Acessibilidade / Reportar erro

A inter-relação entre cenografia e et(h)os* * Numa tentativa de conciliar, por um lado, a tradição dos estudos sobre o tema, na qual se consagrou a grafia ethos, e, por outro, a recente inclusão de etos em dicionários da língua portuguesa (Houaiss, Volp), optamos neste artigo pela forma et(h)os, procedimento já adotado em Souza-e-Silva & Rocha (2012). : Carmen - les racines d'un mythe, de Maingueneau

The interrelationship between scenography and ethos: Carmen - les racines d'un mythe, by Maingueneau

Resumo:

Este artigo tem por objetivo abordar o conceito de et(h)os por uma via singular, tomando-o como dispositivo construído em solidariedade com uma cenografia. Partindo-se da semântica global, compreendida como horizonte teórico delineado por D. Maingueneau (1984MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984.; 2008MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.), centramos o presente debate em Carmen – les racines d'un mythe, obra não traduzida para o português, escrita à mesma época de Genèses du discours. O que pretendemos ao aproximar as duas obras é explicitar o quadro teórico construído em Genèses, em especial a cenografia e o et(h)os, como articuladores da leitura de Carmen a que procede o autor.

Palavras-chave:
semântica global; et(h)os; cenografia; enlaçamentos; mito de Carmen

Abstract:

This paper aims at discussing the concept of ethos from a singular perspective, considering it as a device built in solidarity with scenography. Based on global semantics, understood as a theoretical horizon outlined by Dominique Maingueneau (1984MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984.; 2008MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.), we focus this debate on Carmen – les racines d'un mythe, a work not yet translated into Portuguese, written at the same time of Genèses du discours. What we intend, by bringing both works together, is to explain the theoretical framework created in Genèses, especially scenography and ethos, as articulating elements for the author's reading of Carmen.

Keywords:
global semantics; ethos; scenography; enunciative looping effects; myth of Carmen

Falar sobre alcance, desafios e potencialidades da noção de et(h)os na obra de Dominique Maingueneau poderia nos levar a recorrer ao critério cronológico, a percorrer, em diacronia, as reformulações desse conceito, focalizando o tratamento dispensado pelo autor em diferentes momentos de sua formulação teórica. Outra possibilidade, a que privilegiamos neste artigo, implica tratar o et(h)os por meio de uma noção central do pensamento de Maingueneau, a de cenografia. Distinta das coordenadas que definem as circunstâncias empíricas de produção do discurso, a cenografia implica a construção de uma certa posição do enunciador, do coenunciador, de uma topografia e de uma cronografia. A captação de uma dada cenografia indica a possibilidade de um modo de enunciação, uma maneira de dizer específica, uma imagem de enunciador – o et(h)os – que só pode ser apreendida em uma situação de enunciação precisa, integrada a uma determinada conjuntura sócio-histórica.

Para tratar dessa inter-relação, escolhemos uma obra de Dominique Maingueneau pouco conhecida do grande público e ainda não traduzida para o português, embora represente um dos investimentos mais bem-sucedidos de sua teorização no que concerne ao encadeamento de diferentes planos que legitimam uma obra: Carmen – les racines d'un mythe1 1 O autor se baseia na ópera Carmen, imortalizada por G. Bizet e pelos libretistas H. Meilhac e L. Halévy, realizada segundo as convenções da Opéra-comique, dentre elas, a alternância entre o canto e o diálogo. A versão original foi apresentada em 1875 e, a partir de então, surgiram outras versões, com supressão parcial ou total dos diálogos. , texto contemporâneo de Genèses du discours2 2 Por razões indicadas adiante, referimo-nos aqui à edição original francesa da obra, que data de 1984. , ambos publicados, na França, em 1984. Se pensarmos que o autor, em sua obra teórica, lançou o princípio da semântica global, segundo o qual os discursos não têm um centro específico, mas planos diversos que produzem integradamente os efeitos de sentido, foi certamente em Carmen que, sem o anunciar explicitamente, forneceu uma análise altamente esclarecedora, silenciando, contudo, as afinidades entre as duas obras. É desse silêncio que ora queremos tratar, dizendo com todas as letras por que consideramos Carmen um trabalho magistral para a explicitação da multiplicidade de dimensões do discurso – temas, estatuto dos coenunciadores, topografia, cronografia e modo de enunciação, dentre outras –, com particular atenção ao que se depreende da solidariedade entre cenografia e et(h)os.

Retomamos aqui uma recente contribuição do autor na qual aponta em particular a afinidade entre a escolha de uma cenografia e a construção do et(h)os em análise de anúncios publicados em sites de relacionamentos. Em um deles. a anunciante se apresenta parafraseando, em verso, um trecho de prosa poética de René Char. A cenografia de texto literário a que ela recorre é reveladora de um et(h)os de sensibilidade que poderá vir a despertar o interesse de algum frequentador do site (MAINGUENEAU, 2014MAINGUENEAU, Dominique. Retour critique sur l'éthos, Langage et société, n. 149, p. 31-48, 2014/3., p. 37).

1 Pistas da leitura de Carmen, segundo Maingueneau3 3 Neste tópico, tomamos por base a leitura que faz D. Maingueneau do libreto de Carmen.

Em Carmen – les racines d'un mythe (1984), Maingueneau não se propõe a restituir a ilusão de uma “verdadeira” Carmen, nem a dar uma interpretação suplementar, mas sim a revelar o espaço a partir do qual foram, são e podem ser construídas suas múltiplas interpretações. Para fazê-lo, não retorna à obra de Mérimée (1845), antes opta por concentrar-se no trabalho dos libretistas de Bizet, dado que o mito de Carmen se enraíza na ópera. Sigamos seus passos.

Desde que a história de Carmen acedeu ao status de mito, oscila-se entre duas possibilidades: centrar-se na atemporalidade de uma tragédia sobre as relações entre homem e mulher, o amor e a morte, ou recriar o contexto sócio-histórico do século XIX. Está na natureza mesma dessa história, segundo o autor, autorizar essas duas perspectivas: abrir o texto sobre a cultura que o tornou possível, isto é, um conjunto fluido de códigos partilhados pelos libretistas/criadores e pelo público da época, e fechar o texto sobre a estrutura dos elementos que ele integra e que constituem uma unidade organizacional.

Não se trata, no entanto, de uma representação da “realidade” da Espanha da primeira metade do século XIX – período no qual se desenrola a história – mas de uma constelação de elementos ancorados na cultura francesa forjada pelo romantismo. A Espanha se inscreve em uma geografia imaginária, uma hierarquia articulada sobre uma imagem do corpo que faz desta região, o sul da Espanha, o lugar da paixão, da sensualidade oposta à frieza racional do norte. Em Carmen, esta oposição norte-sul se desdobra também naquela entre a montanhosa Navarra, setentrional, e a quente e meridional Andaluzia, contraste que divide também os quatro personagens principais em dois pares: Micaela e José, de um lado, Carmen e Escamillo, de outro. O sul da Espanha se beneficia também da aura que envolve o “Oriente” mítico durante muito tempo ocupada pelos árabes; confere-se assim um prestígio erótico particular às ciganas, essas filhas do Egito. É sobre esta geografia erótica imaginária que se destaca a personagem de Carmen. A Espanha, sobretudo a Andaluzia, torna-se a terra da paixão e da imaginação. Longe de uma sociedade, onde o sexo estava adormecido e a mulher estava submissa, as andaluzas mostram uma animalidade franca e ardente.

Como se percebe, o autor depreende em Carmen uma mesma história de múltiplos embates que se atualizam em planos diversos. Tal leitura permite entrever a presença implícita de um quadro teórico de sustentação que se constrói com base em um sistema de coerções globais que pesam, simultaneamente, sobre o conjunto de planos discursivos (SOUZA-E-SILVA, 2010). Todos esses dispositivos organizados em ciranda contribuem para a construção da legitimação da obra, na medida que se trata de planos que vêm reafirmar uma “mesma história conflituosa” que se conta em diferentes planos. Trata-se de um caso exemplar de enlaçamentos enunciativos que abre a possibilidade de depreender o modo pelo qual a escolha de uma certa cenografia possibilita a passagem para a construção de um dado et(h)os.

2 Qual a cenografia construída em Carmen?

O que ora pretendemos é superar uma certa modalidade de análise que deixa de perceber, por exemplo, que a apreensão de uma topografia não pode se limitar à busca de sintagmas que expressam um lugar no espaço, ou então que o estudo da cronografia não esteja restrito aos elementos que explicitamente se encontram referidos a informações sobre o momento em que se desenrola a ação. Assim, nosso projeto está baseado em um certo tipo de procedimento que consegue extrair do conjunto de planos o que é pertinente para a qualificação de cada um de per si. É desse modo que vemos a contribuição oferecida pelas análises feitas por Maingueneau (1984)MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984., organizadas em três partes: na primeira, intitulada “lugares”, o autor explora o território da paixão e os cenários; na segunda, “personagens”, abordam-se sucessivamente Micaela, Carmen, Don José e Escamillo, o toureiro; finalmente, na terceira parte, intitulada “figuras”, tematizam-se cinco tópicos: “a troca”, “a fabricante de cigarro”, “a boêmia”, “regressão”, “transgressão” e “mito”.

Com efeito, ao proceder à leitura de Carmen, Maingueneau explicita diversas pistas da construção de uma cenografia em que se associam uma figura de enunciador, uma figura correlata de coenunciadores, uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar), dos quais pretende originar-se o discurso.

Depreendem-se, então, dois polos que encarnam o conflito vivido ao longo de toda a obra: ordem versus desordem, encenados nos diferentes registros discursivos, para além das coordenadas da dêixis empírica, que remeteriam meramente ao embate que se dá entre Micaela, José, Carmen e Escamillo, num determinado lugar (Sevilha) e num determinado tempo (início do século XIX, segundo consta no libreto de Meilhac e Halévy). Os elementos empíricos não poderiam, por si sós, legitimar o que se enuncia:

a cenografia não deve … ser um simples quadro, um elemento de decoração, como se o discurso viesse ocupar o interior de um espaço já construído e independente desse discurso: a enunciação ao se desenvolver, esforça-se por instituir progressivamente seu próprio dispositivo de fala. Ela implica, desse modo, um processo de enlaçamento paradoxal (MAINGUENEAU, 2006MAINGUENEAU, Dominique. Cenografia epistolar e debate público. Cenas da enunciação. Curitiba: Criar, 2006., p. 113-114).

A ideia de um enlaçamento paradoxal consiste no fato de a palavra supor uma certa situação de enunciação, a qual é validada progressivamente por meio dessa mesma enunciação. É desses enlaçamentos que se trata na leitura feita por Maingueneau (1984)MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984. de Carmen, conquanto o autor não o tenha dito com todas as letras, mantendo implícito o interesse teórico da obra. De nossa parte, queremos tornar explícitos os laços entre o que diz o autor sobre Carmen e a temática dos enlaçamentos, visando à apreensão do et(h)os e da cenografia como mais uma dimensão para a construção desses enlaçamentos, anunciados por Rocha (1997)ROCHA, Décio. Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre videojogos. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – LAEL, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997.:

[…] a análise de Carmen a que procede D. Maingueneau representa, de forma particularmente clara, uma “encenação” da problemática dos enlaçamentos. Em outras palavras, um modo “discreto” de fazer teoria, colocando em cena a necessária e desejável reversibilidade entre corpus e teorização: apresentando-nos a intriga, o autor deixa entrever a reflexão teórica que subjaz os comentários que tece (ROCHA, 1997ROCHA, Décio. Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre videojogos. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – LAEL, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997., p. 206).

A instituição da cenografia e dos diversos níveis que a caracterizam é particularmente interessante pelos desdobramentos daí decorrentes, os quais se deixam apreender associados a uma maneira de dizer específica (cf. SOUZA-E-SILVA, 2013). Um desses níveis, a topografia discursiva, se constrói, em Carmen, por intermédio das seguintes oposições: campo versus cidade grande, norte versus sul, ocidente versus oriente, Navarra versus Andaluzia, centro versus periferia, frio versus calor. Se retomarmos os dois polos que definimos como índices do conflito vivido ao longo da obra, a saber, ordem/desordem, veremos que o primeiro elemento de cada oposição está alinhado à ideia de ordem, enquanto o segundo elemento aproxima-se do polo da desordem. Desse modo, o frio do norte, onde está situada Navarra, e a vida mais regrada do campo, ambos centros estáveis, terra de origem de Don José e Micaela, opõem-se aos vícios da cidade grande, das periferias, do calor do sul, lá onde se situa a Andaluzia. E mais: um ocidente visto como território conhecido, tranquilizador, em oposição a um oriente mítico, passional, cuja expressão mais radical reside em um certo Egito imaginário. Para dizê-lo em poucas palavras, a ordem que se contrapõe à desordem materializa-se na oposição entre a terra natal, onde se reencontram a infância, a pureza de sentimentos, o aconchego da família, e o estrangeiro, visto como tudo aquilo que corrompe o reconfortante núcleo do país de origem.

Já no que concerne à construção de uma cronografia, são mais escassos os elementos que podemos recuperar na leitura de Maingueneau. Na verdade, uma única oposição vem atualizar o embate da ordem contra a desordem no plano temporal: a claridade do dia versus as sombras da noite, isto é, uma cronografia que faz da alternância dos dias e das noites o compasso do revezamento entre atividades lícitas e atividades que carecem do selo da lei.

No 1º ato, tudo se passa em pleno dia; o sol derrama sua luz sobre o incessante movimento das atividades lícitas. Assim que se entra na taverna de Pastia, o dia cede lugar ao claro-escuro das velas; iluminação duvidosa que manifesta o estatuto “misto” do lugar. Ao cenário selvagem do 3º ato somente pode corresponder uma “noite escura” …, exatamente o oposto da claridade do primeiro ato. Assim como o quarto ato conduz de novo a uma praça sevilhana, ele conduz de novo à plena luz do que é lícito […] (MAINGUENEAU, 1984MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984., p. 32).

A raridade de marcas referentes a uma cronografia nos levou a depreender outra oposição não presente nas observações do autor, mas relevante para a definição do registro do tempo: o embate entre, por um lado, um passado que se projeta num futuro versus um presente que se eterniza: são diversas as situações em que se valorizam os feitos do passado que se projetam numa antevisão de um futuro que, de modo consequente, é promissor de êxitos. Essa é a temporalidade vivida por um personagem como Don José, cuja ascendência nobre e serviços prestados como soldado apontam para um futuro em ascensão, situação que em nada se assemelha à da personagem Carmen, fruidora dos prazeres do aqui e do agora.

Como já se anuncia no parágrafo anterior, não é difícil prever a importância dos embates registrados nos planos da topografia e da cronografia para a construção dos coenunciadores. O esquema sobre o qual repousam tais planos indica o retorno à degradação, à descida em relação a um estado inferior. Quando José assassinou um homem, o que ficamos sabendo em uma das cenas, essa queda moral foi expressa imediatamente em termos espaciais – ele desceu de duas maneiras: abandonou as montanhas de Navarra e ganhou o extremo sul, Sevilha, espaço de exílio, de reabilitação, de redenção. Queda moral e espacial, mas não irreversível: o Exército lhe oferece a oportunidade de recuperar-se, tornar-se o defensor da Lei por ele infringida. Se ele se conduzir bem, poderá reinserir-se na sociedade. O caminho da reabilitação coincide com uma ascensão, a da hierarquia militar: cada grau fixa uma etapa da redenção. No início, soldado, José tornou-se cabo e está prestes a atingir o grau necessário para voltar, simbolicamente, à altura de sua Navarra original.

A construção dos coenunciadores está, portanto, também marcada por oposições. Micaela é associada à parte superior do corpo, inscreve-se numa topografia vertical: vem da montanha, seu rosto ocupa o primeiro plano na descrição; é apresentada como uma figura graciosa, loira, olhos azuis, cabelos arrumados, de tranças, cândida como anjo, cujo nome decorre do contexto cultural cristão – nome de arcanjo, Miguel/Michael, do grego anjo, mensageiro, encarregado de levar a mensagem de Deus aos homens. Na ópera, ela é a mensageira: leva para José uma carta e o beijo fraternal de sua mãe.

À diferença de Micaela, Carmen é nome da Espanha romântica, abrange um espaço de sentido que vai da música, da dança à feitiçaria, à predição do futuro. Como cigana, leva uma vida errante, lê sua própria sorte e a de José. Fisicamente é belíssima: olhos negros, pele cor de cobre, cabelos escuros e revoltos, veste-se de vermelho fogo, usa roupas provocantes. Vermelho e negro também estão presentes em Escamillo: o sangue das touradas, os olhos negros do touro e da mulher que espera pelo toureiro. Ainda, à diferença de Micaela, Carmen é associada à parte inferior do corpo, aos instintos, e sua dança cigana desperta a paixão dos oficiais e, principalmente, de Don José. Pertencente a um universo boêmio, a um povo sem raízes, ela não tem sobrenome, nem lugar de origem, e mesmo o nome, evocador de charme e de magia, ela o inventa como quer: Carmen, Carmencita.

Dos quatro personagens, Don José é o único que não permanece fixo em seu status original (MAINGUENEAU, 1984MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984., p. 63). Ele pertence ao povo basco, enraizado nos Pirineus, possui ascendência nobre (Lizzara Bengoa é seu sobrenome), professa a religião católica e pertence ao Exército, cuja disciplina controla as pulsões desordenadas do indivíduo. Suas leis são as da Nação, as da Pátria.

Desde o 1º ato, para escapar à tentação, Don José cuida-se para não estar jamais desocupado:

Carmen Eh, amigo, que estás tu a fazer? José Faço uma corrente para prender o meu alfinete! Carmen Ah sim? O teu alfinete, Alfineteiro da minha alma…

Perturba-se, porém, quando Carmen, rindo e provocando, joga-lhe uma flor de acácia:

José Que olhares! Que descaramento! Esta flor teve o mesmo efeito de uma bala que me acertasse! O seu perfume é forte, é bonita a flor! E esta mulher… Se é verdade que há feiticeiras esta por certo é uma delas.

A relação dos coenunciadores é, assim, marcada topograficamente. A praça é o espaço social ordenado e harmonioso, lugar aberto, de diálogos e de sociabilidade, de circulação lícita, única instância habilitada a regular a passagem de um lugar a outro. À direita, encontra-se o portão da fábrica de tabaco, espaço de produção onde trabalham as operárias, comunidade feminina formada pelas fabricantes de cigarro, na qual os homens só podem entrar com permissão especial. À esquerda, uma comunidade masculina, quartel dos soldados – representantes da ordem –, com o poder de zelar tanto pela praça, zona de circulação, quanto pela fábrica, zona de produção.

Esse espaço harmonioso é perturbado, logo no 1º ato, pela correria e desordem das operárias, que deixam a fábrica assustadas: Carmen feriu uma das colegas e José é encarregado pelo tenente de conduzi-la à prisão. Como representante do Exército, ele tem como princípio as leis; como cigana e mulher sagaz, ela sabe usar a astúcia e recorrer à sedução para atingir seu fim; por exemplo, no momento em que Don José anuncia que deverá levá-la para a prisão, ela o convence a deixá-la fugir com a promessa de conduzi-lo à taverna de Lillas Pastia, nos arredores de Sevilla:

Carmen No caminho empurro-te, (em voz baixa a José) empurro-te com toda a força que puder… Deixa-te derrubar … o resto é comigo!

Quando a sedução funciona, o “eu” se transforma em um “nós” triunfante:

Carmen Dançaremos (em voz baixa a José) a seguidilha, bebendo manzanilla.

Mais tarde, indo à taverna, espaço no qual os oficiais convivem com as ciganas e os contrabandistas, José transgride a distribuição habitual dos grupos sociais. Enquanto a Praça era o lugar da ordem, a taverna, quando fecha para os clientes lícitos, abre-se aos fora da lei. É lá que ele se encontra quando escuta o toque de recolher, mas as castanholas de Carmen abafam o som das cornetas: “Espera um pouco, Carmen, apenas por um momento, pára”. “E por que, posso sabê-lo? “Parece-me que … Sim, são as nossas cornetas que tocam a recolher!” E ela, provocando-o, continua a dançar: “Bravo, bravo agora vou bailar melhor”.

Novamente fica explícita a divisão de José entre o abandono ao desejo e a submissão ao dever: oposição entre dois ritmos, o das castanholas de Carmen e o da música militar, do toque de recolher:

José Tu não me compreendeste… Carmen, é o recolher; Preciso regressar ao quartel para a revista. Carmen Ao quartel! Para a revista! Ah, na verdade sou muito tonta! Esforço-me o mais que posso, faço esforços para divertir o senhor! Cantava… dançava… Creio, Deus me perdoe, um pouco mais e amá-lo-ia… Ta ra ta ta, é a corneta que toca! Vai-se embora, já foi! Foge pois, canário! (…) Carmen Não, tu não me amas, não! Porque se tu me amasses, para ali, para ali seguir-me-ias.

Para ali, para ali é a expressão dêitica por intermédio da qual Carmen refere-se à montanha, para onde ela vai com duas ciganas e dois contrabandistas. Sua existência é inseparável do grupo ao qual pertence e para esse grupo ela quer levar José; quer livrá-lo do encarceramento, da repetição das regras militares, da condição de canário encarcerado na gaiola e oferecer-lhe um espaço aberto, aquele do qual ela partilha. Ela, o pássaro rebelde, que enuncia na Habanera.

É tarde. José esboça uma tentativa de resistência: “Não! Não quero ouvir-te… Abandonar a minha bandeira… desertar… é a vergonha, é a infâmia! Não quero!”. O taberneiro fecha as janelas e sai. Nesse momento, retorna o tenente, que, julgando encontrar Carmen sozinha, depara-se com José. Os dois discutem. “E você não virá conosco?”, pergunta Carmen. O cabo, que acaba de desembainhar sua espada contra o tenente, não tem outra escolha.

Carmen És dos nossos agora? José Não tenho outro remédio.

Passando para o clã dos boêmios, dos ciganos contrabandistas, habitando as montanhas da Andaluzia, Don José deixa as atividades regulamentadas e, desertando, exclui-se do corpo social.

3 Da cenografia ao et(h)os

Desde que Oswald Ducrot (1987)DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987., na construção de sua teoria da polifonia, e Maingueneau (1989)MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989., em sua abordagem discursiva, recuperaram o conceito de et(h)os da retórica clássica, muitos autores se debruçaram sobre o tema. Não surpreende, pois, que diferentes concepções de et(h)os venham sendo construídas: et(h)os mostrado, et(h)os dito, et(h)os discursivo, et(h)os pré-discursivo. Cada uma dessas designações circunscreve a apreensão de um tipo de fenômeno enunciativo, em estreita relação com os demais dispositivos de legitimação do dito.

A partir de nossa opção de apreender uma maneira de dizer específica, uma imagem de enunciador pelo viés da cenografia, privilegiamos a noção de et(h)os, como construção de uma certa compleição física e de um caráter com base não nos conteúdos ditos, mas no modo como se enuncia. Caráter e corporalidade provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas sobre as quais se apoia a enunciação, que por sua vez pode confirmá-las ou modificá-las. Tal formulação de et(h)os, que foi a originalmente proposta por Maingueneau (1989)MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989. – retomada em outras de suas obras (2010; 2008b) –, apresenta vantagens substanciais para a depreensão dos traços do et(h)os de Don José e de Carmen, traços esses que se revelam em perfeita harmonia com o que pudemos recuperar na análise da cenografia da obra. Procuramos, assim, manter a distância entre o dito e o mostrado, ainda que admitindo se tratar de designações situadas nos extremos de uma linha contínua.

3.1 Don José, o et(h) os que se mostra em um modo de enunciar emocionado

O et(h)os de José se constrói no modo como ele enuncia, no momento inicial da trama, a nostalgia de um passado ainda presente, em especial na lembrança da mãe, da cidade natal que se deixam apreender no diálogo com Micaela marcado por reiterações, interjeições, exclamações e repetição de sintagmas. As afinidades que ligam José e Micaela são magistralmente exibidas em um modo de enunciação que consiste em confiar a ela a missão de recuperar o que fora por ele expresso: ela enuncia em 3ª pessoa as emoções por ele confessadas na estrofe anterior.

José Minha mãe… vejo-a… (sem deixar de olhar Micaela) sim, volto a ver a minha aldeia ! Oh! recordações de outrora ! doces recordações da terra ! Oh!, recordações amadas ! (…) Minha mãe…vejo-a… Volto a ver a minha aldeia ! Micaela Sua mãe, ele volta a vê-la Volta a ver a sua aldeia ! Oh! recordações de outrora ! Recordações da terra !

No entanto, mesmo quando fala com Micaela, a presença de Carmen irrompe em seus pensamentos, manifestando outro de seus traços, a ambivalência.

3.2 Don José, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar ambivalente

José Quem sabe de que demônio (olhos fixos na fábrica de cigarro) irei ser presa! Mesmo de longe, a minha mãe me defende e esse beijo que me manda afasta o perigo e salva seu filho!

De quem ele quer se defender, invocando a mãe, é da cigana Carmen. Don José está no cruzamento entre dois universos: Micaela, a mãe, a aldeia, o recato de sentimentos; Carmen, o fogo da paixão, a sexualidade, o demônio.

3.3 Carmen, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar transgressivo

Por qualquer parâmetro que olhemos Carmen, ela parece indissociável do dinamismo da transgressão que a faz transpor fronteiras. Desde o início, quando soa o sino da fábrica de cigarros marcando o reinício do horário de trabalho, a cigana surge diante da multidão dirigindo olhares maliciosos aos soldados. Essa insolência é marcada em sua fala: “Quando é que vou amá-los?”, pergunta aos homens que a cercam. “Talvez nunca, talvez amanhã”. Ela substitui a ordem por sua livre vontade, consciente de seu charme: sabe de antemão que Don José não resistirá a seus encantos.

Aquilo que é dito já no 1º ato acerca de sua natureza feiticeira se atualiza no seu próprio modo de dizer: Carmen fala como feiticeira, anunciando o poder que exerce sobre os homens, particularmente, sobre Don José:

Carmen Para onde me levas? José Para a prisão e nada posso fazer. Carmen Não poderás fazer mesmo nada? José Não, nada! Obedeço a meus superiores. Carmen Pois bem, sei muito bem que, apesar dos teus superiores, farás tudo aquilo que eu queira, e fá-lo-ás porque me amas! José Amar-te, eu? Carmen Sim, José! A flor que eu te ofereci, bem sabes, a flor da feiticeira, já podes deitá-la fora, O feitiço atuará!

3.4 Carmen, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar divinatório

Nas montanhas, junto aos ciganos, para onde ela conduziu José, seu modo de pressentir ações futuras, guiada pela força que atribui ao destino, se faz presente, seja após a ameaça de morte vinda da parte dele, seja após consultar/jogar as cartas de baralho, momento em que ela fala com ela própria:

José Separarmo-nos, Carmen Escuta, se voltas a dizer isso!… Carmen Matavas-me se calhar? Que olhar; não respondes nada…. Que me importa? No fim de contas é o destino que decide. (…) Carmen Ouros, espadas… a morte! Li bem… As cartas são sinceras e nunca irão mentir! Se tiveres de morrer, se a temível palavra estiver escrita pelo destino, recomeça vinte vezes… a carta impiedosa repetirá: morte. Sempre! Sempre! Sempre a morte!

3.5 Carmen, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar cantado, evasivo

Outro modo de enunciar característico de Carmencita é o canto. Diferentemente de Micaela, que fala por outra pessoa, a mãe de José, Carmen recusa as regras básicas do diálogo. Ela é boêmia, não respeita as leis do espaço social, responde e cala-se quando quer; muitas vezes, responde por meio de canções. Quando o representante da lei, Zuñiga, pede explicações sobre a briga ocorrida na fábrica, Carmen recusa-se a falar, canta:

Zuñiga Estás a ouvir-nos, que tens a responder? Carmen Tra la la la la la la la corta-me, queima-me, que eu nada te direi; tra la la la la la la la, eu desafio tudo, o fogo, o ferro e até o céu!

E quando José pede para ela se calar, ela fala:

José Cala-te! Disse-te que não falasse! Carmen Não falo… canto para mim mesma, e penso…não é proibido pensar, penso em certo oficial, que me ama, e que por mim, sim, eu bem poderia amar!

Carmen subverte os princípios do diálogo: ela se coloca como origem e destinatária do discurso, ela vai dela a ela mesma. “Se ela canta é que o canto, diferentemente da fala, escapa à abertura do diálogo com o outro (…) Não informativo, o canto é a sedução em ato, libera outras forças, as do desejo” (MAINGUENEAU, 1984MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe. Paris: Éditions du Sorbier, 1984., p. 92-93).

Aquilo que é dito, ser cigana, se atualiza no seu próprio modo de dizer: ela tem as próprias regras, não promete ser nem de José, nem de Escamillo. Responde, esquivando-se:

Escamillo E se dissessem que te amam? Carmen Responderia que é melhor não me amar. Escamillo Não é uma resposta terna; concentro-me em ter esperança e esperar. Carmen É permitido esperar, é doce ter esperança.

Embora ela também nada prometa a Escamillo, ele, diferentemente de Don José, tem seu poder erótico assegurado. Como toureiro, ele se mostra para os olhares e os desejos que para ele convergem. É o homem do lugar único, a arena. Carmen, como cigana, passa, tranquilamente, pelos dois homens da espada: do soldado ao toureiro.

3.6 Carmen, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar antitético

O embate que parece orquestrar a obra em seus diferentes planos, ordem versus desordem, também se verifica na construção do et(h)os de Carmen e de José. Anunciam-se já nas primeiras cenas as diferentes perspectivas que alimentam as esperanças de cada personagem: o desencontro de sentimentos que parece ritmar a cigana Carmen traduz-se, no plano da linguagem, em suas construções antitéticas, que implicam uma quebra de expectativas em relação a todos os que a rodeiam. A demanda de José em relação a ela é bem outra: carente de reciprocidade em sua relação com Carmen, seus enunciados expressam a afinidade de sentimentos que ele precisa encontrar em uma relação que ele quer duradoura.

Carmen inspira paixões que aprisionam o outro numa atmosfera de profunda instabilidade, afastando a possibilidade de um amor duradouro e advertindo o outro sobre os perigos de ligar-se a ela. É na Habanera4 4 Inspirada em uma das habaneras de Sebastian Yradier, intitulada El Arreglito, Bizet compôs a ária “L'amour est un oiseau rebele”, mais conhecida como “Habanera”. que se cristalizam tais marcas do et(h)os de Carmen:

Carmen O amor é um pássaro rebelde que ninguém pode aprisionar de nada serve chamá-lo Pois só vem quando quer. De nada servem ameaças ou súplicas Carmen O amor que julgavas surpreender bateu asas e voou… O amor está longe, podes esperá-lo, Já não o esperas… aí está ele… A tua volta, depressa, depressa, Ele vem, ele vai e depois volta… Julgas tê-lo apanhado, ele foge, Julgas que fugiu, ele te segura Amor! Etc. Carmen O amor é um menino cigano, que nunca conheceu qualquer lei. Se não me amares, eu te amarei; se eu te amar, toma cuidado!.. etc.

Dançando e cantando, Carmen apresenta-se como uma mulher livre cujo coração precisa ser conquistado: “Meu coração é livre como o ar” ou ainda “Quem quer me amar? Eu o amarei..” “Quem quer minha alma? Ela está livre!”. Aproxima-se e afasta-se, consciente de seu poder de sedução. Mantém-se evasiva para se deixar melhor desejar. Dá a entender a Don José que pode amá-lo: “Penso em certo oficial que me ama. E a quem eu poderia amar”, mas sem nada garantir.

3.7 Carmen, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar em deslocamento

Fizemos anteriormente referência a um certo modo de falar de Carmen que a aproxima da condição de feiticeira. Há uma outra marca em seus enunciados cujo efeito é o de ratificar tal condição: uma personagem simultaneamente presente e ausente, sempre em deslocamento. Trata-se de um modo de autorreferência que alterna as 1ª e 3ª pessoas: Carmen participa do diálogo ora dizendo “eu”, ora objetivando-se em “ela”, conforme fragmento a seguir, extraído do 4º ato, que exibe muito claramente essa alternância, em resposta aos apelos de Don José:

Carmen Pedes o impossível; Carmen nunca mentiu; a sua alma continua inflexível. Entre ela e ti, tudo terminou. Nunca menti; entre nós tudo acabou.

Os pares “Carmen nunca te mentiu / Nunca menti” e “Entre ela e ti, tudo terminou / entre nós tudo acabou” indicam o modo pelo qual a personagem se faz simultaneamente presente e ausente da cena do diálogo: ela fala de Carmen e fala como Carmen.

3.8 Don José, o et(h)os que se mostra em um modo de enunciar obsessivo

A enunciação obsessiva é uma das características de José que se manifesta mais fortemente ao final da trama, pouco antes de seu desfecho. Em mais de dez turnos de fala, ele enuncia o mesmo: expressa sua adoração por Carmen, exige a confirmação de seu amor e pede que ela permaneça a seu lado.

José Eu não ameaço, imploro, suplico; o nosso passado, Carmen, o nosso passado, esqueço-o, sim, vamos os dois juntos começar uma nova vida longe daqui, sob outros céus! (…) José Carmen, ainda é tempo, é tempo, sim, é tempo ainda…. Oh minha Carmen, deixa-me salvar-te, a ti, a quem adoro, e salvar-me contigo!

O que denominamos “modo de enunciar obsessivo” no final do 4º ato prossegue ainda por mais cinco turnos de fala do personagem, nos quais, sucessivamente, José faz menção ao novo amante de Carmen, pergunta-lhe se ela vai ao encontro de Escamillo e se o ama, reafirma que ela deverá permanecer com ele, José; também ordena a Carmen que o siga e pergunta-lhe uma última vez se permanecerá a seu lado.

O dueto final reitera alguns dos traços do et(h)os de José e de Carmen. Enquanto, obsessivamente, ele insiste em fixá-la, em possuí-la definitivamente, a enunciação de Carmen é a de uma mulher livre, de um pássaro rebelde, conforme anunciado na Habanera:

Carmen Por que te ocupas ainda de um coração que já não é teu? Não, este coração já não é teu! É em vão que dizes “adoro-te”! Não obterás nada, Não, nada de mim. Ah, é em vão… Não obterás nada de mim. José Então já não me amas ? Então já não me amas ? Carmen Não, já não te amo. José Mas eu, Carmen, eu te amo ainda; Carmen; Carmen, eu te adoro ! Carmen, eu te amo, eu te adoro ! …………………. Mas não me deixes, Oh, minha Carmen…. Ah ! não me deixes ! Carmen Carmen nunca cederá! Nasceu livre e livre morrerá.

Para defender sua liberdade, Carmen não mais subverte os princípios do diálogo, ao contrário, deixa de cantar e de falar de modo evasivo. Aqui sua enunciação é determinada, uma maneira de dizer que quer reafirmar uma maneira de ser. Morrerá livre, segundo seu destino já anunciado na leitura das cartas. A obsessão de José em prendê-la, mantê-la junto a ele e a determinação de Carmen em seguir seu novo amante, Escamillo, vencedor da tourada, é fatal para ambos:

José Esse homem que aclamam, é teu novo amante ! Carmen Deixa-me! Deixa-me! José Pela minha alma, não passarás, Carmen, é a mim que tu seguiras! Carmen Deixa-me, Don José… Não te seguirei. José Vais encontrar-te com ele, Diga-me… ama-o portanto? Carmen Amo-o! Amo-o e perante a própria morte, repetirei que o amo. José Nesse caso, a salvação da minha alma, tê-la-ei perdido … Não, pelo meu sangue, não irás ! Carmen, é a mim que tu seguirás! Carmen Não, não. Nunca! José Estou cansado de te ameaçar! José Pela última vez, demônio, queres seguir-me ? …

José sucumbe ao charme da feiticeira, ao demônio, de quem quis se defender, desde o início, invocando a imagem da mãe.

Conclusão

À semelhança de nossa proposta inicial, abordar o et(h)os por uma via singular, o et(h)os como dispositivo construído em solidariedade com uma cenografia, fechamos este texto por uma via também singular, dando visibilidade a um traço enunciativo que parece desempenhar papel relevante na obra: um modo de enunciar que superpõe diferentes cenas. Ao final da história, deparamo-nos com uma ocorrência do et(h)os que se mostra, mas não para caracterizar Carmen, José ou qualquer outro personagem. Desta vez, o et(h)os diz respeito à instância que organiza o encadeamento das ações, dispondo-as em planos ora sucessivos, ora simultâneos, opções que sempre interferem na produção de sentido de uma obra. É neste sentido que a superposição de duas cenas – o desfecho da tourada, com a vitória de Escamillo sobre o touro, e a morte de Carmen, apunhalada por Don José – institui a “necessidade” de se articularem esses dois acontecimentos conclusivos da obra que, ao final do 4º ato, ecoam por intermédio da voz do coro: de quem se fala exatamente? Da morte do touro, ou da de Carmen?

Ao superpor as duas cenas, o enunciador faz coincidirem dois momentos e dois lugares da história: em frente à Praça de touros, numa proximidade espacial que interliga diferentes destinos, Carmen é assassinada por José no momento em que Escamillo é aclamado pela multidão em delírio.

A proximidade entre as duas cenas se constrói com base na rebeldia de Carmen e na instintividade do touro, por um lado, e, por outro, na irracionalidade de José e na determinação profissional de Escamillo. Todos levam às últimas consequências um certo modo de ser: no caso de Carmen, lutar para preservar sua liberdade contra a ameaça de prisão que lhe oferece Don José; para o touro, cumprir seu destino diante da provocação dos movimentos desafiadores feitos pelo toureiro.

José Pois bem, maldita… (com um punhal na mão avançando sobre Carmen) (Carmen recua… José a persegue… Enquanto isso, fanfarra e coro na Praça.) Coro Toureiro, em guarda! Toureiro, toureiro, E pensa bem, Sim, pensa que ao tourear Um negro olhar te contempla, E que o amor te espera Toureiro, o amor te espera. (José apunhalou Carmen, que cai morta… As portas abrem-se. A multidão sai da praça.)
  • *
    Numa tentativa de conciliar, por um lado, a tradição dos estudos sobre o tema, na qual se consagrou a grafia ethos, e, por outro, a recente inclusão de etos em dicionários da língua portuguesa (Houaiss, Volp), optamos neste artigo pela forma et(h)os, procedimento já adotado em Souza-e-Silva & Rocha (2012)SOUZA-E-SILVA, Cecília; ROCHA, Décio. Enunciação em processo: dispositivos para a produção de uma memória discursiva. Desenredo, Passo Fundo, v. 8, n. 1, p. 30-48, jan./jun. 2012..
  • 1
    O autor se baseia na ópera Carmen, imortalizada por G. Bizet e pelos libretistas H. Meilhac e L. Halévy, realizada segundo as convenções da Opéra-comique, dentre elas, a alternância entre o canto e o diálogo. A versão original foi apresentada em 1875 e, a partir de então, surgiram outras versões, com supressão parcial ou total dos diálogos.
  • 2
    Por razões indicadas adiante, referimo-nos aqui à edição original francesa da obra, que data de 1984.
  • 3
    Neste tópico, tomamos por base a leitura que faz D. Maingueneau do libreto de Carmen.
  • 4
    Inspirada em uma das habaneras de Sebastian Yradier, intitulada El Arreglito, Bizet compôs a ária “L'amour est un oiseau rebele”, mais conhecida como “Habanera”.

Referências

  • DUCROT, Oswald. O dizer e o dito Campinas: Pontes, 1987.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Carmen, les racines d'un mythe Paris: Éditions du Sorbier, 1984.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso Campinas: Pontes, 1989.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Cenografia epistolar e debate público Cenas da enunciação. Curitiba: Criar, 2006.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos São Paulo: Parábola, 2008.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em análise do discurso. (Organização de S. Possenti e M. C. P. Souza-e-Silva). São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Retour critique sur l'éthos, Langage et société, n. 149, p. 31-48, 2014/3.
  • ROCHA, Décio. Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre videojogos. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – LAEL, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997.
  • SOUZA-E-SILVA, Cecília; ROCHA, Décio. Enunciação em processo: dispositivos para a produção de uma memória discursiva. Desenredo, Passo Fundo, v. 8, n. 1, p. 30-48, jan./jun. 2012.
  • SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília P. L'institution d'une scène validée dans la mémoire des brésiliens. In: ANGERMULLER, Johannes; PHILIPPE, Gilles (Org.). Analyse du Discours et dispositifs d'énonciation: autour des travaux de Dominique Maingueneau. Limoges, França: Lambert-Lucas, 2015. v. 1, p. 157-164.
  • SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília. Carmen – les racines d'un mythe (Dominique Maingueneau). II Seminário Cenas de Enunciação: lendo conceitos de Maingueneau e de Krieg-Planque. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP. 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2018
  • Aceito
    25 Ago 2018
EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Porto Alegre - RS, 90619-900, Tel: 3320-3500 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: letrasdehoje@pucrs.br