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Ethos discursivo na publicidade: uma imagem, uma polêmica

Discursive ethos: an image, a polemic

Resumo:

Este trabalho tem por objetivo maior refletir sobre o fenômeno da mercantilização da educação a partir da depreensão do ethos discursivo da publicidade de uma instituição de ensino superior privada, cuja circulação gerou controvérsias por retratar o momento sócio-histórico em que o mercado financeiro avança sobre a educação. Para tanto, recorre-se ao arcabouço teórico-metodológico da Análise do Discurso, numa vertente enunciativa, e aciona-se a noção de ethos discursivo, tal qual desenvolvido por Dominique Maingueneau. Coletado em formato digital, o corpus consiste num cartaz publicitário que gerou polêmica nas redes sociais e que, por isso, foi retirado de circulação. Os resultados mostram que a escolha do fiador do discurso representa a corporificação do neoliberalismo em sua atual conjuntura. No entanto, embora com as condições de produção favoráveis, o mundo ético oferecido nesse discurso não foi bem aceito, ocasionando a sua interdição.

Palavras-chave:
Análise do Discurso; ensino superior; publicidade; ethos discursivo; polêmica

Abstract:

This work aims at discussing the commercialization of education system phenomenon from the discursive ethos apprehension in a private higher education institution's advertising, whose circulation has generated controversies by portraying the socio-historical time in which the financial market advances on the education system. For this, we resort to the French Discourse Analysis theoretical-methodological framework, in its enunciative way, and to the concept of Discursive Ethos, as developed by Dominique Maingueneau. Collected in its digital format, corpus consists of an advertising poster that engendered polemic in social networks and, therefore, was withdrawn from circulation. Results show that the choice of the guarantor of the speech represents the embodiment of neoliberalism in its current conjuncture. However, although with the favorable conditions of production, the ethical world offered in this discourse was not well accepted, ending up in its interdiction.

Keywords:
French Discourse Analysis; education system; advertising; discursive ethos

Introdução

Nos últimos anos, temos assistido a uma intensa precarização do trabalho humano em sua totalidade, fruto de profundas mutações que atingiram o mundo do trabalho a partir da crise estrutural do capital no final dos anos 1970. Este movimento, também conhecido como “capitalismo flexível”, se impôs como uma resposta ao esgotamento do modelo fordista/taylorista de produção e paulatinamente obrigou o Estado a se afastar do papel de regulador da economia, entronizando o mercado como o agente dessa desregulamentação.

O empreendimento neoliberal encontra-se atualmente em seu paroxismo, embora procure projetar ainda um perfil descentrado em relação à categoria trabalho, a fim de não explicitar o processo violento de desconstrução das relações de materialidade, subjetividade e identidade dos trabalhadores. A educação, em consonância com o que vem ocorrendo com o trabalho, foi atingida incisivamente por esse ideário e, desde os anos 1990, tem sido pensada como um artefato mercadológico, estruturado por critérios de máxima eficácia e eficiência, oriundos da esfera empresarial.

A partir dessas questões, este artigo tem por objetivo refletir sobre o fenômeno da mercantilização da educação, por meio da depreensão do ethos discursivo de uma peça publicitária produzida pela maior empresa educacional do mundo, a Kroton. O produto que se vende são cursos a distância (100% online), voltados para a formação pedagógica, com a qual o aluno se habilita a exercer a atividade de trabalho de professor e, com isso, “aumentar a renda”.

A entrada no representativo corpus da pesquisa pelo ethos discursivo insere-se no quadro teórico-metodológico da Análise do Discurso de base enunciativa, como preconizada e desenvolvida por Dominique Maingueneau (2008aMAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a., 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29., 2014MAINGUENAU, Dominique. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 69-92., 2016MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico sobre o ethos. In: BARONAS, Roberto L.; MESTI, Paula C.; CARREON, Renata de O. (Org.). Análise do Discurso: entorno da problemática do ethos, do político e de discursos constituintes. Campinas: Pontes Editores, 2016. p. 13-34.) e tem como fundamento a publicidade se situar no imbricamento entre o verbal e o não verbal, e estar inscrita em uma conjuntura sócio-histórica que aciona um conjunto vasto de representações socioculturais. Pelo fato de estar em meio a uma situação polêmica, a operacionalidade do conceito permite ainda efetuar alguns deslocamentos no interior da cena enunciativa em que emerge, deflagrando um mundo ético que valida a face neoliberal da educação no país.

O artigo é composto de três partes. Na primeira, discutimos brevemente a emergência do modelo neoliberal na educação, cuja função, mais de natureza ideológica, é criar um imaginário social que justifique e legitime algumas transformações no mundo da educação. Buscamos, com isso, delinear o contexto sócio-histórico no qual se inscreve o fenômeno da mercantilização da educação, a fim de assinalar os parâmetros que sustentam a construção e a análise do nosso objeto de estudo. Em seguida, dedicamo-nos a apresentar o cenário em que empresas como a Kroton inserem produtos educacionais com o aval do mercado.

Na segunda, apresentamos o quadro teórico da pesquisa, fundamentalmente ligado à Análise do Discurso, e traçamos uma breve trajetória da noção de ethos discursivo, a partir da qual refletimos sobre alguns pontos. Na terceira, realizamos a análise e depreendemos tanto os ethé quanto os efeitos de sentido produzidos pelo cartaz publicitário em questão. Por fim, travamos uma discussão, nas considerações finais, que enfatiza o funcionamento do processo discursivo-ideológico que torna possível a emergência de um “novo” indivíduo.

O neoliberalismo e seus efeitos no sujeito social e na educação

A ideologia neoliberal age em dois níveis interligados. No primeiro, defende a venda de empresas estatais, com vistas à redução de gastos públicos, bem como a redução da intervenção estatal no mundo dos negócios, ou seja, sustenta a retração financeira do Estado na prestação de serviços básicos à sociedade (saúde, moradia, educação, transporte…) e a sua consequente privatização, argumentando a favor das vantagens do livre mercado, no qual a eficiência da competição se faz em função de sua rapidez e presteza. Devido à sua natureza menos burocrática, acentua os malefícios das atividades do setor público-estatal, “[…] apontadas como improdutivas, antieconômicas e como uma fonte de desperdício social” (MANCEBO, s.d.).

No segundo, o neoliberalismo instaura um processo de transformação cultural e ideológica das trocas entre trabalhadores, propondo um projeto de construção e difusão de um novo senso comum que forneça coerência, sentido e uma pretensa legitimidade às propostas de reforma impulsionadas pelo bloco dominante. Neste estágio, é fundamental a atribuição de todos os vícios sociais e econômicos à intervenção do Estado, bem como todas as virtudes à livre-iniciativa como o único modo de recuperar a “democracia perdida”. Postula-se, assim, a tese de que não haveria outra saída a não ser a sociedade ajustar-se aos novos tempos, ingressar no processo de globalização e, para tanto, fazer o ajuste “doloroso e necessário” (FRIGOTTO, 2005FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 2005.).

O discurso neoliberal, em busca de legitimidade, produz uma “realidade” que inviabiliza outras possíveis formas de ação societária. Torna-se impossível, por exemplo, pensar o econômico, o político e o social fora das categorias que justifiquem o arranjo social capitalista. Conteúdos culturais relacionados às noções de cidadania, bem comum, democracia e educação política são substituídos por conteúdos produzidos no compasso da ética do mercado e do livre consumo.

A ideia de uma sociedade composta por cidadãos com os direitos básicos garantidos, que lutam pelos seus interesses coletivos e pela democratização da vida econômica e social, é revertida em favor da imagem de uma sociedade de consumidores que competem entre si (MANCEBO, s.d.). Além disso, os sujeitos sociais são projetados dentro de um perfil sem autonomia para compreender e intervir criticamente no mundo social. A solução dessas questões é deslocada do espaço público, isto é, socialmente compartilhado e administrado por meio de ações políticas, para o âmbito da iniciativa “individual e intimista”. Em outras palavras, o capital, em sua face neoliberal, substitui o conceito de “direito” pelo de “serviço”.

Como não poderia ser diferente, a ideologia neoliberal faz eco também no processo educativo, isto é, um novo sentido de educativo passa a ser modelado, com base em uma “racionalidade educacional” que pretende apagar a ideia de educação pública como um direito social, fruto de uma conquista democrática. O discurso neoliberal encontra no espaço educacional um veículo fundamental de imposição de suas políticas culturais, bem como a disseminação e a legitimação de novos valores em função dos imperativos do mercado e dos interesses da iniciativa privada: empresas que atuam no setor educacional abrem seu capital na Bolsa de Valores e passam a ser geridas por fundos de investimento nacionais e/ou internacionais.

A Kroton Educacional ilustra bem esse modelo: com a alta cotação de suas ações no mercado financeiro, a empresa é líder nos negócios em educação no Brasil desde 2006; desenvolve cursos e tecnologias que abrangem desde o ensino básico até a educação superior. Na primeira vertente, atua em parceria com a Rede Pitágoras, fornecendo sistemas de ensino a mais de 290 mil alunos, em uma rede de 876 escolas espalhadas por vários municípios brasileiros.

No ensino superior, ela abarca um contingente de mais de um milhão de alunos e professores provenientes de outras instituições de ensino superior, recentemente adquiridas, fornecendo educação presencial e a distância. Em abril de 2018, fechou uma compra milionária com a Somos Educação (proprietária de bandeiras como Ática, Scipione, Anglo, entre outras), ainda sob a aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Segundo a Revista Exame1 1 “O que a expansão da Kroton representa para a educação no país”. Revista Exame Negócios, 28/04/2018. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/negocios/o-que-a-expansao-da-kroton-representa-para-a-educacao-no-pais/>. Acesso em: 20 maio 2018. , a proposta foi “vista com otimismo pelo mercado financeiro”: a Kroton apresentou alta de quase 6% no mercado de capitais; já a Somos Educação registrou ganhos de 53%. No infográfico a seguir (Quadro 1), pode-se ter uma dimensão do capital dessas duas empresas.

Quadro 1
Infográfico de conquistas da Kroton e da Somos Educação

Caso essa negociação bilionária seja aprovada, a Kroton tornar-se-á líder também no segmento do ensino básico no Brasil, expandindo consideravelmente a sua influência no sistema educacional brasileiro, além de ampliar a presença dos seus materiais apostilados (sistemas de ensino) no processo pedagógico, os quais se propõem a organizar e controlar o conteúdo das aulas ministradas. Com isso, o professor pode vir a se tornar um simples aplicador de conteúdos (muitas vezes acríticos), sem qualquer autonomia para acompanhar o processo de aprendizagem, assim como o aluno será considerado um simples commodity. Nesse sentido, “tornar-se professor para aumentar a renda” (Figura 1) será práxis, visto que não se exigirá desse profissional a qualificação acadêmica necessária para exercer sua função, nem a dedicação exclusiva às práticas pedagógicas.

Figura 1
Publicidade Anhanguera Graduação 100% EAD

Em relação à sua gestão pedagógica, o posicionamento da Kroton tem sido recebido com grande preocupação, mas as críticas, segundo o grupo, são “injustas”, uma vez que os sistemas de ensino garantem uma qualidade mínima de ensino e aprendizagem. Sua estratégia é, então, a de adquirir várias outras unidades premium2 2 Segundo a Época Negócios de 04/10/2017, unidades premium são “[…] as escolas de marca forte e grande alcance, com valor médio de mensalidade bruto superior a R$ 1250,00 por aluno”. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2017/10/kroton-ja-tem-na-mira-16-ativos-em-educacao-basica-sendo-3-em-fase-avancada-de-negociacao.html>. Acesso em: 20 maio 2018. para replicar esses sistemas em outros espaços.

Embora o escopo deste trabalho seja a educação privada – setor em que as mudanças têm acontecido mais intensamente –, é importante registrar também que a magnitude no volume de negócios concentrado na esfera privada não inibe a atuação de grandes grupos empresariais na educação pública, acentuadamente nos últimos anos, com as chamadas “cestas de insumos pedagógicos”, em substituição aos antigos e conhecidos projetos educativos. Por ser considerado um novo nicho de mercado, a maior parte dos grupos empresariais que antes produziam materiais apostilados para o ensino privado passou a desenvolver material específico para as escolas públicas, mas sem abrir mão de também incidir sobre o desenho da política local e sobre a organização do trabalho docente e administrativo desenvolvido em cada uma das unidades da rede pública, razão pela qual se tornam parceiras dos governos municipais (ADRIÃO; GARCIA; BORGHI; ARELARO, 2009ADRIÃO, Theresa; GARCIA, Teise; BORGHI, Raquel; ARELARO, Lisete. Uma modalidade peculiar de privatização da educação pública: a aquisição de “sistemas de ensino” por municípios paulistas. Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 108, p. 799-818, out. 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302009000300009>. Acesso em: 26 maio 2018.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302009...
).

Esses fatos se revestem de grande importância, na medida em que apontam fundamentalmente para o fenômeno conhecido como “mercantilização do ensino”, cujas raízes remontam ao processo da reforma do Estado brasileiro, ocorrida ainda na década de 1990. Em suma, na sua forma neoliberal, o capital substituiu o conceito de “direito” pelo de “serviço”, ao converter a educação em serviço regulamentado pelo mercado e por ele transformado em mercadoria.

A noção de ethos discursivo: a imagem de si e da comunidade

Em geral, os trabalhos que recorrem à noção de ethos discursivo, tal qual preconizada e desenvolvida por Maingueneau ao longo dos anos, focam sobretudo na imagem de si construída pelo enunciador durante sua enunciação. Neste trabalho, também partimos dessa concepção, porém, buscamos tensionar a noção ao articular esse enunciador à comunidade discursiva em que está inserido, ou seja, o ethos diz respeito ao locutor, mas também é determinado pelo grupo do qual esse locutor é membro. Iniciemos pela sua descrição e, em seguida, discutimos algumas possibilidades de operacionalização.

O termo ethos foi tomado emprestado da retórica antiga e legado aos nossos tempos graças aos trabalhos do filósofo grego Aristóteles (Cf. AMOSSY, 2014AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.), mas desde a Grécia Antiga designa “a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre o destinatário” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. 3. ed. Coord. de tradução Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2012., p. 220). Maingueneau (2008aMAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.) foi um dos primeiros a introduzir o ethos na Análise do Discurso, embora não o tenha feito enquanto “ethos” propriamente dito, mas sim como um “modo de enunciação”, uma “maneira de dizer”. Posteriormente, o autor passa a empregar “ethos discursivo”.

O teórico pondera que a noção de ethos retórica suscita muitas dificuldades de operacionalização, pelo fato de ela ser “muito intuitiva”, isto é, “sem uma definição teórica clara”. Por isso, propõe uma noção que, mesmo não sendo essencialmente infiel à concepção aristotélica, ultrapassa em muito o quadro da argumentação (MAINGUENEAU, 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29., 2014MAINGUENAU, Dominique. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 69-92.).

Já em Gênese dos Discursos, o autor trabalha a noção de ethos para além da eloquência (na oralidade) e alarga o seu alcance, abarcando também os textos escritos. Com efeito, ainda que o denegue, o texto escrito possui uma vocalidade que pode se manifestar numa multiplicidade de tons que, por sua vez, dá autoridade ao que é/está sendo dito. O termo “tom” é empregado dada a sua polivalência, ou seja, vale tanto para o escrito quanto para o oral: o tom de um livro, de uma cor, de um gesto, de uma nota musical… (MAINGUENEAU, 2008aMAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.).

Esses tons permitem que o par correlato da enunciação, o coenunciador, construa uma representação do corpo do enunciador. Bem entendido, por “enunciador” referimo-nos à instância discursiva, não ao locutor empírico (sujeito de carne e osso, RG número X). É precisamente desse enunciador (discursivo) que emerge uma instância subjetiva e que desempenha o papel de fiador do discurso (MAINGUENEAU, 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29.). No caso do corpus de referência, esse fiador encontra-se materializado, isto é, o garoto-propaganda do anúncio.

Contudo, ainda que o ethos esteja crucialmente ligado ao ato de enunciação, deve-se ter em mente que o coenunciador pode construir representações mesmo antes que o enunciador fale, seja porque o texto pertence a determinado gênero de discurso (palestra, aula, reunião empresarial…), seja a partir do seu posicionamento ideológico (militante pela estatização ou militante pela privatização dos serviços básicos), isto é, tudo contribui para a criação de expectativas em matéria de ethos, especialmente na Era Digital, em que o acesso à informação é instantâneo. Por esse motivo, Maingueneau (2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73.) foi levado a estabelecer uma distinção entre o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo: o primeiro diz respeito à gama de informações a respeito do enunciador antes que este fale; o segundo é a imagem de si que o enunciador constrói por meio da sua fala.

Em meio à sua enunciação, o locutor não precisa afirmar categoricamente “sou isso, não sou aquilo…”, mas caso o faça (a depender do gênero discursivo, esse tipo de enunciação é comum), estamos diante do que Maingueneau (2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., 2016MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico sobre o ethos. In: BARONAS, Roberto L.; MESTI, Paula C.; CARREON, Renata de O. (Org.). Análise do Discurso: entorno da problemática do ethos, do político e de discursos constituintes. Campinas: Pontes Editores, 2016. p. 13-34.) distingue entre ethos dito e ethos mostrado: o “dito” consiste naquilo que o locutor diz sobre si mesmo; o “mostrado” representa aquilo que o locutor mostra em sua forma de enunciar. Por exemplo, durante uma campanha eleitoral, um certo político se afirmava “trabalhador”; no entanto, seu modo de ser (vestimentas, vocabulário…) não condizia com o seu ethos dito, ou seja, sua enunciação mostrava o contrário.

“A noção de ethos, que mantém um laço crucial com a reflexividade enunciativa, permite articular corpo e discurso para além de uma oposição empírica entre oral e escrito” (MAINGUENEAU, 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29., p. 17). Essa articulação, continua o autor, recobre não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas ligado ao fiador pelo arsenal de representações coletivas (os estereótipos), que podem se ratificar, atenuar ou retificar durante o ato de fala. Assim, com base em representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, o coenunciador constrói a figura do fiador a partir de alguns índices liberados durante a enunciação do próprio enunciador. E a figura do fiador implica um caráter, uma gama de traços psicológicos (determinado, corajoso, incapaz, moralista…), e uma corporalidade, “[…] ligada a uma compleição física e uma maneira de vestir-se”, de habitar o mundo, de se mover no espaço social (MAINGUENEAU, 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29., p. 18).

Além de persuadir pelo argumento, o discurso visa a fazer com que o coenunciador se identifique com o caráter e com a corporalidade da instância que enuncia, pois as “ideias” criam a adesão do leitor por meio de uma maneira de dizer que também é uma maneira de ser. Dito de outra forma, o discursivo visa a fazer com que o coenunciador incorpore o mundo ético que a enunciação constrói. Essa incorporação, isto é, a ação do ethos sobre o coenunciador, opera em três registros indissociáveis (MAINGUENEAU, 2016MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico sobre o ethos. In: BARONAS, Roberto L.; MESTI, Paula C.; CARREON, Renata de O. (Org.). Análise do Discurso: entorno da problemática do ethos, do político e de discursos constituintes. Campinas: Pontes Editores, 2016. p. 13-34.):

  1. a enunciação confere uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá corpo;

  2. o coenunciador incorpora, assimila através da enunciação um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo;

  3. essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo da comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso.

Nossa atenção se volta para o terceiro registro, no qual se afirma que as duas incorporações anteriores “permitem a constituição da comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso”. Desde Gênese, Maingueneau (2008aMAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a., p. 119-136) ressalta que um discurso não deve ser pensado somente como um conjunto de textos, mas sim como uma “prática discursiva”, a qual implica uma comunidade discursiva que, além de legitimar tais práticas, gerencia a produção, a circulação e o consumo dos seus textos. A fim de estabelecer uma identidade à comunidade discursiva, deve-se incorporar algumas práticas enquanto se rejeitam outras; dito de forma diferente, tais práticas discursivas estão submetidas a um sistema de coerções semânticas (Semântica Global).

Nosso objeto de estudo, já anunciado anteriormente, materializa os discursos do neoliberalismo, do empreendedorismo e, quase sempre em aliança com os anteriores, o da meritocracia. Como forma de pertencer a comunidades em que esses discursos sejam basilares, o (candidato a) membro deve adotar um número determinado de práticas e rejeitar outras, de modo a confirmar o seu pertencimento ao grupo. Tais práticas implicam um hiperenunciador3 3 A depender da obra, Maingueneau emprega ainda “superenunciador” ou “metaenunciador”. De nossa parte, optamos por hiperenunciador porque é versão mais recente da noção. , o qual

[…] aparece como uma instância que, por um lado, garante a unidade e a validade da irredutível multiplicidade dos enunciados do tesauro e, por outro, confirma os membros da comunidade em sua identidade, pelo simples fato de eles manterem uma relação privilegiada com ele (MAINGUENEAU, 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., p. 109).

Essa instância, cuja autoridade garante menos a verdade e mais a sua validade, dá unidade ao grupo, ou seja, gerencia a adequação aos valores e aos fundamentos da comunidade discursiva (MAINGUENEAU, 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73.). Com isso, os membros partilham um modo de ser no mundo, ou seja, um ethos discursivo atrelado à comunidade (mundo ético das celebridades, dos executivos ou dos atletas etc.). Ainda que o membro possua características peculiares, o hiperenunciador minimiza a heterogeneidade em favor de si mesmo, a fim de preservar a identidade do grupo. Portanto, é preciso pensar o enunciador e seu discurso, mas sem desvinculá-lo de sua formação discursiva, isto é, a comunidade discursiva de que faz parte, pois é justamente ela que dá amparo e possibilita as condições de produção de um texto. Ademais, como qualquer formação discursiva, encontra-se em concorrência (relação de embate, neutralidade aparente ou aliança) com outras comunidades.

Dominique Maingueneau tem refletido, com uma certa frequência, sobre a noção de ethos discursivo desde a sua introdução em Gênese dos Discursos. Sua teorização e operacionalização têm sido “experimentadas” em corpora diversos. Assim, em seu Retorno crítico sobre o ethos (MAINGUENEAU, 2016MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico sobre o ethos. In: BARONAS, Roberto L.; MESTI, Paula C.; CARREON, Renata de O. (Org.). Análise do Discurso: entorno da problemática do ethos, do político e de discursos constituintes. Campinas: Pontes Editores, 2016. p. 13-34.), o teórico propõe uma ampliação da noção, ao analisar anúncios de um website de namoros, visando a tensionar o conceito de ethos dito/mostrado em um tipo de corpus em que o ethos não é uma noção necessariamente privilegiada4 4 Segundo o autor, discursos como o publicitário, literário, religioso, político, entre outros, privilegiam a imagem de si para que o leitor/ouvinte incorpore o ethos produzido o mais rapidamente possível. Para tanto, a composição de seus textos conta com profissionais habilitados que dominam as técnicas de expressão e as estratégias enunciativas. .

O problema, diz o teórico, é que a concepção de ethos vigente não permite analisar com a mesma eficácia todos os tipos de textos. Sua aplicação levanta muitas dificuldades, porque ethos discursivo é uma noção que permanece, por enquanto, pouco específica se se buscam compreender os discursos em toda a diversidade. Basta-nos sair dos corpora privilegiados para percebermos que a construção do ethos é muitas vezes uma tarefa incerta. A fim de sanar essa lacuna, Maingueneau (2016MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico sobre o ethos. In: BARONAS, Roberto L.; MESTI, Paula C.; CARREON, Renata de O. (Org.). Análise do Discurso: entorno da problemática do ethos, do político e de discursos constituintes. Campinas: Pontes Editores, 2016. p. 13-34., p. 14-15) propõe atribuir ao ethos três dimensões: categórica, experimental e ideológica, mais ou menos relevantes de acordo com o tipo de texto em análise.

Embora o autor francês analise uma peça publicitária a partir dessas três dimensões e da concepção de ethos dito/mostrado passando pelos “iconotextos”, salientamos, no entanto, que, diferentemente dos anúncios de websites de namoro, sua concepção anterior de ethos discursivo nos permite analisar satisfatoriamente o corpus de referência, um texto publicitário, isto é, um tipo de discurso privilegiado para se depreender o ethos discursivo do enunciador.

“Torne-se professor e aumente sua renda”: o enunciado, o ethos, a polêmica

Em 2017, tramitou pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal a chamada “Reforma Trabalhista” (Lei 13.467/2017), cujo objetivo principal foi adequar a legislação vigente aos “tempos modernos”. Uma vez aprovada, a nova legislação entrou em vigor a partir de 11 de novembro de 2017, mas, desde a sua concepção, tem gerado muita polêmica em seu entorno:

O governo defende as mudanças como uma forma de flexibilizar a legislação, corrigir distorções e facilitar contratações. Já os críticos afirmam que elas vão tornar o mercado ainda mais precário e acabarão enfraquecendo a Justiça trabalhista5 5 “Reforma Trabalhista entra em vigor: o que muda?”. In: CartaCapital 13/11/2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/economia/reforma-trabalhista-entra-em-vigor-o-que-muda>. Acesso em 20 mai 2018. (ênfase acrescida).

Entre os principais pontos alterados, está a revogação da necessidade de vínculo empregatício com a empresa quando da contratação de prestadores de serviço (autônomos) e em regime intermitente, isto é, ainda que o trabalhador preste seus serviços por vários dias da semana ou por horas específicas, a empresa se abstém de contratá-lo como um funcionário. Seja “flexibilização” seja “precarização” das Leis Trabalhistas, fato é que a aprovação da Reforma abriu precedentes para outras formas de contratação em setores distintos do industrial e varejista, entre eles o educacional. Assim, passou a ser legal a contratação de professores para trabalhos intermitentes, sem a necessidade de qualquer vínculo empregatício com a instituição educacional contratante.

Nesse cenário, durante as férias escolares de junho a agosto de 2017 (visando ao início do semestre seguinte), entrou em circulação uma publicidade que propõe justamente a possibilidade de profissionais de áreas distintas cursarem sua “segunda graduação” (100% ensino a distância) e, com uma formação pedagógica, poderem “aumentar sua renda” trabalhando como professor (Figura 1).

A princípio, o cartaz circulou nas dependências da instituição de ensino superior, situada no interior do estado paranaense; ganhou repercussão quando postada e comentada nas redes sociais. Instaurou-se uma polêmica com as críticas dos internautas: dizia-se que a faculdade estava tratando a profissão de professor como um mero “bico” (trabalho informal, subemprego). O caso alcançou outras dimensões quando o Sindicato Intermunicipal dos Professores no Estado de Santa Catarina (Sinproesc) se manifestou sobre o assunto, ao emitir uma Nota de Repúdio6 6 “Nota de repúdio – Professor não faz bico, é profissão que constrói uma nação de profissionais!”. Sinproesc 11/08/2017. Disponível em: <http://www.sinproesc.org.br/nota-de-repudio-professor-nao-faz-bico-e-profissao-que-constroi-uma-nacao-de-profissionais/>. Acesso em 20 maio 2018. , na qual rechaça a atitude da instituição privada.

Por conta da reação negativa nas redes sociais e da Nota de Repúdio do Sinproesc, a instituição de ensino superior privada decidiu pela retirada de circulação da peça publicitária em questão e emitiu uma Nota de Esclarecimento:

Erramos. Nós, da Anhanguera, pedimos desculpas pela mensagem equivocada sobre a função e a importância dos professores. A campanha de marketing que causou mal-estar não representa o que nós, como instituição de ensino, acreditamos, e foi retirada do ar. Por fim, esclarecemos que, esta campanha, em específico, não foi submetida à análise prévia do Luciano Huck e sua equipe.

A seguir, descrevemos e analisamos a peça publicitária (Figura 1), buscando desvelar os elementos e personagens envolvidos que legitimam esse dizer, mas também que engendram a polêmica tratada aqui.

A Figura 1 é um cartaz que circulou impresso e em formato digital, sobretudo nas redes sociais, precisamente onde ganhou repercussão. Trata-se de um cartaz retangular, posicionado verticalmente. Na parte superior, à direita, está um espaço branco sobre o qual se tem “EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA 2017”; abaixo dele, encontramos a imagem do apresentador da Rede Globo Luciano Hulk, trajado informalmente com uma camiseta, braços à mostra e apontando – num gesto como se estivesse orientando ou “dando uma dica” – para um quadro laranja à sua frente: “Segunda Graduação TORNE-SE PROFESSOR E AUMENTE SUA RENDA”. Abaixo desse quadro, há outro maior, branco, com os dizeres: “Chegou o curso de Formação Pedagógica. Realize a 2 Graduação e torne-se professor”. Em seguida, encontram-se informações referentes ao curso “NÃO PRECISA DE VESTIBULAR”, em destaque, e o endereço completo da unidade seguido pelos contatos telefônicos. Grifado em cor laranja (emblemática da instituição), tem-se “Retome seus estudos e matricule-se”. Ao lado direito desse quadro branco, está o logotipo da instituição educacional, Anhanguera, seguido de um triângulo estilizado, e seu endereço eletrônico: “anhanguera.com”.

No que diz respeito ao ethos discursivo, podemos partir do que Maingueneau (2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29., 2014MAINGUENAU, Dominique. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 69-92.) concebe como “ethos pré-discursivo”, isto é, a imagem de si construída a partir de algumas práticas, tendo-se sempre em mente que é possível construir dois ou mais ethé. Dito de outro modo, a construção da imagem de si no interior de uma comunidade discursiva.

Pelo fato de ser uma figura pública, o nome de Luciano Hulk suscita uma imagem prévia nas pessoas: apresentador de TV, jovial, empresário, empreendedor, cogitado a integrar o quadro político do país etc. De mesmo modo, a instituição de ensino superior Anhanguera também suscita algumas representações sociais: empresa de perfil predador, em plena ascensão (características bastante valorizadas no atual contexto sócio-histórico), com mais de 20 mil funcionários, uma presença constante nos meios de comunicação, pertence a um grupo empresarial maior, a Kroton, detentora de milhares de matrículas no sistema de ensino brasileiro. Enfim, todos esses dados “biográficos” dos envolvidos são socialmente compartilhados e estão de algum modo presentes na Figura 1; podem inclusive ser decisivos para a pessoa se matricular ou não em um dos cursos oferecidos.

Após essa primeira etapa, passamos à materialidade linguística, quando é possível depreender se o ethos prévio do Hulk e o da Anhanguera se confirmam ou se infirmam. Note-se que, na Figura 1, Hulk está sorridente, cabelos penteados de lado, camiseta de manga curta, ou seja, está em uma situação descontraída. Sua orientação ou “dica”, em discurso relatado, é o excerto “Torne-se professor e aumente sua renda” (dois períodos coordenados numa relação de causa e efeito: ao tornar-se professor, a renda “automaticamente” aumenta), embora de modo implícito, a frase se legitima a partir do discurso do empreendedorismo, pois sugere que o aumento da renda depende somente do leitor, uma vez que a Kroton-Anhanguera está disponibilizando a oportunidade para tanto.

O empreendedorismo não se restringe à abertura de empresas ou à criação de produtos; destina-se também a identificar oportunidades, agregar valor a algo e transformar um produto em um negócio lucrativo. Isso nos leva a inferir que a proposição “Torne-se professor e aumente a renda” se dirige sobretudo ao cidadão (jovem) que, desempregado ou empregado temporariamente, ao demonstrar proatividade, busca uma forma de incrementar a sua renda trabalhando como professor, tal qual acontece com um número considerável de profissionais de outras áreas que trabalham como motoristas/pilotos de aplicativos.

Nesse sentido, sobressai-se o ethos prévio de Hulk como um empreendedor, empresário bem-sucedido etc.; da mesma forma, o da Anhanguera, de instituição educacional “jovem” que, ao empreender, foi capaz de levar educação (ensino superior) ao Brasil todo e a preços acessíveis, adquiriu boa parte de sua concorrência etc. Logo, está-se diante de duas entidades dinâmicas, antenadas com os novos tempos “tecnológicos/digitais” e, acima de tudo, “vitoriosas”, por lograrem êxito em seus respectivos empreendimentos. Assim, o ethos prévio de ambos se confirma na Figura 1.

O leitor da publicidade constrói a figura do fiador desse discurso a partir de índices liberados durante a enunciação, isto é, a composição da peça que imbrica tanto o verbal quanto o não verbal. Essa figura implica uma gama de traços psicológicos (corajoso, visionário, dinâmico, astuto…), e uma corporalidade (jovem, classe média, informal, “descolado”). Neste caso, o garoto-propaganda Luciano Hulk exerce também a função de fiador, pois endossa aquilo que a Kroton-Anhanguera propõe em sua peça publicitária, ao gesticular favoravelmente: enquanto aponta para o excerto, o apresentador sorri, ou seja, aprova.

Tal qual pondera Maingueneau (2008aMAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.), deve-se articular um funcionamento discursivo e sua inscrição histórica, pensando as condições de “enunciabilidade” passíveis de ser historicamente circunscritas. Por essa razão, para que seu poder seja plenamente exercido, o ethos deve estar “em sintonia” com a conjuntura ideológica visada, a fim de ser imediatamente reconhecido/identificado pelo leitor.

Com isso, o aluno-consumidor vê na figura de Hulk o fiador do discurso da instituição educacional como uma empresa confiável, fidedigna. Além disso, o fiador não só estabelece uma identificação com o leitor, como também lhe dá acesso ao mundo ético da Anhanguera. Sendo assim, o leitor é levado a incorporar essa maneira de habitar o mundo e a participar desse mundo ético, em que os estudantes desse centro universitário são “mais preparados para o mercado de trabalho” (slogan publicitário da mesma campanha), isto é, ao se formarem, entram para o mercado de trabalho qualificados/preparados, muitas vezes empreendendo.

Diferentemente de outros tipos de discurso, os textos publicitários visam à imediata incorporação do leitor, pois devem convencer um público que pode ignorá-los ou recusá-los a qualquer instante. Por isso, “[…] a publicidade põe em primeiro plano o corpo imaginário da marca que supostamente está na origem do enunciado publicitário” (MAINGUENEAU, 2008cMAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p. 11-29., p. 11).

Note-se que ambos Anhanguera e Luciano Hulk projetam uma imagem de si bastante similar, embora cada qual com suas particularidades, eles complementam um ao outro. A Kroton-Anhanguera, enquanto enunciadora, projeta um ethos de instituição jovem (não se fala em tradição), antenada nos novos tempos (aulas 100% online, website, aplicativo de comunicação instantânea, efeitos digitais no cartaz…), em que o discurso do empreendorismo está em voga devido à ausência ou ao enfraquecimento do Estado em alguns setores da sociedade, como o educacional.

Por sua vez, muito em virtude de sua presença televisiva, Luciano Hulk é a encarnação (estereótipo) do discurso neoliberal: trabalhador, empreendedor jovem, dinâmico, moderno, descolado etc. Isso evidencia que a escolha do fiador não é aleatória, há uma cumplicidade entre os envolvidos: Hulk corporifica o mundo ético dos jovens e descolados empreendedores que chegam ao sucesso graças aos seus esforços/méritos; ele materializa (dá uma face) os anseios neoliberais de um sujeito proativo, multitarefas, atuante em várias frentes (apresentador de TV, empresário, vendedor, produtor, comunicador…). Dessa forma, há um enlaçamento dos ethé discursivos. Ainda que esses ethé não sejam ditos na Figura 1, eles são mostrados, ou seja, o leitor pode depreendê-los durante a sua leitura.

Tudo isso leva o leitor a participar, ainda que brevemente, desse mundo ético e incorporar o discurso como o mais apropriado para si, caso queira lograr êxito em seus empreendimentos.

No entanto, é preciso considerar também que nem sempre o ethos visado é aquele que é de fato produzido: “em matéria de ethos, os fracassos são moeda corrente” (MAINGUENEAU, 2008bMAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p. 55-73., p. 61). Soma-se a isso o fato de o ethos que se produz por um discurso não ser depreendido do mesmo modo por todos leitores: vários fatores contribuem para a construção de uma representação do locutor.

Conforme apontado anteriormente, o posicionamento da Kroton, proprietária da Anhanguera (cf. Quadro 1), em relação à educação consiste em transformá-la em uma mercadoria, isto é, não mais um direito a que todo e qualquer cidadão tem acesso, mas sim algo disponível somente para quem pode pagar por ela. Ademais, que a educação deve ser mensurada, condensada em sistemas de ensino e com métodos padronizados de aplicação e gerenciamento, tal qual a produção de um aparelho eletrônico ou outro produto qualquer.

Luciano Hulk, cujo perfil é o de uma pessoa de classe alta, família tradicional, com uma participação político-partidária bem delineada etc., é alguém ligado ao mercado, aos negócios, ao Estado mínimo, um neoliberalista, ou seja, alguém cujo ethos está em conformidade com a Kroton-Anhanguera. Mais que isso, ele é a face desse discurso do qual ambos emergem.

Se, por um lado, a presença de Hulk resulta em adesão por parte dos leitores que desejam ser assim, por outro, é precisamente devido ao seu ethos de “homem de negócios” definindo o futuro da educação que gera a controvérsia.

Não há um “plano” do discurso a ser privilegiado, mas é preciso integrar todos ao mesmo tempo (MAINGUENEAU, 2008aMAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.). Assim, um cartaz publicitário foi o disparador de uma polêmica entre dois discursos que veem a educação de formas antagônicas: ao projetar um ethos de empresa em sintonia com os novos tempos, a Kroton-Anhanguera propõe a flexibilização, modernização das relações de trabalho, com isso, a criação de oportunidades; já o Sinproesc concebe as ações da instituição privada como precarização, desqualificação do trabalho de docente, tornando-o um mero “bico”. Ambos os discursos veem valor na educação, mas valores diferentes.

Considerações finais

Este artigo se propôs a analisar discursos provenientes da publicidade, locus privilegiado de produção, consumo e circulação de enunciados em consonância com os ditames do mercado. Para tanto, foi selecionada uma campanha publicitária de um centro universitário, através da qual se vendem cursos de formação docente na modalidade a distância (EaD). Nela, alguns princípios mercadológicos que regem a educação atualmente foram assumidos por Luciano Hulk, garoto-propaganda reconhecidamente bem-sucedido na tarefa de vender cartões de crédito, telefonia, vitaminas, carros, sabão em pó, alimentos industrializados, refrigerantes e … educação.

Tomou-se a noção de ethos discursivo como central para a análise, na perspectiva assumida por Maingueneau em diversos textos publicados ao longo das últimas décadas. O autor levanta neles algumas dificuldades no sentido de estabilizar a noção. A primeira delas se refere ao ato de enunciação construir representações do enunciador antes mesmo que ele fale. Em nossa análise, o ethos pré-discursivo de Hulk foi considerado crucial para o bom funcionamento da campanha.

Outra dificuldade residiria na instabilidade do ethos, visto que ele mobiliza uma percepção complexa que envolve a afetividade do intérprete, liberando índices variados de um comportamento em que verbal e não verbal interagem, a fim de provocar no coenunciador efeitos de sentido que não decorrem apenas das palavras. Essas “zonas de variação” acabam por bloquear certos traços éticos, liberando outros não previstos. Fato esse que pode ter contribuído para a campanha sofrer interdição. Ou seja, ao invés da produção de sentidos consensualmente positivados, de fato, houve dissenso em relação aos valores acionados e rejeitados sobre a educação, produzindo efeitos dissonantes nas comunidades pró e contra o projeto neoliberal para a educação.

Com referência ao processo de incorporação, é importante registrar que a peça publicitária pressupunha coenunciadores afeitos ao neoliberalismo, cujos discursos de Hulk “encarnariam” num só corpo enunciante atributos como jovem, empreendedor, ousado, esforçado, enfim, as vantagens do livre comércio: a proposta de trabalho docente defendida na peça publicitária não foi apresentada como uma atividade precarizada, mas como “possibilidade de trabalhar livremente”, “sem cobranças” ou “controles externos” por um indivíduo que aceita correr riscos, estabelecer objetivos de curto prazo, exercer cargos de curta duração. No entanto, a polêmica que se seguiu ao lançamento da campanha permitiu observar que não se consubstanciou plenamente tal objetivo, por ela ter sido apreendida fora de uma situação precisa, integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada (o ethos é uma noção híbrida).

Finalmente, cumpre salientar que, nesta versão do capitalismo flexível, é necessário desenvolver, reconhecer e legitimar todas as formas de individualismo, não na sua acepção iluminista (apogeu do sujeito racional, fonte do conhecimento, da moral e da ação), mas aquela “sugerida” pelo racionalismo econômico — o individual é elevado ao seu grau máximo, pronto para moldar o ser humano no seu todo, ou seja, na expressão preconizada por Gordon (1991)GORDON, Colin. Government rationality: An introdution. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter (Eds.). The Foucault effect: Studies in governmentality. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. Disponível em: <https://laelectrodomestica.files.wordpress.com/2014/07/the-foucault-effect-studies-in-governmentality.pdf>. Acesso em: 26 maio 2018.
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, como “o empresário de si mesmo”.

Essa nova subjetividade implica alguém que só se reconheça na esfera da competição e que demonstre indiferença a tudo o que é público e coletivo. Dessa forma, os discursos publicitários voltados para a educação em sua versão mercantilizada traduzem essa “economia das subjetividades” como a única via possível de o indivíduo ascender economicamente, sempre no âmbito da iniciativa “individual e competitiva”. Para isso, é fundamental que a publicidade ponha a circular os valores mercantis como o único modo de interpretar os mundos possíveis. Nesse sentido, sim, a opção pelo enunciador Hulk parecer ter sido bem-sucedida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2018
  • Aceito
    22 Out 2018
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