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Sobre o conhecimento em Ludwig Feuerbach: uma investigação a partir dos Gedanken über Tod und Unsterblichkeit (1830)

On knowledge in Ludwig Feuerbach: an investigation from the Gedanken über Tod und Unsterblichkeit (1830)

RESUMO

A presente exposição se orienta pela investigação de um possível interesse de Ludwig Feuerbach (1804-1872) pelo tema do conhecimento, neste caso específico tomando por base o escrito Pensamentos sobre a morte e a imortalidade (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit [1830]). Embora esta temática pareça constituir um objeto lateral no interior da obra e, por isso, ali não exista um tratamento sistemático da mesma, procuro justificar a legitimidade de concluir que a questão do conhecimento não está apenas presente, mas que dela decorrem implicações diretas para a compreensão de outros problemas que aparecem seja no referido texto de 1830, seja em obras futuras, algo que sugere a importância de examinar tal questão mais demoradamente. Neste texto investigo o problema com base em uma tipologia do saber, para daí avaliar pontos como a distinção entre subjetividade e objetividade, assim como sobre as capacidades humanas a propósito de uma compreensão da exterioridade - em que comparece a centralidade da sensibilidade como condição de possibilidade do conhecimento -, sem desconsiderar a viabilidade da abstração. Finalizo anunciando o tema da valorização da natureza, que parece já estar considerado aqui em 1830 (e que virá retomado no pensamento feuerbachiano posterior), procurando igualmente compreender a questão do conhecimento a partir de um vínculo com a natureza e com a dimensão espácio-temporal que determina qualquer existência real.

Palavras-chave:
Ludwig Feuerbach; conhecimento; Pensamentos sobre a morte e a imortalidade

ABSTRACT

This paper deals with investigating a possible interest of Ludwig Feuerbach (1804-1872) in the subject of knowledge, in this specific case based on his work entitled Thoughts on death and immortality (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit [1830]). Although this theme appears to be a lateral object within his work and where there seems to be no systematic treatment of it, this paper tries to support its legitimacy by concluding that the question of knowledge is not only present, but that it has direct implications for the understanding of other problems that arise either in the mentioned 1830 text or in future works, which suggests the importance of examining this issue at length. The problem is investigated here based on a typology of knowledge, in order to evaluate points such as the distinction betw een subjectivity and objectivity, as well as human capacities regarding an understanding of exteriority - in which the centrality of sensitivity appears as a condition for the realization of knowledge - without disregarding the viability of abstraction. The paper is concluded by announcing that the theme - appreciation of nature - seems to be already considered back there in 1830 (and which will be taken up in later Feuerbachian thought). As such, the paper stands for the effort to understand the question of knowledge from its link with nature and with the time-and-space dimension, a configuration that determines any real existence.

Keywords:
Ludwig Feuerbach; knowledge; Thoughts about death and immortality

Introdução

Escritos provavelmente ainda no período de publicação da “dissertação” (De Ratione, una, universali, infinita [1828]), os Pensamentos sobre a morte e a imortalidade (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit [1830]) constituem uma obra saída anônima em Nuremberg, de “circulação muito limitada” (Rambaldi, 1966RAMBALDI, E. 1966. Le origini della Sinistra hegeliana: H. Heine, D. F. Strauss, L. Feuerbach, B. Bauer. Firenze, La Nuova Italia Editrice., p. 187), pela qual se revela o interesse do jovem Ludwig Feuerbach, à época com 26 anos, em investigar os temas da morte e da imortalidade da alma, os mesmos que, de acordo com Tomasoni, suscitavam “vivo interesse no iluminismo alemão”, notadamente em J. J. Spalding (Die Bestimmung des Menschen [1748]), M. Mendelssohn (Fédon [1767]) ou C. A. Tiedge (Urania, über Gott, Unsterblichkeit und Freiheit [1800]), entre outros (Tomasoni, 2011TOMASONI, F. 2011. Ludwig Feuerbach. Biografia intellettuale. Brescia, Editrice Morcelliana., p. 78ss).

Embora se trate de um texto que vem apresentado pelos intérpretes, em geral, a partir do interesse de Ludwig Feuerbach por discutir a (im)possibilidade real e lógica de uma doutrina da imortalidade da alma, por meio de um conteúdo notadamente imanentista e anti-cristão (Rambaldi, 1966RAMBALDI, E. 1966. Le origini della Sinistra hegeliana: H. Heine, D. F. Strauss, L. Feuerbach, B. Bauer. Firenze, La Nuova Italia Editrice., p. 187), os Gedanken possuem em seu interior uma série de outras questões ainda não completamente exauridas pela literatura secundária, muitas das quais parecem ser igualmente assumidas mesmo de modo provisório e instrumental, no sentido de servirem como base para a construção de argumentos que pretendem atacar o problema central aludido pelo título da obra. No entanto, defendo que parte significativa destas questões merece um estudo à parte, seja pela complexidade de sua compreensão, seja pelas profundas implicações a que podem conduzir, seja para uma interpretação mais densa da própria obra em análise, seja para o pensamento feuerbachiano em geral. Minha hipótese hermenêutica é que uma dessas questões aparentemente tangenciais presentes nos Gedanken é a que se refere ao problema do conhecimento e, por isso, intenciono neste texto introdutório pôr a questão à luz para debate, no sentido de oferecer a possibilidade de encontrar elementos, no interior do próprio pensamento feuerbachiano, que reforcem a necessidade de tratá-lo mais além do reducionismo pelo qual é geralmente recepcionado - notadamente na restrição de sua contribuição filosófica exclusivamente ao tema da crítica da religião.

Para cumprir o objetivo deste trabalho, sugiro, em primeiro lugar, que a questão do conhecimento nos Gedanken é inicialmente tratada por meio da distinção entre saber teórico e saber prático. Em seguida procuro apresentar argumentos em favor da possibilidade de articular o tema do conhecimento com a valorização da historicidade do pensamento. Por fim, proponho que o tema em avaliação se associa ao reconhecimento da natureza e da sensibilidade, que tornam possível encontrar traços de uma teoria correspondencial do conhecimento baseada em certo realismo, para a qual é imprescindível a tematização da espácio-temporalidade.

1. Saber teórico e saber prático: por uma tipologia do conhecimento

A referência inicial ao tema do conhecimento pode ser extraída já das epígrafes dos Pensamentos sobre a morte e a imortalidade, como pretendo demonstrar adiante. Principio pela menção a cada uma delas. A primeira, retirada do Prometeu, de Goethe, diz:

Nos tempos em que eu era pequeno para onde dirigir-me não sabia, meu olhar confuso voltei, então, ao sol, como se ali houvesse algum ouvido para ouvir a minha queixa, um coração ao meu semelhante que deste angustiado se apiedasse (Goethe apud Feuerbach, 1993 FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A. , p. 52).

A segunda epígrafe, em perspectiva distinta, recorre a uma carta de Frederico, o único a Voltaire, pela qual se afirma:

Entre os gregos e romanos pôde prosperar a filosofia porque a religião pagã não tinha dogmas; […] estes corrompem tudo entre nós. Os escritores têm que aplicar-se ao seu trabalho com uma cautela com a qual se causa violência à verdade. A ralé de batina representa o mais tímido ataque à ortodoxia; ninguém se atreve a mostrar a verdade sem tabus (Frederico apud Feuerbach, 1993 FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A. , p. 53).

Considerando o disposto nas epígrafes para uma avaliação preliminar, defendo ser possível recolher algumas conclusões interessantes que podem nos orientar, como chaves de leitura, para uma compreensão mais dilatada da obra em análise, na medida em que podem indicar certos elementos de alguma maneira direcionados ao tema do conhecimento, como seguem:

(i) do texto de Goethe escolhido pelo jovem Feuerbach se pode notar a advertência quanto ao modo de condução da vida, quando alguém faz do apelo ao “sol” - como a uma divindade - a chance de encontrar uma orientação segura para o agir. É como se uma orientação externa (divina ou “do sol”) permitisse visualizar a rota a seguir, como se dela emanasse o “verdadeiro” e “certo” caminho a percorrer. Daí se compreende simultaneamente que há um tipo de saber que possibilita encontrar certa “verdade”, e que, neste caso específico, trata-se de um tipo de conhecimento assumido como o que desde a tradição filosófica vem assinalado como um “saber prático”. A posse desse saber prático seria equivalente à dotação dos requisitos para a superação de uma “infância” no campo da ação ou, o que é o mesmo, de certa maturidade moral que conduz ao autogoverno e à autonomização da agência humana, concedendo gravidade ao tema da liberdade do ser humano e sua correspondente responsabilização;

(ii) no segundo caso, quando da remissão a Frederico, o único, a discussão encaminha outra recepção do conceito de conhecimento: não se trata mais de tomá-lo do ponto de vista prático, senão de aceitá-lo do ponto de vista teórico. Explico: quando põe em paralelo filosofia e religião, a crítica da epígrafe contribui para pensar uma oposição entre pensamento livre e discurso religioso, argumentando em favor do primeiro como um veículo de acesso à “verdade”, embora posteriormente fique explícito que não se trate de uma filosofia única ou mesmo de qualquer tipo de abordagem filosófica. Ainda assim, decorre uma consequência que se impõe em razão dessa diferenciação prévia, qual seja: a identidade entre o discurso religioso e o falseamento da verdade. Isso significa que, assumindo a posição de Frederico, o único como sua, o jovem Feuerbach defende que o conhecimento da verdade exige um afastamento dos discursos “dogmáticos” em geral - inclusive os filosóficos1 1 É interessante observar que mesmo o pai de Ludwig Feuerbach, Paul Johann Anselm Feuerbach, já advertia, em 1825, para a importância de “rejeita[r] a posição de uma filosofia única e definitiva” (Serrão, 2019, p. 237), em carta ao filho datada de 20 de abril daquele ano. Nela, quando ponderava a respeito de uma possível mudança de Curso do filho Ludwig da Teologia, em Heidelberg, para a filosofia, com Hegel, em Berlim, ressaltava que “nunca existiu uma filosofia única, mas sempre e só filósofos; de que há, sempre houve e sempre haverá tantas filosofias quantas as cabeças pensantes que procuram compreender de si para si mesmas o inconcebível e o inapreensível; quem corta artificialmente o sistema das suas opiniões através de ‘ses’ e ‘porques’ e ‘portantos’ e o vende como uma ciência (objectiva), ou mesmo como a ciência das ciências, ou é um sofista ou alguém confundido na auto-ilusão” (Carta de Paul Johann Anselm von Feuerbach [20 de Abril de 1825], GW, vol. 17, p. 82 apud Serrão, 2019, p. 237). - e, em particular, daquele da religião, como uma de suas formas de expressão. Daí que, para Feuerbach, a religião não seja portadora de uma verdade, senão do contrário: o que ela promove é algo como um “saber ilusório” que, por isso mesmo, é enganador e cumpre destituir.

Dos argumentos precedentes se justifica que as duas epígrafes em questão permitem reconhecer claras referências ao tema do conhecimento, tanto do ponto de vista teórico, pelo qual se efetiva o interesse da busca pela verdade em detrimento de sua ocultação pelo falseamento operado por certos dogmatismos - particularmente aquele oriundo do discurso religioso -, quanto do ponto de vista prático, por meio do que o indivíduo pode encontrar a correta orientação para a sua ação e que, portanto, apresenta certa distinção em relação àquele primeiro tipo de saber.

Impõe-se, por conseguinte, que o jovem Feuerbach articula a tematização (ou mesmo a recepção) do problema do conhecimento amparado inicialmente em certa tipologia do saber humano, em alguma medida alinhando sua posição filosófica àquela da tradição em geral, o que sugere a sua admissão prévia de uma capacidade dúplice como algo interno à razão natural: a de, concomitantemente, (i) permitir o avanço cognitivo e justificar os progressos da ciência e do conhecimento humano em geral, e a de (ii) orientar a ação humana sem a necessidade de uma interferência (e referência) externa - duas faces de uma mesma razão humana, amadurecida e livre.

2. Verdade e história situada: a separação entre conhecimento e aparência de conhecimento

O Prefácio do editor e a Introdução dos Gedanken escritos, ao que tudo indica, pelo próprio Feuerbach, confirmam as conclusões extraídas dessa interpretação das epígrafes, ao tempo em que igualmente as ampliam pela consideração de elementos externos aos trechos anteriores. Nessas seções, Feuerbach alude primeiramente ao elemento que, de acordo com Gadamer, caracterizaria fundamentalmente a filosofia do século XIX: a consciência histórica2 2 Conforme Gadamer, “parece ser um traço fundamental da consciência filosófica do século XIX que não se possa concebê-la separada da consciência histórica. Claramente, por trás deste fato subjaz a grande ruptura com a tradição do mundo dos estados da Europa, ruptura que teve sua origem na Revolução francesa. O radical intento da Revolução de fazer da fé na razão, que alentava o movimento da Ilustração, a base da religião, do estado e da sociedade, teve o efeito contrário de introduzir a consciência do condicionamento histórico e do poder da história na consciência geral, como a grande instância contrária que rechaçou definitivamente os presunçosos excessos do ‘novo começo’ absoluto da Revolução. A consciência histórica que surgiu então exigia, também da pretensão da filosofia ao conhecimento, uma prova de legitimidade. Todo intento filosófico de adicionar algo peculiar, por novo que seja, à tradição do pensamento greco-cristão, agora tem que proporcionar uma justificação histórica de si mesmo, e um intento onde esta justificação falte, ou seja inadequada, careceria, necessariamente, de poder de convicção para a consciência geral” (Gadamer, 2000, p. 131). . Já em 1830 o jovem Feuerbach compreende a importância de não se furtar à tarefa de interpretar o seu momento presente, segundo ele um “tempo de contradições” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 55), um tempo ainda decidido a “levar em seu seio o gérmen de fantásticos desenvolvimentos”; por isso, Feuerbach anota que os Gedanken pretendem conceder algumas provocações na qualidade de um “fragmento de valor decisivo”, com o objetivo de sanar, como “mediador dialético”, as dificuldades oriundas tanto do materialismo quanto do idealismo subjetivista (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 55-56), no que se refere ao tema central anunciado pelo título do escrito. Se aborda diretamente aí as questões da morte e da imortalidade, Feuerbach não o faz sem a recuperação de conceitos centrais para uma tematização sobre problemas aparentemente externos ao interesse do escrito, que acabam por se dirigir a discussões sobre o conhecimento, por exemplo, tais como os conceitos de “realidade”, “objetividade”, “substancialidade”, “mundo real”, entre outros; do mesmo modo, é legítimo determinar que os conceitos em causa indiquem, como seu ponto de apoio, um tipo específico de ontologia da qual Feuerbach não apenas parte, mas certamente sugere e, de alguma maneira, fundamenta em obras posteriores, como em A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums [1841]) (Feuerbach, 2012aFEUERBACH, L. 2012a. A Essência do Cristianismo. Trad. bras. José da Silva Brandão. Petrópolis, Vozes., p. 47) ou mesmo nos Princípios da filosofia do futuro (Grundsätze der Philosophie der Zukunft [1843]) (cf. Feuerbach, 2005bFEUERBACH, L. 2005b. Princípios da filosofia do futuro. In: FEUERBACH, L. Filosofia da Sensibilidade. Escritos (1839-1846). Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 101-155., p. 138), para mencionar algumas ocorrências3 3 Em outras ocasiões tive a oportunidade de tratar, ainda que de maneira extremamente introdutória, de que tipo de ontologia geral se trata e de como ela acaba por definir certa ontologia local, assim como, por consequência, de como o ser humano promove a aquisição de conhecimento, tomando por fundamento, sobretudo, o disposto nos Grundsätze de 1843 (LIMA FILHO, 2017). ; para além disso, é também exequível que eles convidem a um tratamento do problema do conhecimento se compreendemos tais conceitos no horizonte histórico em que se desenvolve a filosofia de Feuerbach.

Talvez até por compromisso com essa dimensão histórica que atravessa a opção filosófica de Feuerbach, os Gedanken sugerem que o tema do conhecimento esteja vinculado intrinsecamente ao tema da historicidade do pensamento, o que significa assumir a história situada4 4 É importante destacar que a concepção feuerbachiana de história corresponde à aceitação de uma historicidade concreta, ou seja, de algo como uma história situada, que leva em conta a temporalidade determinada espacialmente. Essa é, por exemplo, a nota crítica de Feuerbach em relação à concepção hegeliana de história, que exclui o elemento espacial e só reconhece no seu interior a temporalidade (Feuerbach, 2012b, p. 24). Sobre essa questão, ver Lima Filho, 2019, p. 20-23. como horizonte inescapável a partir do qual qualquer conhecimento, seja ele teórico ou prático, é possibilitado; a historicidade do homem garante, ao mesmo tempo, a historicidade e, por isso, a provisoriedade de qualquer conhecimento, inclusive de qualquer filosofia, do que decorre sua posição crítica em relação a certas versões do dogmatismo. Isso porque a história concreta é aquilo que possibilita separar o verdadeiro do falso, o real do imaginário, o efetivo do fictício, pois que ela “resolve todos os enigmas e descobre todos os segredos” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 63); é ela que faz descobrir, então, um sentido, um significado (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 100), o que impõe que sem história não há semântica possível ao homem real, senão a ilusão, a mera ficção.

Não é difícil enxergar aí uma continuidade com as pretensões já expostas por Feuerbach na sua tese de doutoramento, a já referida “dissertação” intitulada De Ratione, una, universali, infinita (1828), a respeito do que, em carta a Hegel de 22 de novembro do mesmo ano, reivindica ter sido o lugar em que se apresenta

[…] um vestígio de filosofar a que se poderia chamar a realização e mundanização da ideia, a ensarcose ou a incarnação do Logos puro […] trata[-se] da filosofia […] não como um assunto da escola mas da Humanidade […] trata-se então agora de fundar, por assim dizer, um reino, o reino da ideia, do pensamento que é consciente de si mesmo e que se contempla a si mesmo em tudo o que existe; […] a filosofia […] tem agora finalmente de conseguir que não subsista mais um segundo ou um outro, seja com a ilusão, o direito e a exigência a ser uma segunda verdade, como a verdade da religião, etc. […] minha dissertação […] mostra […] um estudo filosófico e um esforço para a presentificação imediata de ideias abstratas (Carta a Georg Wilhelm Friedrich Hegel [22 de novembro de 1828, GW, vol. 17, pp. 103-108) 5 5 Uso aqui a tradução portuguesa de Serrão (2019, p. 244). .

Ao reconhecer a importância da “mundanização da ideia” ou a “presentificação imediata de ideias abstratas” ainda em 1828, é razoável inferir que, nos Gedanken, Feuerbach prossegue com os propósitos anunciados na programática carta a Hegel, pelo anúncio da exigência de que a filosofia parta da realidade concreta e assuma a imanência, a mundanidade, a historicidade como condição do pensar e como lugar da percepção da verdade6 6 Esta posição teórica seria confirmada nas obras futuras, como em Algumas considerações sobre “O começo da filosofia” do Dr. J. F. Reiff (Einige Bemerkungen über den “Anfang der Philosophie” von Dr. J. F. Reiff [1841]) (Feuerbach, 2005a, p. 78-79) ou mesmo nas Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia (Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie [1842]) (Feuerbach, 2005c, p. 91ss). , embora permaneçam, mesmo em 1830, marcas significativas da influência da Spekulation hegeliana sobre sua filosofia. Aqui estariam os contornos do itinerário filosófico feuerbachiano que já permitiriam perceber a tentativa de instauração metodológica de um modo de filosofar a que Feuerbach nomeará posteriormente “genético-crítico”7 7 Da filosofia genético-crítica diria Feuerbach, nove anos depois, em Para a crítica da filosofia hegeliana [Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (1839)], que “[…] é aquela que não concebe nem demonstra dogmaticamente um objeto dado pela representação - porque para objetos simplesmente reais, isto é, dados imediatamente pela natureza, é incondicionalmente válido o que Hegel afirmou -, mas investiga a sua origem, põe em dúvida se o objeto é um objeto real, ou uma mera representação ou um fenômeno psicológico em geral, que por isso distingue com o maior rigor possível entre o subjetivo e o objetivo. A filosofia genético-crítica tem principalmente como seu objeto aquilo a que já se chamou as causae secundae [causas segundas]” (Feuerbach, 2012b, 54-55). , que culminará na proposição de uma “filosofia do futuro”, aquela “que oporá dialeticamente o envelhecimento da filosofia ao rejuvenescimento do mundo” (Rúa, 1993RÚA, J. L. G. 1993. Estudio preliminar. In: FEUERBACH, L. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A, p. 7-47., p. 14).

Prosseguindo a Introdução de seus Pensamentos e em conformidade com a aceitação da importância da história para o descobrimento da verdade, Feuerbach empreende uma descrição (e uma avaliação) histórica das épocas que caracterizariam o desenvolvimento da crença na doutrina da imortalidade da alma, novamente trazendo à lume a consideração de certos elementos que envolvem a questão do conhecimento. Um exemplo pode ser retirado da passagem em que Feuerbach comenta sobre a impossibilidade da crença numa vida pós-mortal para um eu singular do ponto de vista dos romanos, quando diz que “[…] o romano não conhecia nenhuma separação nem falha entre representação e realidade, possibilidade e força, idealidade e realidade” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 60), logo depois de afirmar que “a crença na imortalidade, no sentido moderno, repousa na separação entre possibilidade e realidade; onde estas duas coisas são uma, desaparece aquela” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 60).

O exame exegético do texto parece indicar a admissão de Feuerbach de um compromisso teórico por meio do qual identifica “possibilidade” e “realidade”, uma vez que seu propósito é o de demonstrar a nulidade veritativa da doutrina da imortalidade da alma. Mas no trecho acima Feuerbach intenciona igualmente que não haja distinção entre “representação” e “realidade”, assim como entre “possibilidade” e “força”, e entre “idealidade” e “realidade”. Nesse sentido, ao que tudo indica, para o jovem Feuerbach, representação e realidade são o mesmo, assim como idealidade e realidade. A representação que conflita com a realidade é aquela que não principia com a realidade, mas que parte da pura lógica, da ideia desencarnada, para tentar enquadrar a realidade no que pressupõe a partir de si mesma como um eu puro8 8 Essa identificação entre a consciência e o pensamento abstrato de si, indeterminado e incognoscível já estava anunciada em De Ratione (Feuerbach, 1995, p. 100), e por isso mesmo Feuerbach ali se interessava em mostrar a distinção entre consciência e conhecimento, embora, enquanto conhecemos, continuemos conscientes; de fato: “a consciência é, como conhecimento, pensamento; mas é aquele pensamento que só é referido a si mesmo; em contrapartida, o conhecimento é aquele pensamento que, pela relação às coisas, também se refere a si mesmo; porque se a relação com as coisas não fosse ao mesmo tempo relação da consciência consigo mesma, de que maneira poderia saber e conhecer estas mesmas coisas?” (Feuerbach, 1995, p. 103). . Essa representação é falsa, inadequada, pois que não começa com a realidade, mas se opõe a ela ao partir de sua imediatidade; trata-se aí de uma quimera, fruto da imaginação e, portanto, de algo como uma “mera representação”. A representação verdadeira é aquela que corresponde ao conhecimento, cujo conteúdo concorda com a realidade porque se faz a partir dela, disponível unicamente pelo acesso que lhe concedem os sentidos.

Se é assim, cumpre-se de certo modo o papel de “mediador dialético” proposto anteriormente: na medida em que nem um materialismo vulgar, que “desconsideraria” o papel do sujeito, nem um idealismo subjetivista, que menosprezaria a importância do que é objetivo, poderiam esquadrinhar efetivamente o problema do conhecimento do ponto de vista teórico, urge superar uma e outra concepção, suprassumindo-as em uma nova posição filosófica, à qual Barata-Moura interessantemente nomeou por “materialismo fundado sobre a consciência”, “materialismo racional” ou, ainda, “materialismo da sensibilidade” (Barata-Moura, 1994BARATA-MOURA, J. 1994 El materialismo de Feuerbach. Un estudio de sus escritos. Anales del Seminario de Historia de la Filosofía, 11: 95-128. , p. 124-125)9 9 O jovem Ludwig Feuerbach dos Gedanken parece, de algum modo, recapitular a posição teórica já apresentada no De Ratione, pela qual procurava estabelecer que “[…] o próprio pensamento é para si o modo e critério de verdade, quer dizer, que a mente é a coisa; não certamente aquelas sensíveis, não-pensadas, pelo simples fato de existir, senão que é unicamente a coisa pela qual devem ser e são pensadas as coisas, de forma que a verdade não está na unidade do pensamento e da coisa, mas repousa na unidade do pensamento e do pensado, e de forma igualmente que o pensamento tão só de si mesmo conste e só consigo mesmo consinta” (Feuerbach, 1995, p. 99 - nota 29); o critério de verdade, para as coisas pensadas, está na correspondência entre o pensamento, em geral, e o pensado (pensamento determinado), uma vez que a unidade do pensamento com a coisa ocorre dentro do próprio pensamento (por meio do que é pensado sobre a coisa); por isso mesmo é que o conhecimento é o lugar ou o Ser da verdade (Feuerbach, 1995, p. 102 - nota 34). .

Outra contribuição interessante para o tema do conhecimento pode ser haurida da avaliação de Feuerbach referente à época moderna e, particularmente, ao protestantismo. Centrado na fé, no convencimento individual, na capacidade subjetiva de crer dirigida ao homem-Deus e, posteriormente, acentuando a valorização da personalidade, Feuerbach lembra que “o evangelismo protestante se converteu […] em racionalismo e moralismo” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 65). Para mais, argumenta que “o racionalismo e o moralismo são precisamente as formas do espírito em que o objeto do sujeito é apenas o sujeito, onde a pessoa é tudo, o essencial e o infinito” (Feuerbach, 1993, FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A.p. 66). O que Feuerbach indica com estas provocações não é mais que uma crítica ao subjetivismo contido tanto em certa concepção gnoseológica do racionalismo quanto em sua contraparte moral, qual seja, o moralismo. Tanto um quanto o outro degeneram pela desconsideração do dado objetivo, externo ao sujeito e determinante para o progresso cognitivo, do ponto de vista teórico, ou inclusive para a aplicabilidade de seus postulados e exigências morais, do ponto de vista prático, o que configura a proposição de um “conhecimento ilusório”, uma “aparência de conhecimento” ou “ilusão de saber”, pois que se afasta da realidade ou do objeto efetivamente real, que se nos apresenta como fronteira efetiva para a subjetividade.

Dessa “pressuposição onto-epistemológica” da qual Feuerbach parte derivam consequências bastante graves para o conjunto de sua filosofia, sobretudo porque fornecem a base para a compreensão de determinadas aversões que restam nítidas pela leitura de suas obras, assim como permitem compreender certas identificações que permeiam o seu pensamento. Entre outras questões, por exemplo, justifica a oposição de Feuerbach à filosofia de sua época pela caracterização da identidade entre esta e a teologia, assim como a necessidade de “inverter” certa inversão dos filósofos dogmáticos e, especialmente, dos idealistas, que do “afastamento do mundo” derivam um encontro com o mesmo como resultado do processo cognitivo, em vez do contrário10 10 Em A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums [1841]) essa posição fica explicitada já quando Feuerbach destaca que “conden[a] incondicionalmente qualquer especulação absoluta, imaterial, autossuficiente - a especulação que tira a sua matéria de si mesma. Sou astronomicamente diferente dos filósofos que arrancam os olhos da cabeça para poderem pensar melhor; eu, para pensar, necessito dos sentidos, mas acima de todos dos olhos, fundamento minhas ideias sobre materiais que podemos buscar sempre através da atividade dos sentidos, não produzo coisas a partir do pensamento, mas inversamente os pensamentos, a partir das coisas, mas coisa é somente o que existe fora da cabeça” (Feuerbach, 2012a, p. 20). . Para Feuerbach, o excesso de subjetividade estabelecido pela filosofia especulativa de seu tempo, compatível com uma “mística racional” (Feuerbach, 2012bFEUERBACH, L. 2012b. Para a crítica da filosofia de Hegel. Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. São Paulo, LiberArs. , p. 55), assim como pela teologia - por isso elas são consideradas idênticas (Feuerbach, 2012aFEUERBACH, L. 2012a. A Essência do Cristianismo. Trad. bras. José da Silva Brandão. Petrópolis, Vozes., p. 11) -, não acontece sem uma recusa da objetividade: os dois constituem como que as faces de um mesmo movimento, que culmina na nulificação da exterioridade em favor da sobrevalorização do eu11 11 Esta “monarquia do eu” vem amplamente criticada por Feuerbach no De Ratione, assim como os conceitos de indivíduo, pessoa e sujeito, que devem dar lugar à valorização do homem como gênero (Gattung) (Feuerbach, 1995, p. 90-91; 103; 105; 123; 124-126; 128). , tomado aí como medida absoluta, inclusive do que não é eu. Daí que, desde os Gedanken, Feuerbach sustente que o eu se esquece de que só é o que é pelo reconhecimento do outro de si, do não-eu: “só é ele um Si Mesmo na medida em que é diferente; e esta diferença não pode nem deve ser abandonada, pois essência para o Si Mesmo só o é o Si mesmo; e o indivíduo não tem tanto que ver com a unidade com seu objeto como com sua diferença” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 68). Sem a mediação da diferença, do outro, do oposto, o eu nada é; o não reconhecimento desta “dialética da diferença” é inclusive aquilo que caracteriza fundamentalmente a “falsa inteligência dos intelectuais” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 103) que urge superar. Conforme Feuerbach,

[...] onde não há oposição, onde não há outro, não há diferença - pois na oposição está a diferença, e na diferença a oposição; as coisas diferentes dizem, com efeito, umas às outras: “eu não sou o que tu és, tu não és o que eu sou; na medida em que tu és, eu não sou, e na medida em que eu sou, tu não és; onde tu acabas começo eu, meu começo é teu fim” -, contudo onde não há oposição nem diferença, ali não há nem alegria, nem dor, nem impulso, nem atração, nenhum estímulo, nenhuma pulsão, e quanto estes não estão em um ser, tampouco se dá nele o fundamento da atividade; uma essencialidade apagada, insensível, sem estímulo nem apetite, carece de atividade própria ( Feuerbach, 1993 FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A. , p. 84).

Não à toa, esta “crítica epistemológica” assumida de antemão se dirige à necessária desconstrução das pretensões da subjetividade ilimitada, livre de qualquer determinação externa que concretamente se oponha ao despotismo do eu. Isto é representado, entre outros, na própria avaliação da crença pietista na “pura personalidade”, que encontra nesta real e concreta existência apenas uma provisoriedade inadequada que, por isso mesmo, precisa ser superada para o achamento de uma existência que lhe seja mas apropriada (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 66). Seria este, igualmente, um dos elementos do pietismo que justificariam a crença numa sobrevivência pós-mortal individual, que negaria as vicissitudes e contradições do presente em prol de um futuro bem-aventurado, ansiado como meta ultraterrena para os fieis. Trata-se, portanto, de restabelecer certa “verdade”, em oposição ao que ilusoriamente se declara por meio da suposição de uma subjetividade absoluta, no sentido de impedir que o verdadeiramente real, natural e essencial desapareça frente à ilusão de saber gerada por essa inversão da verdade (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 68). Por isso, afirma Feuerbach,

[...] é uma necessidade […] que o homem, depois de haver-se deleitado de maneira puramente maometana, durante demasiado tempo nos sonhos paradisíacos de sua imortalidade, depois de haver vivido demasiado tempo na contemplação embriagadora de si mesmo, no gozo delirante de sua individualidade, se recorde do caráter totalmente passageiro de seu ser, de sua mortalidade, e nesta recordação e conhecimento desperte em si a necessidade de buscar fora de sua própria individualidade, e fora da fé em sua própria imortalidade e eternidade a fonte da vida e da verdade, o fundamento determinante de suas ações e a morada da paz. Apenas se o homem volta a reconhecer que não se trata de uma morte aparente, mas de uma morte verdadeira e real, que liquida totalmente a vida do indivíduo, e apenas se volta à consciência de sua finitude, se armará da coragem suficiente para começar uma nova vida e para sentir a urgente necessidade de converter o verdadeiro e essencial, o verdadeiramente infinito, no motivo e conteúdo de todas as atividades do seu espírito ( Feuerbach, 1993 FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A. , p. 72-73).

O que se depreende do argumento precedente é que, para Feuerbach, a realidade, a objetividade, se converte em necessário critério de constatação da verdade, mesmo com a mediação da unidade entre o pensamento em geral e o pensado, seja do ponto de vista cognitivo, seja moral. Daí que sua crítica seja, no limite, como que uma terapêutica, cujo objetivo é fazer retornar o indivíduo da imaginação (ou da ilusão) à razão, mas não a uma razão transcendente, hipostasiada das condições reais de sua existência; essa razão não pode ser tomada no sentido de uma faculdade arrancada à vida mesma, senão de uma razão encarnada, que apenas sabe de si pelo que não é idêntico a si, pelo seu outro, pela sensibilidade. Esta razão que é sensível permite efetivamente estabelecer uma espécie de “critério de demarcação” para o conhecimento, constituído, enfim, pelo que Feuerbach insiste em nomear por “mundo real” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 70), que é não um mundo genérico, desprovido de concretude, senão o mundo presente à história. Como no argumento sobre a história situada, nota-se que esse “mundo real” é vislumbrado como regula que torna possível distinguir entre conhecimento e aparência de conhecimento, entre saber e presunção de saber. Insuflado pela imaginação, onde sobrevaloriza a potência do eu puro que apenas tem a si como conteúdo, aquele que permanece embriagado de si mesmo não é capaz de conhecer o outro de si e, por isso,

[...] conhece apenas a sombra, o brilho externo e superficial do mundo real, e, porque é em si mesmo superficial e oco, toma a sombra do mundo pelo mundo mesmo; por isso, o verdadeiro mundo real é necessariamente para ele apenas uma sombra, o produto do sonho e da fantasia do futuro ( Feuerbach, 1993 FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A. , p. 70-71).

A crítica aí exposta finda necessariamente comprometida seja com o seu presente histórico, seja com o restabelecimento de certa “verdade” como um retorno ao “mundo real”, acessível não pela imaginação, mas pela razão que traz consigo o reconhecimento sincero da sensibilidade, ao tempo em que inaugura uma nova fase na história, uma “nova vida espiritual” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 73), que parece coincidir com as aspirações, embora não ainda com a efetivação, da “filosofia do futuro”. A volta ao “mundo real” é um imperativo não apenas cognitivo, mas, certamente, também moral. O “retorno às coisas mesmas” é um retorno ao mundo real como mundo histórico, mas igualmente como encarnado na natureza disponível à sensibilidade, não simplesmente concebida como produto da arbitrária e ilimitada personalidade, mas como instância distinta do puro pensar que, exatamente por isso, permite o acesso à verdade.

3. Natureza, sentidos e espácio-temporalidade

Já em 1830, portanto, Feuerbach oferece um reposicionamento importante do conceito de natureza frente à concepção filosófica da modernidade: em vez de uma assimilação mecanicista e, sobretudo, instrumentalizada em função dos interesses do sujeito, vislumbra-se a relevância da natureza manifesta, inclusive, na defesa de sua independência, na medida em que ela é recepcionada por algo que subsiste à revelia da subjetividade ilimitada e que, por isso mesmo, não pode admitir um tratamento absolutamente coisificante e descartável. Nessa perspectiva, ainda no século XIX, Feuerbach revela certa dimensão de respeito pela natureza, algo que inclusive justificaria a atualidade de sua posição filosófica face às demandas contemporâneas.

Para além dessa caracterização, cumpre acentuar que Feuerbach ainda sustenta que “na natureza é tudo verdade, inteiro, impartido, completo; na natureza não há sentidos duvidosos, não mente” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 81 - grifos meus), o que revela uma crítica contundente a versões do racionalismo que, porventura, considerem a sobrevalorização da razão frente aos sentidos, assim como frente ao que lhe seja exterior em geral; empreende-se aí a tentativa de restabelecer a sensibilidade como a capacidade humana mediante a qual o saber pode ser efetivamente viabilizado. Ao contrário das sugestões da Primeira Meditação cartesiana, em que comparece a ideia de que os sentidos possam ser de algum modo enganadores - do que se poderia pretensamente justificar a necessidade de uma separação em relação a eles para chegar à verdade12 12 De acordo com a Primeira Meditação, Descartes argumenta: “tudo o que admiti até agora como o que há de mais verdadeiro, eu o recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora, notei que os sentidos às vezes enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram” (Descartes, 2004, p. 23). -, Feuerbach reivindica que o acesso à verdade acontece a partir dos sentidos, da natureza, e não por meio da pura Lógica, em e por si mesma. Daí a defesa de que a diferença entre o conteúdo intelectual e o conteúdo sensível não seja senão uma diferença formal (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 82) e, portanto, uma distinção não essencial.

Reforça-se, desse modo, o argumento do fragmento intitulado “Zweifel” (Dúvida), datado de 1827-1828, incluído nos Fragmentos sobre a característica do meu curriculum vitae filosófico (Fragmente zur Characteristik meines philosophischen curriculum vitae), onde Feuerbach anota que

[…] a partir de si a Lógica apenas sabe de si, apenas sabe do pensar. Logo, o outro da Lógica só pode ser deduzido da Lógica não logicamente, mas ilogicamente, i.e., a Lógica apenas transita na natureza, porque o sujeito pensante, encontra previamente uma existência imediata, uma Natureza e é constrangido, dado o posicionamento natural, a reconhecê-la. Se não houvesse uma Natureza, nunca a imaculada virgem Lógica produziria uma a partir de si. (Fragmente zur Charakteristik meines philosophischen curriculum vitae, SW, Band 2, p. 385) 13 13 A tradução utilizada é de Serrão (2019, p. 241). .

Em consequência, a posição teórico-epistemológica de Feuerbach atinge igualmente a compreensão do processo racional de abstração, pelo qual o pensamento tende a promover uma reflexão em certo sentido “desvinculada” do que é concreto. Apenas em certa medida o pensamento transcende espacio-temporalmente14 14 Feuerbach afirma expressamente que o pensamento é uma ação intemporal (Feuerbach, 1993, p. 108). a realidade efetiva, pois tem seu fundamento a partir do sensível (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 94-95) por uma via negationis que, embora consequência do sensível, aproxima-se do que não é sensível por apofatismo - ou pelo que em Aristóteles se designaria como método afairético15 15 No caso de Aristóteles, o conceito (que é universal) é extraído pela abstração a partir do sensível por meio de um procedimento afairético. Se o conhecimento tem que ver com conceitualização, então não pode ser esgotado na sensação, uma vez que ela só nos dá o particular, embora ela constitua condição irrecusável para a ocorrência do conhecimento. Nos Segundos Analíticos, Aristóteles afirma textualmente que “[..] [não] é possível ter ciência por sensação. Pois, ainda que a sensação seja a respeito de tal e tal qualidade e não a respeito de um certo isto, é necessário que se perceba um certo isto, em um certo lugar e agora. Mas é impossível perceber o que é universal e é a respeito de todos, pois ele não é isto, nem é agora; pois, se fosse, não seria universal, dado que afirmamos como universal aquilo que é sempre e em toda parte. Assim, dado que as demonstrações são universais, e dado que não é possível perceber estes últimos, é manifesto que tampouco é possível ter ciência por sensação; […] pois, necessariamente, percebe-se o que é particular, ao passo que a ciência consiste em vir conhecer o universal. […] o universal é evidente a partir de uma pluralidade de particulares. E o universal é valioso porque mostra a causa. […] Não obstante, entre os problemas, há alguns que se reduzem à falta de sensação. Pois não investigaríamos certas coisas, se as víssemos, não porque conhecemos por ver, mas porque obtemos o universal a partir do ver” (Aristóteles, 2004, p. 68-69). Por isso mesmo, prossegue, “também é manifesto que, necessariamente, se alguma sensação estiver faltando, também faltará algum conhecimento, o qual será impossível adquirir, visto que aprendemos por indução, ou por demonstração, e a demonstração procede a partir de universais, a indução, a partir de particulares, e é impossível vir a considerar os universais sem ser através de indução […] e é impossível efetuar indução sem dispor de sensação (pois a sensação diz respeitos aos particulares). Assim, não é possível tomar conhecimento de tais coisas; pois não é possível nem a partir de universais sem indução, nem através de indução sem a sensação” (Aristóteles, 2004, p. 47 - itálico meu), o que aponta para a postulação de um método dialético para a tematização do conhecimento (Bolton, 1999; Ferigolo, 2014; Porchat-Pereira, 2000). (Lacoste, 2004LACOSTE, J.-Y. 2004. Dicionário critico de Teologia. Trad. bras. Paulo Meneses et al. São Paulo, Paulinas; Edições Loyola., p. 1240).

Isso significa que Feuerbach assume aqui pelo menos três pressuposições fundamentais que merecem ser destacadas, quais sejam: (i) que, do ponto de vista ontológico, o ser humano é sempre determinado naturalmente por aquilo que condiciona toda existência material; neste caso, não há como escapar das limitações naturais espácio-temporais, que constituem interna e externamente a ocorrência dos indivíduos como existência efetiva no mundo. Daí que, conforme Feuerbach, “espaço e tempo são, em primeiro lugar, afirmações de teu ser, mas ao mesmo tempo são também negações tuas. Tu és só no espaço e no tempo, começas no espaço e no tempo, mas também acabas neles” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 109), o que indica uma fundamentação ontológica intransigente que garante a existência singular como sua condição de possibilidade irrenunciável; (ii) que a limitação ontológica individual impõe, ao mesmo tempo, uma condição finita que é, simultaneamente, o elemento que distingue sua ocorrência orgânico-biológica. Assim, o ser humano é indivíduo corpóreo vivente, que encontra, na unidade entre espacialidade e temporalidade, a possibilidade de ser animado (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 109), o que impõe a aceitação de que o homem é constituído pela reunião de corpo e alma16 16 Serrão argumenta no sentido de perceber, nos Gedanken, um “organicismo natural” que não seria sustentado propriamente do ponto de vista bio-fisiológico, mas antes com base em certa “vitalidade anímica”, que resultaria não simplesmente numa corporização da alma, senão em uma concepção de união alma e corpo que proporcionaria a “desmaterialização e idealidade” do último (Serrão, 1999, p. 40ss). ; iii) para além disso, esse indivíduo corpóreo vivente é também homem, ser consciente e espiritual, de modo a ter o espírito (ou consciência) como “a verdadeira essência e o verdadeiro ser em [s]ua essência e ser, […] [que igualmente] são também as verdadeiras negações de [s]eu ser, pois são as negações espirituais, suprassensíveis de[le]” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 109). Feuerbach indica, assim, não que a razão humana (consciência, espírito) tenha um estatuto independente no homem, no sentido de ser possível desvinculada do ser humano concreto, determinado natural e historicamente; mas que por ela o homem se eleva para além do meramente sensível, transcendendo-o por uma capacidade pela qual, por sua própria natureza, ele se reconhece como distinto da pura natureza (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 85), pois nele “a natureza não exclui a personalidade, e esta não exclui a natureza, ou seja, a alma, na qual o homem é não-eu, não pessoa” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 89).

Ao mesmo tempo em que assinala que o conhecimento humano se efetiva apenas em referência ao que se experimenta sensivelmente ou, via negationis, por abstração a partir do sensível, essa posição teórica de Feuerbach se constrói com base na exigência de uma ontologia geral, em que as categorias de espaço e tempo se revelam como seus constitutivos necessários, no sentido de que são tomados como elementos essenciais da realidade, seja interna, seja externa ao sujeito, igualmente como condições de possibilidade da existência efetiva, da “vida real” (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 113). Espaço e tempo são condições inescapáveis para o sujeito do conhecimento, não imposições dele ao que se oferece externamente como objeto; daí se postular uma reviravolta para a “reviravolta copernicana”, para enfim proporcionar uma “reviravolta copernicana às avessas”.

Considerando os elementos expostos e a relevância dos sentidos para o progresso cognitivo defendido pelos Gedanken, é possível aproximar a posição filosófica do jovem Feuerbach deste período de certo realismo, no sentido de aceitar a independência entre as coisas externas e o conhecimento delas por parte de um sujeito cognoscível - realismo empírico, como consequência de acatar a realidade-para-si do que está fora do sujeito -, aqui recepcionado igualmente por meio de certo realismo ontológico. De outro modo é dizer que se trata de desenvolver uma discussão epistemológica ancorada em uma ontologia específica. Essa impressão decorre de que, para recorrer à letra de Feuerbach,

[...] as coisas e seres, que existem fora de ti, que tu diferencias de ti, e que reconheces como não idênticas com teu eu e com tua mesmidade, e as que ordenas sob a ideia de gênero do objeto ou da natureza, são todas elas pontos de fronteira e de negação de ti mesmo; no mesmo grau e medida, em que existem as demais coisas fora de ti, nesse mesmo grau e medida tu não és, e tantas como elas sejam, tantos pontos de terminação e fronteira tens tu, e neles, tomados por dentro e for fora, terminas tu e teu ser; em qualquer árvore, em qualquer parede, em qualquer mesa com os quais tropeces, tropeças ao mesmo tempo com tua morte, com o limite e o término de tua existência. Para fazer-te presente teu fim não tens necessidade de passear pelo cemitério; qualquer caixa de rapé fora de ti pode fazer-te recordar o sarcófago do teu eu; qualquer golpe nas costelas, qualquer pressão, qualquer choque, é um vivo Memento mori, toda a natureza é um cemitério de tua mesmidade. […] toda coisa que existe, de certo modo, com sua existência já te arrebatou uma porção do teu ser, e representa um roubo, uma negação, um encolhimento de uma limitação do teu ser. […] os limites internos do teu próprio ser […] têm, por sua vez, eles mesmos, existência exterior, independente, nas coisas, e […] [seu] compêndio constitui, conjuntamente e em geral, a objetividade. Se não houvesse nenhum objeto, seria infinito o sujeito […]; mas a existência de uma objetividade é a prova real da finitude da subjetividade; pois a existência da objetividade é, com efeito, no grau e na medida em que a objetividade existe e é objetividade, o não-ser, o fim da subjetividade ( Feuerbach, 1993 FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A. , p. 91-92).

Essa posição realista de Feuerbach conduz, como complemento necessário, a uma espécie de teoria correspondencial do conhecimento, em vez de uma uma teoria interpretativa do conhecimento (Ruben, 1979RUBEN, D.-H. 1979. Marxism and materialism: A Study in Marxist Theory of Knowledge. Sussex, The Harvester Press; New Jersey, Humanities Press., p. 58), embora por vezes esta distinção não esteja tão clara ao longo de seu pensamento. Ainda assim, o lastro de uma teoria correspondencial do conhecimento em Feuerbach constitui “a mais importante tendência em sua teoria do conhecimento” (Ruben, 1979RUBEN, D.-H. 1979. Marxism and materialism: A Study in Marxist Theory of Knowledge. Sussex, The Harvester Press; New Jersey, Humanities Press., p. 58).

Considerações finais

Pelo rastreamento da questão do conhecimento nos Pensamentos sobre a morte e a imortalidade, de Ludwig Feuerbach, é possível assinalar algumas conclusões provisórias importantes, uma vez que podem ser profundamente produtivas para uma interpretação mais abrangente do conjunto de sua filosofia, quais sejam:

a) que o escrito sugere que Feuerbach tinha em mente o tratamento do problema do conhecimento de modo a reconhecer nele a divisão tradicional entre (i) saber teórico e (ii) saber prático. Esta bifurcação da temática não parece compreender uma ambivalência, mas ressaltar especificidades que se articulam de modo complementar e sugerem uma confiança de Feuerbach nas capacidades da razão natural, desvinculada de uma referência externa e transcendente a si, como em geral acontece nos iluminismos de sua época; isso pode, entre outras coisas, conduzir a uma pesquisa mais profunda a respeito da influência da Auflärung alemã sobre a filosofia feuerbachiana, assim como as implicações dessa influência, só para mencionar um entre outros exemplos possíveis;

b) que Feuerbach assume de maneira decidida a historicidade situada como um elemento importante para a compreensão do tema do conhecimento e, portanto, apresenta uma crítica profundamente consciente da absolutização de qualquer teoria como um dogma irrenunciável; essa questão permite compreender mais densamente a oposição à absolutização da filosofia hegeliana (ou de qualquer outra filosofia) e reconhecer a incompletude, a provisoriedade e a precariedade de qualquer reflexão, pois que o próprio homem, sujeito e protagonista da reflexão filosófica, é um projeto inacabado;

c) que mesmo nos Gedanken é possível visualizar certa valorização da natureza e, com ela, da sensibilidade, no sentido de proporcionar a aceitação de uma realidade externa ao sujeito como condição de possibilidade do conhecimento, algo que aproxima a posição teórica de Feuerbach, no período considerado, de certo realismo, tanto empírico quanto ontológico.

Diante do exposto, embora reste claro não haver um tratamento sistemático do tema do conhecimento nesta fase inicial, talvez mesmo embrionária, da filosofia feuerbachiana, parece possível concluir a ocorrência desta discussão seja nas pressuposições não tematizadas de Feuerbach, seja nas entrelinhas de seus argumentos. Mais que isso, parece ser esta uma questão fundamental para o desenvolvimento de seu pensamento posterior, como, por exemplo, para justificar a crítica à filosofia especulativa e à teologia cristã, como tentativa de estabelecer a “verdade real” em oposição à “ilusão” característica de sua época; ou ainda para apresentar uma possibilidade de compreensão da ética e da política com base no princípio do amor laico e do reconhecimento da alteridade, desvinculados de uma necessária referência a um Deus transcendente e fundamentados da realidade dos seres humanos concretos, pois que, como o “mediador dialético” que propõe ser nos Gedanken, Feuerbach compreende que

[...] “com os sentidos […] também apreendemos os sentimentos”, percebemos não só o externo, mas também o interno, o espírito, o eu. Por isso tem razão o empirismo em fazer surgir as nossas ideias dos sentidos, mas esquece que “o objeto essencial dos sentidos é o homem mesmo”; tem razão o idealismo ao ver neste [homem] a origem das ideias, mas está errado ao compreender “um homem isolado, fixado como essência por si”. Inversamente “as ideias provêm apenas da comunicação”. Por isto a sensibilidade tem valor ontológico e dialógico ( Tomasoni, 2011 TOMASONI, F. 2011. Ludwig Feuerbach. Biografia intellettuale. Brescia, Editrice Morcelliana. , p. 311).

Embora sejam conclusões ainda provisórias, compreendo que são viáveis e, mais que isso, necessárias para promover a “redescoberta de Feuerbach” em nosso tempo, sobretudo para resgatar a importância de sua contribuição para a filosofia. É preciso empreender a leitura de Ludwig Feuerbach por ele mesmo mais que pelos seus críticos, pois que ainda há muito o que descobrir. Se isto é verdade mesmo para temas amplamente debatidos de seu pensamento, como é o caso da discussão sobre antropologia e religião, quanto mais a respeito de um tema ainda tão desconsiderado no interior de sua filosofia, como é o caso do conhecimento.

Referências

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  • FEUERBACH, L. 2005b. Princípios da filosofia do futuro. In: FEUERBACH, L. Filosofia da Sensibilidade. Escritos (1839-1846) Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 101-155.
  • FEUERBACH, L. 2005c. Teses provisórias para a Reforma da Filosofia. In: FEUERBACH, L. Filosofia da Sensibilidade. Escritos (1839-1846) Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 85-100.
  • GADAMER, H.-G. 2000. La dialéctica de Hegel. Cinco ensayos hermenéuticos Trad. esp. Manuel Garrido. Madrid, Ediciones Cátedra.
  • LACOSTE, J.-Y. 2004. Dicionário critico de Teologia Trad. bras. Paulo Meneses et al. São Paulo, Paulinas; Edições Loyola.
  • LIMA FILHO, J. E. 2019. Ontología de la singularidad y el problema del lenguaje en Ludwig Feuerbach: para una lectura de Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (1839). Revista El Arco y la Lira, 7(7): 19-33.
  • ">LIMA FILHO, J. E. 2017. Ontologia e conhecimento nos Princípios da Filosofia do Futuro de Ludwig Feuerbach. Philósophos, 22(2): 153-185.
  • PORCHAT-PEREIRA, O. 2000. Ciência e Dialética em Aristóteles São Paulo, Editora UNESP.
  • RAMBALDI, E. 1966. Le origini della Sinistra hegeliana: H. Heine, D. F. Strauss, L. Feuerbach, B. Bauer Firenze, La Nuova Italia Editrice.
  • RÚA, J. L. G. 1993. Estudio preliminar. In: FEUERBACH, L. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A, p. 7-47.
  • RUBEN, D.-H. 1979. Marxism and materialism: A Study in Marxist Theory of Knowledge Sussex, The Harvester Press; New Jersey, Humanities Press.
  • SERRÃO, A. V. 2019. A Carta de Feuerbach a Hegel. Revista Dialectus Fortaleza, 8(14): 235-247.
  • SERRÃO, A. V. 1999. A Humanidade da razão: Ludwig Feuerbach e o Projeto de uma Antropologia Integral Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
  • TOMASONI, F. 2011. Ludwig Feuerbach. Biografia intellettuale Brescia, Editrice Morcelliana.
  • 1
    É interessante observar que mesmo o pai de Ludwig Feuerbach, Paul Johann Anselm Feuerbach, já advertia, em 1825, para a importância de “rejeita[r] a posição de uma filosofia única e definitiva” (Serrão, 2019SERRÃO, A. V. 2019. A Carta de Feuerbach a Hegel. Revista Dialectus. Fortaleza, 8(14): 235-247., p. 237), em carta ao filho datada de 20 de abril daquele ano. Nela, quando ponderava a respeito de uma possível mudança de Curso do filho Ludwig da Teologia, em Heidelberg, para a filosofia, com Hegel, em Berlim, ressaltava que “nunca existiu uma filosofia única, mas sempre e só filósofos; de que há, sempre houve e sempre haverá tantas filosofias quantas as cabeças pensantes que procuram compreender de si para si mesmas o inconcebível e o inapreensível; quem corta artificialmente o sistema das suas opiniões através de ‘ses’ e ‘porques’ e ‘portantos’ e o vende como uma ciência (objectiva), ou mesmo como a ciência das ciências, ou é um sofista ou alguém confundido na auto-ilusão” (Carta de Paul Johann Anselm von Feuerbach [20 de Abril de 1825], GW, vol. 17, p. 82 apud Serrão, 2019SERRÃO, A. V. 2019. A Carta de Feuerbach a Hegel. Revista Dialectus. Fortaleza, 8(14): 235-247., p. 237).
  • 2
    Conforme Gadamer, “parece ser um traço fundamental da consciência filosófica do século XIX que não se possa concebê-la separada da consciência histórica. Claramente, por trás deste fato subjaz a grande ruptura com a tradição do mundo dos estados da Europa, ruptura que teve sua origem na Revolução francesa. O radical intento da Revolução de fazer da fé na razão, que alentava o movimento da Ilustração, a base da religião, do estado e da sociedade, teve o efeito contrário de introduzir a consciência do condicionamento histórico e do poder da história na consciência geral, como a grande instância contrária que rechaçou definitivamente os presunçosos excessos do ‘novo começo’ absoluto da Revolução. A consciência histórica que surgiu então exigia, também da pretensão da filosofia ao conhecimento, uma prova de legitimidade. Todo intento filosófico de adicionar algo peculiar, por novo que seja, à tradição do pensamento greco-cristão, agora tem que proporcionar uma justificação histórica de si mesmo, e um intento onde esta justificação falte, ou seja inadequada, careceria, necessariamente, de poder de convicção para a consciência geral” (Gadamer, 2000GADAMER, H.-G. 2000. La dialéctica de Hegel. Cinco ensayos hermenéuticos. Trad. esp. Manuel Garrido. Madrid, Ediciones Cátedra. , p. 131).
  • 3
    Em outras ocasiões tive a oportunidade de tratar, ainda que de maneira extremamente introdutória, de que tipo de ontologia geral se trata e de como ela acaba por definir certa ontologia local, assim como, por consequência, de como o ser humano promove a aquisição de conhecimento, tomando por fundamento, sobretudo, o disposto nos Grundsätze de 1843 (LIMA FILHO, 2017">LIMA FILHO, J. E. 2017. Ontologia e conhecimento nos Princípios da Filosofia do Futuro de Ludwig Feuerbach. Philósophos, 22(2): 153-185.).
  • 4
    É importante destacar que a concepção feuerbachiana de história corresponde à aceitação de uma historicidade concreta, ou seja, de algo como uma história situada, que leva em conta a temporalidade determinada espacialmente. Essa é, por exemplo, a nota crítica de Feuerbach em relação à concepção hegeliana de história, que exclui o elemento espacial e só reconhece no seu interior a temporalidade (Feuerbach, 2012bFEUERBACH, L. 2012b. Para a crítica da filosofia de Hegel. Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. São Paulo, LiberArs. , p. 24). Sobre essa questão, ver Lima Filho, 2019LIMA FILHO, J. E. 2019. Ontología de la singularidad y el problema del lenguaje en Ludwig Feuerbach: para una lectura de Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (1839). Revista El Arco y la Lira, 7(7): 19-33., p. 20-23.
  • 5
    Uso aqui a tradução portuguesa de Serrão (2019SERRÃO, A. V. 2019. A Carta de Feuerbach a Hegel. Revista Dialectus. Fortaleza, 8(14): 235-247., p. 244).
  • 6
    Esta posição teórica seria confirmada nas obras futuras, como em Algumas considerações sobre “O começo da filosofia” do Dr. J. F. Reiff (Einige Bemerkungen über den “Anfang der Philosophie” von Dr. J. F. Reiff [1841]) (Feuerbach, 2005aFEUERBACH, L. 2005a. Algumas considerações sobre O começo da filosofia do Dr. J. F. Reiff. In: FEUERBACH, L. Filosofia da Sensibilidade. Escritos (1839-1846). Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 77-84., p. 78-79) ou mesmo nas Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia (Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie [1842]) (Feuerbach, 2005cFEUERBACH, L. 2005c. Teses provisórias para a Reforma da Filosofia. In: FEUERBACH, L. Filosofia da Sensibilidade. Escritos (1839-1846). Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 85-100., p. 91ss).
  • 7
    Da filosofia genético-crítica diria Feuerbach, nove anos depois, em Para a crítica da filosofia hegeliana [Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (1839)], que “[…] é aquela que não concebe nem demonstra dogmaticamente um objeto dado pela representação - porque para objetos simplesmente reais, isto é, dados imediatamente pela natureza, é incondicionalmente válido o que Hegel afirmou -, mas investiga a sua origem, põe em dúvida se o objeto é um objeto real, ou uma mera representação ou um fenômeno psicológico em geral, que por isso distingue com o maior rigor possível entre o subjetivo e o objetivo. A filosofia genético-crítica tem principalmente como seu objeto aquilo a que já se chamou as causae secundae [causas segundas]” (Feuerbach, 2012bFEUERBACH, L. 2012b. Para a crítica da filosofia de Hegel. Trad. port. Adriana Veríssimo Serrão. São Paulo, LiberArs. , 54-55).
  • 8
    Essa identificação entre a consciência e o pensamento abstrato de si, indeterminado e incognoscível já estava anunciada em De Ratione (Feuerbach, 1995FEUERBACH, L. 1995. De Ratione, Una, Universal, Infinita. In: FEUERBACH, L. Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud. Trad. cast. José Luis García Rúa. Granada: Editorial COMARES, p. 73-139. , p. 100), e por isso mesmo Feuerbach ali se interessava em mostrar a distinção entre consciência e conhecimento, embora, enquanto conhecemos, continuemos conscientes; de fato: “a consciência é, como conhecimento, pensamento; mas é aquele pensamento que só é referido a si mesmo; em contrapartida, o conhecimento é aquele pensamento que, pela relação às coisas, também se refere a si mesmo; porque se a relação com as coisas não fosse ao mesmo tempo relação da consciência consigo mesma, de que maneira poderia saber e conhecer estas mesmas coisas?” (Feuerbach, 1995FEUERBACH, L. 1995. De Ratione, Una, Universal, Infinita. In: FEUERBACH, L. Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud. Trad. cast. José Luis García Rúa. Granada: Editorial COMARES, p. 73-139. , p. 103).
  • 9
    O jovem Ludwig Feuerbach dos Gedanken parece, de algum modo, recapitular a posição teórica já apresentada no De Ratione, pela qual procurava estabelecer que “[…] o próprio pensamento é para si o modo e critério de verdade, quer dizer, que a mente é a coisa; não certamente aquelas sensíveis, não-pensadas, pelo simples fato de existir, senão que é unicamente a coisa pela qual devem ser e são pensadas as coisas, de forma que a verdade não está na unidade do pensamento e da coisa, mas repousa na unidade do pensamento e do pensado, e de forma igualmente que o pensamento tão só de si mesmo conste e só consigo mesmo consinta” (Feuerbach, 1995FEUERBACH, L. 1995. De Ratione, Una, Universal, Infinita. In: FEUERBACH, L. Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud. Trad. cast. José Luis García Rúa. Granada: Editorial COMARES, p. 73-139. , p. 99 - nota 29); o critério de verdade, para as coisas pensadas, está na correspondência entre o pensamento, em geral, e o pensado (pensamento determinado), uma vez que a unidade do pensamento com a coisa ocorre dentro do próprio pensamento (por meio do que é pensado sobre a coisa); por isso mesmo é que o conhecimento é o lugar ou o Ser da verdade (Feuerbach, 1995FEUERBACH, L. 1995. De Ratione, Una, Universal, Infinita. In: FEUERBACH, L. Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud. Trad. cast. José Luis García Rúa. Granada: Editorial COMARES, p. 73-139. , p. 102 - nota 34).
  • 10
    Em A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums [1841]) essa posição fica explicitada já quando Feuerbach destaca que “conden[a] incondicionalmente qualquer especulação absoluta, imaterial, autossuficiente - a especulação que tira a sua matéria de si mesma. Sou astronomicamente diferente dos filósofos que arrancam os olhos da cabeça para poderem pensar melhor; eu, para pensar, necessito dos sentidos, mas acima de todos dos olhos, fundamento minhas ideias sobre materiais que podemos buscar sempre através da atividade dos sentidos, não produzo coisas a partir do pensamento, mas inversamente os pensamentos, a partir das coisas, mas coisa é somente o que existe fora da cabeça” (Feuerbach, 2012aFEUERBACH, L. 2012a. A Essência do Cristianismo. Trad. bras. José da Silva Brandão. Petrópolis, Vozes., p. 20).
  • 11
    Esta “monarquia do eu” vem amplamente criticada por Feuerbach no De Ratione, assim como os conceitos de indivíduo, pessoa e sujeito, que devem dar lugar à valorização do homem como gênero (Gattung) (Feuerbach, 1995FEUERBACH, L. 1995. De Ratione, Una, Universal, Infinita. In: FEUERBACH, L. Abelardo y Heloísa y otros escritos de juventud. Trad. cast. José Luis García Rúa. Granada: Editorial COMARES, p. 73-139. , p. 90-91; 103; 105; 123; 124-126; 128).
  • 12
    De acordo com a Primeira Meditação, Descartes argumenta: “tudo o que admiti até agora como o que há de mais verdadeiro, eu o recebi dos sentidos ou pelos sentidos. Ora, notei que os sentidos às vezes enganam e é prudente nunca confiar completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram” (Descartes, 2004DESCARTES, R. 2004 Meditações sobre Filosofia Primeira. Trad. bras. Fausto Castilho. Campinas, Editora da Unicamp., p. 23).
  • 13
    A tradução utilizada é de Serrão (2019SERRÃO, A. V. 2019. A Carta de Feuerbach a Hegel. Revista Dialectus. Fortaleza, 8(14): 235-247., p. 241).
  • 14
    Feuerbach afirma expressamente que o pensamento é uma ação intemporal (Feuerbach, 1993FEUERBACH, L. 1993. Pensamientos sobre muerte e inmortalidad. Trad. cast. José Luis García Rúa. Madrid, Alianza Editorial, S/A., p. 108).
  • 15
    No caso de Aristóteles, o conceito (que é universal) é extraído pela abstração a partir do sensível por meio de um procedimento afairético. Se o conhecimento tem que ver com conceitualização, então não pode ser esgotado na sensação, uma vez que ela só nos dá o particular, embora ela constitua condição irrecusável para a ocorrência do conhecimento. Nos Segundos Analíticos, Aristóteles afirma textualmente que “[..] [não] é possível ter ciência por sensação. Pois, ainda que a sensação seja a respeito de tal e tal qualidade e não a respeito de um certo isto, é necessário que se perceba um certo isto, em um certo lugar e agora. Mas é impossível perceber o que é universal e é a respeito de todos, pois ele não é isto, nem é agora; pois, se fosse, não seria universal, dado que afirmamos como universal aquilo que é sempre e em toda parte. Assim, dado que as demonstrações são universais, e dado que não é possível perceber estes últimos, é manifesto que tampouco é possível ter ciência por sensação; […] pois, necessariamente, percebe-se o que é particular, ao passo que a ciência consiste em vir conhecer o universal. […] o universal é evidente a partir de uma pluralidade de particulares. E o universal é valioso porque mostra a causa. […] Não obstante, entre os problemas, há alguns que se reduzem à falta de sensação. Pois não investigaríamos certas coisas, se as víssemos, não porque conhecemos por ver, mas porque obtemos o universal a partir do ver” (Aristóteles, 2004ARISTÓTELES -. 2004. Segundos Analíticos. Livro I. Trad. bras. Lucas Angioni. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, col. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução n. 7., p. 68-69). Por isso mesmo, prossegue, “também é manifesto que, necessariamente, se alguma sensação estiver faltando, também faltará algum conhecimento, o qual será impossível adquirir, visto que aprendemos por indução, ou por demonstração, e a demonstração procede a partir de universais, a indução, a partir de particulares, e é impossível vir a considerar os universais sem ser através de indução […] e é impossível efetuar indução sem dispor de sensação (pois a sensação diz respeitos aos particulares). Assim, não é possível tomar conhecimento de tais coisas; pois não é possível nem a partir de universais sem indução, nem através de indução sem a sensação” (Aristóteles, 2004ARISTÓTELES -. 2004. Segundos Analíticos. Livro I. Trad. bras. Lucas Angioni. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, col. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução n. 7., p. 47 - itálico meu), o que aponta para a postulação de um método dialético para a tematização do conhecimento (Bolton, 1999BOLTON, R. 1999. The Epistemological Basis of Aristotelian Dialectic. In: SIM, M. (Ed.). From Puzzles to Principles? Essays on Aristotle’s Dialectic. Lexington, Lanham, p. 57-105.; Ferigolo, 2014FERIGOLO, J. 2014. A Epistemologia de Aristóteles. São Leopoldo, Editora UNISINOS.; Porchat-Pereira, 2000PORCHAT-PEREIRA, O. 2000. Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo, Editora UNESP.).
  • 16
    Serrão argumenta no sentido de perceber, nos Gedanken, um “organicismo natural” que não seria sustentado propriamente do ponto de vista bio-fisiológico, mas antes com base em certa “vitalidade anímica”, que resultaria não simplesmente numa corporização da alma, senão em uma concepção de união alma e corpo que proporcionaria a “desmaterialização e idealidade” do último (Serrão, 1999SERRÃO, A. V. 1999. A Humanidade da razão: Ludwig Feuerbach e o Projeto de uma Antropologia Integral. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian., p. 40ss).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Aceito
    15 Out 2020
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