Pensando como Gloria Anzaldúa (1987)ANZALDÚA, Gloria. 1987. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. São Francisco: Aunt Lute Books., a impossibilidade de articular essa utópica hijra parece expressar a impossibilidade de uma ação revolucionária precisa, ou uníssona. O trabalho do autor contribui para analisar os apelos ao passado e ao futuro na disputa pelo significado do gênero, da raça e da casta, e sua contribuição chama atenção por delinear os mais diversos tipos de estratégia de sobrevivência de pessoas LGBTQIA+, dentro dos termos da normatividade ou em resistência a eles.

Referências bibliográficas

  • ANZALDÚA, Gloria. 1987. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza São Francisco: Aunt Lute Books.
  • DUGGAN, Lisa. 2003. The Twilight of Equality? Neoliberalism, Cultural Politics, and the Attack on Democracy Boston: Beacon Press.
  • MUÑOZ, José Esteban. 1999. Disidentifications: Queers of Color and the Performance of Politics Minneapolis: University of Minnesota Press.
  • PUAR, Jasbir K. 2007. Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times Durham, NC: Duke University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2023
  • Aceito
    13 Nov 2023
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