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Uma Perspectiva Weberiana para a Governança de Empresas Familiares: Notas a Partir de um Estudo com Empresas Longevas

A Weberian Perspective on Family Firms’ Corporate Governance: a Study of Multigeneration Firms

Resumos

Num esforço para gerar uma perspectiva teórica mais rica sobre governança, esta pesquisa invoca a tipologia de Max Weber, da autoridade legítima, como meio de fornecer um contexto ou pano de fundo sobre o qual se possa reanalisar os mecanismos de governança usados nas empresas familiares no Brasil. Nosso foco especial se pauta na empresa familiar em virtude da percepção de que as empresas familiares são especialmente susceptíveis a misturar tipos de autoridade, especialmente à medida que envelhecem. Nossa principal contribuição ao arcabouço teórico existente sobre governança é o argumento de que a análise racional-legal inerente ao pensamento econômico precisa ser complementada por uma compreensão da dinâmica das autoridades tradicionais e carismáticas, que estão presentes, em certa medida, em toda e qualquer organização, mas, sobretudo, nas empresas familiares. Esta concepção pode nos ajudar a passar de uma visão economicista para uma visão pautada na sociologia econômica das organizações, ampliando assim a capacidade de compreensão, explicação e intervenção na realidade.

Governança Corporativa; Empresa Familiar; Max Weber; Autoridade; Empresas Longevas


The purpose of this study is to enrich the study of corporate governance in Brazilian family firms by including Max Weber’s typology of legitimate authority as a source of analytical insight. We emphasize governance in family firms because of the perception that they are more likely to mix different authority types into their governance, particularly as they age. The major implication of this theoretical study is that rational-legal analysis, inherent in economic thought, needs to be complemented by an understanding of the dynamics regarding traditional and charismatic authorities, which are present (to some extent) in all organizations, but particularly in family firms. This new perspective may help the field transition from a strictly economic to a more hybrid perspective that includes sociological thought. Through this process, it can expand the capacity for comprehension, explanation, and intervention in the reality.

Corporate Governance; Family Firm; Max Weber; Authority; Multigeneration Firms


Introdução

É largamente conhecido que as empresas familiares são motores importantes da atividade e crescimento econômico em todo o mundo. Especialmente no Brasil, muitas empresas influentes são controladas por famílias. Sabe-se também que a mortalidade da empresa familiar é bastante alta (SEBRAE, 2004SEBRAE-Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa.Fatores condicionantes e taxa de mortalidade de empresas de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004.; CRESCIMENTO…, 2007CRESCIMENTO e longevidade da empresa familiar. Relatório de Pesquisa, 2007. Disponível em: <www.prosperarebrasil.com.br>. Acesso em: 22 setembro 2015.
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), especialmente na medida em que passa de uma geração a outra, por causa de desafios gerenciais (CHITTOOR; DAS, 2007CHITTOOR, R.; DAS, R. Professionalization of management and sucession performance: a vital linkage. Family Business Review, v. 20, n. 1, p. 65-79, 2007.), de questões de governança (ÁLVARES; BERTUCCI; PIMENTEL, 2008ÁLVARES, E.; BERTUCCI, J. L. O.; PIMENTEL, T. D. Empresas familiares longevas: fatores que impactam sua continuidade. Belo Horizonte: Fundação Dom Cabral, 2008. Relatório de pesquisa RP0802. Disponível em: <http://www.fdc.org.br/pt/sala_conhecimento>. Acesso em: 22 setembro 2015.
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), relações intergeracionais (HANDLER, 1991HANDLER, W. C. Key interpersonal relationships of next-generation family members infamily firms. Journal of Small Business Management, v. 37, n. 3, p. 43-62, 1991.), de influências do fundador (SHIROKOVA; KNATKO, 2008SHIROKOVA, G.; KNATKO, D. Founder influences on the development of organizations: a comparison between founder and non-founder managed Russian firms. Journal of Business Economics and Management, v. 9, n. 2, p. 91-95, 2008.), da ascenção dos herdeiros e sucessão do fundador (LANSBERG, 1999LANSBERG, I. Succeeding generations. Boston: Harvard Business School Press, 1999.; PIMENTEL, 2011PIMENTEL, T. D. O estado da arte do desenvolvimento de modelos de sucessão em empresas familiares. Revista Inteligência Organizacional, v. 1, p. 76-96, 2011.), além das características sociodemográficas da família e da empresa (STAVROU, 1999STAVROU, E. T. Succession in family business: exploring the effects of demographic factors on off spring intentions to join and take over the business. Journal of Small Business Management, v. 37, n. 3, p. 43-61, 1999.), entre outros fatores.

Apesar desta importância, pouco se sabe sobre os processos da governança de empresas familiares que logram fazer a transição de uma geração a outra, sobretudo quando este processo se torna multigeracional (LAMBRECHT, 2005LAMBRECHT, J. Multigenerational transition in family business: a new explanatory model. Family Business Review, v. 18, n. 4, p. 267-282, 2005.), isto é, quando avança em várias gerações. Estudos recentes no Brasil têm caracterizado este tipo de empresa como ‘longeva’ (ÁLVARES; BERTUCCI; PIMENTEL, 2008ÁLVARES, E.; BERTUCCI, J. L. O.; PIMENTEL, T. D. Empresas familiares longevas: fatores que impactam sua continuidade. Belo Horizonte: Fundação Dom Cabral, 2008. Relatório de pesquisa RP0802. Disponível em: <http://www.fdc.org.br/pt/sala_conhecimento>. Acesso em: 22 setembro 2015.
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; PIMENTEL, 2011PIMENTEL, T. D. O estado da arte do desenvolvimento de modelos de sucessão em empresas familiares. Revista Inteligência Organizacional, v. 1, p. 76-96, 2011.; BERTUCCI et al., 2011BERTUCCI, O. J. L.; ÁLVARES, E. Á. S. C.; PINHEIRO, A. S.; PIMENTEL, T. D. A Governança corporativa como elemento mediador na empresa familiar.Faces: Revista de Administração, v. 10, p. 105-22, 2011.), sugerindo a habilidade destas empresas em desempenhar, ao longo do tempo, processos sucessórios exitosos.

Tomando este contexto como referência, a finalidade desta pesquisa é contribuir para o entendimento da empresa familiar brasileira, descrevendo regularidades que descobrimos nos mecanismos de governança de nove proeminentes empresas familiares no Brasil que sobreviveram a transição da primeira à terceira e/ou quarta geração. Embora a nossa pesquisa seja de natureza exploratória, ela é orientada pela tensão entre abordagens econômicas e sociológicas da governança – particularmente o contraste entre a teoria de agência e o pensamento Weberiano.

O principal resultado enunciado aqui é que as empresas familiares longevas empregam múltiplos tipos de autoridade na sua governança e que diferentes tipos de autoridade podem se apoiar mutuamente no desenvolvimento e sustentação de mecanismos eficazes de governança. Essa ideia foge do padrão das teorias existentes que tendem a reduzir os mecanismos de governança (e sua explicação) a uma leitura, em geral, economicista. Ao contrário disto, propomos aqui uma leitura ancorada na sociologia econômica das organizações e, a partir dela, sugerimos que não existe um único tipo de autoridade nem a um único mecanismo – ou mesmo um único conjunto de mecanismos –, tácito ou formal, capaz de sustentar as organizações no seu longo ciclo de vida.

A teoria da agência e governança corporativa

Segundo Davis (2005)DAVIS, G. F. New directions in corporate governance. Annual Review of Sociology, v. 31, p. 143-162, 2005., a preocupação central no campo da governança corporativa é assegurar aos investidores (principais) que seus investimentos estarão seguros contra a predação de terceiros, que têm legitimidade, mas teoricamente, acesso limitado à aplicação e manipulação de capital. Este interesse em conseguir fazer com que os atores se comportem de um determinado modo mesmo quando eles têm incentivos pessoais para se comportar de outra maneira é relacionado a um conjunto de áreas da pesquisa social, incluindo – mas, não apenas se limitando à – a economia, sociologia, psicologia, antropologia, direito, administração, política pública e criminologia (DAILY; DALDON; RAJAGOPOLAN, 2003DAILY, C. M.; DALDON, D. R., RAJAGOPOLAN, N. Governance through ownership: centuries of practice, decades of research. Academy of Management Journal, v. 46, p. 151-158, 2003.; DAVIS, 2005DAVIS, G. F. New directions in corporate governance. Annual Review of Sociology, v. 31, p. 143-162, 2005.; GOERGEN, 2012GOERGEN, M. International corporate governance. Harlow: Prentice Hall, 2012.).

Apesar de sua proximidade, ou mesmo parentesco com outros campos da pesquisa social, a base intelectual da maior parte da pesquisa em governança corporativa é, no entanto, bem mais estreita (SYTSE; SCHREUDER, 2013SYTSE, D. E.; SCHREUDER, H. Economic appraches to organizations. 5th ed. London: Pearson, 2013.). Ao lado de perspectivas como a da teoria dos públicos interessados (stakeholder theory) ou a da procuradoria (stewardship theory), a herança intelectual dos estudos de governança está confinada, principalmente, a dois subcampos da economia: 1) a teoria da agência e 2) a teoria dos custos de transação. Ambos vêem os mecanismos de governança como meio de impedir que as partes de uma transação sofram abuso e exploração nas mãos de parceiros comerciais, cujo papel na transação proporciona-lhes uma vantagem desigual. Em ambas as perspectivas os mecanismos de administração e de governança surgem em situações onde os mecanismos clássicos do mercado são ineficientes (COASE, 1937COASE, R. The nature of the firm. New York: Free Press, 1937.; EISENHARDT, 1989EISENHARDT, K. E. Agency theory: an assessment and review.Academy of Management Review, v. 14, n. 1, p. 57-74, 1989.; GOERGEN, 2012GOERGEN, M. International corporate governance. Harlow: Prentice Hall, 2012.;SYTSE; SCHREUDER, 2013SYTSE, D. E.; SCHREUDER, H. Economic appraches to organizations. 5th ed. London: Pearson, 2013.). Destas duas vertentes, a teoria de agência é sobremaneira a mais influente, respondendo pela esmagadora maioria de citações na literatura de governança corporativa.

No mercado, atores ofertam seus direitos, bens e serviços, cujos preços são determinados pela competição proposta pelos potenciais compradores. Em um cenário ideal, o mercado conteria múltiplos compradores e vendedores, cuja consciência a respeito dos demais vendedores e de suas ofertas levaria a uma situação em que um bem ou serviço atrairia tanto a demanda quanto o seu suprimento. Mercados eficientes são descentralizados e não restringidos pelos atores cuja dominação monopolística física, fiscal ou cultural intimida, ou de algum modo distorce, a geração e disseminação de lances (MARSHALL, 1961MARSHALL, A. Principles of economics. 2nd ed. London: Macmillan, 1961.).

Enquanto variações no modelo clássico de mercado funcionam razoavelmente bem para uma ampla variedade de trocas, surgem situações específicas em que as premissas descritas acima não sustentam e/ou simplesmente não funcionam nos mecanismos de mercado clássico. Uma situação problemática, por exemplo, é aquela em que uma pessoa, devido a sua escolha ou incapacidade, atribui a outro a capacidade de agir em seu nome. Em tal situação, enquanto um é visto como o ator ‘principal’ (pessoa demandante da representação); o outro se torna o ‘agente’ (pessoa selecionada para representar o demandante e desempenhar uma ação); então, o ‘principal’ entrega o controle de suas ações a terceiros e com isso se torna exposto à exploração e perda de seus ativos até que a violação seja descoberta e um novo e mais confiável ‘agente’ possa ser garantido (FAMA, 1980FAMA, E. Agency problems and the theory of the firm. Journal of Political Economy, v. 88, p. 288-307, 1980.;FAMA; JENSEN, 1983FAMA, E.; JENSEN, M. C. Separation of ownership and control. Journal of Law and Economics, v. 26, n. 2, p. 301-25, 1983.).

Sob condições como esta, teóricos da agência identificam um conjunto padrão de mecanismos que poderiam ajudar a mitigar as dificuldades que surgem destes casos de ‘falhas do mercado’. Os estudiosos da teoria da agência defendem basicamente 8 mecanismos (FLIGSTEIN, 1990FLIGSTEIN, N. The transformation of corporate control. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990., p. 68-9):

  1. Pagamento por operação (piece rates) – premia oagente com um pagamento fixo para cada operação padronizada bem-sucedida;

  2. Comissões – é similar ao piece rates, mas ao invés disso (do pagamento pela quantidade de operações), se baseia numa proporção de valor monetário obtido em cada operação;

  3. Participação nos lucros – é quando o funcionário recebe uma porcentagem dos lucros da empresa, consoante seu rendimento;

  4. Salário por eficiência (efficiency wages) – atrela a compensação a mecanismos mais sofisticados de mensuração daperformance, mas a lógica por trás do incentivo é similar à de piece rates ou comissões;

  5. Bônus por colocação (posting bond) – um bônus é uma quantia de dinheiro depositada pelo agente que retornará depois que o agente tiver cumprido satisfatoriamente suas responsabilidades;

  6. Medo de demissão (fear of firing) – presume que a relação de emprego existente entre o principal e o agente é suficientemente vantajosa para o agente, que desejará a continuidade desse status da relação empregatícia;

  7. Mercado de controle corporativo – a existência de capitalistas que vasculham o mercado de ações em busca de empresas mal administradas para serem adquiridas, e substituidos os gestores. É parecido com o medo de demissão descrito no item 6, porém representa uma ameaça coletiva, não individual;

  8. Mercado de trabalho para talento executivo – a competição pelo salário e reputação entre altos executivos deverá também incentivar o executivo agente a procurar aprimorar o desempenho da empresa se não diretamente os interesses do principal.

A implicação prática desta vertente teórica para a governança corporativa é que os principais formulem conselhos formais e independentes que apliquem os 8 mecanismos aos agentes (neste caso, os altos gestores) para minimizar a possível disjuntura entre os interesses do principal e agente.

Apesar do prestígio e influência da teoria de agência, pesquisas relacionando a existência, forma, e aplicação destes mecanismos pelos principais da empresa com o desempenho das empresas tem sido inconclusivas (ÁLVARES; BERTUCCI; PIMENTEL, 2008ÁLVARES, E.; BERTUCCI, J. L. O.; PIMENTEL, T. D. Empresas familiares longevas: fatores que impactam sua continuidade. Belo Horizonte: Fundação Dom Cabral, 2008. Relatório de pesquisa RP0802. Disponível em: <http://www.fdc.org.br/pt/sala_conhecimento>. Acesso em: 22 setembro 2015.
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). As medidas utilizadas como variáveis independentes nos estudos empíricos variam muito de uma pesquisa para outra, e quase nunca procuram operacionalizar todos os mecanismos sugeridos pela teoria de agência. De fato, os estudos normalmente incluem uma ou duas medidas claramente ligadas a teoria de agência e tipicamente se apoiam em avaliações formais de melhoras práticas promulgados por associações profissionais ou agencias governamentais – medidas que são formuladas sem nenhuma referência explícita às teorias acadêmicas (DAILY; DALDON; RAJAGOPOLAN, 2003DAILY, C. M.; DALDON, D. R., RAJAGOPOLAN, N. Governance through ownership: centuries of practice, decades of research. Academy of Management Journal, v. 46, p. 151-158, 2003.; GOERGEN, 2012GOERGEN, M. International corporate governance. Harlow: Prentice Hall, 2012.). Ademais, os próprios resultados empíricos dos estudos quantitativos exibem resultados mistos, ora detectando uma relação negativa ora positiva, ora nenhuma entre mecanismos formais de governança e o desempenho das empresas. Os estudos empíricos tampouco consideram a sobrevivência ou prosperidade das empresas estudadas através do tempo, focando metodologias transversais (GOERGEN, 2012GOERGEN, M. International corporate governance. Harlow: Prentice Hall, 2012.).

As pesquisas nacionais se assemelham às internacionais neste sentido. Provavelmente o estudo quantitativo nacional mais rigoroso da relação entre governança e desempenho é o trabalho de Rossoni e Machado da Silva (2010)ROSSONI, L.; MACHADO-DA-SILVA, C. Institucionalismo organizacional e práticas de governança corporativa. Revista de Administração Contemporânea, v. 14, n. esp., p. 173-198, 2010.. Esta pesquisa identifica entre outras coisas uma associação positiva entre boa governança e desempenho, operacionaliza práticas de governança não pelos mecanismos previstos pela teoria da agência, mas pela aderência aos critérios da BOVESPA.

Na ausência de uma orientação teórica forte, mais ampla e integradora, o estudo da governança tem um sentido adhocrático. Existe uma série de conselhos práticos para organizar e realizar a supervisão das empresas em conformidade com a legislação vigente (ver, por exemplo, Steinberg (2003)STEINBERG, H. A dimensão humana da governança corporativa: pessoas criam melhores e piores práticas. 2. ed. São Paulo: Editora Gente, 2003., e Mizumoto e Machado Filho (2007)MIZUMOTO, F. M.; MACHADO FILHO, C. P. Práticas de governança corporativa em empresa familiar de capital fechado: um estudo de caso.Revista de Negócios, v. 12, n. 2, p. 3-17, 2007.), mas muito pouco disso pode ser visto na forma de princípios gerais que podem orientar a ação através de uma ampla variedade de situações em que as corporações precisam ser governadas.

Se a ligação entre teoria ortodoxa econômica e a literatura sobre a governança corporativa em geral é tênue, fica ainda mais evidente as suas fragilidades quando o objeto de estudo é a governança da empresa familiar. Aqui são enfatizados os efeitos da interação entre dinâmica familiar, a evolução e distribuição de capital e patrimônio através das gerações e a tomada de decisão e gestão da empresa. As obras de Kets de Vries et al. (2003)KETS DE VRIES, M. F. R.; CARLOCK, R. S.; FLORENT-TREACY, E.Family business on the couch: a psychological perspective. New York: Wiley, 2003., Gersick et al. (1997)GERSICK, K. E. et al. Generation to generation: life cycles of the family business. Boston:Harvard Business School Press, 1997. e, no Brasil, de Bornholdt (2005)BORNHOLDT, W. Governança na empresa familiar: implementação e prática. Porto Alegre: Bookman 2005. e Oliveira et al. (2011)OLIVEIRA, J. et al. A governança corporativa como elemento mediador na empresa familiar Revista de Administração Facens Journal, v. 10, n. 3, p. 105-122, 2011. são exemplares de trabalhos que transcendem essas fragilidades, vão além de propor esquemas formais de governança e mergulham nas dinâmicas temporais e familiares que influenciam a evolução e governança de empresas familiares. Porém, mesmo estes trabalhos não desenvolvem abordagens teóricas gerais nem tampouco se apoiam largamente nas teorias de agência ou de custos de transação.

Dois temas principais perpassam a maioria da literatura sobre a governança empresas familiares, seja nacional ou internacional. Primeiro, é muito comum a identificação de tensões entre os fatores de família, propriedade e gestão ou administração. Na medida em que uma (ou mais) família não detenha todo o patrimônio da empresa e não representa a única fonte de orientação administrativa, uma gama de mecanismos e ajustes são vistos como necessários para a sobrevivência e prosperidade da empresa (BORNHOLDT, 2005BORNHOLDT, W. Governança na empresa familiar: implementação e prática. Porto Alegre: Bookman 2005.; MIZUMOTO; MACHADO MILHO 2007MIZUMOTO, F. M.; MACHADO FILHO, C. P. Práticas de governança corporativa em empresa familiar de capital fechado: um estudo de caso.Revista de Negócios, v. 12, n. 2, p. 3-17, 2007.). Estes mecanismos existem principalmente para blindar os processos de gestão do impacto irracional da influência de fatores familiares e dos caprichos dos principais detentores do capital da empresa. Mesmo que todo patrimônio da empresa pertença apenas à primeira geração de uma família, é suposto que a natureza emocional da família e a concentração de capital impeçam o exercício da racionalidade administrativa, em graus mais ou menos elevados, em geral, mais fortes nas primeiras gerações e mais diluídos na medida em que se sucedem multigeracionalmente as transferências de capital, propriedade, controle e dos sistemas organizacionais na família que por sua vez vai ampliando. Uma expressão clássica desta ideia se encontra em Kets de Vries, Carlock e Florent-Treacy (2007)KETS DE VRIES, M. F. R.; CARLOCK, R. S.; FLORENT-TREACY, E.Family business on the couch: a psychological perspective. London: Wiley, 2007.:

O que toma muitas empresas familiares um tema intratável não são seus aspectos empresariais, mas sim os emocionais que as compõem. Em uma empresa familiar temas como contratação, pagamento de dividendos, ou sucessão, dificultam o pensamento que se pode ter delas – são realmente apenas atividades empresariais corriqueiras, requerendo planejamento e tomada de decisão mas que pode ser feito extraordinariamente complexos pelos mecanismos de controle familiar; […] A habilidade dos líderes familiares e nem adaptar- se às necessidades de mudanças e exigências individuais dos membros familiares é entretanto um assunto crítico (p.177, Kindle Edition, Tradução dos autores).

Sob este enfoque, o desafio maior seria mais ajudar o sistema familiar e o sistema administrativo a sobrepujar as diferentes irracionalidades enfrentadas durante o ciclo de vida para poder agir de uma forma bem-sucedida no mundo capitalista.

O outro tema, que aliás está diretamente relacionado ao primeiro, refere-se às consequências da passagem do tempo, do aumento do tamanho da empresa e o seu impacto no patrimônio e na família. Com o passar do tempo, a família cresce, a propriedade é pulverizada e a necessidade de administração mais fria, formal, e formalmente competente aumenta. Boa parte da literatura sobre governança familiar citada acima se dedica aos desafios de evolução desigual da família, patrimônio e sistemas de gestão e, outra vez, propõe vários mecanismos racionais para separar os processos administrativos, processos familiares, e decisões sobre o destino e distribuição do patrimônio da empresa e dos herdeiros (KETS DE VRIES; CARLOCK; FLOTENT-TREACY, 2007KETS DE VRIES, M. F. R.; CARLOCK, R. S.; FLORENT-TREACY, E.Family business on the couch: a psychological perspective. London: Wiley, 2007.; STEINBERG, 2003STEINBERG, H. A dimensão humana da governança corporativa: pessoas criam melhores e piores práticas. 2. ed. São Paulo: Editora Gente, 2003.; OLIVEIRA et al., 2011OLIVEIRA, J. et al. A governança corporativa como elemento mediador na empresa familiar Revista de Administração Facens Journal, v. 10, n. 3, p. 105-122, 2011.). Assim como as pesquisas empíricas sobre a relação entre governança e desempenho da empresa em geral, os estudos de governança e desempenho de empresas familiares são conceitualmente dispersas e empiricamente inconclusivas.

Limitações das abordagens econômica para a análise das empresas familiares

As limitações da teoria da agência são talvez mais evidentes quando se consideram os dilemas da empresa familiar. Na pequena empresa familiar, o problema de agência ainda não apareceu, porque não existe nenhuma distinção entre ‘principal’ e ‘agente’ (isto é, entre proprietário e gestor), fazendo com que teoria da agência tenha talvez um valor prático limitado durante o nascimento e infância da empresa familiar. Entretanto, com o crescimento da empresa familiar, surgem problemas de agência que são de uma complexidade e perversidade que desafiam de várias formas os limites do pensamento da tradicional teoria da agência.

Em primeiro lugar, enquanto a teoria da agência pressupõe que pode haver tantos ‘principais’ quantos forem os stockholders (acionistas), ela tende a assumir que existe apenas um ‘agente’ – o CEO da empresa, que exerce sozinho o controle sobre seu corpo gerencial. Na empresa familiar em crescimento, a família e os membros não familiares – distribuídos em diferentes estratos hierárquicos e funcionais da organização – possuem responsabilidades, simultaneamente, tanto de ‘agentes’ quanto de principais, pois combinam na mesma pessoa (i.e., no membro da família) diferentes tipos de interesses de stakeholder e de ‘principal’. Além disto, têm acesso a diferentes tipos de informação, a maioria das quais não poderiam ser acessadas pela figura arquetípica do ‘principal’, tal como designada pela literatura.

Assim, dois irmãos que trabalham em diferentes departamentos de uma empresa familiar têm formas de acompanhamento e avaliação de um CEO não familiar que um ‘principal’ clássico não tem. Eles também podem ter interesses diferenciados e mais complexos do que os interesses dos acionistas minoritários teriam, bem como uma maior, mais extensa e variada gama de artifícios para defender e promover aqueles seus interesses. E isto não acontece apenas nas pequenas empresas familiares. Também é verdade que a distinção entre o ‘agente’ e o ‘principal’ é parcialmente sobreposta – i.e., possui uma zona cinzenta com alto grau de ambiguidade – em grandes empresas familiares (ÁLVARES; BERTUCCI; PIMENTEL, 2008ÁLVARES, E.; BERTUCCI, J. L. O.; PIMENTEL, T. D. Empresas familiares longevas: fatores que impactam sua continuidade. Belo Horizonte: Fundação Dom Cabral, 2008. Relatório de pesquisa RP0802. Disponível em: <http://www.fdc.org.br/pt/sala_conhecimento>. Acesso em: 22 setembro 2015.
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;DAVIS, 2005DAVIS, G. F. New directions in corporate governance. Annual Review of Sociology, v. 31, p. 143-162, 2005.; FLIGSTEIN, 1990FLIGSTEIN, N. The transformation of corporate control. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990.). Assim também, um CEO membro da família empresária, que possua poucas cotas de uma empresa em crescimento, terá ambos os interesses tanto de um ‘principal’ quanto de um ‘agente’, e estes serão diferentes dos interesses de um membro não familiar, de um acionista minoritário empregado, ou de um acionista majoritário não empregado e não familiar. As questões mudarão novamente para os mesmos atores mencionados no parágrafo anterior em diferentes fases do ciclo de vida da empresa familiar, i.e., quando a empresa não está crescendo ou está encolhendo.

O ‘agente’ em uma empresa não familiar precisa equilibrar os interesses dos gestores no crescimento da empresa versus os interesses dos proprietários dispersos e possuidores de diferentes quantidades de ações em dividendos e no preço das ações, assim como entre outros interesses conflitantes. Os ‘agentes’ de empresas familiares enfrentam um vasto leque de objetivos conflitantes, incluindo o crescimento versus retorno, como descrito acima; mas incluindo também os interesses de emprego dos membros da família, pressões para usar os ativos de forma a favorecer pessoalmente os membros da família em seus gostos e agendas pessoais, a imagem da família, a identidade, o legado dos fundadores tais como expresso na memória da empresa, e os diversos interesses dos empregados e aposentados versus os membros familiares não aposentados.

As prescrições da literatura de governança para lidar com essa complexidade são relativamente variadas, mas, de modo geral, envolvem um grande número de comissões, conselhos, estatutos, regulamentos, auditorias e outros mecanismos formais destinados a impor uma série de acordos e práticas que se supõe para proteger os interesses e direitos dos diferentes ‘principais’ e stakeholders da empresa (cf. no Brasil, ÁLVARES, 2003ÁLVARES, E. Governando a empresa familiar. Belo Horizonte: Qualitymark/FDC, 2003.; no exterior, DAVIS, 2005DAVIS, G. F. New directions in corporate governance. Annual Review of Sociology, v. 31, p. 143-162, 2005.). Há uma suposição bastante explícita na literatura prescritiva sobre a empresa familiar de que as empresas familiares duradouras e bem-sucedidas são aquelas que têm implementado e aperfeiçoado o conjunto necessário de mecanismos formais de governança que vão garantir a realização dos diversos objetivos da empresa familiar (GERSICK et al., 1997GERSICK, K. E. et al. Generation to generation: life cycles of the family business. Boston:Harvard Business School Press, 1997.).

Uma abordagem weberiana para a empresa familiar

Num esforço para gerar uma perspectiva teórica mais rica sobre governança, este trabalho invoca a tipologia de Max Weber, da autoridade legítima, como meio de fornecer um contexto no qual se possa situar, analisar e interpretar o pensamento econômico mais abstrato e, eventualmente, de algum modo, os conselhos não fundamentados teoricamente pela literatura sobre governança. Nosso foco especial se pauta na empresa familiar em virtude da percepção de que as empresas familiares são especialmente susceptíveis de misturar tipos de autoridade, especialmente à medida que envelhecem. Nossa principal contribuição ao pensamento de governança é o argumento de que a análise racional-legal inerente ao pensamento econômico precisa ser complementada por uma compreensão da dinâmica das autoridades tradicionais e carismáticas, que estão presentes, em certa medida, em toda e qualquer organização, mas, sobretudo, nas empresas familiares. Em particular sustentamos que o tipo clânico fornece as bases culturais, em termos de valores, imaginários e até mesmo de legitimidade e justiça (HEYDEN; BLONDEL; CARLOCK, 2005HEYDEN, L. V. D.; BLONDEL, C.; CARLOCK, R. S. Fair process: striving for justice in family business. Family Business Review, v. 18, n. 1, p. 1-21, 2005.) sobre o qual são constituídos os mecanismos formais no interior das organizações familiares.

Mas por que a noção de autoridade weberiana?

Embora grande parte deste trabalho seja dedicada a explorar a utilidade da teoria de Weber para os estudos comparativos sobre governança, será útil listar aqui algumas motivações preliminares para tratar deste enfoque específico. Talvez, a mais importante seja a ênfase adicional que Weber fornece para um entendimento da submissão. Enquanto as teorias econômicas e, em especial teoria da agência, procuram entender as razões pelas quais os ‘agentes’ poderiam se esquivar de suas responsabilidades ou não cumprir com sua função conforme acordada, a preocupação de Weber vai exatamente ao sentido oposto.

Weber definiu autoridade essencialmente como a razão pela qual uma pessoa cumprirá um costume, uma convenção ou lei, restando ausente qualquer incentivo convincente para fazer isso. Em outras palavras, deslocando o foco da atenção de “que mecanismos administrativos superam a tendência dos indivíduos de agir em seu próprio interesse? para por que as pessoas obedecem quando não é, necessariamente, do seu interesse fazê-lo?” Nós esperamos obter uma visão original e talvez, até mesmo, mais prática de como obter o seu cumprimento. Em contraste à teoria de agência mais recente que propõe vários mecanismos específicos para frear e adequar o autointeresse, Weber propõe três forcas genéricas – racional legal, tradicional, e carismática, que impelem as pessoas a não agirem em interesse próprio – ou seja, a obedecerem na ausência de claras recompensas ou punições.

A segunda razão é que o estudo de Weber sobre autoridade foi, em contraposição à teoria da agência e as abordagens dos custos de transação, eminentemente contextual. A obra clássica de Weber, Economia e sociedade(1968), que contém a maior parte de seu pensamento sobre a autoridade, é um trabalho altamente contextualizado historicamente, que se move lentamente a partir de descrições detalhadas dos sistemas socioeconômicos nos diferentes períodos e locais para princípios mais gerais. Como resultado, o pensamento weberiano sobre a autoridade é facilmente aplicado a casos particulares de complexas instituições e mecanismos de governança corporativa. A formação original de Weber como advogado e jurista complementa esse foco, dado o importante papel dos sistemas jurídicos na teoria e na prática da governança.

Esta ênfase na evolução e história dos sistemas sociais através do tempo parece-nos especialmente útil para o estudo da governança na empresa familiar por causa da importância da passagem do tempo para os sistemas familiares e patrimoniais que a literatura sobre governança descrita acima frisa sem, contudo, invocar recursos teóricos que lidam com a evolução social (BORNHOLT, 2005; GERSICK et al., 1997GERSICK, K. E. et al. Generation to generation: life cycles of the family business. Boston:Harvard Business School Press, 1997.; KETS DE VRIES; CARLOCK, FLORENT-TREACY, 2007KETS DE VRIES, M. F. R.; CARLOCK, R. S.; FLORENT-TREACY, E.Family business on the couch: a psychological perspective. London: Wiley, 2007.; MIZUMOTO; MACHADO FILHO, 2007MIZUMOTO, F. M.; MACHADO FILHO, C. P. Práticas de governança corporativa em empresa familiar de capital fechado: um estudo de caso.Revista de Negócios, v. 12, n. 2, p. 3-17, 2007.; STEINBERG, 2003STEINBERG, H. A dimensão humana da governança corporativa: pessoas criam melhores e piores práticas. 2. ed. São Paulo: Editora Gente, 2003.). Justamente a perspectiva da sociologia weberiana que lida com a questão da evolução dos sistemas sociais através do tempo e, especialmente, com as tensões entre racionalidade administrativa e as forças de tradição, parentesco, e economia de uma forma longitudinal, parece-nos uma possível ferramenta para dar o estudo da governança familiar com mais sofisticação e textura.

Da mesma forma que a literatura sobre a governança em empresas familiares observa tensões entre fatores emocionais da família, racionais da administração e econômicos do patrimônio, o opus weberiano, especialmente como exposto em Wirtschaft e Gesselschaft, observa e analisa a tensão entre estas forças nas sociedades através de um processo evolucionário de muitas gerações. Uma diferença importante entre as literaturas sobre governança e weberiana é a tendência do pensamento weberiano identificar traços culturais, tradicionais ou étnicos ou de parentesco que apoiam várias formas institucionais formalmente racionais (MURVAR 1985MURVAR, V. Patrimonialism, modern and traditional. In: MURVAR, V. (Ed.). The theoryof legitimacy, legality and power. London: Routeledge, 1985. p. 40-68.; NELSON, 1993NELSON, R. E. Authority, organization and societal context in multinational churches. Administrative Science Quarterly, v. 38, n. 4, p. 653-682, 1993.), enquanto a literatura sobre governança tende a ver fatores não econômicos como empecilhos à racionalidade Gersick et al., 1997GERSICK, K. E. et al. Generation to generation: life cycles of the family business. Boston:Harvard Business School Press, 1997.; Kets de Vries; Carlock e Flotent-Treacy, 2007KETS DE VRIES, M. F. R.; CARLOCK, R. S.; FLORENT-TREACY, E.Family business on the couch: a psychological perspective. London: Wiley, 2007. e Oliveira et al., 2011OLIVEIRA, J. et al. A governança corporativa como elemento mediador na empresa familiar Revista de Administração Facens Journal, v. 10, n. 3, p. 105-122, 2011.. De fato a nossa observação de que a cultura familiar pode tanto promover como impedir mecanismos de governança formal e parece fortalecer mais do que impedir a racionalidade administrativa nas empresas familiares longevas, o que talvez seja a mais importante contribuição de nossa pesquisa de campo.

As três autoridades de Weber e suas implicações para a governança

Embora talvez melhor conhecido por seu trabalho sobre o protestantismo e o capitalismo e também sobre a burocracia, o pensamento de Weber sobre a autoridade foi fundamental para a sua contribuição global, e seus estudos de burocracia foram realmente apenas uma parte do seu trabalho sobre autoridade. Weber postulou três tipos ‘puros’ ou ‘tipos ideais’ de autoridade legítima, e uma série de outros subtipos; e ele alegou que os diferentes tipos de autoridade estão acompanhados de tipos bastante diferentes de formas organizacionais, de governança e de mecanismos de controle.

Autoridade racional legal

O mais conhecido dos três tipos de autoridade proposto por Weber, chamado de racional legal, é também o mais recente e o mais divorciado das origens e tendências humanas inatas. A autoridade racional legal, de acordo com Weber, baseia-se na “crença na legalidade dos padrões das regras normativas e ao direito daqueles elevados à autoridade sob tais regras para a emissão de comandos” (WEBER, 1947WEBER, M. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1947., p. 3290). Intencionalmente estabelecidas, as regras abstratas são universalmente aplicáveis para tornar possível o exercício da autoridade racional legal.

A autoridade racional legal foi a última forma de autoridade a ser desenvolvida e é fundamental para as teorias da burocracia e do capitalismo (NELSON, 1993NELSON, R. E. Authority, organization and societal context in multinational churches. Administrative Science Quarterly, v. 38, n. 4, p. 653-682, 1993.; MURVAR, 1985MURVAR, V. Patrimonialism, modern and traditional. In: MURVAR, V. (Ed.). The theoryof legitimacy, legality and power. London: Routeledge, 1985. p. 40-68.; COLLINS, 1980COLLINS, R. Weber’s last theory of capitalism: a systematization.American Sociological Review, v. 45, p. 925-942, 1980.; WEBER, 1927WEBER, M. General economic history. New York: Greenburg 1927.; 1947WEBER, M. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1947.; 1968WEBER, M. Economy and society. New York: Bedminster Press, 1968.). Este tipo de autoridade racional é fácil de estabelecer e executar, mas altamente suscetível à corrupção e à perturbação, se sua credibilidade não for sustentada por meio de previsibilidade, consistência, e fiscalização imparciais frequentes e punição ocasional exemplar de atores poderosos. Diferentemente de outros tipos de autoridade weberiana, a autoridade racional legal não gera, normalmente, um sentimento profundo de lealdade.

Os atributos da burocracia são bem conhecidos, mas merecem uma reconsideração breve aqui para conectá-los de modo mais próximo à autoridade racional legal e para desenvolver contrastes adequados com as formas organizacionais que acompanham outros tipos de autoridade weberianos. Abaixo nós regatamos brevemente os principais atributos da burocracia racional legal e seu relacionamento com o tipo de autoridade racional legal.

Divisão do Trabalho Especializado

Desde Adam Smith, é sabido que se concentrando esforços em poucas tarefas é possível aumentar a produtividade em milhares por cento em função de uma curva de aprendizagem menor, dos benefícios da repetição, e porque o foco num âmbito limitado de atividades permite uma maestria muito maior da referida atividade. A burocracia explora todas estas vantagens através de uma divisão do trabalho racionalmente construída.

Hierarquia

A acepção weberiana da palavra hierarquia refere-se a um arranjo administrativo onde cada subordinado tem apenas um chefe cujos comandos são restritos pelo escopo de sua descrição de cargo formal, e que recorre ao próximo nível hierárquico sempre que haja uma questão que exceda a sua autoridade formal.

Seleção e Promoção por Competências Normas e Regras Escritas

Nas burocracias, os mecanismos de seleção e promoção baseiam-se exclusivamente na competência e isso tem sido sistematicamente e racionalmente definido e estabelecido em normas e regras escritas. Nos termos de Weber, a burocracia envolve: “aplicação racional de regras e normas técnicas” que são “matéria de uma rigorosa e sistemática disciplina de controle na condução do escritório” (WEBER, 1968WEBER, M. Economy and society. New York: Bedminster Press, 1968. p. 218 e 221). Nenhuma consideração é dada à idade, sexo, parentesco, etnicidade, local de nascimento, religião, opinião política ou de qualquer outro critério que não está escrito claramente nas regras. Proibições, violações e infrações só são puníveis se claramente romperem com o que foi especificado em documentos escritos, e as punições são estritamente limitadas pelas sanções especificadas em tais documentos.

Separação do Indivíduo e do Cargo: Inclusão parcial

O último atributo da burocracia para ser mencionado aqui foi chamado por Weber de “separação do indivíduo e do escritório”. Assim, nem os atributos que podem beneficiar a organização, tais como a iniciativa pessoal, nem aqueles que podem ser negativos, como a insensibilidade interpessoal, é de interesse da organização a menos que sejam especificados em termos mensuráveis nas descrições formais do trabalho.

Autoridade tradicional

O segundo tipo de autoridade em Weber é a “autoridade tradicional”. Se a autoridade racional legal é baseada na lei e apoiada através da racionalidade, a autoridade tradicional é justificada pelo simples fato de que a prática tem sido transmitida a partir do passado. Quanto mais tempo de existência uma prática social ou instituição possui, maior será a legitimidade que ela terá. Nos termos de Weber, a autoridade tradicional baseia-se na “santidade da ordem e dos poderes de controle que tenham sido proferidas no passado” (WEBER, 1947WEBER, M. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1947., p. 334).

Comparada com a autoridade racional legal, a autoridade tradicional tem, implicitamente, uma visão mais evolutiva do mundo. Nela assume-se que a acumulação progressiva de conhecimentos através das experiências de tentativa e erro, que ocorre ao longo do tempo é mais valiosa do que a racionalidade explícita, que pode ser reduzida a códigos e regras. Assim, a experiência e a intuição são sobrevalorizadas em relação aos sistemas formais e de ensino, exatamente em oposição à autoridade racional legal.

Generalização e Rodízio ao invés de Especialização

Assim como a autoridade racional legal exige uma forma administrativa específica para ser exercitada, a autoridade tradicional tende produzir uma forma administrativa que representa uma inversão quase perfeita da forma burocrática. O exercício da autoridade tradicional raramente especifica as funções do trabalhador com o grau de precisão e de rigidez da burocracia. Em vez disso, a autoridade tradicional identifica grandes categorias sociais baseadas em sexo, idade, parentesco, tribo ou casta e, dentro destas categorias, permite o desenvolvimento de certo grau de identidade pessoal que, no entanto, é limitada e moldada pelas normas tradicionais. Os membros de uma classe, categoria ou função são mais ou menos intercambiáveis e qualquer divisão de trabalho é ampla e fluida.

A organização baseada em autoridade tradicional espera que os funcionários devam ficar na organização durante um longo período e se envolver, quando necessário, em uma variedade de tarefas que vão surgindo na organização. Em contraste, a burocracia demanda o desempenho de tarefas apenas na especialidade definida na descrição do trabalho e busca igualar as pessoas com responsabilidades pesquisando o mercado de trabalho externo e promovendo apenas o pessoal superior ao alargamento do âmbito da responsabilidade que é exigido quando se sobe na hierarquia.

Consenso ao invés da Hierarquia

Em vez de uma hierarquia escalar com autoridade e responsabilidade cuidadosamente definidas para cada tarefa e em cada nível, a organização tradicional se baseia em um processo muito mais orgânico para tomar decisões e coordenar suas atividades. Na burocracia, uma vez que o funcionário é devidamente treinado e conscientizado das práticas e padrões de desempenho, dele será esperado exercer suas responsabilidades com a consulta mínima a menos que algo excepcional aconteça, que não seja previsto nas normas da organização. O membro de uma organização tradicional não recebe tanta orientação formal no exercício de seu papel, em termos de normas e orientações formais em padrões escritos e claras descrições de trabalho. Ao invés disso, ele está em contato mais ou menos constante com seus pares ou colegas mais seniores, que possuem maior experiência na maior parte das situações que ele enfrentará.

Tradição, Socialização e Pressão dos Pares

Na burocracia, os funcionários sabem o que fazer porque as suas responsabilidades são registradas em descrições formais de trabalho, com padrões de desempenho que localizam o indivíduo dentro da divisão racional do trabalho da organização. A garantia de que os funcionários estão cumprindo as suas responsabilidades formais vêm de um superior hierárquico que avalia o trabalho com base nos critérios escritos e recompensas administrativas ou punições para o seu cumprimento.

Na organização tradicional, a supervisão e as sanções são executadas de forma bastante diferente da organização burocrática. Na ausência de regras escritas e regulamentos, os funcionários consultam seus pares para obter uma orientação verbal baseada na tradição. Em virtude da tradição ser extraída da experiência do passado, presume-se que aqueles com maior antiguidade estejam numa melhor condição de orientar e disseminar os comportamentos adequados e receberem deferência dos seus colegas juniores. E porque a tradição não é destilada e codificada em regras claras, a exposição repetida à ação da tradição é necessária antes de um comportamento adequado ser conhecido e dominado.

Inclusão Total ao invés da Inclusão Parcial, Sendoversus Fazendo

Enquanto a burocracia estabelece limites claros entre a vida pessoal e a vida organizacional (separação entre indivíduo e o cargo), exigindo somente o estrito cumprimento das regras, a organização tradicional demanda lealdade e tem uma visão muito mais ampla do indivíduo. Por seu turno, isso oferece uma garantia de emprego de longo prazo, identidade social, relacionamentos de trabalho mais próximos e um número maior de mais variado de tarefas.

Carisma: o mais efêmero tipo de autoridade

Weber definiu carisma como “[algo] repousando sobre a devoção à santidade específica e excepcional, heroísmo ou caráter exemplar de uma pessoa individual e dos padrões normativos ou ordem revelada ou ordenada por ele” (WEBER, 1947WEBER, M. The theory of social and economic organization. New York: Oxford University Press, 1947., p. 329). Note aqui que a autoridade deriva de forma inequívoca a partir de apenas uma pessoa que inspira devoção inquestionável por parte dos seguidores, e que ‘sozinho’ é responsável por originar qualquer ‘padrão normativo ou ordem’. Tal confiança nos dons de uma pessoa deixa pouco ou nenhum espaço para a consideração de práticas do passado ou da tradição, nem por argumento racional formal nem pela exegese que possa constranger ou contradizer os ‘padrões normativos ou ordem revelada ou ordenado’ pelo líder carismático.

Líderes Carismáticos e seus Discípulos

Como a figura carismática prega o seu próprio evangelho, as pessoas desencantadas com as soluções racionais ou tradicionais oferecidas peloestablishment existente podem responder a energia e certeza do líder nascente e o núcleo do movimento carismático formado. Aqueles que permanecem no movimento, especialmente no início, idolatram o líder e almejam sua aprovação e atenção. O líder, por sua vez, gosta da atenção e bajulação e passa a maior parte do seu tempo disponível com este grupo de discípulos adoradores.

A discrição ilimitada do líder e a atração de seguidores levam a um conjunto de fenômenos característicos, se o movimento cresce e começa a adquirir recursos. A obstinação do líder e a rejeição de mecanismos de controle burocráticos ou tradicionais significam que, em última instância, a maioria dos detalhes operacionais da organização em crescimento será delegada aos membros do círculo íntimo com muito pouca esperança de consistência e supervisão sistemática. O principal critério para essa delegação de competências torna-se a proximidade ao líder.

A Organização Carismática

A combinação de visão única, controle absoluto e um pequeno círculo competitivo interno de discípulos têm consequências organizacionais muito peculiares. Nem o líder nem os seguidores aceitarão a parcela de comando numa cadeia de intermediários. O líder também não aceita uma hierarquia ordenada de recursos, pois isso dilui seu controle e diminui sua capacidade de intervir direta e pessoalmente na execução da sua visão. Os membros do círculo íntimo também rejeitam os princípios hierárquicos, pois a adesão a eles, de modo semelhante, diluiria as prerrogativas arduamente conquistadas que eles adquiriram em seu contato imediato com o líder ao longo do tempo.

No lugar de uma hierarquia escalar é colocada uma roda parecida com uma rede social na qual o líder é a base, e o círculo interno torna-se os aros que o ligam às extremidades da rede. Os membros do círculo interior podem, por sua vez, criar seus próprios círculos internos de seguidores, mas estes círculos menores são muito mais fracos e menos significativos.

Divisão do Trabalho

Em uma burocracia existe uma clara divisão de trabalho, com descrições formalmente escritas. Nas organizações tradicionais, por contraste, as posições não são diferenciadas e os funcionários migram frequentemente e de modo relativamente fácil de uma parte a outra da organização, promovendo um grau de intercambiabilidade e coesão através da organização. Na carismática não há uma cuidadosa construção de uma divisão racional do trabalho nem a facilidade de circulação e de coordenação entre as unidades do clã. A distribuição de responsabilidades segue a dinâmica do relacionamento entre o líder e seus discípulos. Na medida em que um discípulo é bem-sucedido em cultivar a atenção do líder, ele acumula responsabilidades, geralmente à custa de outro “tenente”.

Controle Social

Nas organizações burocráticas existem normas escritas que especificam o desempenho desejado e proíbem as infrações, além de uma hierarquia para interpretar e aplicar as regras que definem os comportamentos aceitáveis. Em uma organização tradicional, o controle social é garantido através de tradições que são transmitidas por meio da socialização e executada por pressão dos colegas, que pune os desvios com ostracismo coletivo. Na ausência desses mecanismos, a organização carismática não pode garantir o mesmo grau de controle social como os clãs e as burocracias e como resultado é muito mais caótica e menos ordenada. A pessoa do líder e sua visão fornecem uma orientação geral, mas sem a especificidade das regras burocráticas ou a estabilidade e a sutileza das tradições de um clã. A concorrência entre os discípulos também oferece certo grau de supervisão, já que os rivais se apressem para fazer intrigas e ou bisbilhotagem sobre os seus rivais, se tiverem a oportunidade para isso.

Seleção e Promoção

Na burocracia, a seleção e promoção são realizadas de modo universalista e envolvendo uma especificação formal cuidadosa das necessidades de trabalho e avaliação das qualificações e do desempenho dos candidatos a emprego. Nas organizações tradicionais, a seleção inicial é baseada no potencial de percepção do candidato e sua provável adequação à cultura da organização e as promoções subsequentes são em grande parte uma questão de idade, sexo, e às vezes outros critérios de atribuição. No movimento carismático, o recrutamento, de acordo com Weber, vem como uma resposta do indivíduo para o ‘chamado’ do líder carismático. Como o líder se envolve num teatro de provocação que chama a atenção para a sua visão de um futuro que transcende a racionalidade e tradição, um subconjunto de seu público é movido de forma positiva e procura o líder ou um de seus seguidores. Uma vez dentro do movimento, se o seguidor for bem-sucedido em capturar a atenção do líder, ele será promovido na proporção do seu sucesso em neutralizar os rivais e aprofundar seu relacionamento com o líder e adquirirá responsabilidades, dependendo das necessidades do momento e tarefas e recursos disponíveis.

Inclusão Total

A autoridade racional-legal exige uma distinção clara entre o indivíduo e o ambiente de trabalho. Assim, como as preferências pessoais e as inclinações egoístas são proibidas, as habilidades pessoais que não correspondam aos requisitos específicos solicitados em sua descrição de trabalho, embora potencialmente úteis, são ignoradas. Sob a autoridade tradicional, a vida pessoal do trabalhador está intimamente ligada à vida coletiva da organização. A identidade individual reflete os valores e a cultura da organização e a vida social do indivíduo se confunde com a vida social da organização. O indivíduo deve lealdade absoluta à organização e esta, por sua vez, faz um compromisso de longo prazo com a vida para o empregado. Na organização carismática, o membro é igualmente totalmente incluído na organização, mas sua lealdade está concentrada no líder e não da organização.

Abordagem metodológica

Perante a nossa inquietação quanto à aplicabilidade da teoria de agência para a governança de empresas familiares e o potencial que vislumbramos para uma perspectiva Weberiana, desejamos examinar a experiência de empresas familiares longevas e bem-sucedidas sob a duas óticas diferentes – a de teoria de agência, e a Weberiana. A nossa investigação foi indutiva e interpretativa, e não teve nenhuma pretensão à aderência à ortodoxia positivista (BARDIN, 1988BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1988.; EMERSON; FRETZ; SHAW 1995EMERSON, R, M.; FRETZR. I; SHAW, L. L. Writing ethnographic field notes. Chicago: University of Chicago Press, 1995.). Pelo contrário, a possibilidade que a teoria de herrschaft de Weber poderia ter alguma relevância à governança da empresa familiar nos ocorreu depois de termos coletado dados qualitativos sobre os atributos de empresas familiares longevas. A nossa proposta original foi simplesmente catalogar a experiência e atributos de empresas familiares multigeracionais bem-sucedidas. Assim o formato das entrevistas foi bastante aberto. Indagamos sobre a história da empresa, a evolução de seus produtos e administração, o número e atributos dos seus fundadores, e, sobretudo, sobre todos os mecanismos formais de governança, a relação entre família e empresa, a dinâmica das passagens de uma geração para outra, a distribuição e disposição do capital e patrimônio através do tempo, os valores e cultura familiar e empresarial e os mecanismos de socialização e manutenção cultural, tanto da família quanto da empresa.

Entrevistamos altos executivos e membros do conselho diretor de nove empresas familiares grandes que sobreviveram pelo menos duas gerações. As empresas estudadas tinham pelo menos 60 anos e faturamento anual entre duzentos milhões e seis bilhões de reais. Para poder acessar diretamente o pensamento de executivos pessoalmente envolvidos em assuntos de governança, incluímos aqui somente empresas onde conseguimos entrevistar pelo menos o presidente da empresa ou do conselho diretor – de preferência, ambos. Ao escolher esta população como objetivo do estudo, assumimos o pressuposto explícito que uma empresa com mais de cem milhões de faturamento e que sobreviveu mais de 60 anos provavelmente tem formulado mecanismos de governança que tem impedido o colapso da firma sob a pressão de forças simultâneas da economia, família e organizacionais. O Quadro 1 contém uma elaboração das empresas pesquisadas, a sua idade, setor, faturamento, e das pessoas entrevistadas em cada. No total, as nossas entrevistas renderam 19 horas em gravação de áudio e aproximadamente 244 páginas de transcrições.

Quadro 1
Relação de Firmas Estudadas, Idade, Faturamento, e Entrevistados

Em cada empresa, entrevistamos pelo menos um alto executivo, gravando e transcrevendo todas as entrevistas, e estudamos documentos internos, relatórios oficiais, artigos na imprensa e outras fontes que julgamos necessárias para entender a história, governança, políticas, estratégias, cultura, e estrutura capital e organizacional de cada empresa (YIN, 2005YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.). Nas entrevistas, não fizemos referência a quaisquer conceitos teóricos discutidos acima, seja custos de transação, agência, ou autoridade. Antes, deixamos os entrevistados contarem a sua história utilizando seu próprio vocabulário e categorias mentais (EMERSON; FRETZ; SHAW, 1995EMERSON, R, M.; FRETZR. I; SHAW, L. L. Writing ethnographic field notes. Chicago: University of Chicago Press, 1995.). Ao total entrevistamos 17 executivos incluindo nove CEOs e nove presidentes de conselho, insistimos em entrevistar executivos de cúpula devido a sua experiência direta com práticas de governança.

Munidos destes dados, fizemos uma análise retrospectiva das transcrições de todas as entrevistas das nove empresas, procurando indícios da presença dos três tipos de autoridade Weberiana e as suas manifestações administrativas assim como os oito mecanismos de governança oriundas da teoria de agência.

Não alegamos aqui que a nossa interpretação das entrevistas seja de alguma forma objetivamente ‘acurada’ ou mesmo preferível a outras possíveis interpretações das afirmações contidas nas mesmas. Afirmamos, entretanto, que as observações e conclusões abaixo são fundamentadas em e deriváveis das transcrições que possuímos. Das 244 páginas de transcrições que analisámos, escolhemos 34 páginas de citações que julgamos diretamente relevantes à teoria de agência ou autoridade Weberiana, das quais apresentamos abaixo os temas mais salientes que descobrimos ilustrados por pequenos trechos representativos.

Apresentação e discussão dos resultados

Talvez não seja de se estranhar que encontramos muito pouca menção dos mecanismos de governança formalmente ligados às teorias econômicas. Não havia quase nenhuma menção dos primeiros seis mecanismos de governança segundo a teoria de agência – que incluísse ‘pagamento por operação, comissões, participação nos lucros, salários de eficiência, bônus por colocação e medo de demissão’,por parte de qualquer um dos entrevistados. Tampouco havia menção de compartilhamento de lucros, a não ser que fosse relacionado à distribuição da posse de ações na firma. Da mesma forma, mecanismos que ligariam remuneração ao desempenho no cargo ou medo da demissão também não eram mencionados em relação à governança. De fato localizamos apenas uma menção da qual apresentamos um trecho aqui:

E o plano de remuneração variável acompanha isto. Um diretor corporativo aqui, pega estes dois diretores aqui, eles ganham o variado deles pelo resultado desta unidade. Os diretores que estão aqui, os titulares, diretores das unidades aqui eles tem 50%, ou 70% daqui e só 30% do resultado da unidade. No variado (E3).

Neste trecho, o entrevistado está descrevendo um sistema de bônus em que parte da remuneração variada é determinada pelo desempenho de outras unidades. Até na única citação que encaixa claramente na teoria de agência, achamos uma provocação interessante, pois está descrevendo um mecanismo que visa criar um espírito coletivo de equipe – mecanismo não derivado das teorias econômicas clássicas.

Nem salário, nem promoções, nem sequer a questão de retenção como empregado surgem como mecanismos explicitamente usados para promover a boa governança nas empresas estudadas. Da mesma forma, os dois mecanismos principais de controlar custos de transação nas organizações – hierarquia e contratos com a possibilidade de ação judicial – foram pouco mencionados. Embora muitas práticas da governança corporativa tenham implicações contratuais ou hierárquicas, não foram frequentemente mencionadas em relação à governança nas falas dos presidentes e conselheiros que entrevistamos.

Como exemplo disto, em nenhuma instância, quer no material escrito quer nas entrevistas, houve menção da empresa processar algum membro da família proprietário como resultado de alguma violação de normas formais de governança. Isto contrasta com as nossas observações de litígio relativamente frequente entre herdeiros de empresas familiares brasileiras e o pressuposto de constante intriga e litígio em empresas familiares que defrontamos no imaginário popular transmitidas em novelas e outras expressões culturais populares. Este contraste torna difícil escapar à impressão de que as empresas familiares longevas detêm mecanismos culturais que reprimem tendências para uso de mecanismos legais de resolução de conflitos. Da mesma forma, embora membros da família frequentemente ocupassem cargos formais na organização, perceberam pouco interesse ou respeito por posição hierárquica formal. Antes, a posição e relações na família proprietária pareciam mais importantes.

Eu [entrevistado – 2ª geração] tenho tido muita oportunidade, de sempre que possível, sempre que tem alguma solenidade, algum negócio eu tenho sido encaminhado para ser, vamos dizer, o homem de relacionamento com o evento (E2).

Em vez de mecanismos que derivam das teorias de agência ou dos custos de transação, encontramos nas entrevistas, de forma mais saliente, asserções alusivas à identidade familiar e profissional, à solidariedade, ao crescimento pessoal, e ao voluntarismo, enfim, fatores motivados por pertencimento e lealdade a um grupo social definido pela autoridade tradicional. Especialmente o envolvimento de membros da família como empregados ou no conselho diretor era visto mais como uma questão de desenvolvimento profissional ou compromisso com a identidade familiar e sua manutenção na esfera da empresa do que estritamente uma motivação econômica. Se a posição específica do familiar dentro da empresa não era tida como importante nem como objeto da grande concorrência ou disputa, o ingresso inicial do familiar de segunda ou terceira geração não ocorria de forma leviana. Foi muito comum a menção de critérios informais e formais para ingresso de familiares depois da primeira geração e entendia-se que muitos herdeiros não trabalhariam na empresa. Era muito comum também a expectativa que o ingressante tivesse formação acadêmica de elite, de preferência no exterior, e ainda uma passagem profissional por outra empresa. A citação abaixo é típica de declarações que encontramos em todas as nove empresas estudadas:

Quando nós construímos esta proposta com o H*.*, nós estabelecemos os critérios. Havia um grupo familiar que achava que familiar não poderia trabalhar na empresa. Tanto eu como o meu irmão achamos exatamente o contrário. Ou melhor, nós achamos que a competência não está no sangue. Seja ele da família ou fora da família. Nós podemos ter um gênio na família como podemos ter um asno na família. E então o que é que nós estabelecemos, para escolher um profissional nós temos os critérios de escolha de um profissional. Agora na família nós temos que colocar uma cenoura na frente dele. Se ele quer trabalhar na família ótimo. Ele tem que querer aquilo, ele tem que desejar aquilo e tem que se apresentar preparado para aquilo (E8).

Os valores da família e a sua relação íntima com a cultura da empresa igualmente era muito citado nas empresas estudadas. Algumas citações abaixo são típicas.

Agora uma coisa que a gente já chegou à conclusão aqui é o seguinte, é melhor você escolher dentro de casa do que lá fora. Você promover uma pessoa interna, porque as empresas têm uma cultura, principalmente o grupo A*.* tem uma cultura muito forte das crenças e valores, e para você poder sedimentar crença e valor numa pessoa você leva tempo para poder fazer isto. Isto é feito devagarzinho, e então a pessoa vai entendendo que estas crenças e valores valem a pena e tal. E quando você busca uma pessoa de fora ela não tem esta sedimentação. Lógico que a gente vai buscar um lá fora imaginando que ele tem estes valores, senão a gente não o contrataria (E13).

Expressou-se também que o membro da família era avaliado por todos em termos de seu comportamento ético e adesão aos valores e tradições do clã.

Eu tenho certeza absoluta que o que todo mundo está olhando na gente. E quando eu estou falando todo mundo são os nossos colaboradores, os nossos associados, nós não chamamos de empregados, eles estão vendo na gente como espelho. Então se a gente não der o exemplo, então o exemplo é que fica, porque não adianta palavras. Eu acho que neste ponto a gente está bem (E15).

Eu acho que as regras de conduta, o código de conduta com crenças e valores, as crenças e valores são trabalhadas as mesmas que a gente trabalha para dentro do grupo é trabalhado com os acionistas também. Então não existe muito uma separação o que é do grupo e o que é dos acionistas não. É quase que a mesma coisa. Não pode ter duas regras, dois valores, duas medidas, uma para o acionista e outra para o associado (E5).

Sobretudo, o uso de consenso na tomada de decisões e a importância de processos familiares e organizacionais que favorecem o desenvolvimento de consenso indica fortemente que este mecanismo administrativo da autoridade tradicional é de suma importância na governança das empresas estudadas. A declaração abaixo figura entre as mais fortes afirmações da importância do consenso, mas é apenas uma de muitas afirmações similares que identificamos nas entrevistas.

Mas aí volto a dizer, com a carga de boas informações, afeto entre os sócios já estava montada, já estava estruturada nós não tivemos dificuldade nisto. Mesmo sendo minoritário, e este é ponto que eu volto a destacar, nós nunca tivemos necessidade de votar nada dentro desta empresa nos últimos 50 anos. Votar no sentido, de olha a predominância é deste ponto [...](E17).

Todos estes elementos são para nós indicativos da presença marcante de traços de autoridade tradicional a serviço dos objetivos corporativos das empresas estudados. Julgamos, portanto, que a presença da autoridade tradicional era de uma centralidade pelo menos igual e provavelmente muito maior nas empresas estudadas que os mecanismos associados com a teoria de agência. Isto não significa, entretanto que autoridades racionais legais e carismáticas fossem ausentes. Sem dúvida, o cotidiano das empresas era marcado por muitos elementos racionais legais e existiam salvaguardas burocráticas amplas nos mecanismos formais de governança. Em menor escala, também achamos alguns indícios da existência de personagens e autoridade carismática, principalmente nos primórdios de algumas empresas. O que consideramos mais significativo, entretanto, era o uso de mecanismos burocráticos para formalizar normas, valores e arranjos tradicionais de governança e a transformação do legado de membros carismáticos da primeira geração em elementos culturais de autoridade tradicional.

E depois fomos também estabelecendo as outras regras de convívio que não se pode deixar de levar em conta que uma empresa que era uma empresa informal, porque tinham lá os seus dois fundadores. Nós desenvolvemos o habito o M*.* e eu de termos sempre termos salas próximas. Próximas não, unidas, por uma porta. E então quando eu queria uma assembleia geral eu entrava na sala dele, ou ele entrava na minha sala e estava feita a reunião (E14).

Quando entraram na empresa, volto a dizer, não tinham ainda um ambiente formal de profissionalização completa, de instrumentos que definissem qual deveria ser o seu comportamento. Mas estas coisas foram caminhando e como eu disse antes, precipitadas pela morte do sócio, tiveram também precipitadas as definições. E a empresa antes mesmo da morte do M*.* tinha um conselho (E14).

A segunda geração já na década de 80 eles formaram o conselho entre os três da segunda geração, os três irmãos. E contrataram um diretor executivo que vinha, naquele momento a ser o presidente executivo da empresa. Profissional. Então os três sócios e mais este profissional eles constituíram um primeiro conselho, vamos dizer assim, o que era uma mescla de um conselho de administração e um conselho de sócios. Mas eles já se comportavam desta maneira desde a década de 80 (E11).

As três autoridades de Weber nas empresas familiares multigeracionais

As empresas variaram bastante no número e na finalidade dos mecanismos formais usados e no grau em que estes mecanismos eram mencionados nas entrevistas. A maioria dos mecanismos formais de governança não foi mencionada espontaneamente pelos entrevistados, sendo lembrados somente quando indagados especificamente. Era bastante comum também os entrevistados alegarem que certos procedimentos existiam ‘informalmente’ ou eram resolvidos informalmente.

Em vez de homogeneidade nas práticas burocráticas formais, observamos com frequência um padrão de sucessão de tipos de autoridade e de coexistência e de apoio mútuo de mecanismos de autoridade através do tempo. Em, talvez, metade das empresas estudadas, havia alguma indicação de presença de um fundador carismático na primeira geração ou, pelo menos, alguém que foi lembrado como tendo um impacto singular na formação e cultura da firma. A citação abaixo é típico das poucas expressões sobre o gênio ou carisma de membros da primeira geração

[...] Meu pai era um empreendedor nato, provido de excepcional inteligência. Não é porque era o meu pai não, é que realmente ele era diferente. De excepcional inteligência e boa formação formal. Ele tinha mestrados e tal, e ele falava inglês fluentemente e não fez um cursinho e nem nada. Ele lia, lia, lia, e aprendeu e era formado em química, mas ele é muito mais do que um técnico em química, ele era um empreendedor, ele enxergava as coisas. Ele rompeu as fronteiras (E6).

Frisamos aqui que não localizamos citações deste tipo em descrições de pessoas fora da primeira geração. Notamos também que essas descrições normalmente ressaltavam a inteligência ou empenho do membro da primeira geração, não a sua personalidade forte, poder de persuasão, o magnetismo pessoal. Tudo isto nos faz desconfiar que o carisma pessoal não facilita a continuidade e prosperidade da empresa familiar muito menos favorece o desenvolvimento de mecanismos estáveis e confiáveis de governança. Neste sentido, as nossas observações são bastante consistentes com a observação de Weber de que o carisma tende a ser um elemento desestabilizador nos sistemas sociais.

Em alguns casos, o legado dum líder de primeira geração líder fundador parecia persistir na cultura, valores, e tradições da empresa em gerações subsequentes mas, muito mais frequentemente, o discurso da pessoa entrevistada foca mais na cultura da família como um todo ou mesmo da cultura nacional dos fundadores.

E é interessante isto porque na cultura portuguesa a hierarquia é muito forte, é o pai, a mãe, e o filho mais velho e assim sucessivamente. Praticamente o meu pai faleceu na mesa de trabalho. Ele trabalhou até os 80 anos de idade e teve um derrame que o impossibilitou de continuar trabalhando. Ele foi delegando aos poucos. [...] Eu só assumi o comando efetivo após quando ele teve o derrame cerebral (E7).

Esta cultura e valores eram então mantidos através de mecanismos de autoridade tradicional como socialização, consenso e ascrição, que são centrais no pensamento de Weber (1968)WEBER, M. Economy and society. New York: Bedminster Press, 1968. sobre autoridade tradicional.

Os valores associados à autoridade tradicional da firma às vezes eram refletidos nos documentos e na governança formal da empresa, mas tais mecanismos somente logravam credibilidade e influência se a autoridade tradicional da empresa os apoiava. Assim, parece que algumas das empresas longevas que estudamos se beneficiaram de forte autoridade tradicional que teve origem na personalidade e visão de um fundador carismático da primeira geração ou do efeito homogeneizador das lutas iniciais da família para estabelecer uma nova empresa.

No caso meu avô, começado com o meu avô, eles continuaram e o meu pai começou outro ramo de negócios sozinho. Então o grupo XX é desta geração que não faz parte dos irmãos do meu pai. [...] O meu pai fundou outra geração, outro negócio que era o de telecomunicações, telefonia, ele deixou os irmãos no negócio dos Irmãos XX e passou para o negócio de telecomunicações. Isto em 1954. E aí os irmãos continuaram e ele separou o ramo. [...] Lógico que no começo este ramo da família dos irmãos do meu pai deu muita sustentação para o meu pai para ele fundar outro tipo de negócio que era completamente alheio a vocação da família para começar um negócio novo que persiste até hoje (E8).

Como pode ser visto nas passagens apresentadas acima, as empresas que estudamos apoiavam-se em sistemas de governança híbridos que utilizam diferentes tipos de autoridade que frequentemente complementavam e mutuamente apoiavam um a outro. Entretanto, não observamos a mesma intensidade das três autoridades nas nove empresas nem a mesma presença de todos os mecanismos administrativos oriundos dos três tipos de autoridade. Abaixo resumimos as nossas impressões sobre a frequência e importância dos três tipos e os seus mecanismos administrativos associados nas empresas familiares longevas como um todo (ver também o Quadro):

Quadro 2
Uso de mecanismos administrativos weberianos na governança de empresas familiares longevas

Como notamos, detectamos uma geral ausência de fatores carismáticos depois da primeira geração. Esta ausência se estendeu sobretudo as formas administrativas associadas ao carisma. Não detectamos personagens fortes cercados por um círculo de discípulos ou tenentes que concorriam para a atenção e favores da liderança. Também não detectamos nenhuma divisão de trabalho nem ocupação de posições em conselhos de governança baseadas em proximidade de uma personagem forte ou no capricho de um líder personalista. Tampouco soubemos de fortes rivalidades causadas pelo desejo de se aproximar ao líder. Especialmente depois da primeira geração, não detectamos que a lealdade a um fundador ou personalidade forte tomava o lugar da lealdade a empresa ou família.

Já a autoridade tradicional parecia ser muito mais importante, especialmente ao apoiar, sustentar, e dar origem a vários mecanismos formais de governança. Entretanto, nem todos os elementos administrativos das organizações baseadas em autoridade tradicional estavam em evidência. Houve pouca ou nenhuma menção de rotação de membros entre funções ou conselhos. Pressão social entre pares e ostracismo contra desvios não pareciam ser fatores fortes, a não ser talvez na hora da decisão inicial de admitir um parente para trabalhar na empresa. Ainda assim, havia uma forte percepção de que os membros da família tinham a obrigação de representar bem os valores clânicos e não macular o nome da família ou empresa. Já o consenso era um mecanismo muito importante, talvez o mecanismo mais importante na governança da empresa, e o senso de inclusão total, ou lealdade à empresa e família assim como a aquisição da cultura da empresa e família através da socialização informal era vital.

A autoridade racional legal estava presente e era respeitada em todas as empresas, assim como autoridade tradicional, porém, nem todas as suas manifestações institucionais estavam igualmente presentes. A formalização e obediência às regras e normas familiares era muito importante em todas as empresas assim como a ênfase na seleção por competência. A divisão de trabalho e especialização tinha alguma importância em determinar a composição de certos conselhos, porém, a formação acadêmica precisa não parecia ser importante para determinar a trajetória profissional das pessoas dentro da empresa. Tampouco vimos que a posição na hierarquia formal e ascensão na carreira fossem tão importantes como em empresas que não sofram influência familiar. Resumindo, vimos o papel da autoridade racional legal principalmente para a formulação de regras que codificam práticas que emergiram pela tradição e para assegurar que familiares que ingressam na empresa tenham um nível aceitável de capital cultural e humano.

Conclusão – Implicações dos tipos de autoridade para a governança das empresas familiares

A discussão acima contém uma série de implicações novas para o estudo da governança que vão além do que é encontrado na literatura atual. Talvez a mais evidente seja a ideia de que os mecanismos burocráticos formais de governança, tal como apresentados pela literatura atual, não são nem a única nem necessariamente a maneira mais poderosa de dirigir e limitar o comportamento autointeressado nas organizações, especialmente em organizações de caráter familiar, visto que nestas existe uma sobreposição de sistemas culturais e simbólicos.

Existe uma suposição implícita, e às vezes explícita, na literatura sobre governança nas empresas familiares de que o modelo burocrático, baseado na autoridade racional legal e em mecanismos formais de governança é o único, ou pelo menos o principal mecanismo pelo qual a empresa familiar pode ser salva do nepotismo, da ineficiência e da falta de profissionalismo. Porém, uma análise detalhada da autoridade tradicional e da forma organizacional que dela deriva revela várias vantagens, incluindo lealdade, estabilidade, redução da alienação, qualidade e um sentimento de pertencimento. De fato, pode-se argumentar que as principais forças identificadas pelos estudiosos das empresas japonesas derivam de sua extensiva utilização da autoridade tradicional, adaptando-se a metáfora da família estendida para toda a organização (FUKAYAMA, 1995FUKAYAMA, F. Trust: the social virtues and the creation of prosperity. New York: Free, 1995.). Nossos próprios estudos preliminares sobre empresas familiares longevas no Brasil sugerem um processo semelhante: apesar de empresas longevas terem adotado vários mecanismos formais de governança ao longo do tempo, eles ainda têm uma identidade forte da família.

Um segundo insight é a observação de que a simples ausência de mecanismos formais, burocráticos e visíveis numa empresa não significa que ela seja deficiente em sua governança. Ao rever as transcrições de entrevistas com os diretores das empresas familiares brasileiras em sua terceira geração, foi encontrado um padrão frequente quando os executivos foram questionados sobre a existência de certas práticas de governança, normas, políticas ou mecanismos. A resposta foi muitas vezes algo como: “não, nós não fazemos isso formalmente, mas há uma forte norma na empresa que suporta esse valor”. Outra resposta foi semelhante: “Nós não temos essa prática formalmente, mas o ‘fulano’ que normalmente se encarrega disso”. Em outras palavras, apesar da ausência de mecanismos formais que garantam práticas de governança sadias, muitas vezes, um membro da família tomou sobre si ou informalmente foi encarregado de garantir que certos princípios ou práticas fossem obedecidos.

Parece-nos que a chave aqui seja o estágio de desenvolvimento em que a empresa se encontra. Vemos relativamente pouca vantagem para uma firma pequena e nova se munir de custosos mecanismos formais de governança. Tampouco julgamos essencial para uma empresa de tamanho médio, detentora de uma forte cultura e um sadio conjunto de valores familiares. A duplicação de mecanismos de controle pode até ser onerosa e desmotivadora. No entanto, assumindo maior tamanho e idade, e especialmente nas transações de uma geração para outra, achamos que a energia gasta em analisar friamente os valores e estratégia da organização e codificá-los em mecanismos formais seja muito importante para a empresa familiar que almeja perdurar e prosperar.

Em terceiro lugar, uma implicação relacionada é que a presença de mecanismos formais de governança não significa que a governança da empresa seja adequada. Nossas entrevistas com acionistas e diretores de empresas familiares brasileiras revelaram vários casos em que os mecanismos formais de governança existiam no papel, mas foram flagrantemente ignorados na prática. Temos a nítida impressão de que os mecanismos formais de governança raramente eram eficazes a menos que houvesse algum membro da família ou um subconjunto de membros da família na empresa que fizessem pressão para a sua utilização efetiva ou algum tipo de norma ou tradição familiar que apoiassem a sua adesão. Outra forma de afirmar esse princípio em termos weberianos é dizer que os mecanismos racionais legais não atuam em um vácuo cultural – as tradições e as redes tradicionais precisam existir, o que sustentará a adesão aos mecanismos formais.

Em quarto lugar, parece haver uma conexão intuitiva entre o contexto social, a autoridade utilizada em uma organização, e a eficácia da referida autoridade. Um tema que claramente emerge nos escritos de Weber é que, enquanto a racionalidade burocrática contém uma lógica interna muito poderosa, que se difunde facilmente, o contexto cultural e institucional que suporta a autoridade racional legal eficaz tende a emergir lentamente ao longo do tempo sob circunstâncias bastante específicas. Em muitos casos, talvez na maioria das sociedades, a burocracia racional legal é incompatível com a autoridade tradicional e dominante, e por esta razão não é eficaz. É muito provável que, em contextos nacionais caracterizados por patrimonialismo nenhum esquema formal de governança realmente vá funcionar sem alguma espécie de pacto informal entre os atores principais que permita a aplicação do mecanismo formal (FAORO, 2012FAORO, R. Os donos do poder. 5. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2012.).

Em quinto lugar, temos motivos para crer que a presença da autoridade carismática em empresas familiares deve ser confrontada ou temperada com uma força menos volátil, particularmente se os mecanismos de governança baseada na autoridade racional legal estão sendo implementados. Em muitas empresas familiares, essa força contrabalanceadora virá inicialmente sob a forma de um membro da família ou pessoa de fora, cuja capacidade técnica ou temperamento equilibra a direção e volatilidade do líder carismático. Um bem conhecido exemplo desta configuração é encontrado nas origens da empresa Walt Disney. O fundador Walt foi impulsivo, criativo, visionário, arriscador e insistente. Seu irmão Roy, que cuidava das finanças da empresa até depois da morte de Walt, constantemente confrontava e limitava os impulsos expansivos de seu irmão e, em mais de uma ocasião, salvou a empresa da falência por causa de sua insistência na análise formal, protocolar e conservadora. Esta tensão de longa data e de equilíbrio entre os irmãos provavelmente facilitou a transição da Disney a partir de uma organização do tipo carismático, a um tipo que tem sido capaz de fundir a criatividade com a eficiência e o crescimento previsível.

Os pontos citados acima são apenas sugestivos das contribuições de uma perspectiva weberiana para se pensar a questão da governança. Enquanto eles nos parecem razoáveis, e são coerentes com a nossa interpretação de vários estudos de campo em que estivemos envolvidos, eles são apenas um começo, e uma sistemática e rigorosa pesquisa ainda será necessária antes que o considerável legado da obra weberiana pode ser aplicado com sucesso no campo da governança corporativa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2013
  • Aceito
    12 Mar 2015
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