Acessibilidade / Reportar erro

Paradigmas de Desenvolvimento e Disseminação de Políticas: Raízes Locais da Criação do Programa Bolsa Família

Paradigms of Development and Dissemination of Policies: Local Roots of the Creation of the Bolsa Família Program

Resumos

Este trabalho tem como objetivo discutir um dos vetores do processo de disseminação de políticas de transferência de renda no Brasil, especificamente a influência de uma experiência municipal, o Programa de Renda Mínima do Governo Marta Suplicy no município de São Paulo (2001-2004) na criação do Programa Bolsa Família no Governo Federal (a partir de 2003). O processo de formulação e implementação dos programas de desenvolvimento social no município de São Paulo (2001-2004) envolveu a construção de uma rede de políticas baseadas em diferentes paradigmas, a qual foi denominada ‘estratégia paulistana de inclusão social’ (POCHMANN, 2002). O Programa de Renda Mínima fazia parte desta estratégia e gerou, argumenta-se, um acúmulo de aprendizagem social (HALL, 1993) e de legitimação política dos atores políticos, que possibilitou a transferência de paradigmas e experiências (DOLOWITZ; MARSH, 2000) do governo municipal para o Governo Federal. Pretende-se analisar os elementos de ideias e práticas oriundos desta experiência municipal que influenciaram na criação do programa federal.

Disseminação de Políticas; Transferência de Renda; Paradigmas Sociais; Aprendizagem Social; Desenvolvimento Social


This paper aims at discussing one of the vectors of dissemination process of income transfer policies in Brazils, specifically the influence of municipal experience, the Minimum Income Program of Mayor Suplicy term in the city of São Paulo (2001-2004) in the creation of the Bolsa Família Program in the Federal Government (as of 2003 to date). The process of formulation and implementation of social development programs in São Paulo (2001-2004) involved the construction of a network of policies based on different paradigms, which was named ‘São Paulo’s social inclusion strategy’ (POCHMANN, 2002). The Minimum Income Program was part of this strategy and generated, it is argued, an accumulation of social learning (HALL, 1993) and political legitimacy of political stakeholders, which allowed the transfer of paradigms and experiences (DOLOWITZ; MARSH, 2000) of municipal government for the Federal Government. The objective is analyzing the elements of ideas and practices deriving from the municipal experience that influenced the creation of the federal program.

Dissemination of Policies; Income Transfers; Social Paradigms; Social Learning; Social Development


Introdução

Desde os anos 1990, a América Latina tem sido marcada pela ocorrência de crises econômicas em que houve queda generalizada do PIB per capita: em 1995 (crise mexicana), em 1997 (crise asiática), em 2001/2002 (crise das ‘ponto.com’, turca e argentina) e a crise de 2008 (que afetou a região em menor medida que as anteriores) (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.). Este quadro agravou um problema histórico na região: os maiores índices de desigualdade de renda do mundo e elevada proporção de pobres sobre o total da população (CEPAL, 2012CEPAL. Panorama social da América Latina 2012. Disponível em: <http://www.cepal.org/publicaciones/xml/2/48452/PanoramaSocial2012DocIPOR.pdf>. Acesso em: 1 fev. 2014.
http://www.cepal.org/publicaciones/xml/2...
).

Num contexto de crise, de péssimos indicadores de desigualdade e pobreza e mudanças de paradigma de políticas de desenvolvimento social, vários países da América Latina implementaram políticas de transferência de renda condicionada nos anos 1990 e início dos 2000 inspirados em princípios de focalização de políticas públicas. A ‘primeira onda’ de programas envolveu, do final de década de 1980 e início dos anos 1990, os casos da Venezuela e Honduras. A partir da segunda metade dos anos 1990, a onda se ampliou. Em 1997 foi implementado o programa Oportunidades no México; em 2000, o programa Mi família na Nicarágua; em 2001, o programa colombiano Famílias en Acción e o equatoriano, Bono Solidaridad-Bono de Desarrollo Solidario. Em 2002 foram implementados o Programa Chile Solidário e o Jefas y Jefes de Hogar Desocupados na Argentina; em 2003 foi a vez do Brasil implementar o Programa Bolsa Família. Após esses casos houve ainda outros de implementação de PTRC (Programa de Transferência de Renda Condicionada): em 2005, El Salvador, Programa Oportunidades (Red de Protección Social); Uruguai, Ingreso Ciudadano; Paraguai, TekoporãÑopytyvo (na região do Chaco); R. Dominicana, Solidaridad; Peru, Juntos; e, em 2006: Panamá, Red de Oportunidades (FONSECA; VIANA, 2007FONSECA, A. M. M.; VIANA, A. L. d’Á. Direito à saúde, atenção básica e transferências condicionadas de renda na América Latina. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, p. 1505-1512, 2007.).

O contexto das políticas sociais na região pode caracterizado historicamente, em linhas gerais, por sistemas de proteção social incipientes e inconclusos. Enquanto na Europa as transferências universais e focalizadas coexistiram historicamente desde a implementação do Welfare State, sendo as últimas complementares às primeiras em um contexto de universalismo extensivo, o quadro latino-americano era outro. Os programas de transferência de renda condicionada que deveriam ser a última rede de segurança, viraram o carro-chefe entre os instrumentos de alívio da pobreza (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.). Desta forma, os anos 1990 podem ser definidos como a era da focalização extensiva, na qual houve um aumento do gasto social total médio na América Latina, capitaneado pelo maior gasto em seguridade e assistência social (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.). Em um contexto de crise econômica, aumento do desemprego e da pobreza, os sistemas de focalização constituíram-se como colchões ou redes de proteção, dissociados do sistema de proteção social. A focalização pela ótica da eficiência retirou o papel estabilizador e preventivo das políticas sociais (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.).

No contexto latino-americano, o Brasil se destaca entre os países pioneiros (pioneer-high) na implementação de sistemas de seguro social, guardadas as diferenças de cada país, juntamente com Argentina, Chile, Costa Rica, Cuba e Uruguai. Segundo Mesa-Lago (2008 apud COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.), tratam-se de sistemas implementados nos anos 1920/1930, virtualmente universais, que enfrentam desequilíbrios financeiros e atuariais e lidam com a população mais envelhecida e com maiores expectativas de vida (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.). Especificamente no Brasil, o movimento do Welfare State foi marcado pelo avanço institucional a partir da Constituição de 1988, e pela retração, nos anos 1990, período de crise e reformas econômicas neoliberais, acompanhando as tendências internacionais de “reformas nos sistemas previdenciários e a generalização de programas focalizados de transferência direta de renda às famílias, em geral, condicionados à contrapartida de frequência escolar das crianças beneficiárias” (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012., p. 134). No Brasil, historicamente, três modelos de políticas sociais se desenvolveram: o do seguro (fundado na capacidade contributiva), o universalista (de base não contributiva) e o focalizado e seletivo da assistência (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.).

Segundo Cobo (2012)COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012., as primeiras experiências brasileiras de programas compensatórios de renda foram municipais, em um contexto de descentralização administrativa e de recomendação de organismos multilaterais para a implementação de redes mínimas de proteção social. Na primeira metade dos anos 1990, o debate salta os muros da universidade, sai do círculo restrito das comunidades epistêmicas e entra na agenda pública com uma nova característica: renda mínima vinculada à família e à educação (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.).

No penúltimo ano do segundo mandato do Governo Cardoso (2001), ocorreu uma expansão dos programas de iniciativa do governo federal brasileiro em desenvolvimento e a criação de novos, com destaque ao Programa Bolsa Escola e ao Programa Bolsa Alimentação. Esses programas já apresentavam características que depois foram aperfeiçoadas no Programa Bolsa Família, como a implementação descentralizada, com foco na mobilização de equipamentos municipais, abrangendo a grande maioria dos mais de 5560 municípios brasileiros.

Em 2001, iniciou-se o processo de formulação e implementação do Programa de Renda Mínima da Prefeitura Municipal de São Paulo. Neste trabalho, argumentamos que este caso municipal foi a ‘antessala’ do Programa Bolsa Família, na medida em que o mesmo grupo que coordenou o programa no município de São Paulo em 2001 participou de dois momentos cruciais no Governo Federal: a unificação do Programa Bolsa Família em 2003/2004 e a implementação da mais recente e importante mudança do programa, o Brasil sem Miséria, em 2011.

Ana Fonseca, pesquisadora do Nepp (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp), foi coordenadora do Programa Municipal de Renda Mínima no governo Marta Suplicy (2001-2004) e, posteriormente, coordenou o Programa Bolsa Família entre 2003 e 2004 como secretária executiva do Ministério do Desenvolvimento Social. No contexto municipal, Ana Fonseca era um ator externo, de grande respaldo acadêmico e técnico, convidada de fora da rede política da capital para formular e implementar o programa de renda mínima. Desenhou-se uma estratégia de implementação marcada por intensa negociação com os grupos epistêmicos (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.) e políticos do governo ligados a políticas redistributivas e emancipatórias, os burocratas da máquina administrativa e os potenciais beneficiários elegíveis das regiões mais vulneráveis da cidade (POCHMANN, 2002POCHMANN, M. (Org.).Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Cortez, 2002.).

O Programa de Renda Mínima da Prefeitura do Município de São Paulo articulava-se aos Programas Bolsa Trabalho, Começar de Novo e o Ação Coletiva de Trabalho (Operação Trabalho), que formavam uma rede coordenada de políticas baseadas em diferentes paradigmas, a qual foi denominada ‘a estratégia paulistana de inclusão social’ (POCHMANN, 2002POCHMANN, M. (Org.).Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Cortez, 2002.) no âmbito da Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, liderada pelo economista da Unicamp Marcio Pochmann. O Programa de Renda Mínima fazia parte desta estratégia e gerou, argumenta-se, um acúmulo de aprendizagem social (HALL, 1993HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.) e de legitimação política dos atores políticos estratégicos, que possibilitou a transferência1 1 Entende-se por “difusão-disseminação-transferência-aprendizagem” em políticas públicas neste trabalho como o “[...] processo segundo o qual conhecimento acerca das políticas públicas, arranjos administrativos, instituições e ideias em um sistema político do passado e do presente é usado no desenvolvimento de políticas, arranjos administrativos, instituições e ideias em outro sistema político” (DOLOWITZ; MARSH, 2000, p. 5). de paradigmas, ideias programas (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.) e experiências do governo municipal para o Governo Federal. Afirma-se em Leite e Peres (2013)LEITE, C. K. S.; PERES, U. D. Origem e disseminação do Programa Bolsa Família: aproximações analíticas com o caso mexicano. Revista do Serviço Público, v. 64, n. 3, p. 351-376, 2013. que a equipe da gestora Ana Fonseca operou no contexto do Governo Federal como uma ‘correia de transmissão’ de experiências e práticas, sendo que os resultados deste processo foram contingentes às dinâmicas políticas de construção de apoio dentro do Governo Federal, nas instâncias decisórias.

Neste trabalho, o ponto de partida da análise é a consideração de que o Programa Bolsa Família foi criado a partir de um processo multideterminado. Podem-se identificar vetores distintos de transferência e disseminação de políticas que influenciaram a criação do Programa Bolsa Família, atuando de forma diacrônica e sincrônica. Argumenta-se que há vetores de disseminação oriundos do contexto internacional, tanto de experiências de países como via organismos multilaterais2 2 Weyland (2004) propõe uma análise dos processos de disseminação de políticas e programas a partir de duas categorias de transmissão de ideias: a direta e a indireta. A direta consiste na relação entre países sem a intermediação de organismos multilaterais, a partir de rotas de similaridades. A forma indireta se dá a partir da atuação de ‘promotores’ de modelos – think tanks, centros de pesquisa, organizações internacionais, como o Banco Mundial e a OIT. O autor cita que a importância da atuação desses atores se dá centralmente em virtude da disseminação de experiências inovadoras de países isolados, que não se configuram como aqueles de ‘alto status’. Há riscos nos processos de transmissão indireta: a crença falaciosa de que existe um modelo de validade universal para todos os países; o grande risco de incorrerem em ideological blinders, baseada em orientação teórico-normativa das instituições, que selecionam as experiências dos países que serão bases para os modelos a serem disseminados a partir de suas próprias agendas político-ideológicas. Por fim, e não menos importante, trata-se do risco da submissão dos países com carência de recursos para o financiamento de políticas ao poder dos organismos multilaterais, que comandam suntuosos montantes de recursos e utilizam a abertura de canais de empréstimo de forma bastante empoderada para ‘transmitirem’ as suas ideias pelo mundo (WEYLAND, 2004). , conforme os casos latino-americanos citados anteriormente (TOMAZINI, 2010TOMAZINI C. La construction des politiques de transferts monétaires conditionnels: entre consensus et dissentiments: une analyse de la lutte contre la pauvreté au Brésil et au Mexique. 2010. 250 f. Dissertação (Mestrado)- Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, Université Paris III, La Sorbonne Nouvelle, 2010.; FONSECA; VIANA 2007FONSECA, A. M. M.; VIANA, A. L. d’Á. Direito à saúde, atenção básica e transferências condicionadas de renda na América Latina. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, p. 1505-1512, 2007.; SOARES 2010SOARES, F. V. Para onde caminham os programas de transferência condicionadas? As experiências comparadas do Brasil, México, Chile e Uruguai. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 2, p. 137-168.; ROCHA 2010ROCHA, M. G. Pobreza, progresa y oportunidades: una mirada de relativo largo plazo. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 2, p. 169-202.; LARRAÑAGA, 2010LARRAÑAGA, O. Chile solidario. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 2, p. 203-212.; LEITE; PERES, 2013LEITE, C. K. S.; PERES, U. D. Origem e disseminação do Programa Bolsa Família: aproximações analíticas com o caso mexicano. Revista do Serviço Público, v. 64, n. 3, p. 351-376, 2013.).

No plano nacional, as experiências municipais que antecederam à implementação do Programa Bolsa Família (Campinas, Distrito Federal, São Paulo, entre outras) são entendidas neste trabalho como elementos de um processo de disseminação vertical (diacrônica, especialmente) (SOARES; SÁTYRO, 2010SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26.; SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.; JUSTO, 2007JUSTO, C. R. D. M. Política de transferencia de renda e cidadania no Brasil: implicações politico-sociais dos Programas Municipais de Renda Minima a partir do Estudo comparativo dos casos de Campinas, Jundiai, Santo Andre e Santos (1995-2006). 2007. 424 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)-Unicamp, Campinas, 2007.; COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.; FARAH, 2008FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008.). O termo vertical se refere à perspectiva de disseminação de políticas entre níveis federativos distintos. No caso deste estudo, trata-se da influência de experiências locais nos anos 1990 que teriam influenciado a formulação e implementação do Programa Bolsa Família no plano federal3 3 No que tange à difusão de experiências locais, Farah (2008) chama a atenção para o processo de difusão entre instâncias locais, a partir do protagonismo de atores locais. Esta perspectiva é muito interessante, mas não é o foco deste trabalho. .

Os programas federais que antecederam ao Bolsa Família, por sua vez, fariam parte de um processo de aprendizagem dos atores que caracterizaria a disseminação horizontal, ou seja, o processo de disseminação que se verificou a partir de experiências federais que antecederam o Programa Bolsa Família, como o Bolsa Alimentação, Auxílio Gás, Cartão Alimentação e, sobretudo, o Bolsa Escola. Conforme bem enfatizam Bichir (2010)BICHIR, R. M. O Bolsa Família na Berlinda? Novos Estudos CEBRAP, v. 87, p. 114-129, 2010. e Coelho (2012COELHO, D. B. Political competition and the diffusion of conditional cash transfers in Brazil. Brazilian Political Science Review, v. 6, n. 2, p. 56-87, 2012.; 2013COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210.), as experiências de transferência de renda do Governo Federal, especialmente o Bolsa Escola, também influenciaram significativamente o Programa Bolsa Família. No entanto, a perspectiva de disseminação federal (ou horizontal) não é o foco deste texto.

A Figura sintetiza a estrutura do argumento.

Figura
Vetores de aprendizagem e disseminação de políticas como fatores da criação do Programa Bolsa Família

O foco deste trabalho é o vetor de disseminação vertical, destacando uma experiência de formulação e implementação de programa de transferência de renda, no caso do município de São Paulo (SP). Pretende-se analisar o processo de aprendizagem que legitimou o grupo gestor do Programa de Garantia de Renda Mínima do município de São Paulo, possibilitando que ideias e práticas oriundas da experiência municipal de São Paulo influenciassem a criação do Programa Bolsa Família, caracterizando a criação deste importante programa como um processo marcado pela disseminação de políticas, ou um desaguadouro de várias experiências.

Metodologia de pesquisa e abordagem teórica

A metodologia de pesquisa deste trabalho baseia-se na análise qualitativa de dados secundários e primários, a partir da literatura pós-positivista de políticas públicas e sobre transferência e disseminação de políticas (DOLOWITZ; MARCH, 2000;MESEGUER; GILARDI, 2008MESEGUER, C.; GILARDI, F. Reflexiones sobre el debate de la difusión de políticas. Política y Goberno, v. 15, n. 2, p. 315-351, 2008.; WEYLAND, 2004WEYLAND, K. Learning from foreign models in Latin American policy reform. Washington, D.C.: Woodrow Wilson Center Press, 2004.; HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.; FARAH, 2008FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008.), autores que têm como grande denominador comum a valorização das ideias e processos cognitivos no processo de decisão política. Howllet, Ramesh e Perl (2013)HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública: seus ciclos e subsistemas: uma abordagem integradora. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. argumentam que não há um arcabouço consolidado de teorias pós-positivistas, mas que se pode denominar a existência de uma orientação pós-positivista presente em vários autores (KINGDON, 2003KINGDON J. Agendas, alternatives, and public policies. 3. ed. Nova York: Harper Collins, 2003.; COHEN; MARCH; OLSEN, 1972COHEN, M.; MARCH, J.; OLSEN, J. A garbage can model of organizational choice. Administrative Science Quarterly, v. 17, n. 1, p. 1-25, 1972.;CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.; 1998; HALL, 1993HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.; SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993SABATIER, P.; JENKINS-SMITH, H. (Ed.). Policy change and learning: an advocacy coalition approach. Boulder: Westview Press, 1993.), que fazem um contraponto com as ‘máximas ortodoxas da economia do bem-estar positivista’, criticando a pretensão de objetividade analítica e a neutralidade política. A partir de categorias analíticas distintas, os autores enfatizam a importância da subjetividade, da normatividade interpretativa, da argumentação e dos fatores sociopolíticos contextuais e idiossincráticos dos casos na análise das políticas públicas (HOWLLET; RAMESH; PERL, 2013). Persuasão, retórica e interpretação, portanto, são elementos analíticos importantes na orientação pós-positivista.

Os dados secundários deste trabalho referem-se às análises sobre o Programa Bolsa Família (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.; CASTRO; MODESTO, 2010CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010.) e sobre a experiência de implementação da Estratégia Paulistana de Inclusão Social no Governo Marta Suplicy (2001-2004) (POCHMANN, 2002POCHMANN, M. (Org.).Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Cortez, 2002.). Os dados primários foram gerados a partir de entrevistas abertas semiestruturadas realizadas com atores políticos estratégicos à época: Ana Fonseca, coordenadora do Programa de Garantia de Renda Mínima do município de São Paulo, e Marcio Pochmann, coordenador da Estratégia Paulista de Inclusão Social. Este trabalho é o desdobramento de uma pesquisa sobre as origens do Programa Bolsa Família, em perspectiva comparada com os casos mexicano e chileno (LEITE; PERES, 2013LEITE, C. K. S.; PERES, U. D. Origem e disseminação do Programa Bolsa Família: aproximações analíticas com o caso mexicano. Revista do Serviço Público, v. 64, n. 3, p. 351-376, 2013.; LEITE; PERES; BELLIX, 2012), na qual foram realizadas entrevistas semiestruturadas com especialistas nacionais e internacionais4 4 Entrevistas realizadas: QUIROGA, Junia. Doutora em Demografia; Diretora do Departamento de Avaliação do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS); 05/08/2011, em São Paulo-SP; OSSANDON, Mario. Diretor da Institución responsável pela implementação do Chile Solidário e assessor do Parlamento em temas sociais; e URRIOLA, Rafael, Diretor do Chile 21; 17/08/2011, em São Paulo-SP; SPOSATI, Aldaíza. Secretária de Assistência Social do Município de São Paulo no Governo Marta Suplicy (2001/2004) e coordenadora da Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica-PUC/SP; 19/08/2011, em São Paulo-SP. .

Neste texto, argumenta-se que a equipe de trabalho liderada por Ana Fonseca em São Paulo operou na formulação, implementação e disseminação do Programa Bolsa Família como uma comunidade epistêmica (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.). Segundo o autor, “what bonds members of an epistemic community is their shared belief or faith in the verity and the applicability of particular forms of knowledge or specific truths” (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992., p. 3). De forma assemelhada à ideia de paradigma científico de Thomas Kuhn, mais do que compartilhar a mesma metodologia, os membros de uma comunidade, ou uma rede de profissionais, compartilham crenças causais, valores, noções de validade de conhecimento e técnicas que podem servir como base para elucidar os múltiploslinks possíveis entre ações políticas e resultados desejados (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992., p. 3). Segundo o autor, em contextos de incerteza, a demanda governamental por informação é crescente, o que estimula a proliferação de comunidades de especialistas capazes de produzir e prover essas informações. Este processo fortalece os membros da comunidade epistêmica enquanto atores políticos que aconselham tomadores de decisão e assumem responsabilidades delegadas. Na medida em que este poder se burocratiza, ou seja, entra na rotina da gestão pública, a influência da comunidade epistêmica se institucionaliza (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.).

Hall (1993)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993. é um autor neoinstitucionalista ‘pós-positivista’ que explora o relacionamento entre novas ideias políticas e a configuração institucional, explorando a mediação entre as ideias e os resultados políticos específicos. O autor está interessado em discutir como as ideias e os interesses interagem em contextos institucionais específicos para produzir mudanças políticas. O autor argumenta que, convencionalmente:

[…] learning is said to occur when individuals assimilate new information, including that based on past experience, and apply it to their subsequent actions. Therefore, we can define social learning as a deliberate attempt to adjust the goals or techniques of policy in response to past experience (or to policy-relevant knowledge) and new information. Learning is indicated when policy changes as the result of such a process(HALL, 1993HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993., p. 278, grifo nosso).

Especificamente com relação ao processo de aprendizado social, Hall (1993)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993. argumenta que este processo pode ser desagregado em três variáveis centrais e três ordens de mudança: as grandes metas que guiam as políticas em um campo particular – os grandes paradigmas de ideias que balizam as políticas e programas; as técnicas ou instrumentos de política – ou desenho – para atingir as metas e os conjuntos mais específicos desses instrumentos operacionais (HALL, 1993HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.). Situações de mudança nas quais os instrumentos operacionais mudam, mas permanecem os mesmos o desenho da política e seu paradigma basilar, Hall (1993)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.denomina como mudança de primeira ordem. As mudanças de segunda ordem seriam caracterizadas por mudanças no desenho da política e seus instrumentos, provocadas por experiências passadas, mesmo com a permanência do paradigma da política em questão. Por fim, quando ocorrem mudanças nos três componentes das políticas, configura-se a mudança de terceira ordem, que envolve processos para além das fronteiras dos Estados em múltiplas arenas políticas e sociais e envolvendo vários atores (HALL, 1993HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.).

O conceito de aprendizado social de Hall (1993)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993. aproxima-se do conceito de lesson drawing (ROSE, 1991 apud DOLOWITZ; MARSH 2000DOLOWITZ, D.; MARSH. D. Who learns what from whom: a review of the policy transfer literature. Political Studies, v. 44, n. 2, p. 343-357, 1996.)5 5 Agradecemos o parecerista anônimo pela indicação da contribuição teórica desses autores. , segundo o qual há aprendizado dos atores a partir de experiências passadas e externas. Neste processo de aprendizado haveria, a partir da percepção de problemas sociais, iniciativas voluntárias de engajamento em uma pesquisa ativa de novas ideias para solucionar problemas (DOLOWITZ; MARSH, 2000DOLOWITZ, D.; MARSH. D. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Journal of Policy and Administration, v. 13, n. 1, p. 5-24, 2000.). Segundo Farah (2008)FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008., os conceitos de lesson drawing, especificamente, e o de policy transfer, mais abrangente, permitem identificar sujeitos, ou atores estratégicos, no processo de transferência, assim como valorizam o contexto6 6 A valorização do contexto é um ponto importante de aproximação entre os autores da literatura pós-positivista e da policy transfer. e o conteúdo das políticas a serem difundidas (FARAH, 2008FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008.). Dolowitz e Marsh (2000)DOLOWITZ, D.; MARSH. D. Who learns what from whom: a review of the policy transfer literature. Political Studies, v. 44, n. 2, p. 343-357, 1996. argumentam que o processo de policy transfer pode ser entendido a partir de umcontinuum que ligaria, em uma ponta, o lesson drawing, ou transferências voluntárias e, na outra, as transferências coercitivas, que envolveriam situações nas quais organismos internacionais obrigariam governos a adotarem políticas e programas contra a vontade dos governantes dos países, ou arranjos nos quais governos nacionais são obrigados como condição para se manter como membros de estruturas e regimes internacionais (DOLOWITZ; MARSH, 2000). Segundo os autores, há casos de transferência em que há uma combinação de elementos voluntários e coercitivos. Na medida em que as motivações dos atores envolvidos são elementos importantes, não se pode entender o fenômeno a partir de uma lógica dicotômica: “[...] different policies and programs will naturally result from different motivations. [...] when policy transfer occurs it is likely to affect the motivations of the actors engaging in the process” (DOLOWITZ; MARSH, 2000, p. 16-17).

Farah (2008)FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008. sintetiza, a partir da literatura, alguns fatores que determinam o processo de disseminação ou transferência de inovações entre localidades. Alguns desses fatores forneceminsights interessantes sobre o processo de disseminação vertical que ocorreu entre o caso de São Paulo, no governo Marta Suplicy (2001-2004), e o caso do Programa Bolsa Família, a partir de 2003, conforme se argumenta neste trabalho. Destacam-se a convergência de agendas entre localidades (neste caso, entre os níveis federativos), a difusão de informações entre especialistas e think tanks, ação de atores políticos na incorporação da inovação (mediada por condições institucionais, políticas, legados de outras políticas e ideologia).

Campbell (2002)CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002., em sintonia com Hall (2003)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993., define paradigmas cognitivos como análises teóricas que especificam relações de causas e efeitos, que residem na base (background) dos debates políticos e limitam o conjunto de alternativas que os policymakers percebem como úteis. As estruturas normativas – valores, atitudes, identidades –, segundo o autor, estão na base dos debates sobre políticas e constrangem ações ao limitar as alternativas que as elites percebem como sendo aceitáveis e legítimas. Normas, valores e crenças afetam suas posições sobre políticas públicas, ajudando-os a decidir o que é mais apropriado, especialmente em contextos em que não há uma evidência conclusiva sobre uma opção de política. Operam de acordo com uma lógica de adequação, conveniência moral e social e não por uma lógica de consequencialidade (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.). Enquanto estruturas normativas são as bases sociológicas e os paradigmas de políticas são estruturas interpretativas, as ideias programáticas são ideias causais precisas que indicam como instrumentos e instituições devem ser mobilizados em situações específicas, de acordo com os princípios do paradigma estabelecido (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.).

Antecedentes municipais e federais do caso do município de São Paulo

No início dos anos 1990, inicia-se na agenda do legislativo federal um processo que “pretendia criar um sistema de proteção baseado na solidariedade nacional” (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002., p. 29). O marco foi a aprovação no Senado Federal, em dezembro de 1991, da Lei no 2561 de autoria do senador Eduardo Suplicy, que propunha a implementação de um Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM), sob a forma de imposto de renda negativo, de caráter universal. A lei nunca foi votada, gerou um substitutivo sancionado pelo Presidente Lula em 2004, mas é sempre citada como um marco no processo de construção da agenda de combate à pobreza no país (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.).

Os anos 1990 foram um período crucial no processo de construção do novo sistema brasileiro de proteção social, na esteira da Constituição de 1988. Especificamente, segundo Soares e Sátyro (2010)SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26., o reconhecimento por parte do Governo Federal da pobreza como risco social foi marcado pela criação do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Soma-se a esta iniciativa a Lei Orgânica de Assistência Social de 1993 (implementada já no primeiro mandato do Governo Cardoso) e, em 2004, a Política Nacional de Assistência Social e a implementação do SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Vale destacar, conformeDraibe (2003DRAIBE, S. M. A política social no período FHC e o sistema de proteção social. Tempo social, v. 15, n. 2, p. 63-101, 2003., p. 87), “[...] paralelamente a essa política, implantou-se outra frente de ação, voltada ao combate à pobreza, primeiro com o Programa Comunidade Solidária; em seguida, no segundo mandato, com o Programa Comunidade Ativa, o Projeto Alvorada e a Rede de Proteção Social”. Esta última foi sensivelmente ampliada com a aprovação do Fundo de Combate à Pobreza, em 2000.

No ano seguinte de sua aprovação foram criados os programas Bolsa Alimentação (na área de saúde), Agente Jovem (na Secretaria da Assistência Social) e, pouco mais tarde, Auxílio Gás (2002). E foram acoplados aos anteriores, o Bolsa Escola, de 1998, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), de 1995, e outros programas de transferência preexistentes (DRAIBE, 2006, p. 88).

Entre 1995 e 2001, a lógica da transferência de renda condicionada (que exige contrapartida, ao contrário da garantia de renda mínima) e a questão da condicionalidade do repasse de recursos às famílias pobres ao ingresso e permanência das crianças na escola tornam-se as grandes tônicas dos programas federais e municipais (SOARES; SÁTYRO, 2010SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26.; SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.). Fonseca (2012)FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres. destaca os programas de Campinas – o pioneiro no país, que iniciou os pagamentos em março de 1995 – o programa do Distrito Federal (Governo Cristóvão Buarque), Ribeirão Preto (similar ao de Campinas), Salvador e Vitória. Esses municípios pioneiros na promoção de experiências de renda mínima apresentavam indicadores mais elevados de renda per capita e desenvolvimento humano que a média nacional e, dessa forma, não se verificou nestes o debate que marcou o contexto internacional, associando crise econômica e ajuste fiscal a políticas sociais compensatórias. No caso de Campinas, por exemplo, o mote foi a temática da segurança alimentar7 7 “Uma criança faleceu e o atestado de óbito estava associado à desnutrição. Depois disso, foi determinado que qualquer criança com sinais de desnutrição na rede de saúde, a notificação deve ser compulsória, como se fosse uma doença infectocontagiosa [...] Com base neste registro começam os primeiros pagamentos do programa do município. Na sequência foram crianças em situação de rua, acompanhadas pela rede da assistência social. Uma terceira leva de implementação, já na época da campanha do Betinho, era gente ligada à distribuição de alimentos. Embora o mote do programa de Campinas tenha sido isso, chama Garantia de Renda Mínima e as condicionalidades relacionadas à saúde e educação” (FONSECA, 2012, p. ). (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.).

Entre 1997 e 1998 pelo menos 25 cidades no Brasil criaram um PTRC inspiradas na experiência do Distrito Federal8 8 Segundo Sousa et al. (2002), em cada localidade os programas receberam denominações diferentes: Programa de Garantia de Renda Mínima Familiar (Campinas e Ribeirão Preto), Produção Associada com Garantia de Renda Mínima (Jundiaí), Programa Vale Escola (Piracicaba), Programa Família Cidadã (Vitória e Santo André), Bolsa Familiar para a Educação, conhecido como Bolsa Escola (Belém). . Pode-se afirmar que esta verdadeira onda de criação de PTRC guarda relação com a criação de um programa federal chamado Programa de Garantia de Renda Mínima Associado a Ações Socioeducativas, de 1997, que autorizava o Poder Executivo Federal a conceder apoio financeiro aos municípios que instituíssem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.). Coelho (2013)COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210.argumenta que, se a implantação de programas de renda mínima no Brasil foi iniciativa dos municípios, no final dos anos 1990, houve uma mudança de posição do governo federal com relação à implantação de programas de renda mínima em escala nacional. A percepção do “consenso em torno de uma política nacional de combate à pobreza [...], a consolidação do Bolsa Escola como alternativa viável (em termos orçamentários) de política social, (e, sobretudo), o alto grau de competição política entre o PSDB (no plano federal à época) e o PT (no plano municipal9 9 Entre 1995 e 2001, 61% das 90 propostas municipais de renda mínima foram de autoria do PT (COELHO, 2013). ), assim como entre o Executivo Federal e o Congresso” (COELHO, 2013COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210., p. 195) levaram o Governo Federal a implementar programas de transferência de renda condicionada.

Em 1996, foi criado o primeiro PTRC federal, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o Peti10 10 Para maiores detalhes sobre esses programas citados aqui, ver Soares e Sátyro (2010). . Em 2001, foi criado o segundo PTRC do Governo Federal, inspirado no caso do Distrito Federal, o Programa Bolsa Escola e, na sequência, o Programa Bolsa Alimentação e Cartão-Alimentação, programas pulverizados e sobrepostos (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.). Segundo Coelho (2013)COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210., pode-se identificar dois líderes políticos que agiram como empreendedores políticos no processo de criação de uma agenda de combate à pobreza no Brasil vinculada a programas de transferência de renda: os senadores Eduardo Suplicy (PT/SP) e Cristovam Buarque (PT e posteriormente PDT/DF). O primeiro levou a discussão da renda mínima ao Congresso e foi ator chave na implementação do Bolsa Escola de Campinas/SP (experiência na qual participou Ana Fonseca). O segundo “buscou primeiro o debate acadêmico (na Universidade de Brasília) na posição de reitor e professor da UnB e, posteriormente, no comando do Executivo da capital federal, implantou o Bolsa Escola” (COELHO, 2013COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210., p. 187).

A partir da fusão de programas federais11 11 Programas que foram fundidos: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão-Alimentação e Auxílio Gás (Disponível em: <http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/bolsa-familia/bolsa-familia/beneficiario/programas-remanescentes>). foi criado o Programa Bolsa Família no segundo semestre de 2003, a partir de um rico legado histórico federal, municipal e internacional, sendo o desaguadouro de experiências, práticas e debates que levaram ao topo da agenda social dos governos a ideia de transferência de renda como mecanismo de solidariedade12 12 É interessante notar que a ideia do programa que domina o topo da agenda federal é a tran sferência de renda condicionada, neutralizando a proposta do empreendedor político Eduardo Suplicy (COELHO, 2013) de renda básica da cidadania aprovada no Congresso, mas não implementada, pelo menos até o final do Governo Dilma Rousseff (2014). . Conforme Soares e Sátyro (2010)SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26. argumentam, tratava-se de iniciativas não contributivas e com foco nas famílias sem renda suficiente para sobreviver.

Antes da regulamentação do PBF em janeiro de 2004, o Governo Federal, no início do primeiro mandato do Governo Lula, implementou o Programa Fome Zero, um conjunto de intervenções baseadas no paradigma da segurança alimentar. Vale destacar aqui que este programa, considerado carro chefe da área social do governo recém-empossado à época, 2002, foi desenvolvido no Instituto da Cidadania (think tankligado ao Partido dos Trabalhadores) sob a coordenação de José Graziano da Silva, na forma de um projeto13 13 Para uma análise sobre a concepção e a crise do Programa Fome Zero a partir da disputa de ideias e de paradigmas (CAMPBELL, 1998; HALL, 1993) travada entre os atores que buscavam influenciar a área de combate à fome e à pobreza no Governo Lula, ver Leite e Tomazini (2013). OU 2014 . Neste projeto, conforme argumenta Cobo (2012)COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012., havia dois eixos de atuação: acesso à alimentação e fortalecimento da agricultura familiar, no qual o Bolsa Família fazia parte do primeiro eixo (articulado com incentivos fiscais, desoneração da cesta básica de alimentos e programas de alimentação e nutrição).

Mediante o início do Governo Lula em 2002, o Projeto Fome Zero tornou-se Programa e o coordenador José Graziano tornou-se ministro do então criado Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), posteriormente fundido no Ministério de Assistência Social, gerando em janeiro de 2004 o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), responsável por programas da assistência social, segurança alimentar e nutricional e o Bolsa Família (COBO, 2012COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.).

Na próxima seção será analisado o caso da implementação do PGRM de São Paulo no Governo Marta Suplicy (2001/2004) como fonte de aprendizagem (lesson-drawing) que influenciou a formatação do Programa Bolsa Família no plano federal.

A política da gestão social no governo Marta Suplicy (2001-2004): ascensão do programa de garantia de renda mínima

No início da década de 2000, o cenário social do município de São Paulo era problemático: grande incidência de população em situação de risco, altas taxas de desemprego entre jovens e adultos e uma delicada situação financeira, na qual não havia recursos financeiros suficientes para pagar a parcela mensal de juros do contrato de refinanciamento da dívida mobiliária assinado com a União pelo governo anterior14 14 O contrato implicava uma situação de estreitamento da margem alocativa da prefeitura ao obrigar a destinação de 13% das Receitas Correntes Líquidas do município para o pagamento da dívida, o que somadas a outras obrigações constitucionais e legais deixavam margem ínfima para investimento social e urbano (PERES, 2007). Ver análise do processo de renegociação da dívida do Município de São Paulo em Leite (2006). . Não havia também estrutura administrativa e de gestão para implementar programas sociais, como os programas de transferência de renda implementados anteriormente em outras cidades como Campinas e Ribeirão Preto (FONSECA; MONTALI, 1996FONSECA, A. M. M.; MONTALI, L. O Programa de Renda Minima de Campinas: uma estratégia de combate à pobreza urbana. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 20., Caxambu, 1996. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5359&Itemid=361. Acesso em: 21 set. 2015.
http://www.anpocs.org/portal/index.php?o...
), tais como um sistema de informações sociais e cadastro das famílias de São Paulo. A política social pré-existente pautava-se por uma atuação pontual e reativa, principalmente por meio de subvenções a instituições filantrópicas, sem nunca haver se constituído de fato uma política de desenvolvimento social (POCHMANN, 2003POCHMANN, M. (Org.). Outra cidade é possível: alternativas de inclusão social em São Paulo. São Paulo: Cortez, 2003.).

A estratégia de atuação da Secretaria do Trabalho Desenvolvimento e Solidariedade – SDTS, capitaneada por Marcio Pochmann15 15 Economista, professor titular da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp. Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (2001-2004). Mais recentemente foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2007-2012). e Ana Fonseca16 16 D outora em História Social na área de família e relações de gênero pela Universidade de São Paulo (USP); é pesquisadora do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas da Unicamp (Nepp/Unicamp); participou da implementação do Bolsa Escola em Campinas/SP (1995); implementou o Programa de Garantia de Renda Mínima no município de São Paulo no Governo Marta Suplicy (2001/2004); coordenou o programa Bolsa Família entre 2003 e 2004 e foi secretária executiva do Ministério do Desenvolvimento Social, em 2004. Foi ainda Analista de Políticas Sociais da Oficina do PNUD para América Latina e o Caribe entre 2005 e 2006 e Analista de Políticas Sociais da Oficina Regional da FAO desde 2007. Em 2011, assumiu a Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza (Sesep) no novo desenho organizacional do MDS. envolveu uma gama variada de ações iniciais que implicava análise diagnóstica – e com isso, mapeamento de informações, assim como a estruturação de parâmetros de elegibilidade, estruturação de uma equipe multidisciplinar e capilar (estrutura descentralizada de diversas secretarias e empresas, em especial Educação, Saúde e Assistência) (POCHMANN, 2003POCHMANN, M. (Org.). Outra cidade é possível: alternativas de inclusão social em São Paulo. São Paulo: Cortez, 2003.; 2004aPOCHMANN, M. (Org.). Políticas de inclusão social.São Paulo: Cortez, 2004a.).

A eleição de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo em 2001 marcou, desta forma, a implementação de uma inovadora articulação entre programas sociais, inédita na história das políticas sociais da cidade. A proposta de política social em São Paulo naquela ocasião era uma empreitada complexa, que previa a articulação de cinco paradigmas cognitivos (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.; HALL 1993HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.) de desenvolvimento na estratégia paulista de inclusão social: transferência de renda, desenvolvimentismo, economia solidária, microcrédito e empreendedorismo local, organizados em três eixos e nove programas17 17 Os três blocos eram articulados entre si e pautados por critérios universais de atendimento, focalizados na população abaixo da linha da pobreza. A proposta de resgate econômico, social e cidadão implicava inicialmente a complementação monetária de forma a aplacar a urgência do consumo para sobrevivência, combinado com condicionalidades das políticas básicas de educação, saúde e assistência social (eixo programático redistributivo). O Renda Familiar Mínima, o Bolsa Trabalho, o Operação Trabalho e o Começar de Novo baseavam-se na transferência de recursos a pessoas, mas também procuravam articular-se à formação escolar ou à capacitação para o trabalho. Segundo Pochmann (2004a), essa capacitação para o trabalho seria então aproveitada e sustentada pelo eixo programático emancipatório que objetivava criar condições de autonomização da população atendida no eixo distributivo. A proposta dos programas emancipatórios era a geração de ocupação de renda a partir de atividades geridas pelos trabalhadores acompanhados desde o primeiro eixo. Finalmente, o último eixo buscava repensar as cadeias produtivas locais alterando e transformando o espaço público municipal para inserção desses novos empreendimentos econômicos, dentro de uma perspectiva de autonomização de uma rede empreendimentos locais sustentáveis do ponto de vista social e econômico. Dentro deste aspecto, neste eixo programático desenvolvimentista SDTS trabalhava com instrumentos de microcrédito, assim como incentivos fiscais locais e fomento à organização de fóruns e arranjos produtivos (POCHMANN, 2003). .

A ‘Estratégia Paulista de Inclusão Social’ coordenava três eixos – redistributivos, emancipatórios e de apoio ao desenvolvimento local. O Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) fazia parte do primeiro eixo e se articulava diretamente com os programas Bolsa Trabalho, Operação Trabalho e Começar de Novo. Vale esclarecer que o programa de renda mínima de São Paulo funcionava na prática como um programa de transferência de renda com condicionalidades, entre elas a educacional.

A agenda de combate à pobreza na cidade, especificamente no seu capítulo da transferência de renda, iniciou-se em meados dos anos 1990, com a aprovação do projeto de lei de autoria do vereador Arselino Tatto (PT/SP) que instituiu o Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima Municipal (PGRFMM). Contudo, esta trajetória inicial foi marcada por uma história de veto e derrubada de veto da lei que regulamentaria o programa entre os Governos Paulo Salim Maluf e Celso Pitta, sendo a lei de fato regulamentada somente em abril de 2001, já no Governo Marta Suplicy (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.).

Antes da implementação do Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) em São Paulo, havia um acúmulo de ideias e informações a partir das atividades de um grupo de trabalho que se reunia no Instituto Florestan Fernandes, outro think tank ligado ao Partido dos Trabalhadores. Segundo Sousa et al. (2002)SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71., conheciam-se, já naquela fase de discussão ‘pré-governamental’, as dimensões da população-alvo, estimavam-se o valor médio dos benefícios e os recursos financeiros necessários (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.).

Em julho de 2001, a prefeita Marta Suplicy tomou algumas decisões estratégicas iniciais, que marcaram a institucionalidade dos programas para além das tradicionais áreas sociais. A prefeita criou a Coordenação dos Programas Sociais Prioritários, transformada em SDTS, na estrutura de uma secretaria-meio (Finanças e Desenvolvimento Econômico), resguardando esta estrutura inovadora das pressões políticas oriundas das áreas sociais (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.). O critério de nomeação da coordenação dos programas também seguiu esta lógica. Foram nomeados técnicos da Unicamp outsiders do grupo político no poder para a coordenação dos Programas sociais prioritários: Marcio Pochmann, na coordenação da estratégia, e Ana Fonseca, na coordenação da PGRM. Na época foram escolhas de risco bancadas politicamente pela prefeita recém-empossada à época (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.).

Um paradoxo marcou a implementação do PGRM em São Paulo. A despeito de ser escolhido como prioritário na agenda de governo, em um primeiro momento operava com parcos recursos orçamentários, humanos, técnicos e de infraestrutura (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.). Tratava-se de um contexto de criação institucional, de enfrentamento do desafio de “superar as formas de organização verticalmente integradas, realizando uma implementação descentralizada, territorializada e intersetorial. Este formato gerencial, buscando a integração horizontal, não tinha precedentes na administração pública no município de São Paulo” (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71., p. 79).

Conforme Fonseca (2012), no início houve muitas dificuldades, de ordem orçamentária e política18 18 “Havia a lei, mas nem um cargo, nem um real [...] Eu fui à Câmara me apresentar ao Arselino, tive uma reunião com os vereadores [...] […], depois eu fui à Secretaria de Educação, conversei com Eduardo Jorge na Saúde, com Paulinho Teixeira na Habitação, fiz uma peregrinação [...] Então nós tínhamos um problema que era como começar... Começamos com 13 distritos, fizemos um ranking com indicadores de desemprego e que não pudesse dizer que estava começando na Zona Y, porque era região do vereador X [...]” (FONSECA, 2012, p. ). . Havia uma estrutura regulatória (a partir do projeto de lei proposto por Arselino Tatto, supracitado) sem dotação orçamentária vinculada. Em 2001, houve uma mudança na lei orgânica que enfrentou resistência de legisladores municipais e a burocracia da secretaria da Educação19 19 Sobre este aspecto vale citar que a tensão do debate sobre a Emenda à LOM, que alterava a distribuição de recursos para a Educação, levou a bancada do PT na Câmara e mesmo representantes do Diretório Municipal do partido a diversos embates sobre o assunto, suscitando muita polêmica e críticas de organizações ligadas à comunidade epistêmica da educação (AÇÃO EDUCATIVA, 2007). No final do processo, esse debate rendeu a expulsão do vereador Carlos Giannazi, que se posicionou contrário à modificação legal (PT EXPULSA VEREADOR…, 2002) . Essa mudança possibilitou a alocação de recursos perenes para o programa de garantia da renda familiar mínima e também para o programa bolsa trabalho, ambos articulados com condicionalidades educacionais. Estes programas passaram a fazer parte do conjunto de despesas com educação inclusiva, permitidos pela Emenda à Lei Orgânica feita em 2001 e regulamentados pela Lei Municipal 13.245/2001. Concomitantemente à discussão da alteração legal, a coordenadora do PGRM, Ana Fonseca, realizou uma verdadeira ‘peregrinação’ na máquina administrativa da prefeitura para buscar apoio em várias áreas. “Havia um desafio de mostrar que se tratava de um programa de governo, não de uma secretaria particular ou coordenação” (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71., p. 80).

A estratégia utilizada para lograr o desafio de criação institucionalfoi buscar apoio político a partir de quatro movimentos: secretarias e empresas municipais, legislativo municipal, conselhos de direitos da criança e adolescente e assistência social e órgãos governamentais locais, como núcleos de ação educativa, supervisões de assistência sócia e administrações regionais (SOUSA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.). Esta forma de organizar a implementação foi inovadora na gestão social em São Paulo, ao mobilizar um elemento político fundamental nos processos de implementação, as matrizes político-institucionais de cooperação ou conflito20 20 A decisão por onde começar as ações foi permeada pela preocupação de evitar a politização na formulação dos critérios. Optou-se por implementar o programa inicialmente em três distritos de diferentes regiões da cidade, Lageado, Capão Redondo e Jardim Ângela, que apresentavam as maiores taxa de desemprego, maior índice de violência e menor renda familiar (FONSECA, 2012). Contudo, não havia estrutura institucional ou rede política e social que desse apoio na abordagem dos beneficiários nas regiões periféricas e para organizar o cadastramento. Neste sentido, a estratégia de mobilização dos equipamentos públicos nas administrações regionais, ou que se denominou de mobilização de um governo local, foi fundamental para o sucesso de empreitada em uma megalópole como São Paulo. “A meta estabelecida para o primeiro ano de governo (60 mil famílias) foi cumprida e ultrapassada” (SOUSA et al., 2002, p, p. 92). . Esta tarefa é decisiva para a localização de pontos de acordo e dos consensos mínimos, sendo indispensável às negociações e sustentabilidade dos programas, conforme argumenta Draibe (2001)DRAIBE, S. M. Avaliação de implementação: esboço de uma metodologia de trabalho em políticas públicas. In: CARVALHO BRANDT, M. C.; BARREIRA, M. (Org.). Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. p. 13-42..

Enfim, o PGRM do município de São Paulo nasceu articulado em uma estratégia de intervenção social coordenada e tornou-se ‘carro-chefe’ na área social do Governo Marta Suplicy. É certo que havia, no período, um clima favorável para este tipo de programa, uma onda de implementações de programas de transferência de renda em toda a América Latina e também em dezenas de cidades brasileiras. No entanto, as dificuldades foram muitas, conforme abordado. Além das questões orçamentárias já citadas, houve conflito de ordem conceitual entre os técnicos dos paradigmas da estratégia, pois ainda não estava claro na equipe a ordem de causalidade da transferência de renda no processo de desenvolvimento social que se arquitetava. Havia, inicialmente, a desconfiança de que um programa de renda dificilmente poderia ter efeitos continuados que pudessem alterar a situação da pobreza e que dada a escassez de recursos, melhor seria investir nos eixos emancipatórios e desenvolvimentistas do que na redistribuição (SOUZA et al., 2002SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.). Da mesma forma, técnicos ligados à área da educação concebiam o PGRM como ‘eleitoreiro’, formando uma frente política contrária ao programa dentro do governo21 21 Para exemplificar esta crítica na área da educação, veja Campos (2003) e Ação Educativa (2007). .

Pode-se afirmar que a experiência de renda mínima do Governo Marta Suplicy em São Paulo foi legitimada tanto pelos resultados apresentados, auferidos em avaliaçõesex-post22 22 Exemplos de avaliação ex-post: Pochmann (2003; 2004b). , como por uma decisão política atrelada às contingências da governabilidade. Houve uma decisão de governo sobre o programa, baseada na percepção de que programas de transferência de renda possuem visibilidade e potencial de projeção política. Ademais, a possibilidade de custear o PGRM com recursos perenes garantidos a partir de uma mudança legal foi fundamental para a implementação continuada e crescente da ação nos distritos paulistanos. Ao longo dos três primeiros anos, o PRGM apresentou acúmulo de ganhos de escala e aumento do efeito multiplicador da renda das famílias no comércio e ocupação local (POCHMANN, 2004aPOCHMANN, M. (Org.). Políticas de inclusão social.São Paulo: Cortez, 2004a.). No entanto, os outros eixos programáticos não tiveram uma destinação significativa de recursos nos orçamentos municipais, face à dificuldade alocativa de recursos em um município endividado. Como os eixos emancipatório e desenvolvimentista não possuíam um respaldo de vinculação legal de recursos, não tiveram apoio financeiro suficiente e continuado.

Desta forma, a legitimação da agenda de combate à pobreza se articulou com a necessidade de criação de uma marca de governo – que apresentava bons resultados – e a construção de condições para a manutenção do grupo em questão no poder. Este processo de legitimidade dentro do partido, na comunidade epistêmica (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.) de combate à pobreza (incluindo instituições internacionais) e dentro do governo municipal capitaneou o grupo da Ana Fonseca ao Governo Federal, no âmbito da crise do Programa Fome Zero.

Aprendizagem, lesson drawing e policy transfer: a experiência de São Paulo e do Programa Bolsa Família

Pode-se afirmar que o programa de São Paulo foi uma experiência inédita, em uma cidade de grande porte no Brasil, de implementação de um programa de transferência de renda. Também foi inédita a iniciativa protagonista municipal de promover uma pactuação entre programas estaduais e federais, realizada durante o governo Marta Suplicy23 23 Há um longo relato das tentativas de coordenar ações e unificar programas envolvendo o Governo Federal e o governo do Estado (ambos do PSDB à época), por parte do governo. municipal, em Sousa et al. (2002). . Desta forma, não foi coincidência, mas fruto de um processo de aprendizado e acúmulo de experiências, que a equipe de Ana Fonseca legitimou-se para ‘voos mais altos’ no Governo Federal, atuando como uma comunidade epistêmica (nos termos de HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.), e foi escolhida pelo Presidente Lula para liderar a unificação dos programas (Bolsa Escola, Cartão-Alimentação, Auxílio Gás e Bolsa Alimentação). Inclusive, no plano internacional, no âmbito das discussões do BID e do Banco Mundial, o nome de Ana Fonseca tornou-se referência do programa que se tornou uma marca, projetada internacionalmente, à época. Apesar deste empoderamento político, de um acúmulo de experiências em termos de forma (negociação e barganha) e conteúdo (critérios, regras e características do programa), as dificuldades de governabilidade da unificação dos programas foram significativas.

Segundo Soares e Sátyro (2010)SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26., a situação dos programas de transferência de renda condicionada era caótica.

Cada programa federal tinha sua agência executora e a coordenação entre elas era mínima. Os sistemas de informação desses quatro programas eram separados e não se comunicavam, de modo que uma família poderia receber todos os quatro, enquanto outra, vivendo em condições iguais, poderia não receber transferência alguma. Os valores dos benefícios e critérios de inclusão variavam entre programas, de modo que o governo federal estava fazendo transferências distintas para famílias em situações semelhantes, justificando-as com praticamente os mesmos argumentos. Como nenhum dos programas cobria todo o território nacional, havia ainda os programas estaduais e municipais. Se a coordenação entre os programas federais era difícil, com os programas municipais e estaduais era totalmente inexistente. O que existia não se parecia, mesmo remotamente, com um sistema de proteção social. Era um emaranhado de iniciativas isoladas, com objetivos diferentes, porém sobrepostos, e para públicos diferentes, mas também sobrepostos. Nenhum desses programas era universal ou sequer tinha a pretensão de vir a ser. Nenhum cobria todo o território nacional (SOARES; SÁTYRO, 2010SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26., p. 31).

Se, conforme Coelho (2013)COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210., uma mudança de percepção política do Governo Federal impulsionou a criação de programas de transferência de renda federais (o consenso em torno da agenda de combate à pobreza, a consolidação do Bolsa Escola como alternativa viável e alto grau de competição política entre o PSDB e o PT), quais fatores podem explicar a escolha da equipe que implementou o programa de garantia de renda mínima de São Paulo para coordenar a unificação dos cartões federais e criar o Bolsa Família? Em um contexto de convergência de agendas entre localidades (neste caso, entre os níveis federativos), conforme Farah (2008)FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008., esta questão torna-se relevante.

Conforme abordado neste trabalho, algumas características do processo de aprendizado dos atores que participaram da experiência paulistana de renda mínima legitimaram a burocracia do programa para assumir a criação do Bolsa Família. O programa paulistano foi marcado por um processo de implementação descentralizado, territorializado e intersetorial. Por meio de um olhar retrospectivo, pode-se afirmar que o caso de São Paulo foi um ‘laboratório’ para o caso federal de implementação de um programa de dimensões continentais, em contexto federativo. Argumenta-se aqui que isto ocorreu não somente pelo tamanho da empreitada, mas, sobretudo, pela complexidade que a caracterizou, demandando articulação política entre diferentes comunidades epistêmicas e atores políticos (em SP e no Governo Federal); criação institucional (tanto em São Paulo como no plano federal não havia uma secretaria ou ministério preexistentes); unificação de procedimentos, normas de seleção, controle e acompanhamento; construção de matrizes políticas de apoio e adesão.

Assim como houve disputa entre comunidades epistêmicas em São Paulo, no processo de articulação política dos eixos da ‘Estratégia Paulistana de Inclusão Social’, conforme abordado anteriormente, no processo de formulação e implementação do Programa Bolsa Família pode-se identificar, pelo menos, quatro comunidades epistêmicas que defendiam interesses baseados em paradigmas cognitivos distintos: a segurança alimentar (Programa Fome Zero), o capital humano (Bolsa Escola)24 24 Ver Tomazini (2010). , direitos sociais universais (Ministério da Assistência Social – SUAS25 25 Sistema Único de Assistência Social. -), a comunidade ligada à transferência de renda condicionada (grupo da Ana Fonseca). No processo de disputa por espaço político desses grupos, houve grande peso do papel de think tanks e especialistas ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT), conforme argumentam Sugyama (2008)SUGIYAMA, N. B. Ideology and networks: the politics of social policy diffusion in Brazil. Latin American Research Review, v. 43, n. 3, p. 82-108, 2008. e Farah (2008)FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008. sobre o papel da ideologia na viabilização dos processos de disseminação. Neste caso em estudo, há uma ligação direta entre atores que atuam no mesmo campo ideológico (SUGYAMA, 2008), compartilhando estruturas normativas (CAMPBELL, 2002CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.) como também conhecimentos e estruturas causais (HAAS, 1992HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.)26 26 Conforme Farah (2008), o desafio analítico que surge é analisar não somente o movimento de disseminação no mesmo campo ideológico, mas entre campos, como demonstra o caso do orçamento participativo, que se tornou conhecido na experiência de Porto Alegre, mas que se disseminou entre municípios de diferentes partidos e campos ideológicos. .

A proposta de unificação e articulação dos programas municipais, estaduais e federais estava colocada no início do Governo Lula, já na equipe de transição. Havia dificuldades técnicas, mas, acima de tudo, foram as dificuldades políticas que se colocaram mais enfaticamente no processo (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.). A proposta de Ana Fonseca era de unificar os programas federais e fazer uma grande pactuação federativa envolvendo os programas. A proposta foi bem recebida tecnicamente no governo de transição, mas foi derrotada politicamente. Foi criado o MESA e o cartão-alimentação do Programa Fome Zero, sem a realização da unificação em um primeiro momento. Naquele momento, início do primeiro mandato do Governo Lula, o grupo ligado à comunidade epistêmica da segurança alimentar ocupava espaço político privilegiado, liderado pelo então ministro José Graziano. Este grupo da segurança alimentar, oriundo da Unicamp, trabalhava há algum tempo no Instituto da Cidadania (José Graziano, Maya Takagi, Walter Belick, entre outros), onde se constituíram como um grupo técnico com legitimidade e boa reputação para pautar as propostas de um partido com reais chances de ganhar o pleito eleitoral de 2002, o PT. Em 2001, este grupo já havia formulado um plano de segurança alimentar nutricional, que se constituiu como a proposta eleitoral ‘carro-chefe’ do Partido dos Trabalhadores para combater a pobreza e a miséria.

Contudo, no segundo semestre de 2003, com a crise do Programa Fome Zero, a equipe da Ana Fonseca foi chamada para retornar ao governo com a missão de implementar a unificação dos programas federais. Segundo Fonseca (2012)FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres., aquele momento político era mais complexo do que o quadro do governo de transição. Já havia grupos de vários ministérios ocupando espaços institucionais pulverizados, disputando a prerrogativa de formular a solução para a crise do Programa Fome Zero. Havia o grupo do cartão-alimentação, o grupo do Cristovam Buarque (ligado ao Programa Bolsa Escola), o grupo do ministério da Saúde e, na visão deles, aquele processo representava politicamente perda de recursos e prerrogativas institucionais27 27 Segundo Fonseca (2012), as divergências eram duras, como no debate da porcentagem da frequência escolar mínima no programa unificado, no qual a equipe do Programa Bolsa Escola defendia 85% de frequência, enquanto a equipe da Ana Fonseca defendia 75%. Como se sabe, até hoje as regras de condicionalidade do Programa Bolsa Família preveem 85% de frequência escolar. .

Na experiência de São Paulo houve um claro processo de criação institucional complexa, na Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, lugar de coordenação da rede da Estratégia Paulistana de Inclusão Social. Em janeiro de 2004, três instâncias do governo federal deram origem ao que se chama hoje de MDS, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome: ministério da previdência social, o MESA e a secretaria executiva do Bolsa Família, que estava na Presidência da República28 28 Naquele contexto ganhou força a discussão sobre o Cadastro Único que enfrentava, desde 2001, muitos problemas. É uma discussão complexa e significativa na implementação do Programa Bolsa Família, mas não é objeto de análise neste trabalho. . Os dois programas nasceram relacionados a um processo de criação institucional inovadora. Nos dois casos policies criaram polities, e não o contrário, chanceladas pelos respectivos chefes dos executivos, a partir da nomeação de técnicos outsiders legitimados previamente por suas origens acadêmicas.

Na implementação do Programa Bolsa Família os desafios de coordenação federativa (politics) foram importantes, assim como a experiência de São Paulo, onde se enfrentou este tipo de coordenação no plano das subprefeituras e administrações regionais. As estratégias de negociação e busca de adesão dos entes intramunicipais, órgãos e autarquias foram fundamentais para a implementação do programa de São Paulo, configurando um acúmulo de experiências de implementação em contexto político e institucional descentralizado, que se demonstrou particularmente importante na formulação e implementação do desenho institucional do Programa Bolsa Família (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.). Havia um consenso no Governo Federal que a cooperação federativa deveria ser promovida politicamente. Desta forma, em setembro de 2003, o Presidente Lula, agindo como empreendedorkingdoniano, pactuou com governadores, incorporando-os ao programa, como demonstra a emissão de cartões conjuntos (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.). Houve a pactuação com 13 Estados e 14 municípios no país. Mesmo nos casos em que os programas em questão são as grandes ‘marcas dos governos’, “é preciso ter muita paciência no federalismo e é muito difícil que uma política se torne uma política nacional sem a participação dos outros membros da federação [...]” (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.).

Outro aspecto a ser destacado é a definição de uma fonte segura e perene de recursos. A experiência do município de São Paulo demonstrou a gravidade do problema da apartação de um programa de inserção e capilaridade como o PGRM da arena de decisão anual da política alocativa orçamentária. Ao inserir o programa na vinculação educacional, permitiu-se o planejamento para a viabilização da implementação. Da mesma forma, o PBF teve destinado para sua implementação um fundo específico, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, consignado pela lei federal no10.836 de 2004. De forma análoga ao PGRM, elevou o PBF à categoria de programa de ação continuada, isto é, uma política perene a ser perseguida e não um projeto pontual e desarticulado que poderia a qualquer tempo ser encerrado, em função de dificuldades administrativas ou financeiras.

A experiência acumulada de desafios que marcaram o caso de São Paulo foi importante para legitimar a comunidade epistêmica liderada pela especialista Ana Fonseca na configuração política e institucional do Bolsa Família. Pode-se afirmar, a título de hipótese, que os aspectos supracitados de desenho e instrumentos específicos do programa de renda mínima de São Paulo influenciaram a arquitetura do Programa Bolsa Família mediante um claro processo de aprendizagem (lesson drawing) política e institucional capitaneado pela equipe de Ana Fonseca à frente do PGRM de São Paulo. Houve um processo de ‘capitalização política’, ou ganhos de legitimidade, que sua equipe adquiriu ao apresentar resultados positivos de um programa baseado em um paradigma social valorizado nacional e internacionalmente no início dos anos 2000.

Nos termos de Hall (1993)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993., Dolowitz e Marsh (2000) e Campbell (2002)CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002., o provável processo de disseminação ou transferência de política entre níveis federativos caracterizou-se substancialmente por mudanças de segunda ordem (no desenho da política e seus instrumentos, com a permanência do paradigma da política em questão), concretizado nos termos das ideias programas. Ou seja, instrumentos de política foram disseminados, reforçados pela influência de outras experiências federais (COELHO, 2012COELHO, D. B. Political competition and the diffusion of conditional cash transfers in Brazil. Brazilian Political Science Review, v. 6, n. 2, p. 56-87, 2012.; 2013), mas o paradigma de desenvolvimento no qual os programas se relacionavam demonstra clara diferença. O caso de São Paulo propunha articular a renda mínima em uma estratégia de desenvolvimento complexa, em uma matriz lógica que concatenava acesso às políticas sociais, inserção no mercado de trabalho e empreendedorismo local, conforme abordado anteriormente. O Programa Bolsa Família, segundo a análise provocativa de Soares e Sátyro (2010)SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26., demanda maior clareza de concepção e aprimoramento das articulações entre os aspectos operacionais e os conceitos, no que tange à “relação com o Benefício de Prestação Continuada, a transformação em direito, as políticas de geração de oportunidades e a cobrança das contrapartidas” (SOARES; SÁTYRO, 2010SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26., p. 51). Os capítulos seguintes do Programa Bolsa Família, a partir do Brasil sem Miséria (2011), representam novos contornos que devem ser analisados em futura oportunidade.

Referências

  • AÇAO educativa: o financiamento da educação na Prefeitura do Município de São Paulo: uma análise exploratória de suas fontes e aplicações (1995-2006). 2007. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/financiamentosp.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2014.
    » http://www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/financiamentosp.pdf>
  • BICHIR, R. M. O Bolsa Família na Berlinda? Novos Estudos CEBRAP, v. 87, p. 114-129, 2010.
  • CAMPBELL, J. L. Ideas, politics and public policy. Annual Review of Sociology, v. 28, p. 21-38, 2002.
  • CAMPBELL, J. L. Institutional analysis and the role of ideas in political economy. Theory and society, v. 27, n. 3, p. 377-409, 1998.
  • CAMPOS, M. M. Educação e políticas de combate à pobreza.Revista Brasileira de Educação, n. 24, p. 183-191, 2003.
  • CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010.
  • CEPAL. Panorama social da América Latina 2012 Disponível em: <http://www.cepal.org/publicaciones/xml/2/48452/PanoramaSocial2012DocIPOR.pdf>. Acesso em: 1 fev. 2014.
    » http://www.cepal.org/publicaciones/xml/2/48452/PanoramaSocial2012DocIPOR.pdf>
  • COBO, B. Políticas focalizadas de transferência de renda: contextos e desafios. São Paulo: Cortez, 2012.
  • COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210.
  • COELHO, D. B. Political competition and the diffusion of conditional cash transfers in Brazil. Brazilian Political Science Review, v. 6, n. 2, p. 56-87, 2012.
  • COHEN, M.; MARCH, J.; OLSEN, J. A garbage can model of organizational choice. Administrative Science Quarterly, v. 17, n. 1, p. 1-25, 1972.
  • DOLOWITZ, D.; MARSH. D. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Journal of Policy and Administration, v. 13, n. 1, p. 5-24, 2000.
  • DOLOWITZ, D.; MARSH. D. Who learns what from whom: a review of the policy transfer literature. Political Studies, v. 44, n. 2, p. 343-357, 1996.
  • DRAIBE, S. M. A política social no período FHC e o sistema de proteção social. Tempo social, v. 15, n. 2, p. 63-101, 2003.
  • DRAIBE, S. M. Avaliação de implementação: esboço de uma metodologia de trabalho em políticas públicas. In: CARVALHO BRANDT, M. C.; BARREIRA, M. (Org.). Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. p. 13-42.
  • FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008.
  • FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.
  • FONSECA, A. M. M.; VIANA, A. L. d’Á. Direito à saúde, atenção básica e transferências condicionadas de renda na América Latina. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, p. 1505-1512, 2007.
  • FONSECA, A. M. M.; MONTALI, L. O Programa de Renda Minima de Campinas: uma estratégia de combate à pobreza urbana. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 20., Caxambu, 1996. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5359&Itemid=361. Acesso em: 21 set. 2015.
    » http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5359&Itemid=361
  • HAAS, P. M. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, p. 1-35, 1992.
  • HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993.
  • HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública: seus ciclos e subsistemas: uma abordagem integradora. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
  • JUSTO, C. R. D. M. Política de transferencia de renda e cidadania no Brasil: implicações politico-sociais dos Programas Municipais de Renda Minima a partir do Estudo comparativo dos casos de Campinas, Jundiai, Santo Andre e Santos (1995-2006). 2007. 424 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)-Unicamp, Campinas, 2007.
  • KINGDON J. Agendas, alternatives, and public policies 3. ed. Nova York: Harper Collins, 2003.
  • LARRAÑAGA, O. Chile solidario. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 2, p. 203-212.
  • LEITE, C. K. S. O processo de ordenamento fiscal no Brasil na década de 1990 e a Lei de Responsabilidade Fiscal 2006. 280 f. Tese (Doutorado)-Departamento de Ciência Política, FFLCH-USP, 2006.
  • LEITE, C. K. S.; PERES, U. D. Origem e disseminação do Programa Bolsa Família: aproximações analíticas com o caso mexicano. Revista do Serviço Público, v. 64, n. 3, p. 351-376, 2013.
  • MESEGUER, C.; GILARDI, F. Reflexiones sobre el debate de la difusión de políticas. Política y Goberno, v. 15, n. 2, p. 315-351, 2008.
  • PERES, U. D. Arranjo institucional do financiamento do ensino fundamental no Brasil: considerações sobre os municípios brasileiros e estudo de caso do município de São Paulo no período de 1997 a 2006. 2007.215 f. Tese (Doutorado)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 2007.
  • POCHMANN, M. [27 maio 2013]. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.
  • POCHMANN, M. (Org.). Políticas de inclusão social.São Paulo: Cortez, 2004a.
  • POCHMANN, M. (Org.). Reestruturação produtiva: perspectivas de desenvolvimento local com inclusão social. São Paulo: Vozes, 2004b.
  • POCHMANN, M. (Org.). Outra cidade é possível: alternativas de inclusão social em São Paulo. São Paulo: Cortez, 2003.
  • POCHMANN, M. (Org.).Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Cortez, 2002.
  • PT expulsa vereador que votou contra Marta. Folha de São Paulo Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u49480.shtml>. Acesso em: 28 jan. 2014.
    » http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u49480.shtml>
  • ROCHA, M. G. Pobreza, progresa y oportunidades: una mirada de relativo largo plazo. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 2, p. 169-202.
  • SABATIER, P.; JENKINS-SMITH, H. (Ed.). Policy change and learning: an advocacy coalition approach Boulder: Westview Press, 1993.
  • SOARES, F. V. Para onde caminham os programas de transferência condicionadas? As experiências comparadas do Brasil, México, Chile e Uruguai. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L. Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 2, p. 137-168.
  • SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26.
  • SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71.
  • SUGIYAMA, N. B. Ideology and networks: the politics of social policy diffusion in Brazil. Latin American Research Review, v. 43, n. 3, p. 82-108, 2008.
  • TOMAZINI C. La construction des politiques de transferts monétaires conditionnels: entre consensus et dissentiments: une analyse de la lutte contre la pauvreté au Brésil et au Mexique. 2010. 250 f. Dissertação (Mestrado)- Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, Université Paris III, La Sorbonne Nouvelle, 2010.
  • WEYLAND, K. Learning from foreign models in Latin American policy reform Washington, D.C.: Woodrow Wilson Center Press, 2004.
  • 1
    Entende-se por “difusão-disseminação-transferência-aprendizagem” em políticas públicas neste trabalho como o “[...] processo segundo o qual conhecimento acerca das políticas públicas, arranjos administrativos, instituições e ideias em um sistema político do passado e do presente é usado no desenvolvimento de políticas, arranjos administrativos, instituições e ideias em outro sistema político” (DOLOWITZ; MARSH, 2000DOLOWITZ, D.; MARSH. D. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Journal of Policy and Administration, v. 13, n. 1, p. 5-24, 2000., p. 5).
  • 2
    Weyland (2004)WEYLAND, K. Learning from foreign models in Latin American policy reform. Washington, D.C.: Woodrow Wilson Center Press, 2004. propõe uma análise dos processos de disseminação de políticas e programas a partir de duas categorias de transmissão de ideias: a direta e a indireta. A direta consiste na relação entre países sem a intermediação de organismos multilaterais, a partir de rotas de similaridades. A forma indireta se dá a partir da atuação de ‘promotores’ de modelos – think tanks, centros de pesquisa, organizações internacionais, como o Banco Mundial e a OIT. O autor cita que a importância da atuação desses atores se dá centralmente em virtude da disseminação de experiências inovadoras de países isolados, que não se configuram como aqueles de ‘alto status’. Há riscos nos processos de transmissão indireta: a crença falaciosa de que existe um modelo de validade universal para todos os países; o grande risco de incorrerem em ideological blinders, baseada em orientação teórico-normativa das instituições, que selecionam as experiências dos países que serão bases para os modelos a serem disseminados a partir de suas próprias agendas político-ideológicas. Por fim, e não menos importante, trata-se do risco da submissão dos países com carência de recursos para o financiamento de políticas ao poder dos organismos multilaterais, que comandam suntuosos montantes de recursos e utilizam a abertura de canais de empréstimo de forma bastante empoderada para ‘transmitirem’ as suas ideias pelo mundo (WEYLAND, 2004WEYLAND, K. Learning from foreign models in Latin American policy reform. Washington, D.C.: Woodrow Wilson Center Press, 2004.).
  • 3
    No que tange à difusão de experiências locais, Farah (2008)FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008. chama a atenção para o processo de difusão entre instâncias locais, a partir do protagonismo de atores locais. Esta perspectiva é muito interessante, mas não é o foco deste trabalho.
  • 4
    Entrevistas realizadas: QUIROGA, Junia. Doutora em Demografia; Diretora do Departamento de Avaliação do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS); 05/08/2011, em São Paulo-SP; OSSANDON, Mario. Diretor da Institución responsável pela implementação do Chile Solidário e assessor do Parlamento em temas sociais; e URRIOLA, Rafael, Diretor do Chile 21; 17/08/2011, em São Paulo-SP; SPOSATI, Aldaíza. Secretária de Assistência Social do Município de São Paulo no Governo Marta Suplicy (2001/2004) e coordenadora da Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica-PUC/SP; 19/08/2011, em São Paulo-SP.
  • 5
    Agradecemos o parecerista anônimo pela indicação da contribuição teórica desses autores.
  • 6
    A valorização do contexto é um ponto importante de aproximação entre os autores da literatura pós-positivista e da policy transfer.
  • 7
    “Uma criança faleceu e o atestado de óbito estava associado à desnutrição. Depois disso, foi determinado que qualquer criança com sinais de desnutrição na rede de saúde, a notificação deve ser compulsória, como se fosse uma doença infectocontagiosa [...] Com base neste registro começam os primeiros pagamentos do programa do município. Na sequência foram crianças em situação de rua, acompanhadas pela rede da assistência social. Uma terceira leva de implementação, já na época da campanha do Betinho, era gente ligada à distribuição de alimentos. Embora o mote do programa de Campinas tenha sido isso, chama Garantia de Renda Mínima e as condicionalidades relacionadas à saúde e educação” (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres., p. ).
  • 8
    Segundo Sousa et al. (2002)SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71., em cada localidade os programas receberam denominações diferentes: Programa de Garantia de Renda Mínima Familiar (Campinas e Ribeirão Preto), Produção Associada com Garantia de Renda Mínima (Jundiaí), Programa Vale Escola (Piracicaba), Programa Família Cidadã (Vitória e Santo André), Bolsa Familiar para a Educação, conhecido como Bolsa Escola (Belém).
  • 9
    Entre 1995 e 2001, 61% das 90 propostas municipais de renda mínima foram de autoria do PT (COELHO, 2013COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210.).
  • 10
    Para maiores detalhes sobre esses programas citados aqui, ver Soares e Sátyro (2010)SOARES, S.; SÁTYRO, N. O Programa Bolsa Família: desenho institucional e possibilidades futuras. In: CASTRO, J. A.; MODESTO, L.Bolsa Família 2003-2010: avanços e desafios. Brasília, DF: IPEA, 2010. v. 1, p. 25-26..
  • 11
    Programas que foram fundidos: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão-Alimentação e Auxílio Gás (Disponível em: <http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/bolsa-familia/bolsa-familia/beneficiario/programas-remanescentes>).
  • 12
    É interessante notar que a ideia do programa que domina o topo da agenda federal é a tran sferência de renda condicionada, neutralizando a proposta do empreendedor político Eduardo Suplicy (COELHO, 2013)COELHO, D. B. A agenda social nos governos FHC e Lula: competição política e difusão do modelo renda mínima. In: HOCHMAN, G.; FARIA, C. A. P. (Org.). Federalismo e políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 179-210. de renda básica da cidadania aprovada no Congresso, mas não implementada, pelo menos até o final do Governo Dilma Rousseff (2014).
  • 13
    Para uma análise sobre a concepção e a crise do Programa Fome Zero a partir da disputa de ideias e de paradigmas (CAMPBELL, 1998CAMPBELL, J. L. Institutional analysis and the role of ideas in political economy. Theory and society, v. 27, n. 3, p. 377-409, 1998.; HALL, 1993)HALL, P. Policy paradigms, social learning and the state: the case of economic policymaking in Britain. Comparative Politics, v. 25, n. 3, p. 275-296, 1993. travada entre os atores que buscavam influenciar a área de combate à fome e à pobreza no Governo Lula, ver Leite e Tomazini (2013). OU 2014
  • 14
    O contrato implicava uma situação de estreitamento da margem alocativa da prefeitura ao obrigar a destinação de 13% das Receitas Correntes Líquidas do município para o pagamento da dívida, o que somadas a outras obrigações constitucionais e legais deixavam margem ínfima para investimento social e urbano (PERES, 2007)PERES, U. D. Arranjo institucional do financiamento do ensino fundamental no Brasil: considerações sobre os municípios brasileiros e estudo de caso do município de São Paulo no período de 1997 a 2006. 2007.215 f. Tese (Doutorado)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 2007.. Ver análise do processo de renegociação da dívida do Município de São Paulo em Leite (2006)LEITE, C. K. S. O processo de ordenamento fiscal no Brasil na década de 1990 e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 2006. 280 f. Tese (Doutorado)-Departamento de Ciência Política, FFLCH-USP, 2006..
  • 15
    Economista, professor titular da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp. Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (2001-2004). Mais recentemente foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2007-2012).
  • 16
    D outora em História Social na área de família e relações de gênero pela Universidade de São Paulo (USP); é pesquisadora do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas da Unicamp (Nepp/Unicamp); participou da implementação do Bolsa Escola em Campinas/SP (1995); implementou o Programa de Garantia de Renda Mínima no município de São Paulo no Governo Marta Suplicy (2001/2004); coordenou o programa Bolsa Família entre 2003 e 2004 e foi secretária executiva do Ministério do Desenvolvimento Social, em 2004. Foi ainda Analista de Políticas Sociais da Oficina do PNUD para América Latina e o Caribe entre 2005 e 2006 e Analista de Políticas Sociais da Oficina Regional da FAO desde 2007. Em 2011, assumiu a Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza (Sesep) no novo desenho organizacional do MDS.
  • 17
    Os três blocos eram articulados entre si e pautados por critérios universais de atendimento, focalizados na população abaixo da linha da pobreza. A proposta de resgate econômico, social e cidadão implicava inicialmente a complementação monetária de forma a aplacar a urgência do consumo para sobrevivência, combinado com condicionalidades das políticas básicas de educação, saúde e assistência social (eixo programático redistributivo). O Renda Familiar Mínima, o Bolsa Trabalho, o Operação Trabalho e o Começar de Novo baseavam-se na transferência de recursos a pessoas, mas também procuravam articular-se à formação escolar ou à capacitação para o trabalho. Segundo Pochmann (2004a), essa capacitação para o trabalho seria então aproveitada e sustentada pelo eixo programático emancipatório que objetivava criar condições de autonomização da população atendida no eixo distributivo. A proposta dos programas emancipatórios era a geração de ocupação de renda a partir de atividades geridas pelos trabalhadores acompanhados desde o primeiro eixo. Finalmente, o último eixo buscava repensar as cadeias produtivas locais alterando e transformando o espaço público municipal para inserção desses novos empreendimentos econômicos, dentro de uma perspectiva de autonomização de uma rede empreendimentos locais sustentáveis do ponto de vista social e econômico. Dentro deste aspecto, neste eixo programático desenvolvimentista SDTS trabalhava com instrumentos de microcrédito, assim como incentivos fiscais locais e fomento à organização de fóruns e arranjos produtivos (POCHMANN, 2003)POCHMANN, M. (Org.). Outra cidade é possível: alternativas de inclusão social em São Paulo. São Paulo: Cortez, 2003..
  • 18
    “Havia a lei, mas nem um cargo, nem um real [...] Eu fui à Câmara me apresentar ao Arselino, tive uma reunião com os vereadores [...] […], depois eu fui à Secretaria de Educação, conversei com Eduardo Jorge na Saúde, com Paulinho Teixeira na Habitação, fiz uma peregrinação [...] Então nós tínhamos um problema que era como começar... Começamos com 13 distritos, fizemos um ranking com indicadores de desemprego e que não pudesse dizer que estava começando na Zona Y, porque era região do vereador X [...]” (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres., p. ).
  • 19
    Sobre este aspecto vale citar que a tensão do debate sobre a Emenda à LOM, que alterava a distribuição de recursos para a Educação, levou a bancada do PT na Câmara e mesmo representantes do Diretório Municipal do partido a diversos embates sobre o assunto, suscitando muita polêmica e críticas de organizações ligadas à comunidade epistêmica da educação (AÇÃO EDUCATIVA, 2007AÇAO educativa: o financiamento da educação na Prefeitura do Município de São Paulo: uma análise exploratória de suas fontes e aplicações (1995-2006). 2007. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/financiamentosp.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2014.
    http://www.acaoeducativa.org.br/portal/i...
    ). No final do processo, esse debate rendeu a expulsão do vereador Carlos Giannazi, que se posicionou contrário à modificação legal (PT EXPULSA VEREADOR…, 2002PT expulsa vereador que votou contra Marta. Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u49480.shtml>. Acesso em: 28 jan. 2014.
    http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotid...
    )
  • 20
    A decisão por onde começar as ações foi permeada pela preocupação de evitar a politização na formulação dos critérios. Optou-se por implementar o programa inicialmente em três distritos de diferentes regiões da cidade, Lageado, Capão Redondo e Jardim Ângela, que apresentavam as maiores taxa de desemprego, maior índice de violência e menor renda familiar (FONSECA, 2012FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres.). Contudo, não havia estrutura institucional ou rede política e social que desse apoio na abordagem dos beneficiários nas regiões periféricas e para organizar o cadastramento. Neste sentido, a estratégia de mobilização dos equipamentos públicos nas administrações regionais, ou que se denominou de mobilização de um governo local, foi fundamental para o sucesso de empreitada em uma megalópole como São Paulo. “A meta estabelecida para o primeiro ano de governo (60 mil famílias) foi cumprida e ultrapassada” (SOUSA et al., 2002, pSOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71., p. 92).
  • 21
    Para exemplificar esta crítica na área da educação, veja Campos (2003)CAMPOS, M. M. Educação e políticas de combate à pobreza.Revista Brasileira de Educação, n. 24, p. 183-191, 2003. e Ação Educativa (2007)AÇAO educativa: o financiamento da educação na Prefeitura do Município de São Paulo: uma análise exploratória de suas fontes e aplicações (1995-2006). 2007. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/financiamentosp.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2014.
    http://www.acaoeducativa.org.br/portal/i...
    .
  • 22
    Exemplos de avaliação ex-post: Pochmann (2003POCHMANN, M. (Org.). Outra cidade é possível: alternativas de inclusão social em São Paulo. São Paulo: Cortez, 2003.; 2004bPOCHMANN, M. (Org.). Reestruturação produtiva: perspectivas de desenvolvimento local com inclusão social. São Paulo: Vozes, 2004b.).
  • 23
    Há um longo relato das tentativas de coordenar ações e unificar programas envolvendo o Governo Federal e o governo do Estado (ambos do PSDB à época), por parte do governo. municipal, em Sousa et al. (2002)SOUSA, A. J. et al. Programas redistributivos. In: POCHMANN, M. (Org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/ Editora Cortez, 2002. p. 15-71..
  • 24
    Ver Tomazini (2010)TOMAZINI C. La construction des politiques de transferts monétaires conditionnels: entre consensus et dissentiments: une analyse de la lutte contre la pauvreté au Brésil et au Mexique. 2010. 250 f. Dissertação (Mestrado)- Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, Université Paris III, La Sorbonne Nouvelle, 2010..
  • 25
    Sistema Único de Assistência Social.
  • 26
    Conforme Farah (2008)FARAH, M. F. S. Disseminação de inovações e políticas públicas e espaço local. Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 121-126, 2008., o desafio analítico que surge é analisar não somente o movimento de disseminação no mesmo campo ideológico, mas entre campos, como demonstra o caso do orçamento participativo, que se tornou conhecido na experiência de Porto Alegre, mas que se disseminou entre municípios de diferentes partidos e campos ideológicos.
  • 27
    Segundo Fonseca (2012)FONSECA, A. M. M. [17 de agosto de 2012].Campinas, SP: Nepp/Unicamp. Entrevista concedida a Cristiane Kerches da Silva Leite e Ursula Dias Peres., as divergências eram duras, como no debate da porcentagem da frequência escolar mínima no programa unificado, no qual a equipe do Programa Bolsa Escola defendia 85% de frequência, enquanto a equipe da Ana Fonseca defendia 75%. Como se sabe, até hoje as regras de condicionalidade do Programa Bolsa Família preveem 85% de frequência escolar.
  • 28
    Naquele contexto ganhou força a discussão sobre o Cadastro Único que enfrentava, desde 2001, muitos problemas. É uma discussão complexa e significativa na implementação do Programa Bolsa Família, mas não é objeto de análise neste trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2014
  • Aceito
    28 Out 2014
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br