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Mundo ético e mídium: uma cenografia paulistana para a ciência brasileira

Ethical world and midium: a Paulistana scenography of Brazilian science

Resumo:

Considerando a noção de ethos proposta por Maingueneau desde seu texto seminal “A propósito do ethos”, de 2008, este artigo apresenta duas propostas articuladas: i) uma ênfase na noção de mundo ético, ainda pouco explorada como operador analítico; ii) um acréscimo teórico que põe a noção de mídium como constitutiva do mundo ético. O objeto editorial Pesquisa Fapesp é considerado, dessa perspectiva, como um vetor de sensibilidade ligado a uma matriz de sociabilidade, a Fundação Fapesp, e por isso funciona como um mídium que alimenta um mundo ético: por documentá-lo, legitimando-o, e por fazer parte dele, legitimando-se como documentador (DEBRAY, 2000aDEBRAY, Régis. Transmitir: o segredo e a força das idéias. Trad. Guilherme Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000a. e bDEBRAY, Régis. Introduction à la médiologie. Paris: PUF, 2000b.). Com vistas a esclarecer essa abordagem, analisamos três tipos de dado: 1. A publicidade da revista na revista; 2. Gráficos sobre a pesquisa no Brasil; 3. Um léxico especializado. Nesses dados, verifica-se que a cenografia opera uma circunscrição semântica peculiar do referente “ciência brasileira”.

Palavras-chave:
mídium; mundo ético; revista Pesquisa Fapesp; ciência brasileira

Abstract:

Considering the notion of ethos as it was proposed by Maingueneau since his seminal text “About ethos” (2008), this article presents: i) an emphasis on the notion of ethical world, still little explored as an analytical instrument; ii) a theoretical improvement that puts the medium as constitutive of the ethical world. The journal Pesquisa Fapesp is the editorial object considered here as a sensitivity vector linked to a matrix of mentality, the Fapesp Foundation, and functions as a medium that feeds an ethical world: both for documenting it and legitimizing it, as for being part of it, legitimizing itself as a documentary (DEBRAY, 2000aDEBRAY, Régis. Transmitir: o segredo e a força das idéias. Trad. Guilherme Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000a. and bDEBRAY, Régis. Introduction à la médiologie. Paris: PUF, 2000b.). In order to clarify this approach, we analyze this data: 1. The publicity in the magazine; 2. Graphs about the research in Brazil; 3. A specialized lexicon. These data show a peculiar scenography circumscription to the referent “Brazilian science”.

Keywords:
ethical world; midium; Pesquisa Fapesp journal; Brazilian science

Introdução

Com vistas a introduzir o problema aqui estudado, partimos do conceito de ethos dicionarizado no quadro da análise do discurso de tradição francesa:

Termo emprestado da retórica antiga, o ethos (em grego ηθοζ, personagem) designa a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário. Essa noção foi retomada em ciências da linguagem e, principalmente, em análise do discurso, em que se refere às modalidades verbais de apresentação de si na interação verbal. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 220).

Diante disso, assumimos a perspectiva enunciativa detalhada a seguir:

[…] O enunciador deve legitimar seu dizer: em seu discurso, ele se atribui uma posição institucional e marca sua relação com um saber. No entanto, ele não se manifesta somente como um papel e um estatuto, ele se deixa apreender também como uma voz e um corpo. O ethos se traduz também no tom, que se relaciona tanto ao escrito quanto ao falado, e que se apoia em uma dupla figura do enunciador, aquela de um caráter e de uma corporalidade. […] Cada gênero do discurso comporta uma distribuição pré-estabelecida de papeis que determinam em parte a imagem de si do locutor. Esse pode, entretanto, escolher mais ou menos livremente sua “cenografia” ou cenário familiar que lhe dita sua postura (o pai benevolente face a seus filhos, o homem de falar rude e franco etc.). A imagem discursiva de si é, assim, ancorada em estereótipos, um arsenal de representações coletivas que determinam, parcialmente, a apresentação de si e sua eficácia em uma determinada cultura (p. 220-221, grifos originais).

Esse arsenal de representações coletivas tem base no que Maingueneau define como um Thesaurus comum, convocado nos funcionamentos que definem as comunidades que cultivam certas práticas e valores correspondentes, os mundos éticos (MAINGUENEAU, 2008aMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Ethos discursivo. Trad. Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, 2008a.). O autor não especifica essa noção, mas deixa uma pista que seguimos: a noção de cultura, tão difusa quanto crucial, na qual nos deteremos mais adiante, por meio da noção de mídium.

Com isso, procuramos entender como os mundos éticos dão sustentação às comunidades discursivas, pondo em foco, aqui, um dispositivo da comunicação científica, um objeto editorial que, como os periódicos e livros científicos, é uma das condicionantes do trabalho que forja a própria ciência: o que neles aparece, do modo como aparece, é discursivização sobre as atividades que a constituem e sobre sua legitimidade social. Nesta ocasião, estudamos a revista Pesquisa Fapesp, publicação:

Editada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), a revista Pesquisa FAPESP foi lançada em outubro de 1999. O objetivo básico da publicação é difundir e valorizar os resultados da produção científica e tecnológica brasileira, da qual a FAPESP é uma das mais importantes agências de fomento (http://revistapesquisa.fapesp.br/quem-somos/. Acesso em: 10 maio 2018).

A princípio, nos interessamos por dados como este:

Figura 1
Páginas iniciais de matéria publicada na edição 262, dez. 2017, p. 26-27

A fotografia que ladeia o texto verbal tem a seguinte legenda: “Parque do Ibirapuera, São Paulo, frequentadores se refrescam para diminuir o desconforto”, e ambas contrastam com a gravidade do olho: “Temperaturas mais elevadas aumentam mortalidade em todo o mundo”. Dão assim, de certo modo, relevo a imagens não propriamente científicas. Em todo caso, a alegria do homem de torso nu e da criança que o acompanha em um passeio pelo parque paulistano encontra apoio na entrada da matéria, que, em suas primeiras linhas, registra aspectos da vida na “capital paulista”, a partir dos quais se desfia o tema. Um levantamento preliminar no início de nossa pesquisa mostrou que essa é uma estratégia textual bastante frequente na revista, o que põe questões interessantes sobre o modo de “difundir e valorizar os resultados da produção científica e tecnológica brasileira”.

Assim, considerando o arquivo mapeado – todas as edições desde a criação do boletim que dá origem à revista1 1 Arquivo estabelecido em uma planilha Excel que permite uma visada comparativa de diversas categorias de classificação dos tópicos de capa e de conteúdos internos dos 266 números da publicação (até abril de 2018), considerando desde a primeira edição do boletim informativo, em agosto de 1995 e sem computar as edições especiais. (Banco de dados do Grupo de Pesquisa Comunica - Inscrições Linguísticas na Comunicação (UFSCar/CNPq). –, elegemos três tipos de dado que julgamos modelares da constituição de uma voz que afiança a “ciência brasileira”: 1. slogans publicitários que, na revista, tratam da própria revista; 2. gráficos que mostram dados consolidados sobre a pesquisa científica no Brasil; 3. um levantamento lexical feito a partir de percepções no decurso do trabalho de constituição do arquivo de base.

Um mídium para um mundo ético – e vice-versa

Com base nas atividades desenvolvidas no âmbito do Grupo de Pesquisa Comunica – Inscrições Linguísticas na Comunicação (UFSCar/CNPq), desdobradas da formulação de Maingueneau desde seu texto seminal “A propósito do ethos”, de 2008, propomos nesta ocasião duas inovações articuladas: i) uma ênfase na noção de mundo ético, parte importante da referida formulação teórica, mas ainda pouco explorada como operador analítico; ii) um acréscimo teórico que põe a noção de mídium como constitutiva do mundo ético, portanto do ethos efetivo, que se define nas relações registradas no diagrama representado na Figura 2, adiante.

Figura 2
Diagrama do ethos efetivo (autoria própria com base em Maingueneau, 2008MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Ethos discursivo. Trad. Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, 2008a., p. 19)

Este diagrama leva em conta o que se encontra em Maingueneau (2008a)MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Ethos discursivo. Trad. Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, 2008a. e que é retomado em trabalhos subsequentes do linguista: o ethos efetivo se produz numa conjugação de aspectos de um ethos pré-discursivo (que reúne expectativas e projeções dos interlocutores) e um ethos discursivo (que se textualiza atualizando um discurso), sendo que este se compõe na dinâmica de textualização que explicita mais ou menos assumidamente traços éticos, isto é, há sempre um ethos mostrado na seleção dos elementos constitutivos da textualização, e pode haver um ethos dito nos casos em que o locutor se volta explicitamente para a apreciação desses traços “próprios”. As setas duplas indicam as dinâmicas em jogo, e todos esses componentes se assentam, como sugerem as linhas de fundo, nos estereótipos socialmente estabelecidos, nas cenas validadas, isto é, exaustivamente retomadas a ponto de definirem as linhas de força das conjunturas em que emergem os enunciados: se assentam nos mundos éticos. Estes têm a ver, então, com as condições de produção de um discurso textualizado e designam fundamentalmente aspectos da ordem do sensível que participam da tessitura do material inteligível numa textualização. O conceito de cenografia é muito produtivo aí, e será detalhado adiante.

Importa sublinhar, por ora, que se trata de uma teoria dos imaginários que não dispensa os argumentários; antes, leva em conta dimensões evocadas (sugeridas, suscitadas) pelo arranjo textual, das quais emerge a voz garantidora do texto, à qual correspondem um corpo e um caráter fabulados conforme os modos de portar-se previstos numa dada comunidade, de movimentar-se no espaço como partícipe de uma dada organização social. Essa voz, fiadora do que se diz num texto, garante (ou se supõe que deva garantir) a incorporação dos interlocutores, que aderem a um dito por meio de um modo de dizer. E aí está a força argumentativa do ethos:

o discurso não resulta da associação contingente entre um “fundo” e uma “forma”; é um acontecimento inscrito em uma configuração sócio-histórica e não se pode dissociar a organização de seus conteúdos e o modo de legitimação de sua cena discursiva (MAINGUENEAU, 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad. Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2008b. p. 69-92., p. 74).

Nessa direção, acrescentamos a esse construto teórico-metodológico a noção de mídium, que Maingueneau, como outros analistas do discurso, empresta de Régis Debray2 2 Em Discurso Literário, retomando trabalhos dos anos 1990, Maingueneau põe no centro o que refere como “problemas de mídium”, aludindo a Debray numa citação modelar, que reproduzimos: “A mediologia tem por objetivo, através de uma logística das operações de pensamento, esclarecer a questão lancinante, indecidível e decisiva, declinada aqui como ‘o poder das palavras’, acolá como ‘eficácia simbólica’ ou ainda como ‘o papel das ideias na História’, a depender do que se é: escritor, etnólogo ou moralista… Ela gostaria de ser o estudo das mediações através das quais ‘uma ideia se torna força material’.” (DEBRAY, 1991 apud MAINGUENEAU, 2006). . De fato, o mídium está no centro da mediologia, que estuda as mediações (e não as mídias, como as traduções brasileiras podem fazer crer). Dessa perspectiva, dá-se ênfase aos objetos técnicos. No caso em tela, um objeto editorial que se constitui numa rede de práticas e valores relativos à difusão textual, que é também por ele constituída. Enfim, trata-se de assumir um raciocínio mediológico:

Por um lado, privilegiando a dimensão diacrônica, perguntar-nos-emos por quais redes de transmissão e formas de organização se constituiu esta ou aquela herança cultural. De que maneira foram instituídos os “pensamentos fundadores”? Qual meio físico e mental tiveram de atravessar, de que maneira negociaram com ele, que tipo de compromisso tiveram de aceitar? E a questão dirigir-se-á tanto à grande religião histórica quando à ideologia secular, tanto à esfera de influência quanto às capelinhas. Por outro lado, privilegiando o corte sincrônico, perguntar-nos-emos de que maneira a aparição de uma aparelhagem modifica uma instituição, uma teoria estabelecida ou uma prática já codificada. De que maneira um novo objeto técnico leva um campo tradicional a modificar-se? Por exemplo, qual efeito as gerações sucessivas de imagens gravadas (a fotografia, o cinema, o sistema digital) tiveram sobre a administração da prova nas ciências? (DEBRAY, 2000aDEBRAY, Régis. Transmitir: o segredo e a força das idéias. Trad. Guilherme Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000a., p. 139).

Os objetos técnicos participam da produção dos sentidos na medida em que implicam inscrição material de uma ideia e sua difusão. Nos termos de Maingueneau, “a transmissão do texto não vem depois de sua produção; a maneira como o texto se institui materialmente é parte integrante do seu sentido” (2006, p. 212), uma forma de retomada de Debray (2000aDEBRAY, Régis. Transmitir: o segredo e a força das idéias. Trad. Guilherme Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000a., p. 62):

A “coisa a ser comunicada” não existe antes e independente daquele que a comunica e daquele a quem é comunicada. Emissor e receptor são modificados, interiormente, pela mensagem que trocam entre si; além disso, a própria mensagem é modificada pelo fato de circular.

O mídium é, então, um imbricamento do que se tem referido nos estudos discursivos por circulação com o que se costuma referir, mais amplamente, nos estudos da linguagem por suporte. Sem estabelecer uma relação biunívoca de noções, pode-se dizer, enfim, que o mídium se define na articulação de um vetor de sensibilidade a uma matriz de sociabilidade (DEBRAY, 2000bDEBRAY, Régis. Introduction à la médiologie. Paris: PUF, 2000b.). Essas matrizes (institucionalidades fiadoras de discursos) são organização materializada (OM), ou seja, o modo como a sociedade disciplina práticas e cultiva valores produzindo sistemas de objetos técnicos. Esses vetores (dispositivos inscricionais que afetam os sentidos de um texto e eventualmente até mesmo do que é um texto) são matéria organizada (MO), os próprios objetos técnicos que resultam de lógicas de uso e impõem lógicas de uso, nem sempre coincidentes, e que convivem também com resistências ou apropriações não previstas. A metodologia consiste, então, em conjugar OM/MO. Neste caso, propomos apreender a revista Pesquisa Fapesp como uma formalização material (MO) da comunicação científica, um vetor de sensibilidade animado por uma rede de instituições cuja matriz de sociabilidade afiançadora é a própria Fapesp – a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (OM).

Na sua apresentação geral, essa matriz de sociabilidade registra que “as Bolsas se destinam a estudantes de graduação e pós-graduação; e os Auxílios, a pesquisadores com titulação mínima de doutor, vinculados a instituições de ensino superior e de pesquisa paulistas”, circunscrição que se confirma nos excertos localizados no item “A quem se destina” do site institucional www.fapesp.br (também um vetor de sensibilidade ligado a essa matriz) ou nas instruções para “Auxílio à Pesquisa – Organização de Reunião Científica e/ou Tecnológica”, que dá apoio à realização de reuniões que sejam “de importância reconhecida para o intercâmbio científico ou tecnológico de pesquisadores do Estado de São Paulo”, liberando auxílio para reuniões científicas restritas aos pesquisadores que estão sediados no estado de São Paulo ou fora do país, vedada a destinação do auxílio a passagens, estadias ou outras despesas com pesquisadores de outros estados brasileiros, mesmo no caso de palestrantes convidados para eventos realizados em território paulista, por organizadores paulistas. Isso posto, nos interessa entender que tipo de imaginário, configura a “ciência brasileira” aí difundida e valorizada. Fossey (2006FOSSEY, Marcela Franco. A semântica global em duas revistas de divulgação científica: Pesquisa Fapesp e Superinteressante. 2006, 153 fls. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006., p. 33), em seu estudo comparado de dois dispositivos de divulgação científica, sublinha que essa revista é financiada por uma instituição de fomento:

Se boa parte de suas reportagens nasce de pesquisas que a própria instituição financia, fica claro que o objetivo desta publicação não é apenas “difundir e valorizar os resultados da produção científica e tecnológica brasileira” (sic). É verdade que a Fapesp é uma das principais agências de fomento do país, o que significa que muitas das pesquisas nacionais de fato contam com a sua colaboração financeira. Porém, isso afeta diretamente a “neutralidade” da publicação (que também conta com financiamento Fapesp, vale sempre lembrar), e faz com que seja delineado um perfil bastante específico para esta revista. Não se trata de uma publicação de DC [divulgação científica] qualquer, mas de uma revista que deriva diretamente de uma agência que atua no cenário da prática científica nacional. Neste sentido, podemos pensar em uma função “justificadora”, já que a Fapesp é um órgão público, e “auto-descritiva” da revista, já que boa parte de seu conteúdo deriva de assuntos institucionais – sejam eles relativos à política científica ou aos resultados efetivos de tais políticas, por meio de pesquisas realizadas. Enfim, a análise objetiva explicitar o sólido vínculo com a prática científica institucional que a revista possui – o que certamente faz parte da construção do discurso desta publicação.

É, portanto, muito contundentemente, um vetor de sensibilidade a vivificar uma matriz de sociabilidade: portadora da prática científica institucional, é um mídium que tem possibilidades mais plásticas e fluidas do que relatórios, dissertações, teses e livros científicos, além de ser produzida com o fim último de dar voz à própria Fapesp, que pode gerir as pesquisas que financia (e também seus pesquisadores) e as atividades a que dá apoio (e também as instituições em que acontecem) numa representação de si que não é permitida nesses outros gêneros que tramita, nos quais aparece apenas na menção obrigatória dos agradecimentos. De fato, a revista Pesquisa Fapesp retoma esses documentos, fazendo uma seleção entre eles e transformando-os por meio das técnicas jornalísticas características da divulgação científica3 3 Não discutiremos aqui a especificidade da divulgação científica (DC), mas delimitamos minimamente a noção com base em Zamboni, 2001, p. 13, para quem a DC “constitui um gênero de discurso específico, que exige do divulgador um trabalho efetivo de formulação de um novo discurso.” .

Dando um passo adiante, procuramos entender como esses mundos éticos, definidores de comunidades discursivas, se produzem no âmbito da comunicação científica, na circulação de objetos editoriais que documentam práticas e valores, não só “conteúdos científicos”, posto que as materializações são condicionantes do trabalho que forja sua própria constituição: o que neles aparece, do modo como aparece, é também discursivização sobre ciência, sobre escrita acadêmica, sobre as atividades que geram esse produto, sobre sua legitimidade social. Esses objetos editoriais são, assim, fundamentais na instauração do mundo ético que preside o exercício dos sujeitos constituídos nas atividades ditas científicas, entre elas, a permanente divulgação de seu trabalho, que é, por extensão, uma produção da imagem de si.

De acordo com o diagrama apresentado acima, o ethos efetivo resulta da complexa relação entre aspectos dados e herdados e um processo que se desdobra na atualização de um discurso, no decurso da interlocução. É com base nas cenas da enunciação (MAINGUENEAU, 2006MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.) que se pode examinar esse funcionamento: cena englobante, cena genérica e cenografia – a reunião dessas dimensões enunciativas do discurso é, ao mesmo tempo, a fundação de um dizer ou a atualização de um já dito e a validação daquilo que funda ou atualiza: todo discurso pretende convencer fazendo reconhecer a cena de enunciação que ele impõe e por intermédio da qual se legitima; entende-se por isso que o dito e o dizer se sustentam reciprocamente.

O quadro cênico – em que a cena englobante (tipo de discurso) encarna uma cena genérica (formalização textual em que esse tipo de discurso se materializa) –está previsto em boa medida antes do desdobramento enunciativo, e esse desdobramento, a cenografia, confirma ou infirma tais previsões. Por exemplo, é possível cenografar de diferentes modos o discurso científico (que é uma cena englobante), materializando-o numa reportagem (uma cena genérica), que pode ser didática, suscitar comparações entre práticas da vida cotidiana e simpaticamente convidar a leituras aprofundadas sobre o tema, mas pode também ser professoral, guiar raciocínios por explicações meticulosas pouco acessíveis aos leigos, prescrever comportamentos relatando com gravidade os achados científicos. A cenografia é o lugar da manobra dos sujeitos, cujas posições dadas e herdadas via quadro cênico são trabalhadas na direção de um posicionamento mais ou menos singular, a depender da institucionalidade do quadro, de sua força de coerção, das brechas que há para resistência ou subversão. Na cenografia residem as reiterações que filiam uma discursivização e também as singularidades que apontam para a autoria. A cenografia é, enfim, uma materialização da dinâmica das restrições semânticas, da tessitura do interdiscurso, é a superfície em que tomamos contato com os tipos de discurso, com as implicações dos regimes de genericidade em que encarnam, isto é, com as formas de gerir os gêneros socialmente estabelecidos – inclusive, como é frequente, nas suas fronteiras e liames. E é dela que emerge o ethos:

A cenografia, como o ethos que dela participa, implica um processo de entrelaçamento paradoxal: desde sua emergência, a fala supõe uma certa cena de enunciação que, de fato, se valida progressivamente por essa mesma enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo aquela de onde o discurso vem e aquele que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar como convém (…) São os conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar a própria cena e o próprio ethos, pelas quais esses conteúdos surgem (MAINGUENEAU, 2005MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. Trad. Sírio Possenti. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 69-92., p. 77-78).

Resta, então, articulá-la ao mídium: uma cenografia, como superfície textual, mais propriamente textualização, work in progress atualizando um discurso, não se desnovela senão inscrita num vetor de sensibilidade (MO) animado por certa matriz de sociabilidade (MO) que nele se vivifica, como vimos. Assim, conforme os lineamentos da OM que define a Fundação Fapesp no âmbito do sistema científico, examinaremos cenografias constitutivas da MO em que se configura a revista Pesquisa Fapesp. Como dissemos na introdução, três tipos de dados foram selecionados de um amplo arquivo para esta exposição.

1 A publicidade da revista na revista

Consideremos que a revista Pesquisa FAPESP tem atualmente uma tiragem de 27.400 exemplares e, segundo seus próprios termos, “é resultado da evolução editorial do informativo Notícias FAPESP. Lançado em agosto de 1995, o informativo começou com uma distribuição gratuita para os pesquisadores paulistas, gestores da política nacional de ciência e tecnologia e jornalistas. Quatro anos mais tarde virou revista”. Assim, “desde março de 2002, além de ser enviada para uma seleta carteira de assinantes subsidiados composta de pesquisadores, Pesquisa FAPESP conta com assinaturas pagas, recebe publicidade e é comercializada em bancas de jornais no estado de São Paulo e nas principais cidades brasileiras” (grifos originais, disponíveis em revistapesquaisa.fapesp.br/quem-somos/. Acesso em 11 maio 2018).

Figura 3
Exemplos do conjunto de dados de publicidade na revista sobre a própria revista dirigido a leitores; respectivamente, da esquerda para a direita: n. 233 de jul. 2015, n. 77 de jul. 2002, n. 88 de jun. 2003, n. 242 de abr. 2016

Vemos que se trata de um projeto de divulgação restrito, inicialmente, a pesquisadores paulistas, gestores da política nacional de ciência e tecnologia e jornalistas. A pesquisa paulista estabelece um parâmetro para gestores em âmbito nacional, tanto à montante da pesquisa (agentes e atores que gerem as condições de sua produção), quanto à jusante, quando os achados podem ser, por ação de jornalistas, difundidos a um público mais amplo. Depois, amplia-se sua difusão e mantém-se uma “seleta carteira de assinantes subsidiados” cuja política de seleção não é explicitada, mas é possível levantar a hipótese de que se trata dos pesquisadores paulistas, únicos financiados pela Fundação, e é vendida também “nas principais cidades brasileiras”, sem que se definam os critérios pelos quais seriam consideradas “principais”. Trata-se, assim, de uma circulação ritualizada a partir de critérios declarados próprios e não parametrizados publicamente.

Esse pequeno conjunto de dados é representativo da expansão operada desde 2002: a revista fala diretamente a potenciais assinantes (para além da “seleta carteira”), oferecendo “o que a ciência brasileira produz” junto ao poder que a própria revista tem de registrá-la: “a ciência brasileira está fazendo história” é um enunciado rodeado de números da revista, da coleção documental que assim se explica:

A revista Pesquisa FAPESP traz, a cada mês, mais de 90 páginas de notícias exclusivas sobre o que é feito de mais avançado nas universidades e institutos de pesquisa no Brasil. As reportagens que você lê primeiro aqui retratam a base do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Ler Pesquisa FAPESP é acompanhar essa evolução sem perder nenhum movimento (n. 77, jul. 2002).

E finalmente professores e estudantes em geral podem ter acesso a uma assinatura de 12 exemplares: cresce a comunidade de assinantes, a revista pode chegar, agora, aos que não têm suas pesquisas financiadas pela instituição; para além da seleta carteira, é possível engajar-se voluntariamente nessa doxa da modernidade: saber em primeira mão o que fará o futuro, caminhar pari passu com o avanço, a evolução, o que já está adiante. A razão para isso? A cadeia semântica de slogans que se retoma aponta para a ideia de ficar “por dentro desse mundo” que “os pesquisadores brasileiros fazem dia após dia para criar o conhecimento”. De fato é, “acima de tudo, informação” sobre o que a ciência brasileira produz e que, afinal, nesta revista, é “um passo à frente do conhecimento”. Este último slogan, retomado em diversas edições, aparece também quando o interlocutor é o potencial anunciante (Figura 4).

Figura 4
Exemplos do conjunto de dados de publicidade na revista sobre a revista dirigida a anunciantes; respectivamente, da esquerda par a direita: 78, de ago.2002, n. 75 de maio 2002

Com a predominância da coleção de edições encenada (só mais recentemente cedendo a imagens estereotípicas de ciência (como, no conjunto anterior, é o caso da sugestão de instrumentos de laboratório e de uma estrutura vista macroscopicamente), o anunciante, supostamente um leitor da revista, uma vez que o chamado está nela encartado, pode ser um desses pesquisadores ou gestores ou professores… Ou seja, dirige-se a quem quiser falar com a “inteligência do país”, essa que produz “o futuro” e que pode ser acessada “com exclusividade” nessa poderosa publicação, que documenta nada menos do que a história da ciência brasileira no exato momento em que ela produz o mundo que virá. Ao valorizar sua razão de ser, a revista valoriza sua potência de registro daquilo que constitui, então, uma comunidade discursiva: agentes e atores que produzem pesquisa científica, leem sobre ela e oferecem produtos e serviços atinentes. A constituição dessa comunidade em torno do vetor de sensibilidade que reúne “reportagens que você lê primeiro aqui [e que] retratam a base do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país” está circunscrita pelos investimentos da matriz de sociabilidade, que é a Fundação Fapesp, como se pode verificar a seguir.

2 Gráficos com dados consolidados sobre as atividades da Fapesp

As atividades de gestão da Fundação são frequentemente apresentadas na revista. No que tange à apresentação de gráficos com dados consolidados, há inclusive edições dedicadas a balanços. Expedientes muito comuns na divulgação científica, os gráficos são um forte argumento de autoridade, na medida em que sua formulação técnica leva a uma síntese: uma complexidade é facilitada pelo modo totalizante de grafá-la. Ao mesmo tempo em que uma grande quantidade de informações se organiza, o efeito é de que uma única informação geral rapidamente se dá a ver. Isso produz um sentido de transparência muito útil nas prestações de contas ou explicações de processos4 4 Há questões importantes sobre o letramento para leitura de gráficos que não abordaremos aqui, por fugirem ao escopo desta reflexão. Mas indicamos Ribeiro (2016), em que se compreende que há pouco preparo para a leitura desses dispositivos informacionais e também, em muitos casos, negligência de aspectos informacionais por parte dos próprios autores dos gráficos. . A cenografia que se instaura é, portanto, a de precisão científica e tecnológica. Possivelmente o pouco uso desses recursos nas chamadas humanidades é uma das razões para que seus trabalhos figurem, no imaginário que rege o mundo ético dos financiamentos à pesquisa, como não científicas e não tecnológicas. A seguir (Figura 5), dois exemplos desse conjunto de dados:

Figura 5
Gráficos que apresentam distribuição de recursos: (A) investimento em projetos temáticos em 1996, n. 9, maio 1996; (B) o “sistema paulista de ciência e tecnologia” com dados consolidados do ano 2016, n. 247, set. 2016

O que se apresenta no gráfico de 1996 é uma distribuição de recursos cuja proporção vemos reiterada em quase todos os seus aspectos nos gráficos de anos subsequentes, e ainda atualmente. Trata-se, neste caso, do financiamento a Projetos Temáticos, uma modalidade de “propostas de pesquisa com objetivos suficientemente ousados, que justifiquem a duração de até cinco anos e as condições especialmente favorecidas de apoio e financiamento, incluindo a possibilidade de concessão de solicitações complementares vinculadas ao projeto” (cf. http://www.fapesp.br/176, último acesso 31 maio 2018), ou seja, uma modalidade cuja ousadia – semântica ligada à doxa moderna que registramos acima – pressupõe fôlego organizacional (até cinco anos planejados) e atendimento ao que se considera digno de “condições especialmente favorecidas”, capazes de angariar, inclusive, auxílios complementares: uma modalidade que pressupõe infraestrutura e pessoal especializado na própria gestão dos recursos, o que possivelmente explica a proeminência da Universidade de São Paulo em todos os gráficos dessa modalidade na série histórica, e mesmo em outras modalidades – uma constante. A contrapartida institucional oferecida pelos proponentes como garantias requeridas pela agência financiadora faz parte da lógica hegemônica no atual período: aos que podem dar garantias, o crédito é mais contundentemente disponibilizado, o que decerto garante a condição de oferecer garantias e, portanto, de receber preferencialmente os financiamentos e auxílios. Essa semântica-matriz é corroborada no site institucional dessa importante universidade, na aba “A USP”, onde o texto intitulado “80 anos de excelência” assim apresenta a instituição em seu parágrafo introdutório, em destaque:

Criada em 1934, a Universidade de São Paulo é uma das mais importantes instituições de nível superior do Brasil. O talento e dedicação dos docentes, alunos e funcionários têm sido reconhecidos por diferentes rankings mundiais, criados para medir a qualidade das universidades a partir de diversos critérios, principalmente os relacionados à produtividade científica (http://www.usp.br/institucional/a-usp/historia, último acesso 31 maio 2018).

Os “rankings mundiais”, “principalmente os relacionados à produtividade científica” são os parâmetros que avalizam “o talento e a dedicação dos docentes, alunos e funcionários” da instituição, que, assim, estão em consonância com as métricas que alçam a USP à condição de partícipe inequívoca de um panorama internacionalizado – um elemento constitutivo dos parâmetros de legitimação negociados mundialmente, componente importante dos valores que legitimam a produção científica atual.

Em todo caso, os dados relativos aos Institutos Federais alocados no estado de São Paulo ou aos estaduais e também às instituições particulares merecem um olhar mais detido, pois a série histórica aponta ciclos e variações que exigem análises de outros aspectos. Aqui, nos detemos nessa semântica da C&T (“ciência e tecnologia”) que, desde o primeiro Boletim, em 1995, aponta tanto para o termo “ciência” atrelado ao termo “tecnologia” quanto para decorrências como a produção de patentes e a qualificação das empresas. No gráfico acima (Figura 6), que estabelece comparações entre fontes de investimento amplo (não só financiamentos e auxílios), a comparação entre estado e federação é o eixo. Nesta ocasião, em que nos interessa pensar a cenografia de que emerge um ethos e que, portanto, está assentada num quadro cênico que se sustenta num dado mundo ético, selecionamos este gráfico porque seu eixo é recorrente na revista e queremos sublinhar como nele se registra que a “Fapesp mostrou estabilidade” diante de mudanças postas como desfavoráveis ao estado e que, embora as agências de fomento federais tenham liderado, em 2016, os dispêndios em São Paulo, nas colunas comparativas em destaque à direita, registra-se que esse dispêndio federal é uma “fração muito menor do que sua participação em nível nacional”: São Paulo é uma potência apesar de não ser atendido à altura pela federação.

Figura 6
Gráfico sobre os recursos de fontes governamentais, n. 258, ago. 2017

Nos conjuntos de gráficos mais recentes, especialmente a partir do número cuja matéria de capa se intitula “Resiliência na crise”, de agosto de 20175 5 Em que se desenvolve com vagar a ideia de que “Apesar da conjuntura econômica adversa, FAPESP manteve ritmo de investimentos, [como] mostra Relatório de atividades 2016” (http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/08/18/resiliencia-na-crise/, acesso em: 31 maio 2018). , o destaque ao Programa PIPE – Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas6 6 “O PIPE-FAPESP apoia a execução de pesquisa científica e/ou tecnológica em micro, pequenas e médias empresas no Estado de São Paulo. São objetivos do PIPE: 1. Apoiar a pesquisa em ciência e tecnologia como instrumento para promover a inovação tecnológica, promover o desenvolvimento empresarial e aumentar a competitividade das pequenas empresas; 2. Incrementar a contribuição da pesquisa para o desenvolvimento econômico e social; 3. Induzir o aumento do investimento privado em pesquisa tecnológica; 4. Possibilitar que as empresas se associem a pesquisadores do ambiente acadêmico em projetos de pesquisa visando à inovação tecnológica; 5. Contribuir para a formação e o desenvolvimento de núcleos de desenvolvimento tecnológico nas empresas e para o emprego de pesquisadores no mercado” (cf. http://www.fapesp.br/pipe/, acesso em: 31 maio 2018). é notadamente festejado, como nos dados a seguir (Figura 7).

Figura 7
Gráficos que põem em relevo o crescimento do PIPE: à esquerda, n. 258, de agosto de 2017; à direita, edição especial PIPE FAPESP 20 anos de inovação, dez. 2017

Certamente, como foi dito, os gráficos acumulam um conjunto de informações complexo, e não os esmiuçaremos agora; importa, aqui, mostrar como a cenografia dessa precisão põe em relevo uma semântica que se orienta fortemente para a relação de “ciência” com “inovação” e de “inovação” com “empresas”: o destaque gráfico do enunciado “4 projetos por semana em 2016” configura uma celebração do ritmo acelerado. Como é o caso do enunciado que intitula o gráfico à esquerda: “Um salto no apoio à inovação”. Nas linhas que se seguem ao título, vemos que a “inovação” apoiada é a do programa PIPE. Ela cresce no ritmo da doxa moderna, atestando a potência dessa “ciência” (“e tecnologia”) financiada pela Fundação e avalizada pelo modo como é difundida pela revista.

3 Um léxico especializado

Uma edição especial celebrou, em dezembro de 2017, os 20 anos do PIPE (Figura 8).

Figura 8
Screen shot da tela da versão on line da edição especial PIPE FAPESP - 20 anos de inovação

Financiando “quase 2 mil projetos de pesquisa tecnológica [e não propriamente científica, frise-se, pois aqui não aparece o marcador C&T] de pequenas e médias empresas paulistas”, o programa, como se anunciava nos slogans acima analisados, está sempre à frente de seu tempo, “antecipou nos anos 1990 instrumentos de apoio à inovação que se consagraram no país”: gesta-se em São Paulo o que pautará o Brasil. O modelo dessa inovação consagrada? Internacional, “o norte-americano SBIR”. Na sua conexão com o mundo, São Paulo está adiante no que, afinal, caracterizará o país. A doxa moderna reaparece, um certo universo interno se conecta a um desejável universo externo por meio de São Paulos, de sua vocação empreendedora.

Essa edição motivou uma verificação do que se intuía na montagem inicial do corpus acima descrito e, assim, demos início a um levantamento lexical que, todavia, não nos permite garantir o rigor desejado. Pretendíamos registrar frequências de termos em torno de ocorrências do termo “ciência” – a princípio, porque nos interessava investigar sua conexão com o termo “brasileira”, como foi dito –, mas, aos poucos, termos mais ligados ao PIPE, fundamentalmente ligados à semântica que caracteriza o universo empresarial, foram aparecendo com frequência expressiva e, então, queríamos produzir uma progressão temporal das ocorrências. Mas há um aspecto técnico a ser considerado: quando inserimos, na ferramenta de busca da revista, o termo “ciência”, temos duas opções, buscar por relevância ou por data e, se buscamos por relevância, os anos vêm todos misturados (2015, 2006, 2003, 2005, 2004, 2002, 2010, 2016); se buscamos por data, a primeira reportagem que aparece é de 2018 e a última é de agosto de 2015… Isso levanta questões sobre o material digitalizado, sobre como foi feita a marcação dos conteúdos para disponibilizá-los em ambiente digital. Ainda não obtivemos acesso ao modo como o banco de dados da revista organiza seu acervo, o que, sem dúvida, é um passo importante para a pesquisa. Portanto, nesta ocasião, encerraremos estas reflexões com um gráfico que registra apenas a frequência do que nos é oferecido, isto é, considerando o banco que a pesquisa no site da revista oferece. Obtemos, assim, os termos apresentados no gráfico abaixo (Figura 9).

Fig. 9
Gráfico que mostra ocorrência de termos ligados a “ciência” no banco da revista Pesquisa Fapesp (autoria própria)

Dada a falta de rigor dos resultados dessa forma busca, apenas registramos o que é patente em termos de frequência: uma terminologia empresarial participa fortemente da composição cenográfica da revista. No que tange à referida doxa da modernidade, tem aqui sua versão paulistana avivada. Outrora empresarial, a “locomotiva do Brasil”, como se celebrizou, é hoje fundamentalmente empresarial e, de fato, isso não remete propriamente ao estado, mas à cidade de São Paulo, sua representante máxima, que é um centro de negócios do circuito internacional e também um centro dispersor do que internacionalmente pautará o país, segundo uma relação parafrástica de enunciados que procuramos mostrar.

A locomotiva repaginada: algumas considerações finais

Os dados apresentados são elementos de composição de cenografias singulares (de matérias, reportagens, editoriais, etc.) que se articulam compondo uma cenografia totalizadora do vetor de sensibilidade: a revista Pesquisa Fapesp, que se apresenta como uma unidade, um objeto editorial acabado.

Um objeto editorial pode ser visto como um vetor de sensibilidade justamente na medida em que articula cenografias das quais emerge um ethos, que aponta para o objeto conferindo a ele uma identidade. Eventualmente, ele comporta contradições, em termos de posicionamentos cenografados – o que pode ser um traço de ethos plural e até democrático, se se puder usar aqui este termo tão opaco atualmente. A maior ou menor heterogeneidade de cenografias singulares compondo o objeto editorial diz respeito à matriz de sociabilidade que anima essa formalização material, há instituições mais ou menos abertas ao convívio de diferenças, tanto por questões mais fundamentalmente ideológicas, quanto por questões mais técnicas – manuais de montagem, por exemplo, tendem menos a derivas e desdobramentos divergentes do que revistas de divulgação científica, que podem compreender “ciência”, e portanto sua função de divulgação dessa “ciência”, de modos bastante variados, ainda que assentados num imaginário menos fluido do que os que governam outros vetores de sensibilidade, como livros de ficção científica ou almanaques de banca de jornal.

Aqui procuramos mostrar elementos cenográficos proeminentes em toda a história da revista Pesquisa Fapesp que, declarando-se um órgão de divulgação da “ciência brasileira”, assentada no mundo ético da proficiência produtiva tal como pautada internacionalmente, materializa nesse vetor de sensibilidade um ethos empreendedor, que se lança às inovações, aos modos de produzir novidade característicos dos empreendimentos que se sucedem, deixando o velho para trás ou engatando-o a reboque. Não se trata propriamente de criar ou inventar, mas de conduzir o que não é novo a um adiante, a um futuro, cumprindo uma vocação (sina?) que tão frequentemente caracteriza a metrópole paulistana nos imaginários correntes.

  • 1
    Arquivo estabelecido em uma planilha Excel que permite uma visada comparativa de diversas categorias de classificação dos tópicos de capa e de conteúdos internos dos 266 números da publicação (até abril de 2018), considerando desde a primeira edição do boletim informativo, em agosto de 1995 e sem computar as edições especiais. (Banco de dados do Grupo de Pesquisa Comunica - Inscrições Linguísticas na Comunicação (UFSCar/CNPq).
  • 2
    Em Discurso Literário, retomando trabalhos dos anos 1990, Maingueneau põe no centro o que refere como “problemas de mídium”, aludindo a Debray numa citação modelar, que reproduzimos: “A mediologia tem por objetivo, através de uma logística das operações de pensamento, esclarecer a questão lancinante, indecidível e decisiva, declinada aqui como ‘o poder das palavras’, acolá como ‘eficácia simbólica’ ou ainda como ‘o papel das ideias na História’, a depender do que se é: escritor, etnólogo ou moralista… Ela gostaria de ser o estudo das mediações através das quais ‘uma ideia se torna força material’.” (DEBRAY, 1991 apud MAINGUENEAU, 2006MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.).
  • 3
    Não discutiremos aqui a especificidade da divulgação científica (DC), mas delimitamos minimamente a noção com base em Zamboni, 2001ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica – Subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001., p. 13, para quem a DC “constitui um gênero de discurso específico, que exige do divulgador um trabalho efetivo de formulação de um novo discurso.”
  • 4
    Há questões importantes sobre o letramento para leitura de gráficos que não abordaremos aqui, por fugirem ao escopo desta reflexão. Mas indicamos Ribeiro (2016)RIBEIRO, Ana Elisa. Textos multimodais. São Paulo: Parábola, 2016., em que se compreende que há pouco preparo para a leitura desses dispositivos informacionais e também, em muitos casos, negligência de aspectos informacionais por parte dos próprios autores dos gráficos.
  • 5
    Em que se desenvolve com vagar a ideia de que “Apesar da conjuntura econômica adversa, FAPESP manteve ritmo de investimentos, [como] mostra Relatório de atividades 2016” (http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/08/18/resiliencia-na-crise/, acesso em: 31 maio 2018).
  • 6
    “O PIPE-FAPESP apoia a execução de pesquisa científica e/ou tecnológica em micro, pequenas e médias empresas no Estado de São Paulo. São objetivos do PIPE: 1. Apoiar a pesquisa em ciência e tecnologia como instrumento para promover a inovação tecnológica, promover o desenvolvimento empresarial e aumentar a competitividade das pequenas empresas; 2. Incrementar a contribuição da pesquisa para o desenvolvimento econômico e social; 3. Induzir o aumento do investimento privado em pesquisa tecnológica; 4. Possibilitar que as empresas se associem a pesquisadores do ambiente acadêmico em projetos de pesquisa visando à inovação tecnológica; 5. Contribuir para a formação e o desenvolvimento de núcleos de desenvolvimento tecnológico nas empresas e para o emprego de pesquisadores no mercado” (cf. http://www.fapesp.br/pipe/, acesso em: 31 maio 2018).

Referências

  • CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Trad. e Coord. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2014.
  • DEBRAY, Régis. Transmitir: o segredo e a força das idéias. Trad. Guilherme Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000a.
  • DEBRAY, Régis. Introduction à la médiologie Paris: PUF, 2000b.
  • FOSSEY, Marcela Franco. A semântica global em duas revistas de divulgação científica: Pesquisa Fapesp e Superinteressante. 2006, 153 fls. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. Trad. Sírio Possenti. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 69-92.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.
  • MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Ethos discursivo Trad. Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, 2008a.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos Trad. Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2008b. p. 69-92.
  • RIBEIRO, Ana Elisa. Textos multimodais São Paulo: Parábola, 2016.
  • ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica – Subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2018
  • Aceito
    24 Set 2018
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