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Eric Weil e a cientificidade da filosofia

La philosophie est-elle scientifique? foi publicado em 1970, no número da revista Archives de Philosophie dedicado a Eric Weil.1 1 A Hommage à Eric Weil conta com as contribuições de Pierre Reboul, Gilbert Kirscher, Jean Quillien, Gérard Almaleh, Raymond Vancourt, Livio Sichirollo, Elie Doumit, Dominique Dubarle, Yvon Belaval e Pierre-Jean Labarrière. A partir dessa consideração editorial, duas observações nos parecem importantíssimas à devida leitura do texto.2 2 Outra observação de caráter biobibliográfico, mas que a nosso ver cabe nesse contexto, concerne ao fato de que também no ano de 1970, Eric Weil inicia a publicação dos dois volumes de Essais et conférences. Nestes livros, o filósofo retoma trabalhados escritos entre 1935 e 1965, muitos originalmente publicados na revista Critique; no entanto, podemos destacar ainda os textos sobre Aristóteles, editados na Revue de Métaphysique et Morale, bem como alguns temas políticos extraídos da Revue Française de Science Politique. Ademais, encontramos nos dois números de Essais et conférences um sumário significativo das contribuições de Weil em Tijdschrift voor Filosofie, Marxismus-Studien, Revue Internationale de Philosophie, Studi Urbinati, Daedalus e Confluence. Em primeiro lugar, temos o fato de o filósofo inseri-lo num volume consagrado à sua obra. Porquanto os autores envolvidos na homenagem lidam com diferentes temáticas presentes no pensamento weiliano3 3 Há de se dizer, no entanto, que os textos se concentram quase todos sobre a Lógica da filosofia; com efeito, somente o artigo de Doumit se interessa por temas da Filosofia política e, no plano geral, a Filosofia moral não aparece. , devemos compreender o valor que o filósofo concede à relação entre filosofia e ciência, já que escolheu tratar precisamente deste argumento em um contexto no qual a sua obra seria ressaltada. Em segundo lugar, é também interessante notar que, naquela ocasião, o autor retorna ao mesmo texto pela terceira vez. Com efeito, uma primeira versão já havia sido publicada em italiano, em 1965, como parte do livro Filosofia e politica (com mais quatro artigos de Weil traduzidos por Lidia Mora e revistos por ele).4 4 O volume Filosofia e política compreende, além de “Scientificità della filosofia”, os textos “Pensiero dialético e politica”, “Il luogo della logica nel pensiero aristotelico”, “La morale di Hegel” e “Hegel e lo Stato”. No entanto, num certo sentido, Scientificità della filosofia é, na verdade, a segunda retomada do trabalho, uma vez que o mesmo já havia sido apresentado em alemão, na universidade de Münster, com o título Ueber die Wissenchaflichkeit der Philosophie.

O artigo traz uma das principais preocupações do autor, a saber, a reflexão acerca da natureza e da tarefa da filosofia (Strummiello, 2006STRUMMIELLO, G. 2006. Filosofia e metafilosofia in Eric Weil. In: WEIL, E. Violenza e libertà. Milano, Mimesis, p. 101-119., p. 101-119). Aqui, como evidencia o título, essa reflexão é tomada à luz da relação da filosofia com a ciência, um tema antigo, mesmo ultrapassado, cuja discussão - como ele destaca - exige coragem. A antiguidade do argumento repousa no constante confronto da filosofia com outras formas de discurso à disposição dos homens, e a partir das quais estes últimos lidam, nem sempre de modo consciente, com a questão do sentido. Essa chave de interpretação não apenas define os contornos da abordagem de Weil nos escritos acerca das ciências modernas (Weil, 1991WEIL, E. 1991. La Science et la civilisation moderne ou le sens de l’insensé. In: WEIL, E. Essais et conférences 1. Paris, Vrin, p. 268-296., p. 268-296)5 5 Ver também Breuvart (1989, p. 589-609). , mas nos permite também distinguir a linha que os liga aos seus estudos sobre a Renascença Italiana, com especial interesse nas disputas entre filosofia e astrologia (Lejbowicz, 1987LEJBOWICZ, M. 1987. Eric Weil et l’histoire de l’astrologie: eléments d’un intinéraire. In: Cahiers Eric Weil I. Lille, Presses Universitaires de Lille, p. 93-122., p. 93-122).6 6 Para a primeira fase da produção do autor, remetemos às dissertações de Weil, primeiro sob orientação de Cassirer, Ficin et Plotin (2007), e, depois, de Koyré, La philosophie de Pietro Pomponazzi. Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie. (1985). Do mesmo modo, a “Deux textes d’Eric Weil : I : Contre l’occultisme - II : Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie” (1985) e “Notre superstition quotidienne” (2008).

Ao fim e ao cabo, a preocupação do autor está sempre voltada à compreensão da própria filosofia e do papel social do filósofo.7 7 Em 1974, Weil insistirá nestes temas numa conferência proferida em Nice (WEIL, 2020). Em um tempo como o nosso, tão profundamente marcado pela crítica - senão pela perseguição - aos saberes alheios ao tecnicismo, a relevância desse escrito se impõe. No que concerne à sua tradução, ela se coloca num ambiente de crescente interesse pela obra do filósofo entre os nossos leitores de filosofia.8 8 Como fica patente quando acompanhamos a história da publicação das obras de Weil em português, começando pela Filosofia política (1990), e depois por Filosofia moral (2011a), Hegel e o Estado (2011b), Lógica da Filosofia (2012a) e Problemas Kantianos (2012b). Mais recentemente, veio a público Hegel e nós (2019), volume que reúne os seus escritos sobre Hegel. O interesse por Eric Weil no Brasil pode ser confirmado também pelas teses doutorais dedicadas à sua filosofia, bem como pelas atividades do GT Eric Weil e a compreensão do nosso tempo.

Por fim, esse texto oferece ao leitor um panorama exemplar - não exaustivo - de questões fundamentais que interessam ao nosso autor. Com efeito, além da metafilosofia a que já nos referimos acima, encontramos ainda a insistência sobre a atualidade da pergunta pelo sentido, a compreensão abrangente da diversidade dos discursos filosóficos e a explicitação da violência como problema capital da filosofia, a própria cifra do pensamento weiliano.9 9 A bibliografia sobre a violência como problema capital em Weil é extensíssima, nós nos limitamos a enviar o leitor às obras de Marcelo Perine (1987) e Gilbert Kirscher (1992).

A Filosofia é Científica?*

WEIL, E. 1970. La philosophie est-elle scientifique ? Archives de Philosophie 33 (3): 353-369. Tradução de Judikael Castelo Branco.

A filosofia não é propriamente uma ciência, mas é científica como esforço para compreender a universalidade do sentido da realidade concreta. Philosophy is not properly a Science, but it is truly scientifc as an endeavour to understand the universal meaning of concrete reality.

O tema destas considerações não está isento de perigo para quem se empenha em tratá-lo. Um tema ultrapassado, mais destoante do que melodioso, segundo um tom de distinção que recentemente se fez ouvir de novo na filosofia, para falar como Kant, tom ao qual muitos ouvidos se habituaram e que foi retomado por muitas vozes: filosofia e ciência, filosofia enquanto atividade científica - a mera vontade de discutir essas relações exige de nós coragem. Não têm faltado à filosofia hostilidade e desprezo: com frequência se diz que ela pode ser tudo o que quiser, mas que jamais será ciência ou científica. Aliás, se ela quiser se tornar algo do gênero, precisará passar por uma reformatio in capite et membris, possível apenas se renunciar às suas pretensões exageradas e irrealizáveis, e entrar para a escola das ciências modernas, autênticas e verdadeiras. Não surpreende que muitos filósofos tenham escutado essas pregações com humildade e muito boa vontade, e mesmo que tenham se tornado “científicos” e respeitáveis; mas, como resultado, aqueles que se ocupam com as ciências “reais” dizem que são eles mesmos os mais qualificados para se interessarem pelas questões, pelos métodos e pelos limites das suas próprias ciências, e que os filósofos que se tornaram respeitáveis podem apenas lhes contar o que há muito tempo eles mesmos já sabiam ou que já tinham reconhecido como insuficiente. Como era de se esperar, o desprezo de tanta boa vontade produziu uma reação: de fato, diz-se com distinção que a filosofia não tem nada a ver com a ciência, ela se coloca infinitamente mais acima e vai infinitamente mais a fundo, tão alto e tão profundo que só pode pensar, pensar sem se deixar influenciar pela razão (qualquer que seja o significado desse termo) - sempre suspeita de cientificidade. Surgem, assim, dois exércitos de inimigos da filosofia agora chamada “tradicional”, exércitos opostos um ao outro, e que, no entanto, mantêm uma atitude em comum: seja partindo da razão, seja partindo do pensamento, apresentam argumentos que, sem dúvida, são de naturezas muito diferentes, mas que são argumentos - pelos quais retornaríamos a uma espécie de cientificidade ao menos do próprio pensamento, pois, mesmo aquele que reconhece alguma autoridade nos poetas, fala não como poeta, mas como professor e como juiz dos outros, e assim pretende trazer algo que seja objetivamente comunicável, uma verdade universal e demonstrável ou mostrável. Talvez não seja audacioso demais abordar uma questão que, depois de mais dois mil anos, ocupou e inquietou os filósofos - de modo especial porque por trás das teses mais recentes pode se esconder o problema filosófico mais antigo, ao qual, sendo esse o caso, é sempre particularmente necessário voltar.

Não esperem que eu comece por uma definição da filosofia: isso seria um empreendimento escabroso, um esforço que só poderia chegar a bom termo se antes resolver a questão que colocamos. Mas, ao contrário, nós sabemos o que é a ciência: um sistema de proposições desenvolvido segundo certas regras - de um lado, sistema significa aqui que cada proposição da ciência deve ser compatível com todas as outras (ausência de contradição, ainda que contradição não tenha necessariamente o sentido que Aristóteles lhe dá), e, de outro lado, que cada dado encontrado pode ser descrito pela ciência ao incorporá-lo no seu conjunto, se necessário, à custa de um alargamento de sua base (integralidade).

É evidente que, assim compreendida, a ciência é um ideal: nós temos ciências, mas não temos a ciência. O que nós possuímos são conhecimentos organizados neste ou naquele domínio: física, biologia, sociologia, história, ciência jurídica, etc. Com certeza, observamos certa penetração recíproca entre as ciências, mesmo entre aquelas que tradicionalmente pertencem a famílias diferentes: métodos estatísticos podem ser úteis na crítica literária, uma psicologia da compreensão pode dar maior clareza aos processos fisiológicos. Porém, não é menos verdadeiro que a crítica não coincide com a matemática nem a fisiologia com a psicologia: seus domínios e seus métodos continuam diferentes, mesmo quando for aconselhável consultar colegas de outra especialidade ou de outra faculdade.

Então, se a filosofia deve ser ciência, é preciso que ela seja capaz de indicar um domínio e um método que lhe sejam próprios. Ora, evidentemente não pode ser assim: ela fala de tudo ou pelo menos pretende ter esse direito; suas regras, se as possui, não são específicas, mas decorrem da lógica mais comum, mais geral (quer dizer, não da lógica generalizada pela formalização, mas daquela comum a todos), a lógica do diálogo. Podemos dizer com certeza que o que caracteriza a filosofia é precisamente o fato de ela se ater a essa forma mais comum da lógica, enquanto as ciências modernas (modernas porque se subtraíram à dominação da filosofia), se esforçam, sob a influência da matemática, não em partir da contradição presente na discussão viva na qual os homens comuns se opõem, mas para excluir de antemão a possibilidade da contradição (da contradição aristotélica) e assim tornar possível um tipo de procedimento que avança com segurança em um puro monólogo. Poderia muito bem ser assim. Mas a filosofia não teria do que se orgulhar: a distinção entre a filosofia e as ciências seria uma distinção não entre diferentes ciências, mas entre a ciência e qualquer coisa especificamente diferente que seria, portanto, necessariamente não-ciência. Se a filosofia, apesar de todos os seus heroicos esforços, ainda não pôde ser colocada nos trilhos do progresso científico, isso pode muito bem se dar por conta dessa particularidade que, assim considerada, manifesta apenas que ela está atrasada por não ter encontrado um domínio autônomo e um método próprio, como conseguiram as verdadeiras ciências, as ciências modernas.

A história confirma esse juízo pessimista. Definitivamente, todas as ciências nasceram da filosofia: isto é para ela um título de glória, mas de valor duvidoso, pois seus filhos não tinham nada mais urgente do que renegar a mãe, não por maldade, mas porque de outro modo não poderiam se desenvolver; de fato, como poderiam aprender da filosofia a pôr em ordem a própria casa, quando ela mesma parece incapaz de fazê-lo? É fato que, em sua essência, a filosofia carece de ordem. Compreendemos tranquilamente que exista, e porque existe, uma pluralidade de ciências, mas é muito inquietante constatar que existem muitas filosofias e que cada filósofo, apesar de tudo o que reconhece ter aprendido de seus antecessores, recomeça sempre do início - e isto é ainda mais inquietante se o que nós dissemos da maneira própria da filosofia for correto: onde se emprega a linguagem do diálogo comum cotidiano, não se pode esperar resultados certos; se o que para alguém é um dado evidente pode nem mesmo representar, para seu interlocutor, um fenômeno digno de discussão, a desordem resultante dessa eterna contradição se torna a regra.

Com certeza, seria errado esperar que a contradição não tivesse absolutamente nenhum papel na filosofia. Ao contrário, nenhum filósofo ensinou ou mesmo admitiu que uma proposição e sua negação poderiam ser verdadeiras ao mesmo tempo, se todos os termos forem tomados no mesmo sentido. Sobre esse ponto, a lógica cotidiana que a filosofia usa é ainda mais rigorosa que as lógicas do monólogo que superam, embora não sem dificuldades, certas formas de contradição. Os sistemas filosóficos estão isentos de contradição, ou, em princípio, podem ser levados à ausência de contradição, ou pelo menos é isso que eles pretendem. Essa é uma constatação tranquilizadora - a menos que isso não torne a situação verdadeiramente desesperadora. Com efeito, agora temos que lidar com uma série de sistemas filosóficos que não são equivalentes e nem querem sê-lo, pois cada um é formalmente coerente, e, não obstante, todos se contradizem reciprocamente, contradizem-se no sentido ordinário, comum a todos os homens, porque todos eles afirmam alguma coisa de diferente. Aqui, parece, nós nos encontramos sem saída. A lógica comum falha porque não tem princípios reconhecidos por todos e a partir dos quais poderíamos formalmente esclarecer a contradição e assim resolvê-la, porque cada sistema possui os seus próprios primeiros princípios, irredutíveis (irredutíveis para eles) - e não dispomos da vantagem do grande critério das ciências empíricas, pois não podemos nos dirigir a dados universalmente reconhecidos nem podemos imaginar um experimentum crucis que decida validamente entre duas diferentes hipóteses: o que é decisivo para um filósofo sequer é real para outro, e a hipótese científica, estabelecida pela observação e pela experimentação (mais exatamente, que é considerada estabelecida desde que não contradiga a observação e a experimentação), essa hipótese não tem absolutamente lugar no domínio da filosofia, que não possui uma esfera delimitada de dados nem de métodos de pesquisa e de decisão.

Chegamos assim a este resultado: a filosofia não é uma ciência. Mas, para falar propriamente, esse não era o nosso problema. De fato, a filosofia poderia ser científica - num sentido que evidentemente precisa ser explicado -, sem, por isso, ser uma ciência. Essa sugestão talvez pareça surpreendente. Mas ela pode perder muito do seu caráter impressionante se nos recordarmos de que há outras ciências além das ciências experimentais e de observação: por exemplo, a ciência geral do direito e a matemática, sem falar da teologia, partem de certos princípios fundamentais que não podem ser demonstrados nem precisam de demonstração - e que não se tornam, por causa disso, como dissemos da filosofia, um gênero de poesia, a expressão de uma personalidade e, assim, meros acontecimentos históricos, a menos que se queira afirmar que a matemática também é um mero evento histórico e que tudo o que não possa ser empiricamente estabelecido, mas que constitui um discurso coerente, pertencente à história. Então, científico significaria coerente, e teríamos conseguido salvar a honra da filosofia.

Mas, considerada de perto, essa defesa seria muito frágil. Ele mostra, no máximo, que a filosofia não é um discurso arbitrário - o que não é muito: é só não nos esquecermos de que a filosofia, em cada um dos seus sistemas, possui e observa uma lógica interna. A filosofia seria então uma das ciências hipotético-dedutivas. Ora, não só já sabíamos disso, pois partimos da sua lógica da contradição, mas, o que é ainda mais grave, a filosofia, comparada às outras ciências da mesma família, manifesta uma fragilidade decisiva. Mesmo quando, de modo excepcional, a filosofia se apresenta como uma (e não como a) ciência hipotético-dedutiva, ela não pode se contentar com esse papel nem se satisfazer com seus axiomas e com suas deduções formalmente corretas: seus axiomas dependem de uma questão, talvez escondida, enquanto, para o cientista, cada problema só pode ser formulado, isto é, só pode surgir de fato, no interior de seu sistema axiomático. Não é por acaso que o maior de todos os sistemas dedutivos, desde o seu título, Ética, aponte para além de toda axiomática e dentro do seu conjunto reserve para ela um lugar determinado e limitado. O filósofo não tem a boa consciência e a fé cega do dedutivo puro, e a filosofia, ao invés de se salvar ou de se deixar salvar na esfera do hipotético-dedutivo, finda sempre por afirmar a sua relação com a realidade, embora somente com a realidade humana.

Talvez fosse melhor abordar nosso problema a partir de outra perspectiva, uma vez que se trata aqui de algo não-axiomático ao lado do que é dedutivo, quer dizer, do que normalmente chamamos realidade. Se, apesar de tudo, ao tratar da realidade e dos fatos, ainda estivermos expostos às objeções dos cientistas empíricos, talvez possamos resistir a elas de outro modo. De fato, nós podemos fazê-los observar que não reinam na sua casa (ou nas suas casas) a paz e a ordem que eles afirmam. Antes de tudo, seus célebres fatos não são tão claros como eles parecem acreditar. Com efeito, os fatos são numerosíssimos, aliás, eles são incalculáveis, de modo que o cientista não pode evitar a escolha do que é essencial para ele - essencial porque importante, positiva ou negativamente, para seus princípios fundamentais e do ponto de vista destes mesmos princípios. Em outros termos, se o cientista aplicasse ao mundo um interesse fundamental diferente daquele definido (implicitamente) por seus pressupostos fundamentais, escolheria, ou melhor, constituiria outros dados, e o que antes lhe parecia como dado fundamental, tornar-se-ia um epifenômeno ou sequer seria percebido. É fácil mostrar que uma física qualitativa não nos dá o que nos proporciona a nossa física quantitativa, aliás, que ela sequer se propõe a isso, de tal sorte que ela pode se constituir sem nenhuma contradição a partir de suas próprias questões e conceitos fundamentais: para quem quer ler o seu destino nos astros, não é uma objeção lhe dizer que ele não é capaz de construir um avião, tanto quanto o físico moderno não se abala em suas convicções quando lhe dizemos que sua ciência não tem sentido, quer dizer, que não tem sentido na nossa vida e na sua própria vida e para essa vida. Há muitas filosofias - mas a física também não existe necessariamente no singular.

Então, teríamos mais uma vez salvado a honra da filosofia. Mas se a filosofia não é mais a única louca em meio a pessoas perfeitamente razoáveis, essa consolação custou um preço bem alto, pois agora todo mundo é louco. Com certeza uma consolação frágil, mas que talvez ofereça uma ajuda importante, e não apenas para os filósofos atingidos por complexos de inferioridade. De fato, essa observação nos mostra que o que é fundamental para todos é aquilo que chamamos de interesse. Isso é digno de nota, não porque seja uma novidade - ao contrário, trata-se de uma verdade lapalissada, pois sabemos que ninguém faz algo sem que tenha algum interesse -, mas porque é tão antigo e simples que facilmente esquecemos. Resulta desse esquecimento que a ciência e a filosofia não são consideradas imediatamente como produtos do homem, como obras humanas, mas como essências supracelestes que são, em sua forma concreta, terrestres, apreciadas ou condenadas a partir um ponto de vista superior, de sorte que essa verdade lapalissada finalmente se torna de novo importante e, se as coisas forem muito mal, aparece como uma novidade. Mas isso não é tudo. Essa constatação também deve ser observada, e numa perspectiva totalmente diferente, porque é verdadeira por si mesma e, no entanto, não pertence a um domínio da realidade, uma vez que o que ela exprime vale para todos dos domínios. É uma verdade filosófica - por quê? Precisamente porque ela não é particular, mas absolutamente universal e se estende sobre a vida humana como um todo, sobre a totalidade das atividades humanas, e, por conseguinte, também sobre toda atividade científica e pensante.

Assim, a filosofia possui, se podemos ir tão longe no paradoxo, a particularidade de se preocupar universalmente e com o universal, mas não como a física (ou qualquer outra “ciência fundamental”) se preocupa com a totalidade do ser que se encontra em seu domínio e, por consequência, com a totalidade do ser e dos acontecimentos, enquanto se concebe que tudo o que for real pode ser conduzido à realidade fixada por ela, nesse caso, ela se preocuparia de fato com o todo em um certo sentido - mas justamente em um certo sentido, enquanto a filosofia se ocupa com tudo sem limitação, sob todos os aspectos, em todos os sentidos. Isso é confirmado pela história da filosofia, história consciente do caminho que o pensamento percorreu para chegar à consciência de si: cada sistema levanta a pretensão de compreender tudo; se os sistemas não coincidem, é só porque a pretensão de um é criticada por outro como não realizada, nisso, porém, a pretensão é claramente reconhecida como sendo uma pretensão necessária. Assim, o que distingue os sistemas é a maneira e o modo com que cada um aborda e compreende o todo: eles querem a mesma coisa, mas a partir de diferentes pontos de vista e, como dissemos, como diferentes visões do mundo.

Então temos agora o que não podíamos apresentar no começo, uma espécie de definição ou de descrição de filosofia. Mas avançamos de fato? Não estaríamos ainda diante da antiga dificuldade se agora existem diversas visões do mundo, se agora a totalidade - e não se trata aqui apenas da totalidade que se denomina natureza, mas da totalidade de todo ser que, para empregar uma fórmula antiga e de valor duvidoso, pertence à natureza ou ao espírito - for percebida a partir de diferentes pontos de vista e se apresenta de modos diferentes? Não é esta a observação mais inquietante que poderíamos fazer? Pois se, de fato, nós nos compreendemos nas ciências particulares, é porque estamos de acordo sobre o nosso interesse. Por exemplo, queremos dominar a natureza ou sistematizar a economia; como sabemos, isso dá margem a muitas querelas, mas sem nunca chegar a uma ruptura; se não avançamos em nossas discussões, pelo menos estamos todos convencidos de que o resultado trará a decisão, uma decisão que se situa precisamente na perspectiva do interesse comum a todos os interessados. Quem não se interessa por este ou por aquele domínio de problemas, simplesmente se ocupa com outra coisa, com outra ciência ou com outra técnica, com a leitura de um romance policial ou ainda com a busca de uma nova forma poética. Mas, em filosofia, se trata do interesse fundamental enquanto tal: toda consideração sobre o todo determina, implícita ou explicitamente, o que é (para ela) o essencial, não um essencial ao lado do qual haveria outros interesses essenciais e essencialmente equivalentes, como a história ao lado da física, dois interesses entre os quais podemos escolher como entre tantos outros: a filosofia indica um sentido segundo o qual ela avalia todas as coisas, as julga e as coloca em seu devido lugar. Se não nos criasse problemas, poderíamos usar a linguagem das religiões e falar da busca e da descoberta da salvação.

Se se trata do todo e do sentido, certamente não é mais possível distinguir domínios particulares a fim de descobrir, para eles, métodos e critérios que lhes garantam, ou prometam garantir, que as questões possam receber uma resposta decisiva e que as proposições não sejam contraditórias, métodos e critérios sobre os quais concordamos quanto ao “essencial”, porque já excluímos tudo o que não pode ser decidido dessa maneira: entre as diferentes maneiras de ver e de compreender o todo, entre as diferentes formas do sentido, não há juiz nem critério que possa decidir, encontramos apenas conflito ou ignorância recíproca.

Ora, encontramos assim uma outra propriedade da filosofia: paradoxalmente, ela não quer permitir o conflito ou a ignorância. Eu digo intencionalmente quer, não digo pode. Pois se trata aqui de uma decisão da filosofia ou, para evitar o que há de mítico nesta fórmula, que o filósofo, numa decisão livre, não quer permitir que o mundo se decomponha no conflito ou na ignorância, embora ele possa admitir isso como todo mundo, e isso simplesmente porque decidiu em favor da compreensão do todo sem violência (e de si mesmo no todo). Ele refuta o combate das convicções últimas, embora saiba que entre elas, enquanto permanecerem últimas e se opuserem umas às outras, só a violência decide. Do mesmo jeito ele refuta a ignorância recíproca - nos dois casos, pela mesma razão: porque, de outro modo, ele não desejaria verdadeiramente compreender o todo ao qual o outro pertence tanto quanto ele mesmo.

Assim, para o filósofo, tudo se torna problemático, tudo é digno de ser colocado em questão, isto é, pode ser questionado, com a condição de que se trate de se entender com os outros - desde que o outro queira dar as razões do próprio sentido: condição decisiva, que significa na prática que, se o filósofo é inimigo da violência e, consequentemente, do não-sentido (embora o não-sentido da violência possa também esconder um sentido e assim permitir o seu desvelamento), isso não exclui, antes inclui o fato de que este adversário da violência é capaz de confrontá-la, quando a encontra, com as suas próprias armas, precisamente porque ele compreendeu a essência da violência e sabe que, na sua essência, ela se opõe à compreensão. O filósofo não quer ser impedido de compreender, de pensar na unidade a realidade, o todo concreto, mesmo se essa unidade se apresentar como contraditória e talvez precisamente porque ela se apresente como contraditória e incoerente.

Chegamos a um resultado surpreendente: tivemos que admitir que a filosofia não é uma ciência; agora alcançamos o ponto no qual apenas a filosofia compreende o que é e o que deve ser a ciência, no qual só a filosofia pode querer ser ciência, porque só ela coloca em questão, interrogando sobre o seu sentido, todo interesse evidente - o que na vida cotidiana se chama evidente - e a incoerência desses múltiplos interesses. Então, convém perguntar à filosofia sobre o interesse por ela, especialmente porque este não é de modo algum evidente, sendo a filosofia estranha à maioria dos homens, e porque, com frequência, o interesse que ela encontra, em um pequeno número, é de um tipo que, para dizer de modo preciso, não parece ser central. Isso convém ainda mais porque essa questão não é apenas oportuna ou legítima, mas porque é, para o filósofo, a questão propriamente filosófica, pois, não contente em compreender os interesses de todos os outros homens e os seus resultados, ele quer também compreender o seu próprio esforço e compreender a si mesmo. Em outras palavras, se quiser realizar o seu projeto, ele deve também compreender por que os homens se recusam a compreender, recusam-se a querer compreender; pois compreender é sempre compreender começando por considerar o outro do que se deve compreender.

O filósofo quer compreender. Mas isso é suficiente? O que isso quer dizer, senão que ele não compreende? Se ele já compreendesse, iria querer compreender? Mas assim, ele não estaria na mesma condição dos outros, talvez só um pouco à frente daqueles que não querem compreender? Mas esse não-compreender é de uma natureza particular e o separa dos outros: não apenas ele quer compreender e sabe que o quer, ele também sabe o que quer saber e como quer saber, quer dizer, em um saber coerente sobre o todo e sobre o sentido do todo, um saber, para colocar em evidência o interesse de seu esforço, que tem um sentido para ele, porque deve e pode dar um sentido para a sua vida, porque deve e pode trazer tudo, inclusive ele próprio, a uma unidade sensata.

O filósofo não é o sábio: ele está buscando a sabedoria. Ele a procura porque não quer admitir o que não tem sentido ou, mais precisamente, porque não quer admitir o que não tem sentido sem o ter interrogado sobre o sentido que ele pode ter e que talvez esteja escondendo. Pois, curiosamente, o que é privado de sentido tem um sentido quando interrogado: foi isso que trouxe o filósofo em seu caminho, caminho que deve levá-lo a desenvolver e a compreender o sentido - o que é privado de sentido que não é outra coisa senão a violência da natureza ou da história. Eu vivo numa natureza que é para mim uma violência cega ou que a cada instante pode se revelar como tal; eu vivo numa história que, por ser produzida pelo homem, mostra muitos traços de sensatez, mas que pode sempre recair na violência pura; o homem, que procurou realizar o sentido na história, pode sempre negar, na violência e na atividade violenta, o pensamento, o discurso coerente, e assim negar realmente a possibilidade da vida em comum, na qual se compreende na paz e deixa o próximo na sua particularidade. Eu mesmo - e isso é capital - posso querer não reconhecer essa vida, mas destruí-la, enquanto o mundo assim determinado for para mim privado de sentido e enquanto eu responder com violência ao que perceber, nessa realidade sem sentido, como uma violência escondida, ou pelo menos quando, recusando passivamente participar do jogo desse mundo, opuser uma resistência vista pelos senhores desse mundo como violência, porque os priva da minha cooperação e da de tantos outros, quantos estes forem. Mas é justamente o que é privado de sentido e violento que exige ser pensado, e é a obrigação livremente escolhida de pensá-los que constitui o filósofo. Talvez haja, aliás, com certeza existem na história sábios e santos, homens que superaram a violência e a brutalidade, mas os sábios e os santos não precisam da filosofia e não têm problemas filosóficos: para o filósofo, eles constituem no máximo um ideal, pois ele considera a si mesmo e os homens ao seu redor como seres finitos e dotados de razão, como diz Kant, seres que podem querer ser razoáveis, porque não são razão, mas indigentes, passionais, condicionados, e que, na sua indigência, procuram a razão - por quê? Porque o homem quer viver de um modo sensato em um mundo sensato, porque quer dominar, pela razão, a violência nele e no mundo, a fim de que os homens - e ele mesmo entre os homens - possam existir não só diante ou ao lado uns dos outros, mas uns com os outros, sem que tenham de renunciar a tudo o que o seu ser indigente demanda - uma renúncia que, além do mais, como conscientemente desejada, só seria possível para aqueles cuja vida fosse suficientemente sensata de sorte que pudessem se colocar a questão do sentido, em outras palavras, que não estivessem rebaixados pela violência da natureza e dos homens à condição de animais mudos e sem questionamentos. O filósofo procura uma linguagem, um logos, que compreenda o mundo, que ilumine a sua estrutura, e que, compreendendo-o e iluminando-o, o transforme de modo que cada homem que procura um sentido para a sua vida - em primeiro lugar o próprio filósofo - mesmo não o encontrando realizado, esteja livre para criá-lo.

Nessa perspectiva, seria interessante lançar um olhar sobre as ciências particulares. Poderíamos defendê-las agora tanto contra os que as adoram quanto contra aqueles que as denigrem. Aos primeiros, faríamos observar que todo domínio sobre a natureza e sobre a história ainda não nos dá sentido algum para essa dominação, aos segundos, se nos permitirem (se permitirem, pois eles são muito mais distintos que os primeiros), que é a dominação parcial sobre a natureza e sobre a história que lhes permite, entre outras coisas, falar mal da ciência e maldizer a razão. Mas, por mais úteis que possam ser essas considerações, elas não pertencem imediatamente ao nosso tema, a cientificidade da filosofia.

A filosofia é científica no sentido mais estrito: eis o resultado que alcançamos. É científica eminenter, de uma forma diferente e mais profunda do que qualquer ciência particular, e precisamente por isso ela não é uma ciência. Mas podemos admitir uma afirmação como essa? Ela é inteligível, pelo menos? Pode haver uma atividade científica na qual se recomece sem cessar, na qual nenhum resultado seja universalmente reconhecido, ou onde o trabalho realizado se torne sempre uma tarefa a ser cumprida? Não temos que reconhecer todos esses defeitos? O que, então, nos permite afirmar que, propriamente falando, somente a filosofia é científica?

A quem nos faz essa objeção, poderíamos devolvê-la transformando sua crítica da filosofia numa crítica das ciências. Na verdade, nenhuma ciência dá resultados definitivos; as crises dos fundamentos, que são constantemente renovadas, não são acidentes, mas uma das formas essenciais do que chamamos progresso. Onde resultados definitivos são alcançados, o interesse científico vivo deles se afasta e abandona o domínio que os engloba; no melhor dos casos, eles são conservados como conhecimentos sólidos, porque se ossificaram como condições técnicas úteis para um novo interesse que vive enquanto considera e trata o dado puro que está à sua disposição apenas como condição para o seu próprio progresso. Contudo, nada de decisivo pode se manifestar em tais réplicas, isso aparecerá somente na consideração direta, para a qual, no entanto, essas reflexões podem fazer um balanço.

Trata-se então do fato fundamental da contradição (não da contradição formal que pode ser superada formalmente), o fato fundamental de que o homem tem a possibilidade - nós todos sabemos com que facilidade e leviandade isso frequentemente se realiza - de opor um Não a tudo o que se lhe apresenta como dado, princípio ou obra. Um Não que ele pode opor até mesmo ao universal, o universal que liga todos os homens em sua liberdade e por essa liberdade, desde que eles queiram ser homens e não apenas seres da natureza: o homem é livre, tão livre que pode livremente recusar a liberdade a si mesmo e aos outros. A liberdade é infinita: o universal, de fato, vincula à necessidade da razão, mas só aqueles que, no querer da razão, tomam livremente sobre si esse vínculo; cada um conserva a possibilidade de se recusar a associar-se ao que já está posto na vida comum dos homens, de destruí-lo pela palavra e pela ação. Está sempre presente a possibilidade da violência e da brutalidade “pura”, privada de sentido. Pois, por mais escandalosa que essa asserção possa parecer, a razão e o universal nascem no terreno da violência: aqueles que são chamados primitivos não se reuniram em assembleia para decidir que queriam doravante se civilizar, mas obedeceram ao medo, ao desejo de dominar, à pressão da natureza e da necessidade. Com certeza, a humanidade chegou ao ponto do qual ela pode olhar para todo o caminho percorrido e se compreender em sua própria realização passada, como humanidade em devir; mas, precisamente por isso, pode sempre aniquilar o resultado desse devir, esta compenetração do ser natural e da liberdade, rejeitar na mera finitude o finito-infinito resultante do devir, e, se não tiver a audácia de destruí-los realmente, pode, no entanto, considerá-los nulos e sem efeito.

Mas assim desmorona a acusação de que a filosofia não poderia mostrar resultados: o resultado da filosofia é a compreensão do homem pelo homem em sua finitude e em sua infinitude. Toda a história da filosofia se consistiu em produzir e evidenciar sempre de novo esse resultado. Podemos acrescentar, se fosse o caso, que, tudo bem pesado, todas as ciências, e mesmo o conceito de ciência, são resultado da filosofia - como também as doutrinas que, da finitude do homem, concluem que o homem é apenas finito, conclusão que, de uma maneira pouco lógica, é posta como universalmente válida e sendo in-finitamente verdadeira. Mas a filosofia pode tranquilamente renunciar a tais observações, porque ela coloca em questão todo resultado, na medida em que é apenas um resultado e precisamente como tal, quer alcançado por alguma ciência, quer um trazido por ela mesma - colocar em questão, não negar. Este é justamente o seu “resultado”. A liberdade que se compreende como liberdade na razão e como razão na liberdade, se compreende como essa possibilidade sempre presente, devendo sempre se realizar de novo, de pôr em questão todo dado, não importando que esse dado tenha sido criado pelos homens - ou pelos filósofos. O que é somente dado, na sua pura existência, não tem sentido, embora possa revelar um sentido, e o sentido mais profundo, mas somente para quem se interroga sobre o sentido e sobre o seu lugar no todo do discurso e da ação dos homens. Mas isso significa que a filosofia recomeça incessantemente, que cada filósofo é um começo: o que ele pode aprender e o que aprendeu de seus predecessores se torna sua herança e seu patrimônio apenas porque ele começou pela rejeição de toda herança meramente transmitida e que só goza de uma existência histórica. O crítico tem razão ao afirmar que não se pode aprender filosofia como se aprende geometria ou história - o que quer dizer simplesmente que o filósofo pensa, mas não sabe.

Então a nossa busca termina com um último paradoxo. A filosofia é científica, eminenter científica, porque se recusa a se tornar uma ciência que se possa aprender, porque quer ser uma interrogação sobre o sentido, sempre renovada, sempre a renovar, porque não se contenta com as respostas dadas, mas reconhece como resposta apenas o que pode ser hic et nunc, para o homem enquanto tal, verdadeiro e sensato, porque ela quer o absolutamente universal, a razão, o universal que ainda compreende, positivamente, que o seu outro, o finito, o dado, o absurdo, o violento, é para ele uma condição, um pressuposto temporal e constantemente renovado. A filosofia sabe que não pode trazer “resultados últimos”, porque refuta tais resultados, contanto que queira permanecer filosofia, porque, por assim dizer, ela sabe que todo homem pode, a seu bel prazer, admitir resultados últimos, matar e morrer por eles - últimos, ou seja, últimos axiomas que não são reconhecidos como tais. A filosofia conhece seu próprio pressuposto, porque sabe que ela própria o colocou, e sabe que não pode persuadir ninguém de que é preciso postular essa pressuposição: no máximo, ela pode tentar persuadir - ou confiar na influência educativa da violência sobre a violência. Ela se sabe livre, e por isso sabe que por ter se colocado como vontade do universal e do sentido, deve reconhecer tudo, porque decidiu tudo compreender, compreender para si mesma sob o critério do universal, quer dizer, fazendo derivar do universal e trazendo de volta para ele todos os particulares nos quais o universal existe no finito e para o finito. E como ela se quer liberdade para e no universal, ela se põe em questão antes de tudo: não quer ser uma ciência dos resultados disponíveis que possam ser aprendidos, e é pela ausência de toda ingenuidade que só ela é científica; é pensamento que se pensa e se compreende. E, no entanto, em seu pensamento e em seu discurso, ela é responsável por si mesma, e deve continuamente, por própria resolução, se fazer e se comprovar, como de fato se faz e se comprova.

Assim, pode sempre acontecer que a filosofia não se compreenda mais e, desta forma, deixe de ser ela mesma. Isso acontece tão logo a filosofia, aliás, tão logo aqueles que se consideram filósofos, pensem dever se igualar às ciências que são discutíveis precisamente em sua positividade, e caiam então numa humildade injustificada. Isso acontece também quando a filosofia e os filósofos, obcecados com o sonho da descoberta definitiva de um sentido definitivo, se desesperam conscientemente de si e da razão, desse infinito no qual o finito se compreende como finito e assim se transcende, se torna livre para se transcender. Então, a filosofia e os filósofos, orgulhosos por causa desse desespero, tornam-se arrogantes e assumem um tom de distinção, porque pensam ter descoberto, na oposição abstrata do finito e do infinito, do ente e do ser, algo que ninguém havia percebido antes - enquanto toda filosofia só teve isso diante dos olhos - contudo, com a vontade - é a vontade que tem a iniciativa - de compreender essa oposição “evidente”, sem trair nem esquecer o finito, compreendendo sempre o homem em sua indigência, mas também como o ser que, em toda a sua finitude, pode querer infinitamente, como o ser que - contanto que ele queira pensar - pensa sempre de novo de forma razoável e científica a totalidade, o todo e a si mesmo em sua finitude, no infinito que não tem nada fora de si.

Referências

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  • WEIL, E. 2011b. Hegel e o Estado Trad. C. Nougué. São Paulo, É Realizações .
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  • WEIL, E. 1990. Filosofia política Trad. M. Perine. São Paulo, Loyola .
  • WEIL, E. 1985. Deux textes d’Eric Weil: I : Contre l’occultisme - II : Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie. Archives de Philosophie 48 (4): 563-573.
  • WEIL, E. 1985. La philosophie de Pietro Pomponazzi. Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie Vrin, Paris.
  • WEIL, E. 1948. Sur le sens du mot “magie”. E. M. Butler, The myth of the Magus Critique 29 (4): 950-953.
  • *
    Agradecemos ao professor Patrice Canivez, diretor do Institut Eric Weil, da Universidade de Lille, que autorizou a publicação desta tradução.
  • 1
    A Hommage à Eric Weil conta com as contribuições de Pierre Reboul, Gilbert Kirscher, Jean Quillien, Gérard Almaleh, Raymond Vancourt, Livio Sichirollo, Elie Doumit, Dominique Dubarle, Yvon Belaval e Pierre-Jean Labarrière.
  • 2
    Outra observação de caráter biobibliográfico, mas que a nosso ver cabe nesse contexto, concerne ao fato de que também no ano de 1970, Eric WeilWEIL, E. 1948. Sur le sens du mot “magie”. E. M. Butler, The myth of the Magus. Critique 29 (4): 950-953. inicia a publicação dos dois volumes de Essais et conférences. Nestes livros, o filósofo retoma trabalhados escritos entre 1935 e 1965, muitos originalmente publicados na revista Critique; no entanto, podemos destacar ainda os textos sobre Aristóteles, editados na Revue de Métaphysique et Morale, bem como alguns temas políticos extraídos da Revue Française de Science Politique. Ademais, encontramos nos dois números de Essais et conférences um sumário significativo das contribuições de Weil em Tijdschrift voor Filosofie, Marxismus-Studien, Revue Internationale de Philosophie, Studi Urbinati, Daedalus e Confluence.
  • 3
    Há de se dizer, no entanto, que os textos se concentram quase todos sobre a Lógica da filosofia; com efeito, somente o artigo de Doumit se interessa por temas da Filosofia política e, no plano geral, a Filosofia moral não aparece.
  • 4
    O volume Filosofia e política compreende, além de “Scientificità della filosofia”, os textos “Pensiero dialético e politica”, “Il luogo della logica nel pensiero aristotelico”, “La morale di Hegel” e “Hegel e lo Stato”.
  • 5
    Ver também Breuvart (1989BREUVART, J. 1989. Notion et idée de science chez E. Weil. Archives de Philosophie 52 (4): 589-609., p. 589-609).
  • 6
    Para a primeira fase da produção do autor, remetemos às dissertações de WeilWEIL, E. 2003. Science, magie et philosophie. In: WEIL, E. Philosophie et réalité II. Paris, Beauchesne, p. 26-39., primeiro sob orientação de Cassirer, Ficin et Plotin (2007WEIL, E. 2007. Ficin et Plotin. Paris, L’Harmattan. ), e, depois, de Koyré, La philosophie de Pietro Pomponazzi. Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie. (1985WEIL, E. 1985. La philosophie de Pietro Pomponazzi. Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie. Vrin, Paris. ). Do mesmo modo, a “Deux textes d’Eric Weil : I : Contre l’occultisme - II : Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie” (1985WEIL, E. 1985. Deux textes d’Eric Weil: I : Contre l’occultisme - II : Pic de la Mirandole et la critique de l’astrologie. Archives de Philosophie 48 (4): 563-573.) e “Notre superstition quotidienne” (2008WEIL, E. 2008. Notre superstition quotidienne. Bruniana & Campanelliana 14 (2): 636-642.).
  • 7
    Em 1974, Weil insistirá nestes temas numa conferência proferida em Nice (WEIL, 2020WEIL, E. 2020. O futuro da filosofia. Trad. J. Castelo Branco. Veristas 65 (1): 1-12.).
  • 8
    Como fica patente quando acompanhamos a história da publicação das obras de Weil em português, começando pela Filosofia política (1990WEIL, E. 1990. Filosofia política. Trad. M. Perine. São Paulo, Loyola . ), e depois por Filosofia moral (2011aWEIL, E. 2011a. Filosofia moral. Trad. M. Perine. São Paulo, É Realizações . ), Hegel e o Estado (2011bWEIL, E. 2011b. Hegel e o Estado. Trad. C. Nougué. São Paulo, É Realizações .), Lógica da Filosofia (2012aWEIL, E. 2012a. Lógica da filosofia. Trad. L. Malimpensa. São Paulo, É Realizações.) e Problemas Kantianos (2012bWEIL, E. 2012b. Problemas kantianos. Trad. L. Rouanet. São Paulo, É Realizações .). Mais recentemente, veio a público Hegel e nós (2019WEIL, E. 2019. Hegel e nós. Francisco Valério et al. (Orgs). Caxias do Sul, RS, Edusc.), volume que reúne os seus escritos sobre Hegel. O interesse por Eric Weil no Brasil pode ser confirmado também pelas teses doutorais dedicadas à sua filosofia, bem como pelas atividades do GT Eric Weil e a compreensão do nosso tempo.
  • 9
    A bibliografia sobre a violência como problema capital em Weil é extensíssima, nós nos limitamos a enviar o leitor às obras de Marcelo Perine (1987PERINE, M. 1987. Filosofia e violência. Sentido e intenção da filosofia de Eric Weil. São Paulo, Loyola.) e Gilbert Kirscher (1992KIRSCHER, G. 1992. Figures de la violence et de la modernité. Essais sur la philosophie d’Eric Weil. Lille, Presses Universitaires de Lille.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2020
  • Aceito
    28 Fev 2021
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