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Possibilidades de dar sentido ao trabalho além do difundido pela lógica do Mainstream: um estudo com indivíduos que atuam no âmbito do movimento Hip Hop

Resumos

Este artigo foi movido pelo propósito de estudar o sentido que indivíduos envolvidos com a cultura Hip Hop atribuem ao trabalho. O referencial teórico explora os vários sentidos que o trabalho adquiriu, principalmente na contemporaneidade. Adotou-se uma abordagem qualitativa de investigação, optando-se pela história oral como método de pesquisa. A escolha dos dois indivíduos foi baseada no critério de informantes-chave. Utilizou-se a análise de conteúdo, comparando-se os dados obtidos com os ethos desenvolvidos por Bendassolli (2007; 2009) sobre o sentido do trabalho na sociedade contemporânea. O sentido do trabalho para os entrevistados fundamenta-se, sobretudo, no ethos romântico-expressivo. Porém, é importante deixar em evidência que no decorrer da vida, esses indivíduos circularam em mais de um ethos ou foram a eles expostos.

Trabalho; Sentido do trabalho; Narrativas; Identidade; hip hop


This article explores the meaning that individuals involved with the Hip Hop attach to their work. The theoretical framework explores the meanings that work has acquired through history, especially in contemporaneity. A qualitative approach for investigation was adopted, with oral history as the major method of research. The selection of interviewees was based on the key informants' criterion. The data was analyzed through content analysis. Results obtained from this analysis were compared with the ethos developed by Bendassoli (2007; 2009) about the meaning of work in contemporary society. The conclusion reached was that the meaning of work for the respondents is based on a romantic-expressive ethos. It is important to clarify that throughout life these individuals experienced or were exposed to more than one ethos.

Work; Meaning of work; Narratives; Identities; hip hop


Possibilidades de dar sentido ao trabalho além do difundido pela lógica do Mainstream: um estudo com indivíduos que atuam no âmbito do movimento Hip Hop

Danielle de Araújo BispoI; Débora Coutinho Paschoal DouradoII; Mariana Fernandes da Cunha Loureiro AmorimIII

IProfessora do Departamento de Agrotecnologia e Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Mestre em Administração pelo Programa de pós-graduação em Administração da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduada em Administração pela UFPE. E-mail: danielle.bispo@ufersa.edu.br

IIProfessora do Departamento de Ciências Administrativas e do Programa de pós-graduação em Administração na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutorado e mestrado concluídos na UFPE. Atualmente coordena o grupo de pesquisa Observatório da Realidade Organizacional em Pernambuco. E-mail: dcpdourado@gmail.com

IIIPesquisadora assistente no OSU Policy Analysis Laboratory; Mestranda no programa de políticas públicas da Oregon State University (OSU). Graduada em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: amorimm@onid.orst.edu

RESUMO

Este artigo foi movido pelo propósito de estudar o sentido que indivíduos envolvidos com a cultura Hip Hop atribuem ao trabalho. O referencial teórico explora os vários sentidos que o trabalho adquiriu, principalmente na contemporaneidade. Adotou-se uma abordagem qualitativa de investigação, optando-se pela história oral como método de pesquisa. A escolha dos dois indivíduos foi baseada no critério de informantes-chave. Utilizou-se a análise de conteúdo, comparando-se os dados obtidos com os ethos desenvolvidos por Bendassolli (2007; 2009) sobre o sentido do trabalho na sociedade contemporânea. O sentido do trabalho para os entrevistados fundamenta-se, sobretudo, no ethos romântico-expressivo. Porém, é importante deixar em evidência que no decorrer da vida, esses indivíduos circularam em mais de um ethos ou foram a eles expostos.

Palavras-chave: Trabalho. Sentido do trabalho. Narrativas. Identidade. hip hop.

ABSTRACT

This article explores the meaning that individuals involved with the Hip Hop attach to their work. The theoretical framework explores the meanings that work has acquired through history, especially in contemporaneity. A qualitative approach for investigation was adopted, with oral history as the major method of research. The selection of interviewees was based on the key informants' criterion. The data was analyzed through content analysis. Results obtained from this analysis were compared with the ethos developed by Bendassoli (2007; 2009) about the meaning of work in contemporary society. The conclusion reached was that the meaning of work for the respondents is based on a romantic-expressive ethos. It is important to clarify that throughout life these individuals experienced or were exposed to more than one ethos.

Key words: Work. Meaning of work. Narratives. Identities. hip hop.

Introdução

Este artigo foi movido pelo propósito de estudar o sentido que indivíduos envolvidos com a cultura atribuem ao trabalho. Explorar os possíveis sentidos do trabalho é uma forma de afirmar que ele não existe apenas tal como imagina a maioria das pessoas, ou seja, no sentido de emprego. Assim, fez-se um apanhado histórico para mostrar o sentido que o trabalho possuiu ao longo da história.

Buscou-se explorar uma lógica de trabalho diferente da lógica empresarial que prioriza, sobretudo a racionalidade econômica, o mainstream nos estudos em Administração. A curiosidade partiu dos seguintes pressupostos: (1) existiam alternativas à organização do trabalho nos moldes empresarial, e (2) essas alternativas podiam estar presentes nas atividades enquadradas no âmbito da cultura.

O passo seguinte consistiu em determinar qual grupo seria o foco desse estudo. A ideia era encontrar indivíduos que trabalhavam com atividades culturais e o mais importante: que conseguissem se manter com o trabalho que desenvolviam. Após algumas investigações, sobretudo na internet, considerou-se o Movimento Hip Hop como um lócus fértil para a investigação de práticas de trabalho constituídas em bases não empresariais.

Esta constatação surgiu, em parte, devido às informações que existiam sobre um movimento denominado Rede de Resistência Solidária. Esta Rede, apesar de englobar grupos de diferentes cidades, surgiu em Recife, capital do estado de Pernambuco, nordeste brasileiro. A cidade, caracterizada por sua efervescência cultural, possui um contexto sócio-econômico restritivo, de grande concentração de renda, desorganização urbana e índice de desenvolvimento humano médio (IDH 0,797), segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil de 2003.

A Rede, até onde se sabe, nasceu em 2005, através de um evento conhecido como "Mutirão do Grafite", uma ação de pintura e diálogo através da arte nas comunidades. No mutirão, vários coletivos que englobam artistas tais como grafiteiros, se reúnem para pintar, tocar e dançar nas comunidades. Outra ação consistia em pensar o trabalho e a produção de forma coletiva, servindo às comunidades dos grupos participantes da Rede, como afirma Guimarães (2007).

Após conhecer melhor a Rede e conversar com alguns integrantes, percebeu-se que a ação citada anteriormente, a produção de forma coletiva, não teve o êxito desejado. Porém, isso não impediu que alguns grupos continuassem produzindo e que o mutirão reunisse os integrantes da Rede no último domingo de cada mês para pintar as paredes das comunidades.

Apesar da sua importância e de ser citada em algumas partes deste artigo, a Rede e sua forma de organização não é o foco principal desse estudo. Priorizam-se os seus participantes, dentre eles diversos grafiteiros, dançarinos, MCs e DJs que trabalham com a cultura Hip Hop.

O Movimento, que surgiu em Nova York, na segunda metade do século XX, provavelmente no final da década de 70, tinha como um de seus objetivos reivindicar inclusão social. Nesta década, os Estados Unidos viviam uma reestruturação econômica que priorizava uma economia pós-industrial e desenvolvimentista, destinando as verbas federais para a cidade e deixando os investimentos sociais para segundo plano. Além disso, uma grande revolução tecnológica e novas divisões internacionais do trabalho tiveram impacto direto na oferta de trabalho urbano. (BARRETO, 2004)

O Hip Hop é composto por quatro elementos: o MC, o break, o DJ e o grafite. O MC compõe suas músicas apresentando um tom de resistência e crítica à sociedade urbana. Relata nas letras a exclusão social e o preconceito racial. A dança break, por sua vez, é caracterizada por movimentos que tentavam, no início do Movimento Hip Hop, reproduzir o corpo debilitado dos soldados que voltavam da Guerra do Vietnã. O DJ trabalha com a adaptação da música, procurando a batida certa dos sons para se harmonizar com as letras propostas, o que torna necessário conhecimento das raízes do Hip Hop e da música negra de um modo geral. Já o grafite nasce como uma forma de demarcar o território e reivindicar o espaço público como lugar de expressão de identidades. (MARTINS, 2005)

Apesar da proposta crítica que continua presente atualmente para participantes do Hip Hop, percebe-se que a cultura possui uma dimensão econômica. Barreto (2004) afirma que a produção musical do rap, por exemplo, movimenta o mercado de CDs vendidos tanto por grandes lojas como por produtores independentes. Alguns já enfatizam essa dimensão econômica do movimento como sendo importante para profissionalização dos grupos e para controle sobre o trabalho realizado e o que é produzido. Barreto (2004, p. 87) apresenta o depoimento de um integrante do Movimento, KL Jay, publicado no jornal Estação Hip Hop, de São Paulo:

Eu estou vendo de uma maneira positiva porque o movimento está crescendo. Os grupos estão se profissionalizando e encarando o hip hop como ele deve ser encarado, ou seja, como música, na parte do talento e como negócio também. Tipo a administração de uma empresa. Não me venha falar que o hip hop é apenas um movimento cultural que não é só isso. É um comércio também. As pessoas compram roupas, discos, shows etc. Então o dinheiro rola também. Alguns grupos estão começando a ter essa visão de empresa e de negócio [...]. (BARRETO, 2004, p. 87)

Esse depoimento ilustra como a racionalidade econômica tem se inserido em várias áreas que não são caracterizadas pelo imperativo econômico, como a área da cultura. Este fato, para Gorz (2003, p. 15), recebe a denominação de "economicizar", ou seja, "incluir no campo da economia o que dela antes era excluído". Este fenômeno vem ocorrendo de forma que o vocabulário próprio da administração vem se inserindo na argumentação desses indivíduos para justificar determinadas atitudes ou mesmo explicar a organização dos seus trabalhos.

Outros indivíduos resistem à adesão aos valores disseminados por esta lógica econômica no intuito de manter presente o tom de crítica e reivindicação, característicos da cultura Hip Hop. Em Recife, o Coletivo Êxito de Rua e o Coletivo Nova Geração, grupos participantes da Rede, formados por grafiteiros, dançarinos, MC's e DJ's, buscam organizar seus trabalhos de forma a garantir sustento financeiro e manter uma linha de questionamento e de crítica social.

Na Revista Salve S/A é possível encontrar uma passagem de autoria de Galo de Souza e Carol Sena (2010, p. 16), que confirma essa resistência:

Andando pela cidade, vemos outdoors e propagandas de todos os mercados de consumo [...] O 'produto', um sonho impossível para o cidadão de baixa renda. [...] Consumidores que compram e se matam para obter os produtos que pagam à liberdade da elite. Mas os grafiteiros [...] são a expressão livre, que longe das mãos do sistema, podem dizer algo [...] para mostrar outras possibilidades de romper a prisão em nossa comunidade. (SOUZA; SENA, 2010, p. 16)

No intuito de revelar que outras possibilidades para o trabalho são possíveis, para além da lógica econômica, esta pesquisa teve como objetivo principal analisar qual o sentido do trabalho para pessoas que vivem do Hip Hop. Assim, respondeu-se a seguinte questão investigativa: Qual o sentido do trabalho para indivíduos que atuam no Movimento Hip Hop na Rede de Resistência Solidária?

As seções que seguem objetivam fazer um apanhado geral sobre a história do trabalho e posteriormente sobre a construção da subjetividade dos indivíduos a partir do mesmo.

Referencial Teórico

Os sentidos do trabalho

Esta parte do artigo teve por objetivo mostrar que ao trabalho foram atribuídos sentidos diversos ao longo da história. Com base em alguns autores como Oliveira (1991), Albornoz (2008), Bendassolli (2007; 2009), Organista (2006) e Dejours (1992), fez-se uma busca das características do trabalho, mais precisamente do seu sentido, em momentos históricos diversos.

O trabalho é definido de forma diferente por vários autores. Albornoz (2008) diz que o trabalho está relacionado a uma finalidade e ao esforço. Oliveira (1991) o considera como uma atividade realizada pelo homem cujo objetivo é a produção de riqueza. Dejours (1992) estabelece uma conexão entre o trabalho e a vida mental dos trabalhadores. Antunes (2003) apresenta uma definição ontológica, afirmando que o trabalho é a fonte que originou o ser social, sendo a primeira atividade realizada pelo homem. Já Bendassolli (2009) apresenta um estudo sobre os significados do trabalho na atualidade e sua obra será explorada neste artigo, uma vez que aborda os significados do trabalho. Toma-se a palavra significado e sentido com a mesma significação neste artigo.

O fato é que o trabalho vem sendo tratado por diversos olhares e enfoques diferentes. Porém, todas essas visões foram complementares para o que pretende esta seção. Esperar a unificação de uma definição sobre trabalho não atende e nem seria capaz de dar conta da diversidade da temática. Para falar sobre os vários significados do trabalho, Bendassolli (2009, p. 2), afirma que o trabalho:

[...] foi sendo experienciado como fonte de dor, sofrimento; símbolo da degradação humana ou atividade de homens cativos, escravos; origem de exploração ou como exuberante forma de exploração de si mesmo e de conquista da dignidade. [...] O sentido do trabalho, independentemente da característica que tenha assumido, é obra de longa decantação histórica.

Através das leituras realizadas, não se percebeu muitas discussões sobre o sentido do trabalho no modo de produção primitivo. Se fosse possível inferir qual o sentido do trabalho naquela época provavelmente estaria associado à satisfação das necessidades essenciais como a de plantar e caçar. Segundo Oliveira (1991), neste momento histórico, ainda se configuravam as relações sociais básicas.

Para Bendassolli (2007), o trabalho só viria a tornar-se importante na Antiguidade Clássica com o fim da escravidão, pois até então, os gregos, por exemplo, achavam que o trabalho deveria ser realizado por escravos. Para os gregos, o trabalho ocupava lugar secundário. As atividades que incluíam a política e a filosofia, essas sim eram valorizadas. Neste momento ainda não cabe falar na definição do humano através do trabalho, como explica Bendassolli (2007, p. 37, grifo do autor):

[...] não podemos encontrar vestígios de uma 'identidade do trabalho' (a descrição privilegiada de si pelo trabalho) entre os gregos – pelo contrário, a descrição do ser não passava pelo trabalho, mas por sua vinculação a ideais éticos-políticos da vida do cidadão livre na polis.

Assim, para os gregos, os homens deveriam viver o ócio, como filósofos e políticos, ficando entregues a contemplação. (ALBORNOZ, 2008)

Na Idade Média, o trabalho era subordinado à religião. No início dessa época ele foi visto como punição para o pecado (ALBORNOZ, 2008), mas também estava a serviço da caridade, da saúde do corpo e da alma. (TILGHER, 1931; MILLS, 1956 apud BENDASSOLLI, 2007, p. 44) O trabalho era visto como um meio para se alcançar a salvação, mas o importante mesmo era cultivar os valores que levavam à graça de Deus.

No Renascimento, o trabalho é considerado uma atividade com valor em si mesmo, ou seja, não se deve buscar o sentido do trabalho fora dele, como ocorria na Antiguidade e na Idade Média. Para a tradição renascentista, o homem é o responsável por construir seu próprio destino e seu mundo sendo chamado de homo faber. Neste momento, pode-se falar em valorização do trabalho. "A ética implícita nessa tradição baseia-se no modelo do trabalho artesanal. Neste, o trabalhador e a obra são partes de um mesmo conjunto composto pelo humano como criador." (BENDASSOLLI, 2009, p. 17)

O trabalho veio a se tornar importante para definição da identidade dos indivíduos com o protestantismo. O protestantismo propôs uma solução mais individualizada para salvação. Calvino afirmava que ninguém estava seguro de sua própria salvação e o trabalho foi visto como meio para diminuir essa incerteza. (ANTHONY, 1977 apud BENDASSOLLI, 2007, p. 65) Lutero, Calvino e os puritanos consideravam o trabalho como uma forma importante de avaliar o estatuto moral do indivíduo. Segundo Bendassolli (2007, p. 68) no protestantismo há uma "compulsão a trabalhar, na medida em que o ócio carrega consigo um fardo de insuportável culpa."

Atualmente, muitas são as abordagens sobre o trabalho. Para Abornoz (2008, p. 25), o trabalho é hoje "um esforço coletivo, no contexto do mundo industrial, na era da automação". Cada vez mais se busca por um emprego nas empresas e os indivíduos ficam responsáveis por parte de um processo. Os trabalhadores, muitas vezes, ficam condicionados a assumir determinados papéis dentro da empresa para que possam permanecer no emprego. Segundo, Dejours (1992), há um choque entre o indivíduo, que possui sua personalidade, e a organização do trabalho atual, que tende a despersonalizar o indivíduo. Esse choque seria responsável por causar sofrimento aos indivíduos. Por isso, para alguns indivíduos o trabalho possui uma conotação ruim. Já para outros, pode está relacionado à sua realização pessoal. Assim, os indivíduos atribuem significados diversos ao trabalho na contemporaneidade. (BENDASSOLLI, 2007, 2009)

A próxima seção explora mais sobre os sentidos que o trabalho tem adquirido desde a modernidade até hoje.

Os ethos de Bendassolli: narrativas sobre o sentido do trabalho na contemporaneidade

Esta seção abarca conceitos trazidos em dois livros de Bendassolli: Trabalho e identidade em tempos sombrios (2007) e Psicologia e Trabalho (2009). O objetivo é apresentar a questão do trabalho na modernidade e na pós-modernidade e como isso interferiu na construção da subjetividade dos indivíduos e em como eles passaram a ver o trabalho.

Ao que parece a importância do trabalho para definição do humano foi criada pelos próprios homens na modernidade, nos séculos XVIII e XIX, do que teria resultado o "sujeito do trabalho".

O sujeito do trabalho é uma instância que abarca todas as experiências humanas pelo crivo do trabalho. Como forma ideal, ele preside à formação de todo indivíduo moderno – neste caso, como indivíduo do trabalho. Ou seja, o sujeito do trabalho apresentado por Marx é uma espécie de ponto de apoio para descrever quem somos: indivíduos que trabalham e cujo sentido da existência é em grande parte extraído deste. Ele constrói essa subjetividade a partir de uma nova valorização dada ao trabalho e a seu sentido na definição da existência humana. (BENDASSOLLI, 2009, p. 23)

Na Modernidade o sentido do trabalho era apresentado por meio de uma metanarrativa social fazendo com que as narrativas dos indivíduos dependessem fortemente daquela. Essa metanarrativa encontrava apoio na sociedade industrial, que salientava para os jovens como era importante o trabalho e pregava a centralidade econômica, moral, filosófica, ideológica e contratual do trabalho. (BENDASSOLLI, 2007) Dessa forma, o autor explica que:

Em um dado momento da história do ocidente o trabalho foi escolhido como sujeito. Nessa posição ele oferecia uma metanarrativa social sobre seu valor e sentido, seja para os indivíduos quanto para as instituições. Como sujeito, nesse sentido filosófico, o trabalho era a instância pela qual os indivíduos se tornavam quem eles eram. (BENDASSOLLI, 2007, p. 226, grifo do autor)

No século XX, o trabalho se tornou tema de grandes debates tais como cidadania, qualidade de vida e identidade. Muitas mudanças ocorreram, sobretudo no campo do emprego. Houve redução na quantidade de empregos, devido, muitas vezes, a inserção de tecnologia na produção; as pessoas passaram a esperar menos do trabalho, passando a construir suas identidades através de outras esferas da vida e não somente pelo trabalho, como ocorria na modernidade. (BENDASSOLLI, 2009)

Na segunda metade do século XX, o "sujeito do trabalho" enfraquece como elemento responsável pela definição da identidade do indivíduo. No livro Trabalho e identidade em tempos sombrios, Bendassolli (2007) reconhece esse enfraquecimento, mas insiste que o trabalho não desapareceu por completo. O que há de característico na pós-modernidade, para o autor, é sua ambiguidade devido à pluralidade de sentidos que o trabalho adquiriu, tornando difícil estabelecer uma relação direta entre ele e a construção da identidade. Assim, a identidade dos indivíduos não é definida unicamente através do trabalho: "é como se o trabalho deixasse de ser a única objetivação possível para o ser, sua única – ou mais privilegiada – forma de revelação." (BENDASSOLLI, 2007, p. 22)

Para melhor entender o enfraquecimento da relação trabalho-identidade, torna-se necessário um esclarecimento acerca do significado do conceito identidade. O estudo da identidade tornou-se alvo de investigação teórica e empírica nas últimas décadas do século XX. (BENDASSOLLI, 2009) A noção de identidade foi desenvolvida mais intensamente pela psicologia e sociologia que construíram o conceito baseando-se nos princípios do sujeito moderno, como continuidade e permanência, mostrando a necessidade de basear a identidade em referenciais sólidos. (BENDASSOLLI, 2007)

Para Bendassolli (2007), a identidade é definida como uma narrativa que o indivíduo constrói ao longo da vida. Esta narrativa deve ser coerente e tem por objetivo ajudar o indivíduo a organizar o sentido de sua existência. O autor apresenta cinco narrativas públicas que chama de ethos, sobre o sentido e o valor do trabalho para os indivíduos na atualidade. Os ethos são narrativas identitárias que funcionam como "estoques de interpretações e significados sobre o trabalho" (BENDASSOLLI, 2009, p. 29), onde os indivíduos constroem e explicam suas identidades tomando como base uma dessas narrativas ou mesmo mais de uma. A Figura 1 resume as principais características desses ethos:


Em relação ao ethos moral-disciplinar, este seria composto pelos resíduos da antiga ética protestante e por doutrinas moralistas tradicionais que defendem o dever de trabalhar. O trabalho tem a ver, neste caso, com responsabilidade e com a realização de tarefas, independentemente de trazerem ou não prazer. A identidade do indivíduo não está necessariamente relacionada com o trabalho que desenvolve e ele é visto pela sociedade como alguém que está cumprindo apenas sua obrigação. (BENSASSOLLI, 2007)

Já o ethos romântico-expressivo possui como característica principal o trabalho como um fim em si mesmo, ou seja, o trabalho é reconhecido pela forma como foi realizado, pelo produto final e não pelo salário ou prestígio.

[...] nesse ethos o trabalho é importante para a definição da identidade na medida em que ele é, por assim dizer, a identidade-em-construção, em plena atividade. O problema é que, na atualidade, isso pode ser dificultado, primeiro, pela dificuldade de alguém dedicar-se a um "dom", a um talento e a uma perícia (é preciso, hoje, fazer tudo ao mesmo tempo); segundo, pela voracidade consumista que atinge em cheio o núcleo deste ethos, redescrevendo o sentido e o valor do prazer e da satisfação dele decorrentes com a finalidade de pôr a roda do consumo e da economia de mercado em pleno funcionamento. (BENDASSOLLI, 2007, p. 237)

No ethos intrumental, o trabalho é visto em sua dimensão liberal, ou seja, como emprego, como troca, submetido à lógica do sistema capitalista. Possui três características: (1) a dimensão meritocrática do trabalho, sendo a meritocracia um sistema no qual a justiça advém do mérito, das qualidades dos indivíduos; (2) o trabalho como obtenção de renda, ou seja, deposita-se no trabalho uma centralidade capaz de proporcionar o consumo; (3) o trabalho como status, sendo o valor do indivíduo determinado por quanto ele ganha e pelo cargo que ocupa. Nesse ethos, o indivíduo não escolhe seu trabalho movido pela autorrealização, mas sim pelo desejo de status. (BENDASSOLLI, 2007)

Em relação ao ethos consumista, o trabalho é visto como meio para obtenção de satisfação:

[...] a identidade é pensada num circuito de consumo: assume-se uma identidade dependendo de quanto ela traga de visibilidade, status e prestígio, bem como de coerência com os ideais identificatórios do sujeito (ideais de consumo). [...] nesse ethos o prazer está em realizar alguma coisa por si mesmo, e não para o outro: alguém trabalha por si mesmo e por seus ideais, e não por uma ética coletiva ou ideal coletivo. No extremo, a preocupação é com o nível de renda e poder aquisitivo para permitir o acesso ao mercado de bens de consumo – ou então ao mercado de sensações. Quer dizer, o trabalho, neste ethos, é apenas um meio para a obtenção de prazer e da satisfação que ele traz. (BENDASSOLLI, 2007, p. 246-247, grifo do autor)

Por fim, o ethos gerencialista está ligado aos discursos do management ou gestão empresarial, difundidos pelos empreendedores e gurus da administração. Uma crença disseminada por esse ethos é a de que os indivíduos não devem mais buscar empregos, pois o trabalho não existe mais da forma como era antes, ou seja, com estabilidade. O conceito de emprego é substituído pelo de projeto. Trabalhar é ter um projeto pessoal. "Indivíduo Você S.A". é outra crença desse ethos e afirma que "o trabalho, a carreira, o sucesso bem como o fracasso, tudo depende do próprio indivíduo, que tem de se ver como uma empresa, como um empreendedor de si mesmo." (BENDASSOLLI, 2007, p. 252-253)

Bendassolli (2007) também afirma que nenhum dos ethos precisa ou seria capaz de dizer a verdade última sobre os indivíduos. Eles apenas funcionam como narrativas, oferecendo uma rede de crenças e desejos mais ou menos coerentes com a imagem que o indivíduo faz de si mesmo. Também é importante ressaltar que os indivíduos, na construção da identidade no trabalho, circulam em mais de um desses ethos ou são a eles expostos. Essa situação de exposição a vários ethos pode levar o indivíduo a um estado de insegurança ontológica. Insegurança ontológica para o autor "é uma situação em que o indivíduo não consegue justificar suas ações; não sabe por que as faz, e, mesmo quando sabe, não consegue reconhecer nisso um sentido, uma coerência." (BENDASSOLLI, 2007, p. 265) Uma das causas para insegurança ontológica está relacionada à divisão do trabalho, pois esta pode levar a um trabalho desprovido de significado.

Os ethos de Bendassoli apresentadas nesta parte do referencial serviram como categorias teóricas que viabilizaram o olhar sobre o fenômeno trabalho para integrantes do movimento Hip Hop da Rede de Resistência Solidária e inspiraram sua discussão.

Metodologia

Adotou-se uma abordagem qualitativa de investigação, uma vez que este tipo de abordagem melhor se ajusta a compreensão de fenômenos sociais tal como o trabalho e seu sentido. Esta pesquisa deve ser caracterizada como do tipo exploratório-descritiva, uma vez que pesquisas que investiguem o sentido do trabalho para indivíduos do campo da cultura, particularmente no Brasil, parecem ser pouco exploradas na literatura. (RICHARDSON, 1999) Também foram descritas as características do trabalho no Movimento Hip Hop.

Optou-se pela história oral como método de coleta de dados. Trata-se de um método biográfico que parte da premissa que a compreensão da individualidade de uma vida é uma forma de observar sua realidade social. Para Goldenberg (2000, p. 36), "cada indivíduo é uma síntese individualizada e ativa de uma sociedade". Assim, a história oral busca investigar os fatos e acontecimentos que se encontram registrados na memória de indivíduos de destaque na comunidade, sendo uma técnica de coleta de dados bem ampla. (MARCONI; LAKATOS, 2008) Investigaram-se, em janeiro de 2010, através desse método, dois indivíduos da Rede de Resistência Solidária: Galo, integrante do Coletivo Êxito de Rua; e Pixote, integrante do Coletivo Nova Geração.

Em fevereiro de 2011, ocorreu uma entrevista aberta com Galo. Como afirmam Boni e Quaresma (2005, p. 74), "as perguntas são respondidas dentro de uma conversação informal". Portanto, a inserção dos novos dados coletados tornou-se precisa, uma vez que possibilitou ampliar a análise dos dados e conhecimento e aprofundamento de algumas questões.

A escolha dos dois indivíduos foi baseada no critério de informantes-chave, ou seja, aqueles indivíduos que por suas características podem ter mais a falar sobre o fenômeno, de forma rica e aprofundada. Os informantes-chave compõem o tipo de pesquisado que possuem características distintivas ou que muito se aproximam ou que se distanciam do informante típico. (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 2002) Assim, ambos são sujeitos que trabalham com grafite e com música, desempenham papéis de liderança na comunidade em que estão inseridos e também em outras.

A análise dos dados se deu através da análise de conteúdo com o objetivo de fazer inferências acerca dos dados coletados. A produção de inferências em análise de conteúdo "tem um significado bastante explícito e pressupõe a comparação dos dados, obtidos mediante discursos e símbolos, com os pressupostos teóricos de diferentes concepções de mundo, de indivíduo e de sociedade." (FRANCO, 2007, p. 31) Assim, a análise de conteúdo se destina a inferir de maneira lógica informações que vão além do que foi manifestado na mensagem pelo seu produtor.

Compararam-se os dados obtidos com os ethos desenvolvidos por Bendassolli (2007, 2009) sobre o sentido do trabalho na sociedade contemporânea. Objetivou-se compreender a narrativa principal, como forma de identificar a dimensão que estes indivíduos concedem ao seu trabalho.

A figura a seguir contém o resumo explicativo dos métodos de coleta utilizados.

Figura 2


Análise dos dados

A análise dos dados a seguir, que partiu de coletas fundadas nos métodos biográficos e na técnica de história oral, não poderia usar de outro formato se não o da história para colocá-la a conversar com a teoria. Nesta seção, usou-se "as lentes" da teoria para enxergar a realidade que tomou relevo e forma. A história que será contada será a da vida e do trabalho de duas individualidades: Galo e Pixote.

O sentido do trabalho para Galo

Galo teve contato com a pichação quando era criança. Hoje, com pouco mais de 30 anos, trabalha com grafite, pinturas em telas e música, tirando dessas atividades o seu sustento. Criou em 2000 o grupo Coletivo Êxito de Rua e encontrou no rap uma forma de se expressar. Também foi o idealizador da Rede de Resistência Solidária, que nasceu em 2005. Todas as atividades que desenvolve são relacionadas aos elementos do hip hop:

Essa coisa do rap, essa coisa do Hip Hop que eu comecei a entender foi deixar um lugar assim no mundo pra mim também. Não que eu não tivesse um lugar, não que eu não pudesse continuar pichando, só que eu precisava de alguma coisa que eu não precisasse ficar escondido, que eu pudesse crescer com isso. E... o grafite me impulsionou isso, o rap me impulsionou a isso. (2010)

Sobre suas experiências de trabalho fora da cultura, ele afirma que quando criança vendeu jornal e trabalhou em uma farmácia entregando remédios. Chegou a trabalhar quase três meses numa empresa quando era mais velho, mas nunca teve carteira assinada. É possível perceber que sua narrativa não possui características do ethos instrumental, pois ele não se enxerga procurando um emprego: "Eu nunca procurei trabalho e nem sei se eu fosse procurar um trabalho, eu nem sei como eu ia procurar um trabalho. Chegar em um lugar, levar o currículo pra procurar o trabalho. Eu não me imagino fazendo isso assim" (2010). Pelo contrário, sua opinião sobre o mercado de trabalho formal revelou que seja pela dificuldade de ingresso no mercado de trabalho formal ou mesmo por resistência aos seus formato e valores, não quis submeter-se a ele. De alguma forma, sua avaliação sobre o emprego formal demonstra sua consciência a respeito:

Muitas poucas vagas de trabalho, o mercado é muito pequeno, o mercado é muito fechado, muito competitivo, muito desleal, injusto, um monte de coisa que quase todo mundo sabe assim. Mas opções são criadas e vão acontecendo porque existe espaço pra isso. Apesar de tudo que existe no mundo, as coisas que tem embasamento, que tem profundidade vão crescendo. As coisas que não tem, vão sumindo. (2010)

Sua consciência a respeito do ônus de se submeter ao emprego toma maior relevo quando fala que apenas trabalharia no mercado formal se fosse pelo filho dele. "[...] Se for pra meu filho, eu vou fazer qualquer coisa. Agora graças a Deus, não preciso. Eu sempre fui um vagabundo promissor" (2010). Ou seja, só mesmo o instinto de sobrevivência e de proteção familiar o faria sucumbir-se aquele trabalho que ele nega.

Surge, em sua história, a autoalcunha de "vagabundo promissor", quando ele quer dizer que nunca precisou se submeter ao trabalho formal, pois o fato de estar fora do mercado (pessoas comumente chamadas de vagabundas) nunca impediu que ele progredisse no trabalho que realizou e conseguisse obter o seu sustento. Foi neste ponto que o ethos moral-disciplinar, que enxerga o trabalho como uma obrigação, um papel social que o indivíduo deve desempenhar, também não foi percebido na fala de Galo.

Apesar do que já foi dito, Galo faz trabalhos para empresas, o que ele chama de "trabalho comercial". Em 2010, sua entrevista deixava transparecer que esse tipo de trabalho não o deixava entusiasmado: "Já fiz trabalho pra várias empresas [...] eu não guardo esse material. Eu nunca me interessei em guardar" (2010). Em 2011, já nota-se uma postura diferente daquela quando ao entrevistado é questionado em qual trabalho ele se realiza mais: no trabalho comercial ou no trabalho pra comunidade. Ele responde: "Eu me realizo em tudo, hoje em dia. Se eu num tiver realizado, eu procuro nem fazer, véi" (2011). Isso revela o sucumbir-se às exigências do mercado de trabalho como forma de também ganhar dinheiro, para obter o necessário à subsistência. Assim, o trabalho que ele desenvolve não parece ter por finalidade o prazer ilimitado pregado pelo ethos consumista. O dinheiro parece ser mais importante para o crescimento do seu trabalho do que para satisfação através do consumo. As passagens abaixo revelam a coexistência, portanto, da satisfação como trabalho que realiza e a necessidade do dinheiro para investir no próprio trabalho:

Se eu morrer hoje, eu acho que a minha missão tá feita. Estou fazendo o que eu preciso fazer. Tem pessoas que precisam ser pagas pra fazer alguma coisa. Eu preciso fazer o que eu preciso fazer. Se eu não fazer o que eu preciso fazer, eu acho que pra mim é mais problema do que eu fazer alguma coisa que alguém pagou pra fazer [...](2010).

Na rua eu faço um trabalho gigante de graça. Ali eu vou fazer um e vou cobrar, mas é o preço. O certo era cobrar mais caro. É que eles também não têm dinheiro. Não posso cobrar. Tenho que negociar sempre. Aí o cara vai, vai indo, vai ajeitando. Sempre tem coisa, sempre tem que gastar dinheiro com equipamento. Sempre tou comprando equipamento. Estúdio, essas coisas. (2011)

Ele afirma que só consegue trabalhar quando alguém gosta da sua arte. É possível compreender que o "trabalhar" que ele fala, neste caso, tem um sentido: receber remuneração. O outro sentido que o termo adquire é quando associado ao trabalho para a comunidade.

O que se percebe é que em 2010, Galo apresentava um discurso mais resistente à lógica do sistema, que falava mais da comunidade e do trabalho realizado principalmente para ela, para o coletivo.

Pra algumas pessoas que está estudando ou que ler é uma bonita história, mas pro resto do mundo é uma loucura, tipo você passar sua vida só se dedicando ao trabalho comunitário, sem tá trabalhando, sem tá querendo juntar nenhum bem, sem tá querendo ter carreira, sem tá se preocupando com nada. (2010)

Esse tom de resistência continua a existir em 2011, contudo pareceu mais associada a uma resistência individual, sem estar atrelada à mobilização política e social.

Hoje em dia uma coisa que eu acho assim que é uma diferença no hip hop, que o hip hop era uma coisa muito de grupo, e agora o hip hop é uma coisa muito individual. Não individual, porque a gente continua falando de nós, continua falando da rua, continua falando de tudo; mas é individual no sentido de cada pessoa, tipo cada pessoa já é responsável pelo seu trabalho completo. (2011)

Suas narrativas estão mais individualistas, provavelmente porque algumas ações que eram pra ser coletivas na Rede de Resistência Solidária, como a produção coletiva dos grupos, não deram certo ou mesmo pelo fato de Galo ser pai e querer ter mais estabilidade financeira. O ethos romântico-expressivo ainda parece ser o mais apropriado e com elementos presente na fala de Galo. Além disso, esse ethos já parte do pressuposto que o indivíduo se dedica a um dom, a uma perícia: "[...] eu comecei a viver do que eu fazia: vender camisas, pintar camisas pra loja de skate, camisa de rock, camisa de banda e comecei a tirar uns trocados com isso." (2010)

O entrevistado foi provocado durante a entrevista aberta pra responder se ele via seu trabalho como um negócio, uma vez que ele vende telas, faz shows, dá nota fiscal. Sua resposta mostra apenas que seu trabalho não é livre da relação com o mercado, mas que não nasceu dominado por esta lógica.

Eu não sou apaixonado pelo lucro do negócio, sou apaixonado por fazer a história. O negócio nasceu depois porque quando eu comecei a pintar, não existia negócio. Eu pintava de graça, apanhando e correndo. Hoje em dia eu pinto e recebo. Então o negócio nasceu depois. Eu nasci primeiro que o negócio, eu sou antes do negócio. Não consigo virar um administrador exemplar. Eu quero ser mais exemplar no nível de administração. [...] Acho que tem espaço pra todo mundo. Eu quero que o meu negócio tenha espaço. Eu quero crescer isso. Não quero ficar mais escondido só dentro da comunidade, fazendo só pela comunidade. Nem quero ficar só é... Eu quero que isso, a parte cresça também. Não quero que esteja só no nome do grupo. Agora eu tenho que botar as caras, eu não botava as caras. Era muito no nome do grupo. Quero que cada um bote as caras também, faça seu negócio. (2011)

Durante as duas coletas de dados com Galo, confirmou-se outra característica do ethos romântico-expressivo: a construção da identidade. Se hoje seu trabalho é individual em alguns pontos que não eram antes, como a produção coletiva que se tornou mais individual, é porque algumas ações foram mudando no seu contexto e na sua identidade. Em 2010, Galo falava: "[...] eu vivo muito pela minha fé, pelo que eu acredito, o que eu quero fazer. [...] às vezes eu vou fazendo as coisa, aí eu vou lendo o que vou fazendo e vou me entendendo." O entrevistado também chega a uma conclusão similar em 2011: "É melhor você ficar na calma, fazer seu trabalho consciente, estudar. Você tem a essência do que você quer fazer. Vai continuando."

Sobre o ethos gerencialista, na entrevista realizada em 2011 percebe-se um discurso muito difundido pela administração tanto no que diz respeito ao vocabulário como na ideia do indivíduo ser responsável por seu sucesso ou fracasso: "Esse rock meu tá ficando muito mais individual nesse sentido. [...] Se tudo der errado, é o seu nome. Se der certo, tá no seu nome."

Diante da história aqui relatada, foi possível notar algumas mudanças nas motivações de Galo quanto ao trabalho que realiza. De uma maneira geral, o trabalho tem forte base ideológica para este personagem. Contudo, este fundamento é colocado em cheque sua história de vida sofre uma inflexão e seus instintos humanos de sobrevivência e de proteção a sua espécie o fazem sucumbir-se à lógica econômica. Sua resistência, que antes tinha cunho significativamente político, reduz-se a sua dimensão individual.

O sentido do trabalho para Pixote

Pixote começou a pichar na infância dentro da própria comunidade. Somente a partir dos 16 anos teve contato com a pichação de rua e logo depois conheceu o grafite, através de Galo e Bonny, grafiteiros que moravam na mesma comunidade que ele na época. Atualmente, tem cerca de 30 anos e obtém seu sustento de atividades como o grafite, as oficinas de pintura e música. Criou um grupo em 2007, o Nova Geração, que possui um estúdio caseiro, onde também trabalha. Participa também da Rede de Resistência Solidária, embora reconheça que houve um enfraquecimento nas atividades que ela desenvolvia.

Teve experiências no mercado de trabalho formal ainda jovem, sobretudo porque casou cedo e precisou assumir papéis socialmente exigidos a um pai de família. Sobre seu primeiro emprego, ele afirma:

Como eu me casei muito cedo [...] eu tinha 18 anos, muito novo. Aí quando eu me casei, eu tinha que sustentar minha família, eu tinha que trabalhar. Eu era o homem da família, muito novo, mas era o homem. [...] a gente teve nosso primeiro filho, eu tinha 17 anos. [...] Eu tinha que sustentar naquela época minha família e eu comecei a trabalhar. O primeiro emprego de carteira assinada foi zelador. [...] Essa minha experiência durou um ano e dois meses. Essa de zelador. (2010)

Como se pode inferir no trecho anterior, o entrevistado, em determinado momento da sua vida, percebeu seu trabalho como uma obrigação, um papel que deveria ser desempenhado, participando, portanto, da significação do ethos moral-disciplinar. Inclusive, esse tipo de trabalho é denominado por ele de "trabalho forçado", pois fazia pela falta de alternativa, pela imposição da necessidade. Além disso, ele deixa evidente que ele não gostava desse trabalho, ou seja, sua identidade não estava associada a esse tipo de trabalho que era apenas um emprego, caracterizado no ethos instrumental.

Eu mesmo já fui forçado a trabalhar em outras coisas. Eu terminei só o ensino médio, não fiz faculdade. Mas aí eu já trabalhei de zelador, de estampador de camisa [...]. Já trabalhei como vendedor, várias coisas assim. Agora esses outros trabalhos, sinceramente, pra mim, era trabalho forçado porque era um trabalho que eu estava trabalhando simplesmente pra me manter. Mas não era o que eu gostava de fazer. (2010)

Em paralelo ao trabalho como zelador e posteriormente como funcionário de uma empresa de confecções, Pixote fez grafite por hobby. Foi demitido desta empresa onde pintava camisas. Depois de procurar outros empregos e não ter conseguido, decidiu que iria trabalhar por conta própria, pintando suas camisas. Com ajuda da sogra, que lhe cedeu um quarto na sua casa, ele iniciou seu próprio "negócio", que tinha a ver com pintura, como explica: "Eu dependia de mim, da minha correria, do meu trabalho. Mas tinha um lado negativo pra mim, eu trabalhava...eu acordava pra pintar e dormia pra pintar. Eu passava o dia todo pintando e ficava até de madrugada. Eu só parava mesmo quando não aguentava." (2010) Desta forma, ele tentou associar o formato do trabalho de negócio, ao trabalho que dá prazer. Coexiste desta forma, tanto o ethos gerencialista quanto o romântico-expressivo. No ethos gerencialista, como já mencionado anteriormente, o indivíduo se considera como uma empresa de si mesmo, sendo responsável pelo seu sucesso e pelo seu fracasso. Por isso, ele estabelecia seu "processo produtivo" de forma intensa e necessária à rentabilidade.

A oportunidade de trabalhar com o grafite surgiu através de uma professora que perguntou se ele já havia ministrado aulas de grafite.

Eu gostei da ideia arte-educação porque poderia trazer a minha autossustentabilidade e era uma coisa que eu gostava, eu sentia prazer em ver os meninos aprendendo uma coisa que foi passada por mim, uma coisa que eu aprendi sozinho. Ainda hoje eu sinto prazer em ver isso. [...] Qualquer atividade que eu ensine a uma criança, a um adolescente, eu me sinto, eu fico muito feliz quando eu vejo que ele tem vontade de aprender e ele aprende. Aí eu comecei a correr atrás dessa história. (2010)

Somente com esta oportunidade, Pixote parece se dedicar integralmente ao trabalho na cultura.

Enfim, eu busquei a autossustentabilidade através da arte-educação porque foi a maneira mais prazerosa que eu vi de trabalhar e pra mim, pelo menos na minha opinião, é um dinheiro fácil e honesto. Por que ele se torna fácil? Porque você não sente que tá trabalhando, você tem prazer em fazer. Você chega, quando olha pro relógio, diz: poxa já acabou...vou ter que ir embora. (2010)

Percebe-se que neste momento o trabalho já toma outra conotação, adquire outro sentido, estando intimamente ligado ao prazer e também a um dom, um talento. Dessa forma, o ethos romântico-expressivo explica qual o sentido do trabalho para Pixote, atualmente, na medida em que envolve suas emoções e tem apelo substantivo em sua relação.

Ele também faz "trabalho comercial", tal como Galo, para conseguir dinheiro. Isso revela mais uma vez como o trabalho com a cultura parece não conseguir ser livre da relação com o mercado, que de uma forma geral, impõe limites à sobrevivência aqueles que o resistem. Sobre a importância do dinheiro e a contrapartida financeira que tem com seu trabalho, ele afirma: "A gente não pensa em ser rico, não pensamos em esbanjar o dinheiro, mas a gente quer o necessário pra poder sobreviver, pelo menos, com dignidade." (2010) Dessa forma, embora a necessidade de recursos para sobreviver tenha sido evidenciada, isso não quer dizer que o ethos consumista está presente no seu discurso, uma vez que nesse ethos o indivíduo valoriza o poder aquisitivo que seu trabalho possa lhe gerar para o consumo.

Em suma, ainda que conviva com as exigências econômicas próprias de uma sociedade capitalista, Pixote pareceu se manter incólume ao processo contaminador do ethos instrumental. Conviveu com o emprego, mas preservou na sua arte e no seu envolvimento com a comunidade, elementos substantivos de sua relação com o trabalho.

Conclusão

O cruzamento dos vários ethos com os dados obtidos na pesquisa permitiu encontrar em qual narrativa os trabalhos realizados por Galo e Pixote se fundamentam e dessa forma entender o sentido do trabalho para eles.

Foi possível perceber que o trabalho realizado no âmbito da cultura Hip Hop não consegue ser livre da relação com o mercado. Porém, isso não significa que exista uma concordância por parte dos entrevistados com os valores divulgados pelo último e que o sentido do trabalho para esses indivíduos esteja dentro da lógica do mainstream.

O sentido do trabalho para Galo e Pixote fundamenta-se, sobretudo, no ethos romântico-expressivo. É importante deixar claro que, de várias formas, esses indivíduos são influenciados pelas outras narrativas. Em relação a Galo é possível perceber que o ethos gerencialista parece conviver com o ethos romântico-expressivo. Entretanto, a narrativa da arte e da cultura associada ao trabalho se impôs a narrativa que é associada ao negócio.

Já para Pixote, é possível perceber que houve experimentação de todas as narrativas, ou seja, ao longo da sua vida, o trabalho adquiriu sentidos diversos. Foi visto como obrigação (ethos moral-disciplinar), emprego (ethos instrumental) e responsabilidade pessoal (ethos gerencialista). Sobre o ethos consumista, ficou explícito que seu trabalho não é primeiramente associado ao consumo.

É interessante salientar que, talvez, no caso de uma nova entrevista com Pixote, encontrariam-se dados que revelassem características presentes nos valores difundidos pelo ethos gerencialista, uma vez que ações coletivas da Rede de Resistência Solidária não têm obtido êxito em suas ações, fato que tendem a influenciar no trabalho realizado pelos indivíduos estudados. Assim, concorda-se com Bendassolli (2007) quando ele afirma que no decorrer da vida, os indivíduos podem circular em mais de um desses ethos ou ficar a eles expostos.

O interesse em compreender a dimensão do trabalho para indivíduos de um movimento social surgiu como forma de explorar outras possibilidades de dar sentido ao trabalho além da difundida pela lógica do mainstream. Outras atividades, além do mercado de trabalho formal, podem garantir o sustento de indivíduos, como Galo e Pixote e, ao mesmo tempo, podem representar resistência ao processo de mercantilização.

Porém, não se pode obscurecer que o trabalho realizado por estes indivíduos, no âmbito de um movimento social, pode ser caracterizado, de acordo com alguns autores, como trabalho precarizado, na medida em que não possuem contrato de trabalho e seus direitos assegurados nas relações trabalhista. (ORGANISTA, 2006)

De uma forma geral, foi possível observar que o trabalho realizado no movimento social está imerso em uma dimensão cujas bases assentam-se no prazer, no lazer e na indistinção entre trabalho e vida. Portanto, as narrativas destes membros do Movimento Hip Hop serviram para anunciar que o trabalho que realizam também se distingue daquele próprio do modelo econômico.

Esta pesquisa finaliza com a provocação para que outras pesquisas sejam realizadas com indivíduos que atuem em organizações fundamentadas em lógicas diversas às das empresas, visando o anunciar de outras possibilidades de trabalho e vida e, principalmente, questionar as causas que determinam o trabalho das pessoas nos movimentos sociais.

Submissão: 27/3/2012

Aprovação: 20/11/2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2012
  • Aceito
    20 Nov 2012
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