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A desvalorização de grupos socais no espaço comum de pequenas organizações: um estudo sobre representações sociais em um centro comercial

The devaluation of social groups in the common area of small organizations: a study of social representations in a shopping centre

Resumos

O artigo busca compreender a construção de sentidos que desvalorizam grupos sociais específicos na cultura de pequenas organizações que compartilham espaços comerciais. A discussão proposta foi articulada em torno de um estudo sobre a construção de representações sociais no contexto de pequenas organizações reunidas em um centro comercial em Porto Alegre. Os dados foram coletados por meio de técnica da observação participante e de entrevistas não estruturadas e, em seguida, articulados a partir de uma análise etnográfica. Constatou-se que as organizações sofrem influência das representações circulantes na sociedade, para elaborar expectativas normativas no tocante aos interesses relacionados ao uso do seu espaço comum pelos grupos sociais. Tais interesses permitiram identificar dois grupos: "bons frequentadores" e "maus frequentadores", estes últimos associados à juventude e homossexualidade. A relação entre seus membros e as pessoas nas organizações leva à construção de representações sociais por vezes carregadas de significações negativas com impactos nas relações sociais e organizacionais estabelecidas naquele locus.

Representação social; Representação social negativa; Pequenas organizações; Homossexualidade; Etnografia


The article seeks to understand the construction of meaning that devalues specific social groups in the culture of small organizations that share commercial spaces. The proposed discussion was organized around a study on the construction of social representations in the context of small organizations gathered at a shopping center in Porto Alegre. Data were collected using the technique of participant observation and unstructured interviews articulated in an ethnographic analysis. It was found that organizations are influenced by the representations circulating in society to establish normative expectations with regard to the interests related to the use of their common space by social groups. These interests enable the identification of two groups: "good attenders" and "bad attenders," the latter associated with youth and homosexuality. The relationship between their members and people in organizations leads to the construction of social representations often full of negative meanings with impacts on social and organizational relationships established at that locus.

Social representation; Negative social representation; Small organizations; Homosexuality; Ethnography


A desvalorização de grupos socais no espaço comum de pequenas organizações: um estudo sobre representações sociais em um centro comercial

The devaluation of social groups in the common area of small organizations: a study of social representations in a shopping centre

Marina Dantas de FigueiredoI; Neusa Rolita CavedonII; Alfredo Rodrigues Leite da SilvaIII

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre/RS/Brasil. Endereço: Rua Duque de Caxias, 959/1402, Centro Histórico. Porto Alegre/RS. CEP 90010-282. E-mail: marina.dantas@gmail.com

IIDoutora em Administração pela UFRGS. Professora Associada da UFRGS, Porto Alegre/RS/Brasil. E-mail: nrcavedon@ea.ufrgs.br

IIIDoutor em administração pela Universidade Federal de Minas Gerais – CEPEAD/FACE/UFMG. Professor Adjunto de Departamento de Administração e do Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Vitória/ES/Brasil. E-mail: alfredoufes@gmail.com

RESUMO

O artigo busca compreender a construção de sentidos que desvalorizam grupos sociais específicos na cultura de pequenas organizações que compartilham espaços comerciais. A discussão proposta foi articulada em torno de um estudo sobre a construção de representações sociais no contexto de pequenas organizações reunidas em um centro comercial em Porto Alegre. Os dados foram coletados por meio de técnica da observação participante e de entrevistas não estruturadas e, em seguida, articulados a partir de uma análise etnográfica. Constatou-se que as organizações sofrem influência das representações circulantes na sociedade, para elaborar expectativas normativas no tocante aos interesses relacionados ao uso do seu espaço comum pelos grupos sociais. Tais interesses permitiram identificar dois grupos: "bons frequentadores" e "maus frequentadores", estes últimos associados à juventude e homossexualidade. A relação entre seus membros e as pessoas nas organizações leva à construção de representações sociais por vezes carregadas de significações negativas com impactos nas relações sociais e organizacionais estabelecidas naquele locus.

Palavras-chave: Representação social. Representação social negativa. Pequenas organizações. Homossexualidade. Etnografia.

ABSTRACT

The article seeks to understand the construction of meaning that devalues specific social groups in the culture of small organizations that share commercial spaces. The proposed discussion was organized around a study on the construction of social representations in the context of small organizations gathered at a shopping center in Porto Alegre. Data were collected using the technique of participant observation and unstructured interviews articulated in an ethnographic analysis. It was found that organizations are influenced by the representations circulating in society to establish normative expectations with regard to the interests related to the use of their common space by social groups. These interests enable the identification of two groups: "good attenders" and "bad attenders," the latter associated with youth and homosexuality. The relationship between their members and people in organizations leads to the construction of social representations often full of negative meanings with impacts on social and organizational relationships established at that locus.

Keywords: Social representation. Negative social representation. Small organizations. Homosexuality. Ethnography.

Introdução

A teoria das representações sociais tem se mostrado um paradigma importante para a compreensão do conhecimento humano em relação a uma variedade significativa de fenômenos. A noção, que há mais de trinta anos vem suscitando numerosos trabalhos no campo da psicologia social, tende a ocupar, também, posição central no campo das ciências humanas e sociais, no qual "a propensão a se reportar às representações não para de crescer" (JODELET, 2001, p. 11). Ao lidar com a cognição social enquanto processo dinâmico e ativo no ambiente, relacionados a fatores individuais e sociais, a psicologia social abre os caminhos da interdisciplinaridade e possibilita um diálogo com outras ciências sociais, em especial a antropologia, no que tange à questão da cultura.

No campo dos estudos organizacionais no Brasil, é possível constatar que, desde o final da década de 1990, o conceito encontra-se alicerçado em análises interpretativas sobre as organizações e o organizar a partir de diferentes cortes, tais como: a compreensão do contexto cultural de uma organização (CAVEDON; FACHIN 2002; CAVEDON, 2004; 2008); a análise das práticas sociais que orientam as estratégias organizacionais (CAVEDON; FERRAZ, 2005; SILVA; CARRIERI; JUNQUILHO, 2011); reflexões sobre construções e estratégias discursivas (WAIANDT; DAVEL, 2008; MURTA; SOUZA; CARRIERI, 2009); o desvendar da dimensão psicológica da identidade de indivíduos e grupos (CRAMER; PAULA NETO; SILVA, 2002; ANDRADE et al., 2002).

Assim como nesses estudos, o presente artigo se apropria das contribuições das representações sociais para o campo dos estudos organizacionais, de modo a tratar do seguinte objetivo: compreender a construção de sentidos que desvalorizam grupos sociais específicos na cultura em pequenas organizações que compartilham espaços comerciais. Para isso, nos propomos a identificar e analisar as representações sociais (MOSCOVICI, 2007; JODELET, 2001) vinculadas aos grupos de frequentadores de um centro comercial, notadamente àquelas valoradas negativamente, e analisar o impacto das ações organizacionais tomadas com base em tais representações. A partir do confronto teórico realizado neste estudo, defende-se o argumento de que o processo de construção de sentidos que desvalorizam grupos sociais segue a dinâmica das representações sociais construídas e reconstruídas nos espaços comuns das pequenas organizações, de acordo com as expectativas normativas que envolvem a capacidade dos grupos sociais de isolar e tipificar outros grupos. Em face desse processo, surgem implicações tanto concreto-econômicas, em termos do desempenho organizacional, quanto discriminatórias da diversidade, em termos das maneiras como os grupos sociais nas organizações lidam com a diversidade que a envolve.

Para confrontar essa reflexão teórica, um centro comercial, que identificaremos como Gama, foi escolhido como locus para o desenvolvimento de uma investigação empírica. A escolha se deve ao fato de que, ao longo de sua história, o espaço tem congregado diferentes grupos sociais em torno de ofertas de consumo e lazer. Como as relações com essas ofertas afirmam estilos de vida e emanam elementos simbólicos, elas têm o potencial de forjar a construção de representações sociais sobre os próprios grupos por parte dos membros organizacionais. Primeiramente, o lugar foi frequentado por um grupo da classe média dita intelectualizada de Porto Alegre, que compartilhou o espaço com um segundo grupo, composto por homossexuais, identificados como maduros, intelectualizados e com elevado poder aquisitivo. Com o tempo, o espaço do centro comercial passou a ser caracterizado enquanto território com um vínculo identitário social específico, o que Magnani (1996) chama de pedaço. O vínculo identificado no contexto em questão permitiu classificá-lo como pedaço gay, que atraiu outro grupo homossexual, mais jovem, de camadas populares e com menor poder aquisitivo. Esse novo grupo modificou, parcialmente, os usos e comportamentos instituídos para o espaço e seus frequentadores. Tais mudanças geraram embates entre grupos diversos e intensificaram o potencial negativo das representações circulantes, que se referiam aos primeiros frequentadores homossexuais.

Para a investigação proposta, a coleta de dados foi realizada por meio da técnica de observação participante (MALINOWSKI, 1978) e de 19 entrevistas não estruturadas. Com base nesses dados, foi realizada uma análise etnográfica em torno do seguinte problema de pesquisa: como ocorre a construção de sentidos de valoração negativa sobre grupos sociais específicos nas representações sociais circulantes entre pequenas organizações que compartilham espaços comerciais?

Para tratar desse problema de pesquisa, o artigo está estruturado da seguinte maneira. Nos próximos dois tópicos, discorremos sobre as contribuições teóricas a respeito das representações sociais e de como elas articulam qualificações positivas ou negativas de grupos sociais a partir dos protótipos que estabilizam as comunicações intersubjetivas e entre grupos. Em seguida, descrevemos a metodologia adotada, para depois discutirmos os achados de campo relacionados com o problema em questão. Por último, apresentamos as considerações finais do artigo.

Representações Sociais e Cultura

A representação social é uma estrutura de mediação entre o sujeito e o mundo, elaborada através de um trabalho de ação comunicativa que liga sujeitos a outros sujeitos e aos objetos à sua volta. Nesse sentido, conforme Jovchelovitch (2004, p. 22), pode-se dizer que a representação está imersa na ação comunicativa: "é a ação comunicativa que a forma, ao mesmo tempo em que forma em um mesmo e único processo, os participantes da ação comunicativa". À luz da história e da antropologia, Moscovici (2007, p. 38) afirma que as representações são "entidades sociais com uma vida própria, comunicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e em harmonia com o curso da vida; esvaindo-se apenas para emergir sob novas aparências".

De acordo com o autor, entre as ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam o conhecimento, a psicologia social deve se encarregar das razões e maneiras de agir relacionadas com o compartilhamento do conhecimento e a constituição de uma realidade comum, ou seja, de como as pessoas transformam ideias em práticas (MOSCOVICI, 2007). A partir dessa perspectiva, o conhecimento não é uma simples descrição do estado de coisas; ao contrário, o conhecimento é produzido por meio da interação e comunicação e sua expressão está sempre ligada aos interesses, necessidades e desejos humanos que encontram as vias da satisfação ou da frustração.

Essa concepção foi proposta por Moscovici (2007), no domínio da psicologia social, ao defender uma transformação da ideia durkheimiana de representação coletiva. Esta última foi elaborada sob as perspectivas teóricas da sociologia, como um conceito que indica concepções coletivas e homogêneas sobre o mundo. A partir dela, Moscovici (2007, p. 45) tratou as representações como um fenômeno dinâmico e construído em grupos sociais. A proposta do autor é focar essa dinâmica das representações sociais, ao investigar seus mecanismos internos, com ênfase nos processos de comunicação.

Nessa ênfase, as representações sociais são vistas como uma maneira específica de comunicar e compreender aquilo que já sabemos. Como explica Moscovici (2007), elas têm como objetivo abstrair sentido do mundo a partir de ideias e conceitos conhecidos, que podem introduzir ordem e orientar a percepção daquilo que não é conhecido, aproximando esses objetos do repertório de possibilidades cognitivas de cada sujeito. Na prática, conforme Sperber (2001, p. 93), isso significa que "só se pode representar o conteúdo de uma representação por meio de uma outra de conteúdo similar", de modo que "não se descreve o conteúdo de uma representação; ela é parafraseada, traduzida, resumida, desenvolvida; em resumo, interpretada".

Aqui se estabelece uma dinâmica na qual a representação não é a simples tentativa de reproduzir algo, mas uma produção baseada na capacidade de interpretação humana contextualizada nas inserções em grupos sociais. Como aponta Jodelet (2001), esse entendimento ofereceu uma alternativa às propostas baseadas na lógica estímulo-resposta. Nesta última, o sujeito é a instância mediadora entre o estímulo e a resposta, em uma compreensão concebida como processamento de informações que o habilita a perceber e reproduzir o mundo exatamente como ele é, e não como a produção de outro mundo oriunda das interpretações. A crítica de Moscovici (2007) ao sistema estímulo-resposta se dá por meio do esclarecimento de que a representação envolve, ao mesmo tempo, o estímulo e a resposta e que não há ruptura entre o universo externo e o universo interno do indivíduo ou do grupo social.

Ao conceber o indivíduo e o grupo social como imbricados no cotidiano, o foco da psicologia social, concordando-se com Jovchelovitch (2004, p. 21, grifo nosso), no lugar de se voltar para o indivíduo ou a sociedade, volta-se para uma "zona nebulosa e híbrida que comporta a relação entre os dois" e que corresponde ao domínio da cultura. É nessa zona mais subterrânea de mediações profundamente relacionadas que a autora posiciona as representações sociais, contrariando à lógica cartesiana – que subjaz tanto do behaviorismo como do cognitivismo. Essa atenção direcionada ao "entre" faz com que Jovchelovitch (2004) destaque a importância da integração nas representações sociais de dois elementos básicos em torno do sujeito: o outro e o objeto. O primeiro é o resultado da capacidade das pessoas se diferenciarem das outras, concebendo a existência de um outro diferente do seu eu. O segundo são manifestações, concretas ou não, circunscritas pela ação comunicativa. A autora afirma, em consonância com Bauer e Gaskel (1999), que a representação não pode prescindir de sujeitos em suas relações com objetos e com as condições socais necessárias para a existência dos objetos enquanto um conhecimento que vai muito além da simples descrição de um fato ou de uma manifestação.

No cenário dos estudos organizacionais, a articulação ontológica entre o sujeito, o outro e o objeto, no tocante às representações sociais, é foco de análise para estudos situados no paradigma interpretacionista (VERGARA; CALDAS, 2005). Conforme essa perspectiva, "as organizações são processos que surgem das ações intencionais das pessoas", que "interagem entre si na tentativa de dar sentido ao seu mundo" no contexto da realidade social, definida como "uma rede de representações complexas e subjetivas" (VERGARA; CALDAS, 2005, p. 67). Conforme Jeffcutt (1994), a tensão entre o sujeito, o outro e o objeto do conhecimento é inerente à análise da cultura organizacional em seus simbolismos, que se manifestam, de um lado, pela interpenetração entre a produção e a apreensão do conhecimento socialmente elaborado – o que o autor chama de "tensão entre a produção e o consumo do significado"; e, do outro lado, pela indecisão entre as duas posições e a complementaridade de ambos na inscrição da ordem – o que o autor chama de "tensão na consecução da persuasão e da sedução" (JEFFCUTT, 1994, p. 252) de sujeito em relação ao objeto, e vice versa. Deste modo, as clivagens interpretativas que emergem das diferenças culturais potencializam a distinção entre "nós" e "os outros", configurando e reconfigurando as categorias sujeito e objeto (JAIME JR, 2003).

Dentro de tal visão, a representação não é o ato único de um sujeito cuja ação dá forma à representação, pois "a materialidade do objeto-mundo é integral ao processo representacional e interage com o sujeito dando forma tanto quanto ele dá ao resultado representacional" (JOVCHELOVITCH, 2004, p. 23). Os saberes, portanto, devem ser vistos como forma dinâmica que emerge continuamente do contato entre sujeitos e objetos, sendo ambos capazes de conter as racionalidades necessárias à variedade de situações que caracterizam a experiência humana. "O saber é uma forma plástica e heterogênea, cuja racionalidade e lógica não se definem de uma forma transcendental, mas devem ser avaliadas em relação ao contexto psicossocial e cultural de uma comunidade" (JOVCHELOVITCH, 2004, p. 28).

Em termos empíricos, a implicação desse entendimento da dinâmica das representações sociais é que a investigação deve partir de um ponto em que os saberes aparentam ser "fechados" ou "acabados" para a busca, por evidenciar as relações fundamentais que constituem a zona "entre" o indivíduo e a sociedade na formação dos saberes dinâmicos, que compreende o domínio da cultura. Nos estudos organizacionais, o recurso teórico de se voltar para as representações sociais contribuiu para que determinados temas fossem tratados de uma maneira dinâmica, mediante o reconhecimento do papel dos grupos socais no processo de construção do cotidiano organizacional, com destaque para duas ênfases distintas: a) a representação como forma de conhecimento elaborado e partilhado através das manifestações sociais (JAIME JR 2002; CAVEDON; FACHIN, 2002; CAVEDON, 2004; 2008; PIMENTEL et al., 2011; SILVA; CARRIERI; JUNQUILHO, 2011) e b) a representação como uma realidade psicológica, afetiva, inserida no comportamento dos indivíduos em face do ambiente social (ANDRADE et al., 2002; CRAMER; PAULA NETO; SILVA, 2002; CAPELLE, et al., 2004; TOLFO; PICCININI, 2007; CORREA et al., 2007).

Este artigo se aproxima mais da primeira ênfase, ao contemplar a resistência cultural como geradora da diversidade que incita o conflito e propõe a busca do consenso baseado na ancoragem de conceitos instáveis, no âmbito de determinados grupos sociais. Voltamo-nos para essa busca, com foco na construção de um tipo específico de representações sociais, aquelas associadas aos julgamentos de valor sobre qualidades positivas ou negativas, que permitem depreciar grupos sociais específicos, como será discutido a seguir.

As Representações Sociais Positivas e Negativas e a Desvalorização de Grupos Sociais

Jodelet (2001) explica que a construção das novas representações sociais fica evidente quando os membros dos grupos sociais têm contato com objetos pertencentes a universos não familiares, para os quais não existem referências; então, abre-se espaço para uma qualificação social do objeto. Essa qualificação pode abarcar o discurso científico, o midiático, as imagens construídas no espaço público a respeito deles e acrescentar às representações sociais os adjetivos "positivo" ou "negativo", em um processo que reflete a visão moral dos grupos sociais (MOSCOVICI, 2007).

Dentre as contribuições de Moscovici para a compreensão da dinâmica na qual as representações se estabelecem a partir de grupos com construções sociais conflitantes, Vala (1997) destaca a identificação de dois tipos particulares de representações sociais: a) as polêmicas, ancoradas no conflito implícito ou explícito entre grupos sociais; e b) as emancipadas, ancoradas na relação de cooperação entre grupos sociais. A diferenciação das relações, conforme Cabecinhas (2004, p. 132), "pode ser compreendida enquanto diferenciações no tecido social", e é no quadro de referências oferecido por clivagens e estratificações que os indivíduos se autoposicionam e desenvolvem redes de relação, no interior das quais formam e transformam as representações sociais.

O pertencimento a um lugar social está, segundo Moscovici (2007), intimamente relacionada à ideia de identidade e à necessidade de nos vermos nos termos da diferença entre "nós" e "eles". Ainda de acordo com o mesmo autor, tais categorias de universos consensuais e reificados são próprias da nossa cultura. Em um universo reificado, conforme descrito pelo autor, a sociedade é vista como um sistema de diferentes papéis e classes, com membros desiguais. Essa desigualdade se dá mediante "competências adquiridas", capazes de determinar o grau de participação dos indivíduos "de acordo com o mérito" que classifica as pessoas nos termos de seus papeis sociais. Também, estamos submetidos a um sistema com regras e regulamentos que pressupõem comportamentos apropriados, fórmulas linguísticas de confrontação e posse de informações úteis ao contexto. Ao mesmo tempo, "cada situação contém uma ambiguidade potencial, uma vagueza" e, para assegurar a estabilidade, as ambiguidades recebem conotação negativa, tornam-se "obstáculos que devemos superar antes que qualquer coisa se torne clara, precisa, totalmente sem ambiguidade" (MOSCOVICI, 2007, p. 52).

As representações sociais são o caminho pelo qual tais obstáculos podem ser superados, pois elas tratam do domínio do conhecimento consensual, elaborado no campo social, à medida que as pessoas lidam com objetos e eventos intrigantes, formulando hipóteses e aprendendo causas culturais por intermédio das comunicações linguísticas (HEWSTONE, 2001). Como existem igualmente causas emocionais na fabricação das representações, além de disseminar certa cultura, "a comunicação serve de válvula para liberar os sentimentos disfóricos suscitados por situações coletivas ansiógenas ou mal toleradas" (JODELET, 2001, p. 31). Assim, o medo e a rejeição da alteridade, entre outros fatos relacionados com a dificuldade em lidar com a ambiguidade, originam informações ou acontecimentos fictícios, como ocorre frequentemente no meio urbano por ocasião de crises e conflitos intergrupais.

Nesse processo, quando as diferenças entre as pessoas são valoradas negativamente e associadas à identidade de um grupo, este tende a ser tratado de maneira preconceituosa, em virtude das representações que objetivam as expectativas normativas da sociedade. O pré-conceito, aliás, é um dos componentes principais do trabalho de ancoragem, que tem o propósito de tornar familiar o que é estranho para integrá-lo no universo ou pensamento pré-existente. No vocabulário próprio à teoria das representações sociais, o pré-conceito corresponde "a um modelo ou ao protótipo apropriado para representar a classe e uma espécie de amostra de fotos de todas as pessoas que supostamente pertencem a ela" (MOSCOVICI, 2007, p. 63). Nesse sentido, imputar um pré-conceito a alguém ou a alguma coisa corresponde a um exercício de categorização: é fazer com que o objeto sob escrutínio corresponda a algo estocado na nossa memória e estabelecer uma relação negativa ou positiva com ele.

Isso significa, nas palavras de Moscovici (2007, p. 64), que "ancorar implica também a prioridade do veredicto sobre o julgamento e do predicado sobre o sujeito". O protótipo é a justificativa dessa prioridade, pois favorece opiniões já feitas ao oferecer pouco espaço para que o indivíduo congnoscente perceba as possíveis diferenças que se apresentam entre alguém ou algo e a expectativa social elaborada sobre aquele tipo específico de alguém ou algo. A operação cognitiva por trás do protótipo se dá, geralmente, por uma entre duas maneiras: particularização ou generalização. Conforme o mesmo autor, ao procedermos particularizações, mantemos o objeto sob análise, como algo diferente do protótipo, enquanto tentamos descobrir que características, motivações ou atitudes o torna distinto. Ao procedermos generalizações, selecionamos uma característica aleatória que passa a responder por uma categoria, de modo que tal característica se torna co-extensiva a todos os membros dessa categoria e condiciona sua aceitação – caso seja valorada positivamente – ou rejeição – caso seja valorada negativamente (MOSCOVICI, 2007).

A positividade e a negatividade das representações levam a crer que os membros de grupos majoritários, ao categorizarem a si mesmos e aos grupos minoritários, apresentem uma representação positiva de si mesmos, em comparação com a representação negativa dos "outros". Todavia, a indesejabilidade social do preconceito fez com que, nos últimos tempos, emergisse um processo mais refinado de discriminação (MEERTENS; PETTIGREW, 1999). Em estudos da psicologia social sobre o racismo na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, foi constatado o favoritismo pelo próprio grupo, mas não a discriminação do grupo externo (PEDERSEN; WALKER, 1997; MOSCOVICI; PÉRES, 1999). No campo dos estudos organizacionais, mulheres, negros, pessoas com deficiência, imigrantes e homossexuais têm sido foco de estudos a respeito de representações sociais, expressas através do senso comum ou de políticas empresariais estratégicas (SIQUEIRA; ANDRADE, 2012) que apontam para a minimização dos efeitos causados pelo estigma ou por estereótipos relacionados ao valor negativo das representações sociais (SARAIVA; IRIGARAI, 2009; IRIGARAI; SARAIVA; CARRIERI, 2010).

Assim, as representações são construídas para acolher um elemento novo, valoradas positiva ou negativamente de acordo com os grupos sociais de onde tiram suas significações, e em saberes anteriores, reavivados por uma situação social particular. Estão, conforme Jodelet (2001), ligadas tanto a sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos, culturais ou a um estado de conhecimentos científicos, quanto à condição social e à esfera da experiência privada e afetiva dos indivíduos. Cabe ainda ressaltar que as instâncias institucionais e as redes de comunicação informais ou formais da mídia intervêm na sua elaboração, "abrindo caminho para processos de influência e até mesmo de manipulação social" (JODELET, 2001, p. 21).

A partir de outra forma de aproximação da temática das representações valoradas negativamente, estudos sobre comércios populares em duas grandes cidades brasileiras, empreendidos por Marques, Cavedon e Soilo (2010) e Pimentel et al. (2011), evidenciaram que as representações negativas podem ser manipuladas por agentes institucionais, pelo grupo majoritário ou pelo próprio grupo minoritário. Segundo esses autores, quando atividades comerciais comumente consideradas negativas, por serem menores ou mesmo ilegais, são renomeadas, se evidencia uma estratégia de ressignificação. Desta maneira, a negatividade das representações que pairam sobre os grupos associados às atividades não é necessariamente problematizada, e os esforços de ressignificação caminham mais para a suavização do que para a superação das barreiras virtuais que os excluem de certas práticas sociais.

Deve ficar claro que esse processo não ocorre de maneira homogênea no tocante aos diferentes grupos sociais e às organizações em torno das quais eles se relacionam, pois existem influências externas inseridas no cotidiano deles. Ferraz e Fischer (2001) evidenciam essa relação ao analisarem a projeção de representações para a construção de identidades em comunidades assistidas por ONGs. As autoras observaram que a aproximação entre as lideranças dessas ONGs e a identidade grupal é mediada por duas instâncias, quais sejam: o discurso das lideranças e as manifestações da mídia impressa local. Segundo as autoras, existem semelhanças e defasagens entre ambos, com reflexos diretos sobre os anseios das comunidades em questão e a construção das representações sociais.

As organizações incluem uma dinâmica semelhante, pois, como qualquer outro contexto social, a organização é um cenário no qual ocorre o embate entre grupos sociais e influências externas inseridas no contexto. Por essa via, se estabelece a depreciação de determinado grupo social nas organizações, em um processo que, dentro da dinâmica das representações sociais, tem como base aquelas valorações negativas associadas a dado grupo social em relação a outros grupos e à sociedade como um todo. É exatamente para essa dinâmica que o objetivo deste artigo está voltado, ao focar não uma, mas várias organizações em um centro comercial no qual seus membros vivenciam um espaço comum com clientes de diferentes grupos sociais. Portanto, conforme será detalhado a seguir, constitui-se um locus propício para a problematização em tela neste artigo: como ocorre a construção de sentidos de valoração negativa sobre grupos sociais específicos nas representações sociais circulantes entre pequenas organizações que compartilham espaços comerciais?

O Método de Pesquisa

A investigação empírica deste estudo deu-se aos moldes de um estudo etnográfico aplicado ao contexto dos estudos organizacionais, em consonância com a proposta de Cavedon (2008). A escolha deste método ocorreu em razão de certos procedimentos de pesquisa que lhe são peculiares – notadamente, a observação participante (MALINOWSKI, 1978) –, e que permitem que o pesquisador interprete as práticas culturais de um grupo do qual não faz parte e acesse os significados deles, não apenas em relação ao contexto social, mas principalmente em relação ao que tais significados podem dizer sobre o ser humano (LAPLANTINE, 1995).

O centro comercial Gama foi o locus da investigação empírica, pois, ao longo de sua trajetória, tem congregado grupos sociais distintos, o que inclui os membros das organizações localizadas no centro comercial, bem como grupos caracterizados de maneiras diversas, tais como a classe média dita intelectualizada, os homossexuais maduros e os homossexuais jovens. Em diferentes tempos ou simultaneamente, esses grupos vivenciaram o espaço do centro comercial em momentos de consumo e lazer em suas manifestações simbólicas, o que caracteriza uma diversidade propícia à construção de representações sociais negativas envolvendo pequenas organizações que dividem espaços comuns, foco deste estudo.

Ao entrar no centro comercial Gama pela primeira vez, ainda no final de outubro de 2007, pensamos em escolher um, dentre os quatorze estabelecimentos comerciais ali situados, para tomá-lo como objeto de pesquisa. Todavia, identificamos que as pequenas organizações que compartilham desse espaço comercial mantinham relações semelhantes com as práticas culturais dos seus usuários. Acabamos por assumir como campo o centro comercial em sua totalidade, tendo em vista compreender os processos nos quais o contato entre os grupos diversos, que vivenciam o espaço, constrói sentidos de valoração negativa baseados em atributos de certos grupos sociais que se incorporam à cultura dessas pequenas organizações. Optamos por abrir mão das peculiaridades dos possíveis objetos/sujeitos recortados naquele espaço e nos focamos, exatamente, nas relações entre esses objetos/sujeitos, nos vínculos que os conectam, e que os tornam uma unidade irredutível nos termos da nossa investigação. Tais vínculos são, para nós, as representações sociais que se constroem e circulam pelo espaço, e definem os grupos sociais que se encontram nesse espaço em função das características valoradas positiva ou negativamente pelos membros da organização – e que refletem, de forma mais ampla, as posições majoritárias a respeito dos grupos sociais sobre os quais pairam representações negativas.

A coleta de dados começou em outubro de 2007, quando se iniciaram visitas de reconhecimento ao centro comercial, que se tornaram frequentes a partir de março de 2008 e, assim, permaneceram até julho de 2008, com algumas visitas esporádicas nos meses de agosto e setembro de 2008. Foram ao todo 67 visitas ao campo, que permitiram a aproximação com lojistas e funcionários vinculados ao centro comercial Gama. A ausência de um setor administrativo e a dificuldade em localizar os responsáveis pela gestão da organização fez com que nossa aproximação com o campo se desse através da frequência e do consumo em cada uma das lojas, isoladamente. Deste modo, a observação participante ocorreu na condição de usuários do centro comercial Gama.

Além da observação, realizamos entrevistas com atores com perfis diversos, com o objetivo de captar a diversidade de discursos dos usuários do Centro Comercial Gama. No total, foram 19 entrevistas distribuídas da seguinte maneira: cinco lojistas; quatro funcionários; oito usuários; dois ex-usuários do espaço. As entrevistas, conduzidas ao longo de conversas informais que versaram sobre o centro comercial Gama e seus frequentadores, foram gravadas, transcritas na íntegra e depois analisadas em conjunto com os diários de campo referentes à observação participante. Esse procedimento de análise buscou captar as representações presentes nas falas dos entrevistados com o apoio de aspectos "extra discursivos, como as condições de produção e de recepção, bem como o universo social onde tais discursos são acionados" (CAVEDON, 2008, p. 111).

Para complementar as observações empíricas, consultamos a edição de 27 de novembro de 2005 do jornal Zero Hora que veiculou matéria sobre o comportamento dos frequentadores do centro comercial Gama. Embora a leitura desse único texto não seja suficiente para caracterizar a técnica da pesquisa documental, consideramos que as informações contidas na matéria auxiliaram na identificação de parte das noções de senso comum socialmente construídas a respeito do espaço pesquisado e de seus frequentadores, o que justifica a inclusão do material entre os dados de pesquisa. A consulta à referida reportagem justifica-se, ainda, como auxiliar à compreensão das formas de produção e circulação das representações sociais no referido contexto. Conforme Jodelet (2001), a mídia interfere na elaboração das representações, abrindo caminho a um processo de influência e, até mesmo, de manipulação social que conferem embasamento institucional a teorias espontâneas surgidas e divulgadas entre as opiniões de senso comum.

O Centro Comercial Gama

O Centro Comercial Gama, situado na cidade de Porto Alegre, é uma galeria a céu aberto, composta por lojas, bares, restaurantes e cinemas, caracterizada como uma alternativa ao consumo de massa típico dos shoppings centers. A diversidade dos grupos frequentadores e a sua alternância ao longo do tempo marcam períodos de apogeu e decadência dos empreendimentos ali instalados. Na análise dos dados, optamos por classificar esses frequentadores em três grupos distintos. O motivo dessa escolha foi a identificação de que suas identidades sociais refletiam três maneiras diferentes de sociabilidade, que poderiam ser circunscritas no domínio de três grupos, quais sejam: os heterossexuais pertencentes à classe média dita intelectualizada; os homossexuais maduros; e os homossexuais jovens.

O espaço era, originalmente, frequentado pela classe média porto-alegrense dita intelectualizada. Depois, passou a atrair um grupo específico de homossexuais, com comportamentos sociais e hábitos de consumo semelhantes aos da maioria heterossexual para a qual o ambiente foi em princípio concebido. No momento em que o centro comercial Gama passou a atrair o segundo grupo, foi possível identificá-lo como pedaço gay. Para essa identificação, seguimos as formulações teóricas de Magnani (1996, p. 13), que defende o uso do termo pedaço "quando um espaço – ou segmento dele assim demarcado – torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma determinada rede de relações". O pedaço diz respeito, especificamente, aos espaços privilegiados para práticas de lazer que não podem ser consideradas apenas em seu aspecto instrumental, passivo e individualizado, como a reposição de energia gasta no cotidiano. Isso porque, conforme o referido autor, a análise da categoria pedaço revela o estabelecimento e o reforço de laços de sociabilidade e a afirmação de elementos simbólicos que constituem a identidade social dos frequentadores do espaço.

Incentivados pelas representações sociais que passaram a caracterizar o centro comercial Gama enquanto pedaço gay, um grupo homossexual, mais jovem e de menor poder aquisitivo, também passou a vivenciar o espaço. Esse último grupo marcou o espaço com manifestações simbólicas em usos e comportamentos distintos daqueles até então vivenciados no centro comercial. Essa mudança teve como resultado embates entre grupos, que vivenciavam conjuntamente o espaço, e a intensificação da manifestação de representações sociais carregadas de significados negativos. A partir de então, representações sociais valoradas negativamente, em especial no tocante a homossexuais, passaram a ser manifestadas de maneira evidente no centro comercial. As influências das representações sociais e do potencial negativo a elas associadas ocorreu simultaneamente ao afastamento do grupo de homossexuais maduros e da classe média intelectualizada. Conforme relatos de informantes, essa movimentação marcou a queda de público no centro comercial e o seu declínio.

Os empreendimentos que compartilham espaço no centro comercial, atualmente, buscam recuperar o desempenho de anos anteriores e superar a crise que estão passando em virtude da falta de público. Nesse processo, o grupo de jovens homossexuais que frequenta o espaço tem sido alvo de pré-concepções negativas. É nesse contexto temporal que se iniciou a observação participante. A partir dela, foi possível identificar que lojistas e funcionários das pequenas organizações classificam o "frequentador" do espaço em dois tipos: o "bom frequentador" e o "mau frequentador".

A primeira categoria é constituída por sujeitos sociais relacionados com representações positivas, dos quais se pode esperar a conformidade com as normas de conduta no espaço organizacional, e garantias de retorno financeiro. Os "bons frequentadores" pertencem, notadamente, à classe média intelectualizada e ao grupo de homossexuais maduros que convergiu ao espaço. A segunda categoria é oposta a primeira e reúne aqueles que, supostamente, não contribuem com a consecução dos objetivos organizacionais e, por isso, não merecem ter acesso ao espaço em questão, na qual se enquadra o grupo de homossexuais mais jovens.

Os Grupos Frequentadores: representações sociais positivas e negativas

Os bons frequentadores

O centro comercial Gama é um espaço social e, enquanto tal, constitui-se sobre princípios de diferenciação ou distribuição de poder que classificam, desigualmente, os indivíduos (BOURDIEU, 2007) em termos de direitos de uso e apropriação simbólica. A orientação capitalista das organizações que compartilham esse espaço, aparentemente, faz com que a classificação fundamental sobre seus frequentadores se dê em função do volume de capital econômico de que estes dispõem para consumir no local. Isso explica parte do processo de construção das representações que pairam sobre o conjunto de usuários do espaço do centro comercial Gama, especificamente daquelas fortemente relacionadas à ideia do consumo. O "bom frequentador", que também pode ser definido como "cliente", de acordo com a fala dos informantes, é antes de tudo o indivíduo que colabora com o objetivo organizacional de auferir ganhos econômicos em troca de bens e serviços. Mas, na busca por aspectos familiares (MOSCOVICI, 2007) para referenciar a identidade dos freqüentadores, os lojistas e funcionários incluíram, além dos envolvimentos nas relações de consumo, aqueles inseridos nas representações sociais circulantes na sociedade a respeito dos diferentes grupos sociais.

Nessa ótica, o primeiro grupo a frequentar o espaço, a classe média dita intelectualizada, foi caracterizada como consumidores comuns. Com o tempo, um segundo grupo foi identificado pelos lojistas e funcionários, composto por homossexuais maduros, mas também classificados como consumidores comuns. Os hábitos de lazer e consumo dos dois grupos se assemelhavam e eles eram tratados de maneira semelhante. A despeito da diferença de orientação sexual, ambos foram caracterizados como "bons frequentadores". Eles foram identificados como dotados de capital econômico para consumir os bens e serviços oferecidos pelo espaço, assim como de capital simbólico (BOURDIEU, 2007), para transacionar com o espaço e participar da articulação das representações sociais construídas a respeito do mesmo.

A análise retrospectiva deste momento permitiu constatar que as conotações negativas das representações da homossexualidade presentes na sociedade, aparentemente, eram colocadas em segundo plano no espaço em questão. Conquanto a questão da orientação sexual permanecesse latente, o grupo homossexual maduro estava integrado ao espaço. O trecho de entrevista transcrito, realizada com um membro do grupo de homossexuais maduros ex-frequentadores do espaço, ilustra a análise: "Antigamente era mais elitizado. Quem ia lá era pra consumir realmente. Tinha muitos gays ali dentro, mas junto tinha muitas famílias. A convivência era boa, boa e sadia".

Ao longo do tempo, as expectativas a respeito desses grupos se confirmaram e os negócios localizados no centro comercial Gama lograram êxito. Isso significou, indiretamente, que as impressões de senso comum a respeito de grupos sociais foram tomadas como válidas no quadro de experiências que fundamenta os discursos e práticas organizacionais. A dinâmica das relações entre os membros organizacionais e os demais frequentadores do espaço confirmava as expectativas em relação a estes últimos. Essa articulação vai ao encontro da ideia de Moscovici (2007), da dinâmica na qual as representações sociais assumem o valor da verdade para aqueles que as constroem.

No espaço do centro comercial, os membros organizacionais passaram a manifestar elementos simbólicos das representações sociais em suas atividades cotidianas, reafirmando-as no espaço e perante a sociedade, conforme se percebe no excerto de diário de campo a seguir.

Algumas marcas no espaço sinalizam que, em outros tempos, os lojistas adotavam postura amigável em relação aos homossexuais e consideravam-nos seus clientes. Lê-se no letreiro da livraria, por exemplo, "livros de todos os gêneros" e as prateleiras dedicadas à literatura homoerótica levam a crer que a frase faz um trocadilho entre os gêneros literários e sexuais. No salão de cabeleireiros, a placa afixada na fachada exibe os símbolos de Vênus e Marte, que representam os sexos, o in-yang, que expressa à união de duas forças complementares.

Este movimento resultou na estruturação de padrões estéticos e comportamentais aceitáveis e esperados no espaço organizacional, com base nas subjetividades características dos grupos esperados como "clientes". Os discursos e comportamentos sedimentados em torno das expectativas sobre os frequentadores fixaram parâmetros para a classificação das pessoas no espaço organizacional, a partir da disposição para transacionar capital econômico: eles eram identificados como "bons frequentadores". Os valores e padrões estéticos que faziam sentido ao serem relacionados com o grupo de clientes da classe média intelectualizada, também, faziam sentido em relação ao grupo de homossexuais maduros. Dessa maneira, se configuravam os limites simbólicos para o reconhecimento dos "clientes" do local, o protótipo do "bom frequentador" estava estabelecido de forma genérica. Tais discursos e comportamentos estão de acordo com as propostas de Waiandt e Davel (2008) e Murta, Souza e Carrieri (2009) sobre a influência das representações construções e estratégias discursivas.

A associação entre o centro comercial Gama e esses dois grupos específicos estabeleceu as representações sociais sobre o espaço e seus frequentadores. Dentre elas, ganha especial notoriedade a ideia de "intelectualidade" exemplificada pela passagem de entrevista reproduzida a seguir, que capta a fala de um representante do grupo de homossexuais maduros, ex-frequentador do espaço:

Eu acho que todos os espaços culturais acabam sendo apropriados pelos homossexuais. E acho que a pessoa que gosta de cultura já tem a cabeça mais aberta. Lá era um espaço de cinema alternativo, então acabou atraindo essa população. É claro que o espaço talvez tenha sido pensado para atender aos heterossexuais, porque a gente vive numa sociedade heteronormativa. Mas, nesse caso, a aceitação dos gays era mais uma questão social.

Essa manifestação caracteriza, ao mesmo tempo, os frequentadores e o espaço, em um trabalho de construção mútua. A articulação se origina quando os primeiros empregam capital econômico e cultural para estabelecer vinculações simbólicas com o segundo. Por meio desses vínculos, com o tempo, o espaço torna-se o locus para a afirmação dos valores do grupo perante a sociedade. A associação à ideia de diversidade no tocante às pessoas e à imagem de "espaço cultural" construída no e sobre o centro comercial Gama fomentam a representação de "lugar moderno" e de "liberdade". O trecho de diário de campo transcrito a seguir revela essa ideia na fala de um lojista:

O lojista diz que o Gama era "uma Holanda dentro de Porto Alegre", que estrangeiros ou outras pessoas de fora do Rio Grande do Sul se encantavam com aquele ambiente de diversidade. Pelos corredores, mesas de bares e balcões de loja, as conversas versavam sobre arte e cultura, os frequentadores eram bem educados, escolarizados e elegantes, e todos conviviam bem, entre homossexuais e heterossexuais. "Isso aqui era um espaço de muita liberdade", diz ele.

Outros elementos que se vincularam às representações sociais sobre o espaço organizacional e seus frequentadores são as ideias de "tolerância", "aceitação" e "respeito" em relação às individualidades diferentes, que se referiam, sobretudo, aos homossexuais. A tolerância em relação aos homossexuais era, então, uma situação normativa, que lhes garantia "aceitação fantasma" e fundava as bases para a "normalidade fantasma" (GOFFMAN, 1988). No contexto em questão, as identidades homossexuais reveladas concordavam com os critérios de distribuição de poder da sociedade heteronormativas no tocante aos aspectos considerados relevantes para a relação comercial. Ou seja, os grupos homossexuais que frequentavam o espaço, naquele momento, se assumiam enquanto gays, mas agiam conforme os limites de padrões heteronormativos de comportamento e consumo do espaço societário em questão. As passagens de entrevistas realizadas com integrantes desse grupo legitimam tal entendimento:

Naquela época, a gente ia pro centro comercial Gama pra se encontrar, mas a coisa era muito sutil. As paqueras não passavam de trocas de olhar e conversas discretas, porque aquele era o comportamento do lugar. Nada de contatos mais íntimos. Isso ficava pra depois, quando o pessoal saía de lá e ia para algum bar ou boate gay da região [...]. Eu mesmo achava aquilo super normal, me sentia super aceito lá dentro. Mas também, eu não podia pensar, naquela época, nem em pegar na mão de outro cara em público.

Naquela época, a faixa etária de pessoas que frequentavam o centro comercial Gama era muito maior. Claro que tinha gays muito jovens, que nem eu na época, como gays mais velhos. Mas nada era fora dos padrões, era tudo dentro do que seria mais correto como o comportamento da rua [...]. Os comportamentos eram muito contidos, eram muito reservados. Rolava paquera e tudo, mas, no sentido geral, ninguém ficava nem se beijava [...]. Era o lugar de paquerar e, depois, ir pra outros lugares.

As relações sociais envolvendo a diversidade e a homossexualidade eram, a princípio, aceitas pelos membros organizacionais no espaço do centro comercial Gama. As organizações nas quais esses membros atuavam tiravam proveito das representações a elas relacionadas para atrair "clientes" interessados em desfrutar das ofertas materiais e simbólicas do espaço. Os reforços a esta imagem perante o senso comum foram constantes, até o momento em que um novo grupo, também relacionado com esses esforços, passou a frequentá-lo. Esse grupo tinha a homossexualidade como elo de associação com o espaço, mas era em parte desvinculado dos padrões comportamentais, estéticos, morais, culturais e de consumo dos "clientes" do espaço em questão.

Simultaneamente à inserção desse novo grupo, os "bons frequentadores" se veem desencorajados a convergir ao espaço, e se autoexcluem daquele locus. A inserção do novo grupo é marcada por dois aspectos básicos: uma ruptura com as normas de uso e convívio do espaço e com os objetivos econômicos das organizações nele estabelecidas; a valoração do grupo como "maus frequentadores" pelos lojistas e funcionários que vivenciam o espaço conjuntamente.

Os maus frequentadores

A aglomeração de um novo grupo social no espaço do centro comercial Gama implicou mudanças em relação aos usos pretendidos para o espaço. O reconhecimento dos novos frequentadores envolveu representações sociais valoradas negativamente, que os associavam à pobreza, à homossexualidade, à falta de respeito às normas sociais e à juventude; esta última, em seus aspectos considerados pejorativos, tais como, a imaturidade, a volubilidade e a transgressão. Essa caracterização da juventude merece especial atenção na análise em questão, pois foi articulada para diferenciar esse grupo dos homossexuais maduros que já eram aceitos no espaço. Os atributos negativos imputados à juventude passaram a ser usados como características válidas para distinguir e separar os "homossexuais maduros" e os "homossexuais jovens".

Diante do novo grupo de frequentadores, os membros organizacionais se valeram novamente da estratégia de buscar referências identitárias em aspectos de representações circulantes na sociedade, no chamado processo de familiarização destacado por Moscovici (2007). Os aspectos encontrados nessa busca diferenciaram o novo grupo daqueles que vivenciavam o espaço do centro comercial. Dessa maneira, é possível demarcar socialmente quem são os membros que compõem o grupo em desacordo com as expectativas normativas das pessoas que até então vivenciavam o espaço. Em consonância com estudos que relacionam a teoria das representações sociais com as estratégias como práticas sociais nas organizações (CAVEDON; FERRAZ, 2005; SILVA, CARRIERI; JUNQUILHO, 2011), percebemos que os cursos de ação escolhidos por parte dos membros das pequenas organizações estudadas estão atravessados pelo imaginário socialmente elaborado, circulante e reproduzido por meio das opiniões do senso comum. Esse imaginário interfere no âmbito das decisões tomadas por eles, no sentido de evitar que o grupo de homossexuais jovens, representados como "maus frequentadores", vivencie o espaço com as mesmas condições que os demais grupos, representados como "bons frequentadores".

Essa ruptura com a ordem estabelecida é um aspecto que surge diretamente relacionado com a associação do novo grupo de homossexuais às representações sociais vinculadas à juventude. Essa etapa de transição da infância para a vida adulta, de acordo com Gennep (1978), é interpretada como um período de margem, um tempo de mudanças e ajustamentos das capacidades no âmbito produtivo e reprodutivo. Para Knauth e Gonçalves (2006, p. 98), neste momento, a sociedade não concede aos jovens "funções, status e papéis plenos", embora os responsabilize por "uma série de modificações sociais". As autoras propõem, ainda, que, "a juventude é associada, na nossa cultura, a ideias como risco, perigo, rebeldia, falta de juízo, ênfase no presente e irresponsabilidade" (KNAUTH; GONÇALVES, 2006, p. 104).

Pais (2006) destaca as chamadas culturas performativas juvenis, as quais emergem de ilhas de dissidência em que são construídos certos cotidianos juvenis. As culturas juvenis são performativas porque os jovens nem sempre se enquadram nas culturas prescritas que a sociedade lhes impõe. No dizer de Becker (1977, p. 66), "os adolescentes descobrem-se cercados por regras acerca de questões que foram feitas por pessoas mais velhas e mais acomodadas", já que as pessoas mais novas não são consideradas" nem bastante sábias nem bastante responsáveis para elaborar regras adequadas para elas próprias".

Certos grupos jovens são, portanto, identificados como desviantes, e a condição de marginais em relação às normas sociais é estabelecida em torno de representações negativas. Essa identificação foi observada no centro comercial Gama, na medida em que o novo grupo de frequentadores, caracterizados como homossexuais, também foi associado às conotações negativas da juventude. Por exemplo, os respondentes destacaram que, no espaço do centro comercial, os jovens homossexuais manifestam sua sexualidade com comportamentos mais liberados em público do que os homossexuais maduros. Essa distinção comportamental entre os dois grupos homossexuais fica evidente nos trechos de entrevistas transcritos a seguir, de informantes homossexuais ex-frequentadores:

Esse público [gay] mais jovem era mais rebelde, mais inconsequente, vamos dizer assim. Mas também mais liberados na questão do preconceito, porque tem todo um fenômeno por traz disso [...]. Não é falar que as bichas de 40 anos, 50 anos, elas estavam todas no armário, né. Mas assim, poucas, se assumiam mesmo. E hoje, os adolescentes não tão nem aí.

Antes era tudo muito padrão e a coisa foi mudando e se liberando mais em termos de sexualidade, né. [...] Essa coisa super experimental, 'vale tudo', aquele ar da juventude de não ter vergonha de fazer as coisas. E, também, essa geração mais nova é uma geração muito diferente daquela que era o modelo vigente até então. [...] E a juventude veio com tudo. Eu acho que é uma nova geração que vem questionando muita coisa que durante muito tempo ficou silenciada.

Ao longo da formação das gerações mais jovens, essas novas formas fluidas de contatos afetivos e sexuais parecem estar sendo difusamente amalgamadas ao estilo de vida urbano e moderno, um processo que, como destaca Eugênio (2006), dilui balizadores normativos óbvios e mistura discursos. As manifestações identificadas no espaço do centro comercial se enquadram nesse entendimento teórico e refletem o surgimento de novas formas de representação sobre os desejos e afetos dos jovens e as fronteiras do gênero. Fica evidente que no espaço investigado os homossexuais jovens estabeleceram um contexto para a vivência de afetividades e erotismos "politicamente desengajados, alimentados pela ideologia frouxa e não formulada do just for fun" (EUGÊNIO, 2006, p. 169).

Entretanto, como o espaço no qual vivenciam esse contexto não é exclusivo dos homossexuais jovens, suas construções sociais entram em confronto com os limites estabelecidos por construções sociais anteriores, em torno dos outros grupos. Ao extrapolar esses limites, o novo grupo recebe como resposta a associação com representações negativas, articuladas a partir de características possíveis de distingui-los em relação aos demais. O trecho de entrevista a seguir evidencia essa articulação no senso comum manifestado por uma ex-frequentadora, inserida no grupo da classe média dita intelectualizada:

Eles se espalharam, perderam os limites, perderam a noção do que é uma convivência normal em sociedade. Não dava mais pra ir aos fins de semana e levar a família. O centro comercial Gama era muito bom, sem dúvida, mas perdeu o encanto pra mim porque não sou obrigada a conviver com certas coisas que não são normais.

Por esse processo de construção, estabeleceu-se o senso comum, ou seja, a verdade para um dado grupo social, de que os jovens que frequentam o centro comercial são imorais, pobres, arruaceiros, e o seu comportamento interpretado enquanto agressão à sociedade normal. Esses aspectos relacionados com as representações sociais sobre os jovens ficaram evidentes ao longo das manifestações dos respondentes e foram explicitadas publicamente em um trecho da reportagem "O conflito no beco da tolerância", publicada em 27 de novembro de 2005, no jornal Zero Hora:

Os retirantes do preconceito: Jovens em revoada migram de um lugar para outro da cidade sem antecipar explicações. É assim em qualquer parte do mundo. Mas a migração de jovens da periferia de Porto Alegre para o Gama tem as feições de um fenômeno mais complexo. São gays e lésbicas adolescentes e pobres, que se acomodam [num espaço de] classe média, dispostos a desfrutar de uma ilha acolhedora em todas as diversidades (MENDEZ, 2005, p. 7b. Grifos nossos).

Durante a observação participante foi possível verificar que os jovens homossexuais eram diversos em termos de segmentação social, o que vai de encontro à ideia, presente na representação social sobre o grupo, de que se trata de um conjunto homogêneo de pessoas, com características valoradas negativamente. Por exemplo, o estigma da pobreza torna-se preponderante apesar dos diferentes níveis de renda dos membros do grupo. Nesse sentido, na vivência durante a observação no campo, ficou evidente que a disposição de parte dos membros do grupo para consumir é subestimada pelos membros organizacionais no centro comercial Gama. O trecho de diário de campo apresentado a seguir demonstra que, independente da classe social e do potencial consumidor, os homossexuais jovens experimentam restrições e constrangimentos no espaço em questão:

"Eles nem sabem quem a gente é, se a gente tem dinheiro ou não, se a gente vai comprar ou não, mas é só entrar numa loja... Quer dizer, nem precisa entrar, é só parar na frente de uma loja que o segurança já chega junto", disse a jovem em tom de indignação.

Esse comportamento dos membros organizacionais surgiu associado a outras marcas negativas, comumente, relacionadas à representação social da pobreza, tais como: "a relação entre vadiagem / ociosidade / indolência e pobreza, bem como entre pobreza e periculosidade / violência e criminalidade" (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005, p. 7). Nesse sentido, a presença do grupo de homossexuais jovens no espaço do centro comercial foi apresentada pelos membros organizacionais como origem de insegurança para os clientes habituais e as organizações. Essa presença justificou a instalação de equipamentos de segurança eletrônica, a contratação de empresa de segurança privada e a alteração do espaço físico, com o objetivo de eliminar os lugares de permanência sem consumo. Além disso, a Brigada Militar (polícia militar do Estado) passou a ser acionada pelos membros organizacionais nos dias de maior afluência do grupo de homossexuais jovens, mesmo sem haver ocorrências policiais que justificassem a mobilização da polícia. As passagens de diário de campo transcritas abaixo revelam essa situação.

Sob a alegação de que os jovens brigam, quebram garrafas e agridem verbalmente os clientes do Gama, a segurança é reforçada quando os jovens comparecem. Nesses dias, os banheiros têm acesso controlado por funcionários que selecionam quem pode entrar e qual é o tempo de permanência. Os bancos localizados nos corredores e pátio interno são retirados nessas ocasiões. Ainda que a suposta insegurança se instale apenas nos dias de movimento jovem, algumas lojas muniram-se de sensores antifurto e o espaço comum do centro comercial passou a ser permanentemente monitorado por câmeras de segurança posicionadas em lugares visíveis, acompanhadas de um cartaz chamativo que avisa: os frequentadores estão sendo filmados "para a própria segurança".

O carro da Brigada Militar para em frente ao Gama e dois policiais descem com armas na cintura e cassetetes nas mãos. Imediatamente, um clima de hostilidade se instaura na rua onde, até então, jovens conversavam animadamente. Intimidadas, muitas pessoas tomam a iniciativa de "circular" e procurar um lugar mais amigável na vizinhança. Quem permanece na rua é obrigado a fazer o mesmo quando os policiais em ronda agitam os cassetetes no ar, numa atitude ostensiva que tem o intuito de dispersar a aglomeração.

Essas ações no centro comercial Gama vão ao encontro daquilo que Goffman (2010, p. 21) analisa sobre os comportamentos em locais públicos. De acordo com o referido autor, existem certos locais onde as pessoas estigmatizadas são explicitamente banidas, com vistas a tornar claros os regramentos de exclusão ali vigentes. Para que o indivíduo possa desfrutar da estada naquele lugar, há que corresponder às expectativas elaboradas a respeito de determinada identidade social. No caso dos homossexuais jovens, a identidade social da qual eles se aproximam se diferencia da desejada pelos membros organizacionais no espaço do centro comercial.

Isso ocorre uma vez que os homossexuais jovens optaram por vivenciar aquele espaço em vez de se recolherem a espaços de segregação de estigmatizados, identificados como guetos gays. Conforme definição de Wacquant (2004, p. 157), "o gueto é um meio socioorganizacional que usa o espaço físico com o fim de conciliar dois objetivos antinômicos: maximizar os lucros materiais extraídos de um grupo visto como pervertido e perversor, e minimizar o contato íntimo com seus membros, a fim de evitar a ameaça de corrosão simbólica e de contágio". A lógica do gueto é constituída de quatro elementos: o estigma, o limite, o confinamento espacial e o encapsulamento institucional. Em outras palavras, os frequentadores do gueto são percebidos como pessoas portadoras de algum tipo de estigma em razão do qual devem ser isolados do contato da sociedade dita normal

Nesse embate, o grupo de homossexuais jovens é acusado de "agredir" com seus comportamentos os lojistas, funcionários e clientes do centro comercial Gama, ao mesmo tempo, os membros do grupo sentem-se igualmente agredidos ao terem o acesso dificultado ou ao serem maltratados no espaço. Essa agressão mútua envolve obstáculos para que ambos possam usufruir dos benefícios simbólicos que o consumo e a presença no espaço poderiam lhes oferecer, o que gera um espiral de ressentimentos e manifestações concretas de desrespeito mútuo. Os jovens têm consciência a respeito dos transtornos que causam ao espaço, mas culpam os lojistas e funcionários do centro comercial por ter originado o problema. Isso transparece nas passagens de diário de campo reproduzidas a seguir:

Quando perguntados se as pessoas que frequentam o centro comercial Gama[...] sofrem algum tipo de preconceito, obtivemos respostas como: "Sim, não entro no centro comercial Gama por ser gay"; "Sim, eles têm preconceito em relação à nossa sexualidade"; "Sim, o centro comercial Gama mudou muito. O maior preconceito é não permitir que as pessoas entrem"; "Sim, e nós aqui agredimos por sermos agredidos".

"Eu quero mais é que esse lugar [o centro comercial Gama] vá a falência", disse o rapaz. "Por tudo o que eles já fizeram e continuam fazendo".

O processo que levou a esse conflito é marcado por envolver novas construções referentes a um espaço e às organizações que dele compartilham, em uma dinâmica própria, ainda que relacionada com uma dinâmica mais ampla: a das mudanças na sociedade. Por exemplo, a dinâmica social brasileira comporta, na atualidade, várias paradas gays. Elas contam com o apoio do Estado e de diversas instituições da sociedade, com o intuito, entre outros, de manifestar a conquista de espaço, os interesses homossexuais e a necessidade de tolerância quanto à diversidade. Mas essas manifestações servem, também, aos grupos interessados em diferenciar e relacionar as manifestações homossexuais com representações negativas, que permitem depreciar o outro grupo, o que legitima a restrição de seu acesso a espaços específicos, e, ao mesmo tempo, reforça o potencial negativo da representação, na medida em que a articula explicitamente.

Os dois usos foram observados no espaço do centro comercial Gama. O primeiro surge, mesmo que indiretamente, enquanto o grupo de homossexuais maduros frequentou o centro comercial. Já o segundo fica evidente nas reações à inserção do grupo de homossexuais jovens no espaço, discutidas ao longo deste tópico. Observamos aqui uma dialética construída a partir da convivência de grupos diversos no espaço do centro comercial. Nessa convivência, são construídos sentidos negativos, articulados como pré-concepções, e que se sustentam em representações sociais que vêm da sociedade como um todo. Na medida em que tais construções fazem parte da cultura de membros organizacionais que compartilham um espaço organizacional, como o centro comercial Gama, elas interferem diretamente na maneira desses membros lidarem com os diversos grupos que vivenciam o espaço e vice versa. Portanto, cabe refletir sobre esse processo e seus impactos para as pessoas e as organizações.

Considerações Finais

O espaço compartilhado por pequenas organizações, como no caso do centro comercial Gama, está inserido em um contexto socioeconômico-cultural-histórico mais amplo, que vincula a espacialidade a um conjunto de outros códigos simbólicos contidos nas interações que os membros organizacionais travam com outros grupos sociais. Dentro desse entendimento, o contexto estudado revela um processo no qual as experiências transmitidas pelo senso comum se articulam com as vivências organizacionais, e determinam posicionamentos em relação aos grupos sociais nas relações organizacionais. Essa dinâmica demarca práticas que transpassam níveis macro e microssociais (SILVA; CARRIERI; JUNQUILHO, 2011) e permitem compreender como as pessoas que compõem as organizações interagem com outros grupos sociais e vice versa, em função das construções e reconstruções das representações sociais que orientam suas ações.

A construção de representações leva as pessoas que compartilham o espaço comum, membros organizacionais ou não, a assumirem que certos grupos sociais correspondem a representações sociais negativas e que, por isso, é necessário restringir seus acessos e direitos no espaço social. As representações que pairam sobre eles os tornam desacreditáveis socialmente, excluídos de uma suposta normalidade, e tais informações são suficientes para basear as atitudes dos membros da organização. Ainda que os "maus frequentadores" possam ter a intenção de consumir e interagir no espaço em questão, são impostas, de antemão, restrições que inviabilizam seus acessos. Ao assumirem essa lógica, as pessoas que respondem pela organização pretendem resguardar o espaço de trocas simbólicas para os indivíduos incluídos na suposta normalidade, considerados "clientes" por excelência e identificados a partir dessas mesmas trocas.

Esse processo, observado no centro comercial Gama, vai ao encontro da proposição teórica desenvolvida neste artigo: ao compartilhar um espaço, as pessoas nas pequenas organizações se envolvem em um conjunto de redes de significações; a partir desse conjunto a dinâmica de construção e reconstrução das representações sociais, ao longo do tempo, é seguida pelo processo de construção de sentidos negativo sobre atributos de grupos sociais específicos; por sua vez, essa construção é direcionada a grupos possíveis de serem diferenciados por meio daquele conjunto de redes de significações que compõem o contexto cultural do espaço comum. Dentro dessa ótica, a apropriação simbólica de pessoas que vivenciam o espaço comum de pequenas organizações relaciona-se, diretamente, com a possibilidade dos seus membros lidarem com diferentes grupos sociais.

Pelo processo aqui discutido, as pequenas organizações que compartilham um espaço tanto podem se adaptar em parte às mudanças sociais (como no caso dos homossexuais maduros), quanto podem resistir a se adaptar a elas (como no caso dos homossexuais jovens). Em si, ele é apenas um processo pelo qual as pessoas nas pequenas organizações, ao compartilharem um mesmo espaço, definem os caminhos que elas adotam a partir das interações simbólicas com outros grupos sociais. Entretanto, a conotação positiva ou negativa envolvendo as representações relacionadas a esses sujeitos não deve ser ignorada. Novos estudos, realizados com base no processo aqui destacado, podem discutir implicações éticas da discriminação institucionalizada por parte de organizações privadas na sociedade brasileira, bem como é possível discutir as implicações mercadológicas a partir dessas construções discriminatórias. Possibilidades que ficam como sugestões para estudos futuros.

Artigo recebido em 02/08/2011.

Última versão recebida em 11/06/2012.

Artigo aprovado em 21/12/2012.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2011
  • Aceito
    21 Dez 2012
  • Revisado
    11 Jun 2012
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