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Culpa e responsabilidade: um diálogo entre Karl Jasper & Eric Weil

Guilt and responsibility: a dialogue between Karl Jasper & Eric Weil

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo traçar um diálogo entre Karl Jaspers e Eric Weil por meio dos conceitos de culpa e responsabilidade política. Nossa proposta consiste em analisar o tipo de violência que Weil descreve como a obra do nazismo e que pode ser cotejada com o contexto da culpa política apresentada por Jaspers. Após trabalhar o conceito de violência pura, conforme definido por Weil, o passo posterior é discutir os quatro conceitos de culpa de Karl Jaspers e relacionar a culpa política com a responsabilidade política descrita por Eric Weil. Finalmente, procura-se esboçar algumas considerações sobre os perigos da violência pura. Para tanto, nos servimos, sobretudo do pensamento de Karl Jaspers e Eric Weil, entretanto, recorrendo eventualmente a outros autores que se mostrem adequados aos propósitos do artigo. Como a violência pura sempre permanece uma possibilidade, a democracia deve ser fortalecida para evitá-la.

Palavras-chave:
Responsabilidade; culpa; política; violência

ABSTRACT

This article aims to draw a dialogue between Karl Jaspers and Eric Weil through the concepts of political guilt and political responsibility. Our proposal is to analyze the type of violence that Weil describes as the work of Nazism and that can be compared with the context of political guilt presented by Jaspers. After working on the concept of pure violence, as defined by Weil, the next step is to discuss Karl Jaspers’ four concepts of guilt and relate political guilt to the political responsibility described by Eric Weil. Finally, an attempt is made to outline some considerations about the dangers of pure violence. For that, we use, mainly the thought of Karl Jaspers and Eric Weil, however, eventually resorting to other philosophers that are suitable for the purposes of the article. Since pure violence always remains a possibility, democracy must be strengthened to avoid it.

Keywords:
Responsibility; guilt; politics; violence

Introdução

Utilizaremos como o fio de Ariadne que orientará o desenvolvimento da nossa discussão um paralelo entre o conceito de culpa política de Jaspers e o conceito de responsabilidade política de Weil. Eric Weil cita diretamente o texto de Jaspers em pelo menos dois escritos: n’O caso Heidegger (2020WEIL, E. 2020. O caso Heidegger. Argumentos: revista de filosofia, (23): 126-137. , p. 136-137) e nos volumes sobre “As questões alemãs1 1 Trata-se de um compilado contendo dez recensões feitas por Weil sobre dez livros entre os anos de 1945 e 1946, entre os quais inclui-se o livro de Jaspers. As recensões foram originalmente publicadas na revista Critique em três séries. Aquela que contém a obra de Jaspers encontra-se na terceira série, “Arrependimentos e projetos”. Esses trabalhos de Weil foram reunidos e publicados na Itália sob o nome Questioni tedesche em 1982. ”.

A culpa política vem a lume em um livro de Karl Jaspers, A questão da culpa, escrito em 1945 e apresentado na forma de conferências em janeiro e fevereiro de 19462 2 No original, Die Schuldfrage, publicado originalmente em Heidelberg em 1946. Segundo Arendt (2008, p. 84), The question of German guilt assinala uma das três tentativas de Karl Jaspers de intervir diretamente em questões políticas que lhe eram contemporâneas. As demais são: Man in the modern Age, de 1933 e The atom bomb and the future of man, de 1958. . De acordo com o autor, entender a obra demanda o conhecimento do momento específico em que fora redigido (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 111). Trata-se da Alemanha derrotada na Segunda Guerra depois que os crimes do nazismo foram expostos. Ou seja, temos um contexto de um país inteiro que ficou privado de um debate público por 12 anos por um governo que não admitia qualquer crítica, contestação ou oposição. Toda a linguagem permitida constituía-se de fórmulas batidas e palavras de ordem e obediência. Como consequência criou-se um charco sem pensamento e desprovido de comunidade. Essa linguagem política pobre e autoritária funciona como legítimo obstrutor do pensamento: faz com que não se queira pensar, apenas obedecer (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 13-16). Esse contexto fatalmente conduzirá, como um guia inexorável, aos tempos de culpa. Em A questão da culpa, Karl Jaspers (2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 28-29) assinala que em tempos pacíficos quase se esquece que entre os homens tudo se decide pela violência quando ocorrem desentendimentos. Toda ordem estatal, prossegue, é contenção dessa violência de forma que nela permaneça o seu monopólio.

Jaspers pondera que quando não se tem o pensamento é imprescindível restabelecer a disposição para o raciocínio, chamar de novo para dentro de si o pensamento que perdeu o seu lugar para a loucura. Na ausência da comunidade, torna-se urgente refazer o solo comum. A compreensão do fenômeno da culpa política envolve uma relação com a ausência, a autocompreensão e com o outro (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 9-16). Isso passa, portanto, por algo que cabe à filosofia ponderar. Em uma conferência dada em 1974 sobre o futuro da filosofia, o também judeu Eric Weil encerra sua fala vaticinando que a filosofia terá ainda um belo futuro pela frente. A justificativa? Porque, se ela não floresce em tempos de extrema miséria, tampouco ela viceja-nos períodos de conforto intelectual, tranquilidade social e política (Weil, 1987WEIL, E. 1987. L’avenir de la philosopie. In: J. QUILLIEN (Org.) Cahiers Eric Weil, Lille, Presses Universitaires de Lille , p. 9-21., p. 21).

1. A obra

Segundo Jaspers, a questão da culpa paira devido aos eventos iniciados pelo menos desde 1933 e que culminaram na Segunda Guerra Mundial (2018, p. 14-15). A Segunda Guerra representa um evento inaudito, pois seu significado entrou em outra dimensão (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 45): “Essa guerra não surgiu pela falta de saída opondo pares que caminham como cavaleiros para a batalha, mas em sua origem e execução foi um ardil criminoso e um totalitarismo irrefletido da vontade de aniquilação” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 49).

A experiência que se manterá perpetuamente como objeto do esforço filosófico de Weil será a da história e aquela das múltiplas formas de violência que assinalam a realidade humana, o que inclui a violência social e moral, mas igualmente a sua manifestação política (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 10). E Kirscher diz que: “Para Weil, a violência é o problema da filosofia, e é na descoberta de uma violência pura, se não absoluta, que a filosofia se compreende compreendendo que a violência sempre foi seu problema constitutivo3 3 “Pour Weil, la violence est le problème de la philosophie, et c’est en découvrant la forme extreme d’une violence pure, sinon absolue, que la philosophie se comprehend en comprenant que la violence a toujours été son problème constitutif”. ” (Kirscher, 1992KIRSCHER, G. 1992. Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil. Lille, Presses Universitaires de Lille., p. 120-121).

O totalitarismo é a manifestação da atitude da obra no plano político. Aqui a violência se mostra na sua forma pura, como criação total, como uma recriação por completo da sociedade e do Estado (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 66). Para Weil, ao contrário de Kant, o homem pode dar provas de uma vontade que este qualificaria como diabólica. A violência da obra, no exemplo do nazismo, mostra, com efeito, que um indivíduo pode se querer como desprovido de toda consciência moral (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 111). No pensamento weiliano, é na categoria4 4 Quando o indivíduo deseja compreender seu mundo ele se volta para sua vida e formula essa compreensão em termos de um discurso que se eleva acima da vida. Após fixar a atitude, o indivíduo se liberta dela, inaugurando outra muito embora ainda esteja preocupado em compreender a primeira que afastara. Esse desejo de compreensão revela o fundo essencial do mundo anterior vivido como atitude, o núcleo de significação oculto pelo qual tudo ganhava sentido (Caillois, 1953, p. 275-276). Quando o discurso de uma atitude se organiza em torno de um conceito central, essa atitude se torna uma categoria (Canivez, 2013, p. 16). Desse modo, na lógica do discurso weiliano, encontra-se uma possibilidade lógica e uma possibilidade real. Enquanto a possibilidade real é a atitude, a possibilidade lógica é a sua categoria (Canivez, 1999, p.32). É importante ponderar a diferença dada entre categorias metafísicas e categorias filosóficas. Sob as primeiras, entende-se os conceitos fundamentais determinando as questões segundo as quais se deve considerar, analisar ou questionar aquilo que se quer saber no que é. Já as segundas são as ideias centrais dos discursos a partir das quais uma atitude se exprime de maneira coerente (Kirscher, 1999, p. 151). da obra que é compreendido o seu criador, o chamado homem da obra.

O homem da obra é aquele que conhece a razão, mas não se deixa informar ou conduzir por ela. É aquele que conhece a filosofia e faz pouco dela, que sequer pensa em justificar seu falar ou seu agir. Ele encontra satisfação fazendo alguma coisa que seja sua obra, sem levar em conta nenhum direito, autoridade ou justificação (Kirscher, 1992KIRSCHER, G. 1992. Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil. Lille, Presses Universitaires de Lille., p. 33). Para o homem da obra o essencial é ocupar-se do seu sentimento e da realização desse sentimento. Não se trata de compreender o mundo, mas fazer alguma coisa nesse mundo. Trata-se de criar uma obra. Para o homem da obra, aquilo que ele cria é mais interessante, pois é sentido como verdadeiramente seu, ao contrário do universal, que não é de ninguém por ser compartilhado por todos (Perine, 1987PERINE, M. 1987. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. São Paulo, Edições Loyola ., p. 170). Algo que caracteriza o homem da obra como essencialmente violento é sua rejeição do diálogo, muito embora isso não signifique que ele não utilize linguagem. Como resolver esse excelente paradoxo? Podemos dizer inicialmente que o homem da obra fala, mas sua fala não constitui discurso precisamente por não levar em consideração o sentido da empresa. Sua linguagem, do imperativo, visa que ele seja seguido, não questionado, de modo que os outros devem ser convencidos e manipulados sempre em função da obra (Perine, 1987PERINE, M. 1987. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. São Paulo, Edições Loyola ., p. 171). A linguagem da obra é muito pobre, sendo composta de apenas uma afirmação: o que importa é a obra e nada mais5 5 Na Lógica da Filosofia, para se realizar a compreensão do caráter incompreensível da violência, colhe-se a categoria que a atitude da violência produz, conferindo-lhe uma linguagem da qual ela não faz uso (Perine, 1987, p. 175): “É, pois, por um artifício de prosopopéia que o lógico da filosofia elabora o discurso da violência, sem, contudo, perder a consciência metódica do seu artifício” (Perine, 1987, p. 176). .

Jaspers aponta que não podia haver oposição pública ao modo nazista de apresentar o mundo, de modo que até em conversas particulares entre amigos se era reticente, o que aniquilou qualquer possibilidade de um debate por doze anos (2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 14). O espaço público enquanto âmbito espiritual onde aparece aquilo que os romanos denominavam humanitas, aquilo que pode ser entendido como a própria qualidade humana, algo que é, conforme entendido por Kant e Jaspers como Humanitäit, é válido sem ser objetivo (Arendt, 2008ARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras., p. 82). Para Arendt:

[...] Jaspers, tanto quanto sei, é o primeiro e único filósofo que sempre protestou contra a solidão, para quem a solidão aparecia como “perniciosa”, e ousou questionar “todos os pensamentos, todas as experiências, todos os conteúdos” sob este único aspecto: o que significam eles para a comunicação? Atraem à solidão ou incitam à comunicação? ( Arendt, 2008 ARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras. , p. 95).

A herança dessa impossibilidade de uma discussão pública “a sombra do chão político realmente comum (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 16)”, o solapamento de qualquer base ético-política partilhada, persistiu ainda nos seus efeitos atávicos:

Isso ainda é agravado pelo fato de que tantas pessoas não querem pensar realmente. Elas não perguntam e elas não respondem, a não ser pela repetição de fórmulas batidas. Elas só sabem afirmar e obedecer, e não examinar e reconhecer, e por isso também não podem ser convencidas ( Jaspers, 2018 JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia. , p. 16).

Jaspers (2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 16) pergunta como é possível conversar com pessoas que não demonstram qualquer disposição ao pensamento e à autonomia. Para Weil, a opção pela razão contra a violência é livre e nunca é definitiva. O filósofo e o violento não são de espécies diferentes, apenas o mesmo ser humano que recusou ou aceitou uma possibilidade aberta a todos sem exceção. Ninguém é filósofo. Recusar a violência permanece sempre como um esforço livre e contínuo de atualização (Kirscher, 1992KIRSCHER, G. 1992. Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil. Lille, Presses Universitaires de Lille., p. 35).

A atitude da obra recusa o discurso, a compreensão e o universal, estabelecendo-se no fazer, não no pensar. Esse movimento se dá baseado na unicidade e na exclusão de toda comunhão e comunidade, de todo entendimento e todo diálogo, com exceção do plano da técnica. Na obra, resta apenas a astúcia. A atitude rejeita com indiferença a linguagem universalmente humana, servindo-se da linguagem do trabalho e da ciência moderna - que não diz o que fazer, mas como fazer - sendo não apenas atitude afilosófica, mas cientificamente antifilosófica (Weil, 2012WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações., p. 508 - 509):

Com efeito, o homem da obra considerará sempre a filosofia como atitude fundamental de seus inimigos, daqueles que recusam a colaboração porque, mesmo que estejam prontos para agir, querem julgar o projeto e, se renunciam ao julgamento, recusam a ação, contentando-se em compreender o que é; inutilizáveis em ambos os casos, ou eles desviam o homem do projeto, ou os desencorajam. Quanto à eficácia - e o eficaz é o que conta -, a filosofia não é nem verdadeira nem falsa, mas nociva, e está claro que a violência do criador ameaça, se não a filosofia, ao menos os filósofos em sua existência ( Weil, 2012 WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações. , p. 509).

A criação da obra se dá como violência total que não conhece nada fora da própria obra. A obra é assim violência que criou tudo o que foi e será (Weil, 2012WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações., p. 500). Ela só conhece, portanto, inimigos ou colaboradores. Entre aqueles que podem ser considerados inimigos, enquadram-se os que pensam, pois estes tornam-se inutilizáveis para a obra (Weil, 2012, p. 505-506). Entre seus aliados, estão aqueles que crêem no mito da obra. O mito da obra corresponde à sua projeção. Lançada adiante, posta à frente do presente, a obra coloca a atualidade como etapa preparatória e época da infelicidade, os indivíduos seus contemporâneos como a geração sacrificada. A obra situa-se assim no futuro: sua realização proporcionará a vida plena, a felicidade (Weil, 2012, p. 504): “Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. Não é necessário que ele seja uma realidade... Nosso mito é a nação, nosso mito é a grandeza da nação! E a esse mito, essa grandeza, que queremos transformar numa realidade total, subordinamos tudo” (Mussolini, apudStanley, 2019STANLEY, J. 2019. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre, L&PM Editora., p. 21).

Disso podemos depreender duas coisas. Primeiro que a obra é projeção para o futuro, seu mito é o de uma época porvir, onde não haverá infelicidade6 6 Entretanto, é importante pontuar que esse mito também engloba a revisão flagrantemente mistificada e inverossímil do passado, reescrito com a mentira para mobilizar as paixões violentas das suas hostes emulando um sentimento de nostalgia. Conferir a esse respeito Stanley, 2019, p. 21. . Em segundo lugar, o tédio é uma necessidade para a projeção da obra. É o sentimento do tédio, o vazio que conferem o impulso para que a obra projete-se adiante no tempo. O tédio é necessário por ser a catapulta que lança a obra para a realização infinita: “A obra em si mesma nunca está acabada e não pode ser concebida como acabada por seu criador” (Weil, 2012WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações., p. 505).

Um exemplo do caráter essencialmente dinâmico da obra, de seu movimento de criação ininterrupto, pode ser encontrado em Arendt quando da descrição da feroz máquina burocrática do Reich: “[...] sempre em um estado de fluxo contínuo, de corrente incessante” (Arendt, 2017, p. 169). A partir daí pode-se deduzir que a qualidade monolítica, estanque, do totalitarismo, não passa de um mito (Arendt, 2017, p. 170): “Ela é movimento, mais do que está em movimento” (Weil, 2012WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações., p. 505).

Para o homem da obra não existem iguais: os outros são a massa, o material da obra7 7 O líder totalitário não reconhece o outro senão como instrumento, de modo que na sua obra não cabe luta por reconhecimento, pois na sua dimensão política ela é puro exercício de poder (Canivez, 2013, p. 18 - 19). . Essa massa não é inteiramente informe e nem uma mera soma de indivíduos. A massa encontra-se organizada na sociedade e no Estado. Assim sendo, a obra busca preservar essa organização para servir-se dela opondo-lhe seu mito (Weil, 2012WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações., p. 507). O mito terá mais ou menos influência de acordo com o papel desempenhado pelo trabalho e pelo sentimento. A menos que se sintam insatisfeitos, os homens tornam-se inacessíveis à promessa da obra (Weil, 2012WEIL, E. 2012. Lógica da filosofia. São Paulo, É realizações., p. 507).

A obra é movimento incessante e criação, mas para ser criação autêntica, ela deve ser total e absoluta, o que explica sua vocação para o totalitarismo. Tal característica também explica a vocação da obra pelo fracasso: ela deve ser levada cada vez mais longe (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p.67). A obra, portanto, cai sobre si mesma, como uma roda desprendida do corpo do veículo que se mantêm de pé apenas pela força do seu movimento, mas que, fatalmente, desaba. O que vem, então, depois da obra?

2. Culpa e responsabilidade

Depois do evento do nazismo, tivemos quatro tipos8 8 No original de Jaspers, schuldbegriffe (Conferir Die schuldfrage, 1946, p. 31). A tradução para o inglês do texto do utiliza concepts of guilt (Conferir The question o f german gulit,2000, p. 25). diferentes de culpa possíveis. A primeira é a culpa criminal9 9 No original, kriminelle Schuld. Na tradução de língua inglesa criminal guilt. . Trata-se daquela oriunda de violações comprovadas contra leis objetivas. Sua instância é o tribunal. Sua consequência é a punição. Sua acusação vem de fora. Sua causa é uma falha moral (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 23). A segunda é a culpa política10 10 Politische Schuld, no original. A tradução de língua inglesa utiliza political guilt. : “No Estado moderno, todos agem politicamente, no mínimo ao votarmos nas eleições ou deixando de votar. O significado da responsabilidade política não permite que ninguém desvie o olhar” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 57). Ou, dito de outra maneira: “Um povo é responsável por sua cidadania” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 56). Podemos então entender culpa política como aquela decorrente da responsabilidade que todo cidadão carrega por pertencer a um determinado Estado. Sua instância é o sucesso de quem tem o poder. Porém, existe algo que mitiga a arbitrariedade do uso desse poder: é a sabedoria política. Essa sabedoria política é definida por Jaspers segundo dois critérios fundamentais: o direito natural - os direitos humanos - e o direito internacional. Sua acusação vem de fora. A consequência de seu reconhecimento pela intermediação da sabedoria política trará como consequência a reparação segundo a responsabilidade (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 23). Sua causa é a negligência, a conveniência, a participação na criação de uma esfera pública que dissemina falta de clareza. Solapar a possibilidade do debate público é algo especialmente grave no pensamento de Karl Jaspers. Isso porque um conceito fundamental que aparece em quase todas as suas obras é o de comunicação ilimitada (Greenzenlose Kommunikation), que significa tanto a fé na compreensibilidade de todas as verdades bem como a boa vontade em revelar e ouvir a verdade. A comunicação para Jaspers não é concebida apenas como a expressão dos pensamentos, portanto, secundária em relação a este, pois a própria verdade é comunicativa, de modo que a verdade desaparece e não pode ser concebida sem haver comunicação; no campo da existência, verdade e comunicação são a mesma coisa (Arendt, 2008ARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras., p. 94 - 95).

A omissão em relação a uma estrutura de poder sem limites que gera violência e medo transforma culpa política em culpa moral11 11 No original, moralische Schuld. A tradução para o inglês utiliza moral guilt. . Trata-se da responsabilidade pelas ações individuais: “A questão da culpa em relação ao indivíduo, desde que ele mesmo se examine, é a que chamamos culpa moral” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 58). “Nunca vale apenas ‘ordem é ordem’” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 23). Ou seja, não funciona como instância de isenção contra a culpa moral alegar que se cumprem ordens, nem mesmo a passividade ou inatividade diante dos desastres e violências gerados pela autoridade política (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 58). Sua instância é a consciência, portanto, sua acusação não pode vir de fora, apenas de dentro. Sua consequência quando reconhecida será penitência e renovação (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 23). Sua causa também é a falha moral. Finalmente, temos a culpa metafísica12 12 Metaphysische Schuld, no original alemão. A tradução de língua inglesa utiliza Metaphysical guilt. :

A culpa metafísica é a falta de solidariedade absoluta com o ser humano enquanto tal. [...] e essa solidariedade foi ferida no momento em que estou presente quando acontecem injustiça e crime. Não basta que eu arrisque minha vida com cuidado para evitar isso. Se isso acontece e eu estive presente e sobrevivi quando o outro foi morto, então dentro de mim há uma voz que me faz saber: o fato de eu estar vivo é culpa minha ( Jaspers, 2018 JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia. , p. 66).

Sua instância é Deus. Sua causa é uma indelével humildade diante de Deus. Traz como consequência quando admitida a quebra do orgulho e a humildade. Como deve ser admitida, sua acusação só pode vir de dentro.

Esboçada a tipologia da culpa, podemos agora dar um passo adiante. Arendt proporciona uma aproximação entre os conceitos de culpa em Jaspers e a responsabilidade política. Enquanto cidadãos, afirma ArendtARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras., devemos “assumir responsabilidade por todos os assuntos públicos ao nosso alcance, independentemente de uma ‘culpa’ pessoal, pois como cidadãos nos tornamos responsáveis por tudo o que o nosso governo faz em nome do país” (2008, p. 92). Weil menciona na sua recensão sobre o texto de Jaspers os quatro conceitos de culpa13 13 Conferir Weil, 1982, p. 53. . Weil se vale do conceito de culpa política ao tratar da figura de Heidegger, entretanto, se Weil não fala em seus textos propriamente de conceito de culpa política, ele faz com o de responsabilidade política uma articulação deste com o problema moral.

A responsabilidade política não é nem jurídica nem moral. Ela é comparável àquela que se atribui a uma causa em relação aos seus efeitos e situa-se em 3 planos: a formulação dos problemas, a descoberta das soluções e a execução das decisões tomadas. Trata-se de distinguir os verdadeiros problemas políticos - cuja solução demanda uma prévia transposição para esse campo - dos aparentes ou falsos - aqueles que não podem ser relacionados à política; por exemplo: a política pode estabelecer regras para a expressão de opiniões religiosas, mas não impô-la à subjetividade. Além disso, a responsabilidade política pede que a solução destinada ao problema seja correta e posta em prática corretamente (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 343 - 344).

O critério pelo qual se julga a responsabilidade política é histórico: trata-se do sucesso da ação. Esse sucesso, por sua vez, objetiva à sobrevivência da comunidade. Ainda que um determinado problema não seja político em sentido estrito não é fora de propósito a consideração pela sobrevivência da comunidade. Isso porque, ainda que não inspire diretamente uma política, toda decisão visando à vida em comum se dá por meio do Estado, cujo interesse último é garantir a sobrevivência da comunidade (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 345 - 346): A questão, entretanto, diz respeito à política, embora seu significado seja de ordem moral14 14 “La question parte néanmoins sur la politique, bien que son sens soit de l’ordre de la morale. ” (WEIL, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 346).

Para Weil, a responsabilidade política, embora não o seja estritamente, dirige-se em última instância para um sentido que é moral. Weil (1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 346), concebe a moral sob um duplo aspecto: como moral de uma dada comunidade (suas condições, crenças, tradições) e como moral filosófica (da universalidade da razão, da liberdade razoável). Diante disso, percebemos que essa moral que é objeto de consideração do político não equivale àquela descrita na tipologia da culpa moral de Jaspers. A culpa moral evocada por Jaspers é aquela que acusa o indivíduo de dentro, sobre a qual não é possível exercer uma influência exterior. Trata-se do foro íntimo. Weil dialoga com esse conceito de Jaspers ao tratar do caso de Martin Heidegger e de sua filiação ao nazismo. Para Weil, sobre Heidegger é possível apenas falar de sua filosofia e da sua relação com o momento pelo qual passava a Alemanha e que era expressão desse momento. No mais, se é possível atribuir uma culpa ou responsabilidade política aos que participaram da loucura racial, a culpa moral é algo que não pode ser julgado do exterior15 15 Conferir Weil, 2020, p. 136-137. .

O político é responsável perante a moral da sua comunidade. Os interesses da comunidade são definidos em função da sua duração (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 346). Uma moral particular pode se achar em conflito com os interesses da comunidade. Esse conflito caracteriza o mundo moderno. A exigência da universalidade encontra-se perante toda moral particular devido a chamada revolução técnica. O trabalho social moderno, inteiramente racional em princípio, calculador, materialista e universal - no sentido de que todos deveriam participar-lhe - não está perfeitamente acomodado em todas as morais tradicionais. Existe um conflito entre moral histórica e necessidade técnica, pois na ausência da primeira, quando da realização de um mundo sem outra moral do que aquela formal do trabalho racional, os indivíduos retornariam, sob o efeito do tédio e do vazio, a uma violência primitiva. O político tem então uma dupla responsabilidade: aquela perante a moral histórica de sua comunidade e aquela que o torna responsável pela moral da comunidade (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 346-347). O político deve, portanto, reconciliar duas exigências. A primeira é manter viva a moral da comunidade. A segunda é fazer aceitar a transformação, adequando a comunidade às exigências da universalidade, nascida da necessidade técnica. Trata-se, portanto, de dois planos: a necessidade do sentido para a existência e a necessidade da sobrevivência (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 347-348).

Aquele que tem a responsabilidade política é um educador, na acepção de que deve visar uma moral concreta - particular e histórica - que seja conciliável com a universalidade do mundo moderno. Trata-se, aqui, de preservar essa moral modificando-a; isso significa mantê-la viva. A tarefa daquele que tem a responsabilidade política é a de dar conta da liberdade razoável em vistas de um sentido, conscientemente buscando mitigar o conflito entre universalidade e moral histórica; perder de vista essa consciência, teria como resultado a destruição do mundo moderno pela violência cega (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 348). Embora nem sempre esteja consciente disso, ele reconhece a violência como sendo o mal político, ao mesmo tempo que reconhece também como condições para a realização do bem a organização racional e a liberdade em vistas da manutenção de um sentido vivo, de uma moral concreta (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 348). Desse modo, aquele que detém a responsabilidade política reconhece que uma moral particular que contenha a violência está em contradição com a moral da universalidade; assim, sua responsabilidade é perante um mundo que está para nascer, da universalização razoável dada na coexistência e interpenetração de morais concretas não violentas. O indivíduo político é julgado em uma situação determinada do ponto de vista da moral universal (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 348 - 349).

A responsabilidade política coloca o político perante a moral da comunidade, bem como sua responsabilidade por essa moral diante da moral universal (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 349). É importante frisar que, para Weil, a responsabilidade moral só tem sentido para aquele que a reconhece. Para aquele que recusa toda moral universal, não pode haver discussão, posto que o valor da discussão só pode ser reconhecido onde universalidade e objetividade são admitidas. Para o violento, os únicos meios que podem ser opostos são os dele próprio (1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 350).

Weil alude também a uma responsabilidade política específica do cidadão. Essa se constitui de dois aspectos. O primeiro é que o cidadão paga pelos erros do seu governante, o que é justo, tendo em vista que se beneficiaria dos seus sucessos. Essa responsabilidade é análoga aquela da associação no direito civil. O segundo diz que o cidadão deve contribuir para que os problemas políticos sejam convenientemente formulados e resolvidos e que a execução das decisões seja assegurada. Além disso, ele é responsável perante a moral e pela moral da sua comunidade. Isso põe a seguinte obrigação: o cidadão deve pensar a política do ponto de vista do bom governante, ou seja, do governante responsável (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 350). Do primeiro aspecto da responsabilidade política do cidadão, podemos fazer uma aproximação com o conceito de culpa política de Jaspers. Além disso, cumpre resgatar aqui a relação que Arendt estabelece entre a responsabilidade e a culpa política em Jaspers, como sendo algo que se dá independente da culpa moral (2008ARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras., p. 92). Segundo Arendt (2008ARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras., p. 84) a responsabilidade em Jaspers está relacionada com dois aspectos: trata-se de clarear o que é escuro, de trazer luz às sombras, bem como encontra sua afirmação no âmbito público. O segundo aspecto decorre do primeiro, de modo que o processo de clarificar as características do mundo borrado pelas sombras participa da humanitas. É nesse sentido, de clarear o que é obscuro, que podemos compreender a culpa política em Jaspers como uma responsabilidade coletiva por meio do conceito de renitência. Esse aspecto oferece um liame entre culpa política, responsabilidade política, e também entre as discussões sobre esses conceitos em Weil e Jaspers. Vamos a ela.

Podemos considerar que uma culpa política se torna uma culpa coletiva. Entretanto, convém, antes, pontuar em que sentido se pode falar, segundo Jaspers, de uma culpa coletiva. Trata-se do que não deve ser entendido como uma confusão entre duas categorias: gênero específico e concepção tipológica. Vejamos os dois conceitos em separado para então localizarmos o perigo de sua confusão. O gênero específico diz respeito a cada indivíduo. Já uma concepção tipológica diz respeito a coletivos aos quais um indivíduo pode ou não corresponder em maior ou menor grau. Exemplos: os judeus, os noruegueses, a juventude. A confusão entre as duas categorias, segundo Jaspers, pressupõe-se uma falsa substancialização. Os perigos do uso das concepções tipológicas incluem a abertura daquilo que o filósofo denomina como uma via de ódio que sempre existiu na história. Basta ver a evolução do antisemitismo na Europa (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 32 - 33). Temos como consequência a perda da dignidade humana para o indivíduo categorizado, a exclusão da sua pertença às fileiras da humanidade. Esse artifício pode ser instrumentalizado de forma maléfica por meio da propaganda com a criação da categoria política do inimigo objetivo. Portanto, tendo em vista esses perigos, quando Jasper fala de uma culpa coletiva, só é possível entender esse conceito no âmbito da culpa política quando se entende que todo cidadão é corresponsável por tudo aquilo que seu governo faz. Essa culpa política, entretanto, pode ou não também tornar-se uma culpa moral, criminal ou metafísica. Isso quem decide são as instâncias responsáveis por cada uma delas. Reparação, punição e responsabilidade - ou seja, oriundos de uma acusação exterior - são fundamentalmente diferentes de arrependimento e renascimento - que partem apenas de uma acusação interior. Se podemos ter reparação sem arrependimento, entretanto, não há possibilidade de des-culpa sem ele.

A natureza humana, entretanto, obsta a autoconsciência. Entre esses obstáculos, Jaspers evoca a renitência: “Mesmo aquele que tem culpa não gosta que o digam a ele” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 96). Nesse caso, aparece o orgulho pertinaz ou renitência orgulhosa: “A renitência orgulhosa encontra muitas formas de ilustração, grandiosidades, coisas edificantes plenas de sentimentos para criar a ilusão que possibilita mantê-la” (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 98). Enquanto houver renitência, permanece fechada a disposição ao pensamento:

Observamos com terror os sentimentos de superioridade moral: aquele que em face do perigo se sente absolutamente seguro já está a caminho de sucumbir diante dele. O destino da Alemanha poderia servir de experiência para todos. Se ao menos essa experiência pudesse ser compreendida! Não somos uma raça pior. Em todo lugar, pessoas têm características parecidas. Em todo lugar existem minorias violentas, criminosas, vitalmente ativas, que à primeira oportunidade tomam o poder e procedem de modo brutal ( Jaspers, 2018 JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia. , p. 90-91).

Por outro lado, se a autoconsciência triunfa, ela tem seu resultado. Qual é esse resultado? Aquilo que Jaspers denominara como a tarefa inacabável no mundo, o caminho para autopurificação: o amor pelo ser humano (Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 107-108). Essa purificação relaciona-se com o espectro abarcado pela culpa política por meio de uma dupla consciência: a solidariedade e a corresponsabilidade, que é quando cada indivíduo se sente corresponsável por uma política do bem comum.

O indivíduo isolado, que não tem mais e que não tem ainda uma tradição, encontra-se perante um Nada16 16 Para Weil (2011, p. 284), “cai-se na violência mais nua se se priva a existência humana de todo sentido, limitando-a ao que a sociedade pode lhe oferecer de meios sem fim”. A violência pura é ausência, é como uma espécie de vazio (Kirscher, 1992, p. 148). que lhe acontece e que o nega, e que Weil compreende como violência. A contraparte desse Nada era a aceitação de um destino formal, cujo conteúdo poderia ser qualquer que fosse, o que explica o que Weil chama de um espírito inebriado de “decisionismo” do povo alemão. É importante ressaltar que isso não significa que esse “decisionismo”, esse “tragicismo”, deveria levar necessariamente ao nazismo, pois, assim como a violência é um momento da política, ela não é necessariamente sua totalidade e os seres humanos podem querer submetê-la (2020WEIL, E. 2020. O caso Heidegger. Argumentos: revista de filosofia, (23): 126-137. , p. 135). A violência faz parte da própria realidade, e, enquanto tal, da política. Mas isso não significa que a política seja totalmente violenta, ou, o que dá no mesmo, que a violência política seja total. Os alemães quiseram o nazismo, portanto, sua violência. E essa decisão guarda suas consequências:

Mas vamos falar claramente: entre os alemães houve criminosos e eles devem ser julgados: os alemães, todos os alemães, cidadãos do Estado e responsáveis por seu governo, desencadearam a violência, aboliram todas as normas morais humanas e internacionais, eles perderam - e não podem apelar às leis não escritas por serem os primeiros a pisar nelas: só podem invocar a prudência e a boa vontade do vencedor ( Weil, 1982 WEIL, E. 1982. Questioni tedesche. Urbino, Edizioni Quattro Venti. , p. 53) 17 17 “Ma consente di parlare chiaramente: fra i tedeschi vi sono stati dei criminali ed essi devono essere giudicati: i tedeschi, tutti i tedeschi, cittadini dello Stato e responsabili del loro governo, hanno scatenato la violenza, hanno abolito ogni norma morale umana e internazionale, hanno perduto - e non possono fare appello alle leggi non scritte per essere stati i primi a calpestarle: posono solo invocare la prudenza del vincitore e la sua buona volontà”. .

O que nos resta dos tempos em que a violência pura fora benquista é a sua lição.

3. Uma lição da História

A escolha feita contra a violência não é definitiva. A opção pela violência pura representa uma rejeição total do discurso coerente que é sempre possível (Quillien, 1970QUILLIEN, J. 1970. Discours et langage ou ‘Logique de la philosophie’. Archives de Philosophie, (33): 401-438., p. 412). A história, como é feita pelos seres humanos, apresenta muitos traços sensatos, mas que pode a cada instante retornar à violência pura. Deste modo, aquele que procura na história um sentido para ser realizado, pode, não obstante, sempre negar, com a violência, o pensamento, o discurso coerente e com eles a possibilidade da vida em comum (Weil, 1970WEIL, E. 1970. La philosophie est-elle scientifíque? Archives de Philosophie, (33): 353-369., p. 364). Arendt diz:

Faz parte da própria natureza das coisas humanas que cada ato cometido e registrado pela história da humanidade fique com a humanidade como uma potencialidade, muito depois da sua efetividade ter se tornado coisa do passado. Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para a perpetração de crimes ( Arendt, 2017 ARENDT, Hannah. 2017. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Companhia das Letras . , p. 295-296).

A lição que a culpa política ensina é que a violência pura permanece latente, de modo que é imperativo erigir diques de contenção contra sua ameaça. Jaspers tem em vista uma purificação após a instauração e reconhecimento da culpa política cujo lume é dado pela articulação entre solidariedade e corresponsabilidade. Para Weil, o reconhecimento e satisfação dos indivíduos é uma cláusula para a impossibilidade política da obra. Isso porque a degradação das condições de vida da população pode provocar uma revolta contra a democracia em si mesma, fazendo-a voltar-se para um chefe providencial, para o homem da obra (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 199). Para evitar isso, é um passo importante o que podemos entender como corresponsabilidade e solidariedade, enquanto barreiras de contenção para um estado de violência total.

Podemos depreender que a corresponsabilidade pela política do bem comum demanda uma democracia enquanto um processo político e que educa seus cidadãos para uma democracia. Demanda uma igualdade equitativa de oportunidades entre os cidadãos, o que é diferente de uma mera igualdade formal18 18 Conferir a esse respeito Rawls, 2003, p. 61. . Demanda renda e riqueza como meios polivalentes para o atendimento dos seus objetivos. Demanda as bases sociais do autorrespeito, entendidas como aqueles aspectos das instituições políticas essenciais para que os cidadãos possam ter um senso efetivo de seu valor enquanto pessoas19 19 Sobre esse aspecto, conferir Rawls, 2003, p. 83. . Demanda uma existência não apenas formal, mas empírica dos direitos humanos e do direito internacional20 20 A esse respeito, conferir Jaspers, 2018, p. 23. .

É uma ausência de reconhecimento que possibilita a existência da obra no plano político. Quando os indivíduos não dispõem de lugar na sociedade e no Estado por conta de crises econômicas e de uma polarização da sociedade composta por extremos, desmesuradas riquezas ladeando uma massa de indivíduos que ou não encontra trabalho ou que consegue sobreviver precariamente com seu ofício, de modo que é materialmente carente e moralmente isolada. As massas modernas21 21 Sobre as massas antigas e suas diferenças em relação às massas modernas após os eventos da industrialização, conferir Weil 1991, p. 163 - 167. são caracterizadas por sua concentração, mobilidade, emotividade e pelo sentimento de insegurança, este encontrando-se já instalado no presente ou em vias de retornar à memória por conta de sua precariedade. Além disso, as massas se definem por sua oposição, mais ou menos consciente, às classes superiores, estas formadas pelos dirigentes que, orientados pelo cálculo, coordenam os rumos tomados pela sociedade. Quando essa massa sente-se desamparada, tomada pelo desespero, é que surge a revolta violenta das massas (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 294 - 295).

O homem da obra aproveita esse ensejo, fazendo-se atraente para os mais favorecidos que se sentem ameaçados pela crise ou por mudanças na sociedade ao mesmo tempo em que oferece à massa o reconhecimento que lhe falta, a dádiva da dignidade perdida. Adolf Eichmann oferece ilustração desse processo ao descrever suas motivações para engajar-se na SS de Himler, abandonando o antigo ofício na Companhia de Óleo e Vácuo de Viena:

De uma vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento o tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro do Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele - já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também - podia começar de novo e ainda construir uma carreira ( Arendt, 2017 ARENDT, Hannah. 2017. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Companhia das Letras . , p. 45).

O homem da obra apela aos sentimentos negativos: a fé cega no líder e o ódio contra aqueles que são apontados como os culpados por sua situação. Reconstruindo o passado, muitas vezes de modo grosseiramente mentiroso, ele surge em momentos nos quais a sociedade é assolada por uma grave crise econômica ou política, de modo que as massas tornam-se, assim, especialmente sensíveis ao chamado daquele que pretende sagrar-se como o líder das multidões desamparadas. Para o resgate da dignidade mítica perdida, o líder exige a lealdade irrestrita, a ausência de pensamento. Seu objetivo deve ser necessariamente instável, o movimento incessante necessitando estar acima de toda espécie de pensamento. Como a roda que verga sobre seu peso logo que a carga cinética acaba, tais regimes têm como sina o colapso pelo militarismo (Weil, 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 321-322).

A democracia, como se trata do sistema que deve ser corroído de dentro para que a obra possa eclodir, funciona como uma salvaguarda contra a violência pura:

O ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, declarou certa vez: “Esta será sempre uma das melhores piadas da democracia, que ela deu a seus inimigos mortais os meios pelos quais foi destruída” Hoje não é diferente do passado ( Stanley, 2019 STANLEY, J. 2019. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre, L&PM Editora. , p. 45).

A correponsabilidade pede uma preservação contínua da democracia: “onde a democracia já existe, (...) [ela] não resiste a toda prova, tensão e injustiça, por uma espécie de estado de graça. Não importa qual seja a nação, todas podem recair numa situação em que a democracia se torne impossível” (Weil, 2019WEIL, E. 2019. Limites da democracia. Argumentos, 11(21): 249-259., p. 259). As condições de possibilidade da democracia podem não estar reunidas e, sendo-as, podem não sê-lo perfeitamente. Elas dizem respeito especialmente à educação. Não há democracia se os cidadãos são violentos, incapazes de seguir uma regra e de convencer ou se deixar convencer por argumentos e compreender os problemas que lhe são apresentados (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 198). O bom funcionamento da democracia pressupõe cidadãos ativos e não passivos: Ao primeiro tipo, corresponde aquele que toma parte na discussão fazendo-a avançar sem que ele exerça necessariamente encargos políticos (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 198). Já sob o segundo, temos aquele que se contenta em exprimir seu interesse particular, tanto no plano moral quanto no plano material.

Desse modo, trata-se de pensar a democracia no interior de um quadro político que possibilite uma discussão aberta das questões políticas, guiada pela lei universal, condição indispensável para um regime constitucional22 22 Sobre mais perspectivas da relação entre democracia e regime constitucional, conferir Castelo Branco, 2016, p. 183-184. . Um governo que se ocupa em prevalecer em vez de educar corre o risco de retroceder ao regime autocrático. O Estado será considerado constitucional ou autocrático conforme limita ou não a liberdade de sua ação segundo a lei. O cidadão de um Estado autocrático não possui nenhum meio legal para fazer valer os seus direitos contra a arbitrariedade do governo e os abusos da administração. O cidadão de um estado constitucional, por sua vez, pode recorrer aos tribunais ou às instancias que obedecem apenas à lei, sendo qualificadas e isentas para se pronunciar entre conflitos envolvendo cidadão e governo (Doumit, 1970DOUMIT, E. 1970. Etat et société modernes dans la ‘Philosophie politique’. Archives de Philosophie, (33): 511-526., p. 519-522). A democracia pode ser compreendida como organizando-se historicamente sob o compromisso de descartar o uso da violência, de modo que a identificação com os direitos dos cidadãos constitui a experiência democrática como legítimo oposto dos regimes totalitários (Castelo Branco, 2016CASTELO BRANCO, J. 2016. Democracia e linguagem. In: PERINE, M.; COSTESKI, E. (Org.). Violência, educação e globalização: compreender o nosso tempo com Eric Weil. São Paulo, Edições Loyola, p. 171-189., p. 180-181).

Passemos ao segundo elemento. A solidariedade aqui pode ser entendida como compaixão, no sentido do padecimento comum: todo ser humano está aberto para o problema da violência. Ela é a causa motora da história. A consciência política tem como causa final a eliminação da violência (Weil, 2011WEIL, E. 2011. Filosofia política. São Paulo, Edições Loyola ., p. 283). Canivez (1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p. 38) nos diz que aquilo que impede o ser humano de viver o contentamento de uma existência sensata são as múltiplas formas de violência: da natureza, da necessidade, do clima, das catástrofes; violência social e política, da guerra, da exploração e da dominação; violência que o indivíduo sofre de si mesmo, das paixões que o destroem. Sob suas múltiplas formas, a violência é o que cria obstáculos para a possibilidade propriamente humana: a do contentamento de uma vida sensata.

Nesse momento, é importante traçar um breve panorama da violência em Weil. A violência natural é definida segundo o referencial histórico das sociedades humanas, mesmo que esse enfrentamento pressuponha sempre um limite: “A violência da natureza define-se, assim, com relação a uma sociedade e uma época, e essa definição inclui o que a comunidade e época consideram, ao mesmo tempo, suportável e modificável” (Weil, 2011WEIL, E. 2011. Filosofia política. São Paulo, Edições Loyola ., p. 77 -78). A natureza exterior é considerada violência primeira no mundo moderno, pois as demais formas de violência (paixão, tentações, violência do ser humano contra o seu semelhante) têm nela o seu fundamento. A luta contra a violência primeira é a luta do grupo organizado, a sociedade, não a do indivíduo. O ser humano enquanto espécie pode sobreviver em qualquer clima, mas não o indivíduo isolado (Weil, 2011WEIL, E. 2011. Filosofia política. São Paulo, Edições Loyola ., p. 75). As demais formas de violência incluem também a violência moral: da exploração, da ganância. Trata-se aqui da sua forma passional, aquela de uma comunidade pertencente a uma determinada época, compreendendo os desejos, crenças e a moral enquanto atos de liberdade (Caillois, 1984CAILLOIS, R. 1984. La violence pure est-elle démoniaque? In: Actualité d’Éric Weil, Paris, Éditions Beauchesne, p. 213-222., p. 214). E também da violência pela violência: a negação consciente de toda razão, aquela que, entre as violências, Weil denomina como a violência diabólica ou pura23 23 Importa notar que Arendt também alude “às capacidades demoníacas” do ser humano em um texto respeitante ao pensamento político de Karl Jaspers (2008, p. 93). . A violência pura aparece como aquilo que Kant considera impossível para a ação humana: o mal absoluto, ou seja, o demoníaco24 24 Importa ressaltar que, no que pese a denominação forte, essa violência instaura um ambiente de profunda banalidade, de modo que aquele que é seu vetor não aparece como um teratismo conforme pode-se esperar. Kirscher (1992, p. 35) reconhece no conceito arendtiano de banalidade do mal um tema análogo ao da violência da obra: “O carrasco nazista não é um monstro excepcional, desde já predestinado por sua natureza ao horror que comete, mas um homem qualquer, mediano, semelhante a todos os outros, que consentiu pequenamente, mesquinhamente, cotidianamente com a violência que não ousou romper, que não ousou dizer não a uma violência da qual todos são capazes”. . Essa forma de violência é contra-filosófica, o que é necessário para o autor do terror totalitário (Caillois, 1984CAILLOIS, R. 1984. La violence pure est-elle démoniaque? In: Actualité d’Éric Weil, Paris, Éditions Beauchesne, p. 213-222., p. 213) Trata-se da violência que motivou o contexto da culpa política sobre o qual escreveu Karl Jaspers. A autoconsciência da solidariedade não nos permite esquecer que a violência nunca é uma porta selada em definitivo. Ela sempre permanece aberta ao humano, bafejando seus efeitos deletérios pela sedutora e inebriante via do ódio.

Considerações finais

A importância do tema da violência pura - a recusa voluntária da filosofia e do seu ideal de razão - no pensamento weiliano se atesta quando consideramos que a motivação mesma desse filosofar é consciente de sua historicidade. Tal consciência é aquela da situação histórica em que aparece a violência pura (Caillois, 1977CAILLOIS, R. 1977. Politique et violence chez Eric Weil. Revue de l’enseignement de philosophie, 28(5):1-10. , p. 1). A possibilidade do retorno da violência política após os regimes totalitários é proporcionalmente mais atual quanto menos empenhados estamos em tomar à sério as lições do passado. Mesmo nos regimes democráticos, não há um estado de perpétuas graças que impeça o ressurgimento de uma política despótica. Um texto clássico da política, Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, publicado em 1864 traz, com um século de antecipação, os procedimentos do chamado despotismo moderno, emergido com a queda dos regimes totalitários (Ginzburg, 2007GINZBURG, C. 2007. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 200-201). Essa forma política peculiar encontra solo fértil para desenvolvimento nos regimes ditos democráticos com “[...] uma híbrida mistura de controle policialesco com liberdade de imprensa, de despotismo com legitimidade popular” (Ginzburg, 2007GINZBURG, C. 2007. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 199). Deste modo, a moderna forma do despotismo inclui eleições livres e liberdade de imprensa. Se esse regime peculiar se prestava, quando da data da publicação da obra, para descrever o sistema de Napoleão III (Ginzburg, 2007GINZBURG, C. 2007. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 198-200), nos dias hodiernos tal conceito encontra para si um cenário ainda mais favorável:

No início do século XXI, os Estados democráticos parecem muito mais poderosos do que eram 150 anos atrás, quando Joly publicou sua análise do despotismo moderno; o controle que eles exercem sobre a sociedade parece muito mais apurado e eficaz; o poder dos cidadãos, infinitamente menor ( Ginzburg, 2007 GINZBURG, C. 2007. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo, Companhia das Letras . , p. 200).

A história, como é feita pelos seres humanos, apresenta muitos traços sensatos, mas que pode a cada instante retornar à violência pura. Deste modo, aquele que procura na história um sentido para ser realizado, pode, não obstante, sempre negar, com a violência e a atividade violenta, o pensamento, o discurso coerente e com eles a possibilidade da vida em comum (Weil, 1970WEIL, E. 1970. La philosophie est-elle scientifíque? Archives de Philosophie, (33): 353-369., p. 364). O sentido da política é a instauração da não-violência (Caillois, 1977CAILLOIS, R. 1977. Politique et violence chez Eric Weil. Revue de l’enseignement de philosophie, 28(5):1-10. , p. 7). Esse é o objetivo mais caro à filosofia. Um regime democrático cujo pressuposto filosófico guarda esse intento primordial deve permanecer sempre atento, pois o que se pode aprender com a análise de uma culpa política, dada após o evento inaudito do fascismo, é que, no bojo da sua novidade, permanece como uma constante ameaça seu caráter atávico, para sempre instalado nas possibilidades históricas humanas com sua violência pura, o que pede uma infatigável responsabilidade política.

Referências

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  • 1
    Trata-se de um compilado contendo dez recensões feitas por Weil sobre dez livros entre os anos de 1945 e 1946, entre os quais inclui-se o livro de Jaspers. As recensões foram originalmente publicadas na revista Critique em três séries. Aquela que contém a obra de Jaspers encontra-se na terceira série, “Arrependimentos e projetos”. Esses trabalhos de Weil foram reunidos e publicados na Itália sob o nome Questioni tedesche em 1982.
  • 2
    No original, Die Schuldfrage, publicado originalmente em Heidelberg em 1946. Segundo Arendt (2008ARENDT, Hannah. 2008. Homens em tempos sombrios. São Paulo, Companhia das Letras., p. 84), The question of German guilt assinala uma das três tentativas de Karl Jaspers de intervir diretamente em questões políticas que lhe eram contemporâneas. As demais são: Man in the modern Age, de 1933 e The atom bomb and the future of man, de 1958.
  • 3
    “Pour Weil, la violence est le problème de la philosophie, et c’est en découvrant la forme extreme d’une violence pure, sinon absolue, que la philosophie se comprehend en comprenant que la violence a toujours été son problème constitutif”.
  • 4
    Quando o indivíduo deseja compreender seu mundo ele se volta para sua vida e formula essa compreensão em termos de um discurso que se eleva acima da vida. Após fixar a atitude, o indivíduo se liberta dela, inaugurando outra muito embora ainda esteja preocupado em compreender a primeira que afastara. Esse desejo de compreensão revela o fundo essencial do mundo anterior vivido como atitude, o núcleo de significação oculto pelo qual tudo ganhava sentido (Caillois, 1953CAILLOIS, R. 1953. Atitudes et catégories. Revue de métaphysique et de morale, (58): 273-291., p. 275-276). Quando o discurso de uma atitude se organiza em torno de um conceito central, essa atitude se torna uma categoria (Canivez, 2013CANIVEZ, P. 2013. La notion de reprise et ses applications. Cultura: revista de História e Teoria das Ideias, (36): 15-29. , p. 16). Desse modo, na lógica do discurso weiliano, encontra-se uma possibilidade lógica e uma possibilidade real. Enquanto a possibilidade real é a atitude, a possibilidade lógica é a sua categoria (Canivez, 1999CANIVEZ, P. 1999. Weil. Paris, Sociéte d’édition les Belles Lettres., p.32). É importante ponderar a diferença dada entre categorias metafísicas e categorias filosóficas. Sob as primeiras, entende-se os conceitos fundamentais determinando as questões segundo as quais se deve considerar, analisar ou questionar aquilo que se quer saber no que é. Já as segundas são as ideias centrais dos discursos a partir das quais uma atitude se exprime de maneira coerente (Kirscher, 1999KIRSCHER, G. 1999. Eric Weil ou la raison de la philosophie. Paris, Presses Universitaires du Septentrion., p. 151).
  • 5
    Na Lógica da Filosofia, para se realizar a compreensão do caráter incompreensível da violência, colhe-se a categoria que a atitude da violência produz, conferindo-lhe uma linguagem da qual ela não faz uso (Perine, 1987PERINE, M. 1987. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. São Paulo, Edições Loyola ., p. 175): “É, pois, por um artifício de prosopopéia que o lógico da filosofia elabora o discurso da violência, sem, contudo, perder a consciência metódica do seu artifício” (Perine, 1987PERINE, M. 1987. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. São Paulo, Edições Loyola ., p. 176).
  • 6
    Entretanto, é importante pontuar que esse mito também engloba a revisão flagrantemente mistificada e inverossímil do passado, reescrito com a mentira para mobilizar as paixões violentas das suas hostes emulando um sentimento de nostalgia. Conferir a esse respeito Stanley, 2019STANLEY, J. 2019. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre, L&PM Editora., p. 21.
  • 7
    O líder totalitário não reconhece o outro senão como instrumento, de modo que na sua obra não cabe luta por reconhecimento, pois na sua dimensão política ela é puro exercício de poder (Canivez, 2013CANIVEZ, P. 2013. La notion de reprise et ses applications. Cultura: revista de História e Teoria das Ideias, (36): 15-29. , p. 18 - 19).
  • 8
    No original de JaspersJASPERS, K. 1946. Die Schuldfrage. Heidelberg, Lambert Schneider., schuldbegriffe (Conferir Die schuldfrage, 1946, p. 31). A tradução para o inglês do texto do utiliza concepts of guilt (Conferir The question o f german gulit,2000JASPERS, K. 2000. The question of german guilt. New York, Fordham University Press., p. 25).
  • 9
    No original, kriminelle Schuld. Na tradução de língua inglesa criminal guilt.
  • 10
    Politische Schuld, no original. A tradução de língua inglesa utiliza political guilt.
  • 11
    No original, moralische Schuld. A tradução para o inglês utiliza moral guilt.
  • 12
    Metaphysische Schuld, no original alemão. A tradução de língua inglesa utiliza Metaphysical guilt.
  • 13
    Conferir Weil, 1982WEIL, E. 1982. Questioni tedesche. Urbino, Edizioni Quattro Venti., p. 53.
  • 14
    La question parte néanmoins sur la politique, bien que son sens soit de l’ordre de la morale.
  • 15
    Conferir Weil, 2020WEIL, E. 2020. O caso Heidegger. Argumentos: revista de filosofia, (23): 126-137. , p. 136-137.
  • 16
    Para Weil (2011WEIL, E. 2011. Filosofia política. São Paulo, Edições Loyola ., p. 284), “cai-se na violência mais nua se se priva a existência humana de todo sentido, limitando-a ao que a sociedade pode lhe oferecer de meios sem fim”. A violência pura é ausência, é como uma espécie de vazio (Kirscher, 1992KIRSCHER, G. 1992. Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil. Lille, Presses Universitaires de Lille., p. 148).
  • 17
    “Ma consente di parlare chiaramente: fra i tedeschi vi sono stati dei criminali ed essi devono essere giudicati: i tedeschi, tutti i tedeschi, cittadini dello Stato e responsabili del loro governo, hanno scatenato la violenza, hanno abolito ogni norma morale umana e internazionale, hanno perduto - e non possono fare appello alle leggi non scritte per essere stati i primi a calpestarle: posono solo invocare la prudenza del vincitore e la sua buona volontà”.
  • 18
    Conferir a esse respeito Rawls, 2003RAWLS, J. 2003. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo, Martins Fontes. , p. 61.
  • 19
    Sobre esse aspecto, conferir Rawls, 2003RAWLS, J. 2003. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo, Martins Fontes. , p. 83.
  • 20
    A esse respeito, conferir Jaspers, 2018JASPERS, K. 2018. A questão da culpa: a Alemanha e o nazismo. São Paulo, Todavia., p. 23.
  • 21
    Sobre as massas antigas e suas diferenças em relação às massas modernas após os eventos da industrialização, conferir Weil 1991WEIL, E. 1991. Essais et conférences: tome II. Paris, Librarie Philosophique J. Vrin., p. 163 - 167.
  • 22
    Sobre mais perspectivas da relação entre democracia e regime constitucional, conferir Castelo Branco, 2016CASTELO BRANCO, J. 2016. Democracia e linguagem. In: PERINE, M.; COSTESKI, E. (Org.). Violência, educação e globalização: compreender o nosso tempo com Eric Weil. São Paulo, Edições Loyola, p. 171-189., p. 183-184.
  • 23
    Importa notar que Arendt também alude “às capacidades demoníacas” do ser humano em um texto respeitante ao pensamento político de Karl Jaspers (2008, p. 93).
  • 24
    Importa ressaltar que, no que pese a denominação forte, essa violência instaura um ambiente de profunda banalidade, de modo que aquele que é seu vetor não aparece como um teratismo conforme pode-se esperar. Kirscher (1992KIRSCHER, G. 1992. Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil. Lille, Presses Universitaires de Lille., p. 35) reconhece no conceito arendtiano de banalidade do mal um tema análogo ao da violência da obra: “O carrasco nazista não é um monstro excepcional, desde já predestinado por sua natureza ao horror que comete, mas um homem qualquer, mediano, semelhante a todos os outros, que consentiu pequenamente, mesquinhamente, cotidianamente com a violência que não ousou romper, que não ousou dizer não a uma violência da qual todos são capazes”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2020
  • Aceito
    18 Dez 2020
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