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A contribuição da sociologa do conhecimento para os estudos de institucionalização e legitimação do conhecimento do campo científico

The contribution of sociology of knowledge for the studies of institutionalization and legitimation of the knowledge scientific field

Resumo

A divulgação de um novo conhecimento para a sociedade está sujeita a processos específicos de reconhecimento e incorporação. Para que esses fenômenos ocorram, o novo conhecimento necessita ser institucionalizado e legitimado. Nesse sentido, esta pesquisa de revisão teórica apresenta como objetivo identificar, na abordagem da sociologia do conhecimento proposta por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., os elementos que possibilitam sua utilização nos estudos de institucionalização e legitimação do conhecimento do campo científico. As conclusões deste ensaio teórico apontam que a argumentação dos processos de institucionalização e legitimação do conhecimento, proposta por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., se apresenta como um referencial teórico passível de utilização na análise de campos científicos.

Palavras-chave
Sociologia do conhecimento; Institucionalização; Legitimação

Abstract

The dissemination of new knowledge to society, is subject to specific processes of recognition and incorporation. For these phenomena occur the new knowledge needs to be institutionalized and legitimized. In this sense, this theoretical review of research has as aimed at identifying in the sociology of knowledge, proposed by Berger and Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. the elements that enable their use in studies of institutionalization and legitimization of knowledge of the scientific field. The outcome of the study points out that the argument of the processes of institutionalization and legitimization of knowledge proposed by Berger and Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. is presented as a theoretical framework capable of use in the analysis of scientific fields.

Keywords
Sociology of knowledge; Institutionalization; Legitimation

Introdução

As teorias econômicas apresentam a perspectiva do conhecimento como principal elemento da chamada sociedade da informação, que se insere no contexto da economia baseada no conhecimento, conforme proposto por Dahlman (2002)DAHLMAN, C. J. A economia do conhecimento: implicações para o Brasil. In: VELLOSO, J. P. R. (Org.). O Brasil e a economia do conhecimento. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. 574 p. e Castells (2007)CASTELLS, M. A era da informação: a sociedade em rede. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007., e na economia baseada na aprendizagem, apresentada por Foray e Ludavall (1996)FORAY, D.; LUNDAVALL, B. A. The knowledge-based economy: from the economics of knowledge to the learning economy. In: OECD. Employment and growth in the knowledge-based economy. Paris: OECD, 1996.. Nessa perspectiva, o conhecimento se constitui no elemento nuclear da economia, substituindo a terra e a indústria como principal componente do sistema capitalista.

A produção de conhecimento e a sua distribuição se consubstanciam no esforço de redução das desigualdades sociais, e como pedra angular no processo de consolidação dessa nova concepção de sociedade, envolta na economia baseada no conhecimento. Nesse cenário, o conhecimento cumpre papel essencial tanto para a acumulação econômica quanto para o funcionamento do próprio Estado e da sociedade. O processo de mudança social coexiste com possibilidades e desafios de desenvolvimento, que surgem das transformações imateriais que influenciam tanto na produção material quanto na produção de intangíveis (MACIEL, 2001MACIEL, M. L. Hélices, sistemas, ambientes e modelos: os desafios teóricos à Sociologia de C&T. Sociologias, Porto Alegre, n. 6, 2001.).

Essa realidade econômica se caracteriza pelo desenvolvimento de novas tecnologias e mudanças contínuas, que alteram a realidade empresarial para uma maior dependência da educação das sociedades. A capacidade de aprender e os processos de aprendizagem são apontados como importantes fatores dessa nova forma de economia (LENHARI; QUADROS, 2002LENHARI, L. C.; QUADROS, R. Recursos humanos nas economias baseadas no conhecimento. Revista Inteligência Empresarial, n. 12, p. 30-38, 2002.). Como apontado por Bengtsson (2002)BENGTSSON, J. Educação para a economia do conhecimento: novos desafios. In: VELLOSO, J. P. R. (Org.). O Brasil e a economia do conhecimento. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. 574 p., o cerne da economia do conhecimento se apoia no volume, na natureza e na direção da produção do conhecimento, na sua disseminação e no seu uso. O âmago da estrutura dessa nova economia se estabelece nas relações da sociedade, posicionando a sociologia do conhecimento como um importante referencial teórico para entendimento desse fenômeno.

Envolto no contexto da economia baseada no conhecimento, que se apresenta fracionada por especialidades, é possível prospectar o conhecimento utilizando o conceito de campo de Bourdieu (1992BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.; 2006)BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 322 p.. Segundo esse autor, o campo se configura a partir de relações estabelecidas entre posições definidas e determinantes para os ocupantes, agentes ou instituições (BOURDIEU, 1992BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.). Nesse contexto, o campo está inserido em uma disputa de poder e, como uma variável central, envolto na luta de interesses.

Essas posições envolvem tanto a relação de dominação e subordinação quanto a aquisição de recursos expressos de diversas formas e, normalmente, denominados como capital. Nesse sentido, é necessário considerar o valor que os atores atribuem a esse capital específico (capital simbólico). Surge, assim, o conceito de espaço social, caracterizado por um intrincado conjunto de campos disputando a própria representação no mundo social (BOURDIEU, 2006BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 322 p.). Na proposição de Bourdieu (2006)BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 322 p., o capital simbólico possibilita, para alguns atores, o poder simbólico que possui potencial para configurar o habitus do campo. O habitus se caracteriza como uma estrutura que provê as regras práticas que edificam o arcabouço social e pautam as ações dos agentes. Nesse sentido, para Bourdieu (2006)BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 322 p., cada campo é detentor de um conjunto de práticas, normas, valores, estilos, gostos e restrições que estabelecem o habitus que configura as condições sociais.

Segundo Bourdieu (1983)BOURDIEU, P. O campo científico. In: BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983., as relações de poder e conflitos, decorrentes das ações que os atores realizam no esforço de impor a sua visão no campo, também são comuns aos campos científicos. Para ele, o raciocínio aplicável ao campo é passível de reprodução no campo científico. Nas palavras do autor, o campo científico é “[...] um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólio, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros” (BOURDIEU, 1983BOURDIEU, P. O campo científico. In: BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983., p. 128). Tal abordagem configura o campo como um corpo de conhecimento em contínua construção, que se apoia em pesquisas empreendidas para responder aos problemas que se estabelecem.

Nesse aspecto, a área acadêmica desempenha importante papel no processo de produção e disseminação de conhecimento nessa conjuntura social que se estabelece. Tal importância, entre outros fatores, se manifesta por publicar, em revistas científicas, o conhecimento desenvolvido nas pesquisas, viabilizando, assim, o seu compartilhamento.

No entanto, vale salientar que apenas a divulgação do conhecimento não assegura o seu reconhecimento e a sua incorporação pela sociedade. Nesse cenário, emana a necessidade de identificar processos que interpretem e classifiquem a difusão do conhecimento produzido no meio acadêmico.

Entre as diferentes abordagens de interpretação e classificação da difusão do conhecimento produzido na academia, este estudo destaca a de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., originada na sociologia do conhecimento. Esses autores apontam a objetivação, a institucionalização e a legitimação como sequenciamento possível no processo de incorporação do conhecimento pela sociedade.

A abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. apresenta um consistente arcabouço teórico, empregado em várias áreas de interesse da sociedade, inclusive nos estudos destinados a identificar a institucionalização do conhecimento. No entanto, a utilização da abordagem desses autores nos estudos de bibliometria e/ou mapas sociométricos se limita a referências pontuais da sua proposição, não avançando na incorporação de seus conceitos na dinâmica de justificar os resultados observados.

Nesse contexto, este estudo tem como objetivo identificar, na abordagem teórica da sociologia do conhecimento proposta por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., os elementos que possibilitam sua utilização nos estudos de institucionalização e legitimação do conhecimento do campo científico. Assim, se estabelece a ambição de que essa revisão da obra dos autores amplie a utilização de seus conceitos nos estudos de bibliometria e na análise de redes sociais.

Esta pesquisa se desenvolve por meio da revisão da teoria apresentada por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.. Nesse âmbito, analisam-se as perspectivas e os conceitos da sociologia do conhecimento propostos pelos autores, o que permite a síntese de um quadro com os principais itens associados ao contexto do estudo do campo científico.

Este artigo apresenta este capítulo introdutório, que adicionalmente contempla o método de pesquisa. Na sequência, a revisão teórica da abordagem da sociologia do conhecimento, proposta por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.. O capítulo da discussão aponta adjacências da abordagem desses autores com a de outros, também utilizados no campo científico, e encerra com as considerações finais, apresentando propostas para estudos aplicados em redes sociais e bibliometria.

Revisão teórica

Destaca-se no estudo da sociologia a abordagem da sociologia do conhecimento, com ênfase na proposta de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., que aprofunda o entendimento sobre como a realidade das pessoas é socialmente construída.

A abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. posiciona o indivíduo como elemento principal no processo de desenvolvimento do conhecimento individual e social. “A autoprodução do homem é sempre e necessariamente um empreendimento social” (p. 75). De acordo com os autores, o processo de desenvolvimento do ser humano está relacionado ao ambiente natural a que se correlaciona, e sujeito a uma ordem cultural e social específica.

Emerge, assim, o conceito de ordem social como produto humano no curso do seu processo de compartilhamento com a sociedade a que pertence. Logo, a ordem social não pertence à natureza, mas é um produto da atividade humana. A exteriorização do ser humano é apontada por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. como uma necessidade antropológica em que o ser humano, de forma progressiva e continuada, transmite aos demais a sua produção.

Para Berger e Berger (1977)BERGER, P.; BERGER, B. O que é uma instituição social? In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977. 368 p., a instituição se configura como um padrão compartilhado de ações cotidianas em esferas da vida social específicas. A transmissão do padrão ao longo do tempo, de geração para geração, estabelece a constituição das instituições. Sob esse aspecto, as instituições se configuram como um conjunto articulado de ideias, normas, valores e sentimentos, socialmente estabelecidos, que orientam a ação em campos específicos da conduta humana. Berger e Berger (1977, p. 193)BERGER, P.; BERGER, B. O que é uma instituição social? In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977. 368 p. definem “[...] a instituição como um padrão de controle, ou seja, uma programação da conduta individual imposta pela sociedade”.

Segundo Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., a repetição de uma mesma atividade tende a estabelecer um padrão de ação, que pode ser apreendido e reproduzido por outros. Essa repetição possibilita a formação do hábito que fornece direção e especialização para o homem realizar suas atividades, de forma que não necessite definir as ações envolvidas nos eventos rotineiros. A formação do hábito se torna um pré-requisito do processo de institucionalização de um único indivíduo ou um grupo social. Para os autores, “[...] esses processos de formação de hábitos precedem toda institucionalização. Assim, eles podem ser aplicados a um hipotético indivíduo solitário, destacado de qualquer interação social” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 78), ainda, como uma possibilidade individual, mesmo que teórica.

Portanto, a formação do hábito pelo ser humano possibilita o estabelecimento de sua institucionalização. Nesse contexto, é necessário que os indivíduos envolvidos compartilhem o caráter típico das ações. Assim, um conjunto de atores exercendo ações típicas e de rotina caracteriza uma tipificação que, por sua vez, estabelece uma instituição.

A compreensão de uma instituição envolve o entendimento do processo histórico que a originou e o padrão de conduta determinante. Esse padrão de conduta estabelece o perfil controlador inerente à institucionalização, que, juntamente com os mecanismos de sanção, constitui o sistema de controle social.

Para Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., o estabelecimento de uma rotina possibilita a divisão das atividades entre os membros de um grupo social, abrindo-se, assim, espaço para o surgimento de inovações. Dessa forma, a divisão do trabalho e as inovações constituem-se em componentes que fomentam novos hábitos, que, por sua vez, constroem um mundo social baseado em uma ordem social em expansão.

Quando um indivíduo observa uma condição de repetição de ações desenvolvidas por outro, que caminha para se tornar um hábito, desenvolve inicialmente um protocolo de tipificação da sua parte. Caso as ações em repetição sejam importantes para as duas partes e se insiram em uma situação social duradoura, surge a possibilidade de se estabelecer uma tipificação recíproca. Dessa forma, os hábitos e as tipificações desses indivíduos que, até o momento, eram circunscritos a uma atividade específica, tornam-se instituições históricas.

Segundo Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., quando as formações estabelecem a historicidade, tem-se o surgimento ou o aperfeiçoamento de uma qualidade, até então incipiente, entre os atores que desencadearam a tipificação compartilhada de uma conduta. “Esta qualidade é a objetividade” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 84). Diante dessa objetividade, temos uma instituição que influencia, de forma coerciva, os demais indivíduos. Nas palavras dos autores “[...] experimentam-se as instituições como se possuísse realidade própria, realidade com a qual os indivíduos se defrontam na condição de fato exterior e coercivo” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 84).

Na medida em que a objetividade evolui do grupo inicial, que se apresenta de forma mais tênue, para um agrupamento maior de indivíduos, a objetividade do mundo institucional apresenta-se mais rígida a todos. Nessa condição, temos um mundo real mais consciente e, consequentemente, mais difícil de ser alterado. Dessa maneira, como mundo objetivo, as formações sociais são passíveis de transmissão a um novo agrupamento ou geração. No entanto, destaca-se também o poder coercivo estabelecido, no qual o indivíduo é inserido em um contexto que deve ser apreendido como único e verdadeiro.

A exteriorização da produção, pelo homem, é uma atividade que adquire o caráter de objetividade e é entendida como um processo, denominado objetivação. Assim, a relação entre o homem, o produtor e o mundo social estabelece uma ligação de reciprocidade das partes, na qual a exteriorização e a objetivação são componentes de um contínuo processo dialético. Esse processo é marcado pela discussão, contraposição e contradição de ideias que caminham para o estabelecimento de um consenso socialmente aceito. O estabelecimento de um consenso é caracterizado pela interiorização da objetivação pelos indivíduos pertencentes a esse mundo social.

Surge, assim, a legitimação, que é a transmissão do mundo institucional de uma geração para outra. Nesse contexto, o padrão de controle estabelecido por uma geração é incorporado pela geração seguinte, somado à possibilidade de explicação e justificação. Desse modo, a realidade da sociedade torna-se cada vez mais compacta no curso de sua transmissão e a disseminação dessa realidade pode restringir a possibilidade de acesso ao significado original das instituições, pelo não compartilhamento da memória original. Nesse contexto, Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. destacam a importância das fórmulas legitimadoras. “Torna-se, por conseguinte, necessário interpretar para eles este significado em várias fórmulas legitimadoras. Estas terão de ser consistentes e amplas no que se refere à ordem institucional, a fim de levarem à convicção a nova geração” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 88). O resultado da atividade deve ser disponibilizado para todos os componentes do grupo social, expandindo-se, assim, a ordem institucional e estabelecendo um “[...] correspondente manto de legitimações, que estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações cognoscitivas e normativas” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 88). As novas gerações apreendem essa legitimação concomitante ao processo que se socializa na ordem institucional.

Os indivíduos podem apresentar restrições para aceitar a ação de institucionalização da sociedade a que pertencem, em grande parte por não terem participado do seu processo de estabelecimento. Diante dessa possibilidade de desvio, as instituições exercem autoridade (ação coerciva) sobre o indivíduo, a fim de garantir a aceitação de suas definições, sem a possibilidade de serem redefinidas, garantindo, assim, sua legitimação (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.).

Para Berger e Berger (1977, p. 193)BERGER, P.; BERGER, B. O que é uma instituição social? In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977. 368 p., “[...] a linguagem é uma instituição”. Os autores apontam ainda a linguagem como a primeira instituição na qual o indivíduo se incorpora e, além disso, se constitui na instituição fundamental da sociedade. Segundo Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., as legitimações possuem na linguagem tanto o elemento de elaboração quanto o de disseminação. A linguagem possibilita a integração funcional ou lógica dos hábitos ou da institucionalização a ser difundida para os indivíduos ou coletividades. Nas palavras dos autores, “[...] a lógica atribuída à ordem social faz parte do acervo socialmente disponível do conhecimento, tomado como natural e certo” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 92).

O conhecimento se apresenta em dois níveis: primário e secundário. O primário relaciona-se com o pré-teórico, que se constitui na instituição de um conjunto de conhecimentos que estabelecem as regras básicas de conduta entendidas como adequadas pela sociedade. Nessa situação, o conhecimento é objetivado pela sociedade, que, por sua vez, considera desvios como afastamento da realidade. Sua principal característica se constitui na estrutura básica na qual se assentam os futuros conhecimentos, denominados secundários.

As experiências que ficam retidas no indivíduo são consideradas sedimentadas e, assim, consolidam a apreensão do conhecimento. No contexto da sociedade, a sedimentação é social na medida em que se pode repetir a objetivação das experiências compartilhadas por meio da linguagem, assumindo o status de “[...] base e instrumento de acervo coletivo do conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 96). Assim, a linguagem é que possibilita a objetivação de novas experiências, que se consubstanciam no estoque de conhecimento existente. Sob esse aspecto, a linguagem permite as sedimentações coletivas de forma coerente, sem a necessidade de reconstrução do processo original.

Tanto a aquisição do conhecimento quanto sua transmissão decorrem dos significados objetivados na atividade institucional. A transmissão do conhecimento está subjugada a um aparelho social, que se traduz na relação entre transmissor e receptor.

O transmissor do conhecimento, no contexto das instituições, está envolvido em um conjunto de procedimentos de controle e de legitimação que estabelece uma coerência lógica, típica de cada instituição. Essa coerência lógica pode encontrar dificuldades de legitimação, em decorrência de conflitos ou de competições dos indivíduos envolvidos e/ou de socialização, provenientes da dificuldade de interiorização de sucessivos e concomitantes significados sociais.

Dessa forma, o resultado das pesquisas desenvolvidas no meio acadêmico ou nos centros de pesquisa é objetivado por meio dos artigos científicos. A publicação dos artigos científicos expressa tanto a objetivação do novo conhecimento resultante das pesquisas quanto o veículo que possibilitará a sua coerente sedimentação pela sociedade. Vale destacar que, nesse contexto, o artigo científico é interpretado como linguagem na abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008..

As ações de um indivíduo e de outros, que compõem uma rede de socialização de forma tipificada, possibilitam originar uma ordem institucional. Nesse sentido, observa-se entre os envolvidos: i) finalidade específica; ii) fases de desempenho entrelaçadas; iii) ações específicas tipificadas e iv) formas de ação tipificadas (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.). Tal configuração faz com que qualquer ator dessa rede social repita determinada ação tipificada, desde que haja um sentido objetivo dela. A Figura 1 mostra essa sequência de atividades que origina a ordem institucional.

Figura 1
Origem da ordem institucional.

Em uma ordem institucional, uma determinada ação, bem como o seu sentido, podem ser apreendidos por qualquer indivíduo pertencente à sua rede social. Assim, a execução dessa ação decorre de ações objetivas, conhecidas e passíveis de repetição por qualquer ator dessa rede social.

Para Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., após a realização de uma ação, o indivíduo deve ainda desenvolver uma reflexão, a fim de estabelecer a sua interiorização, o “eu individual”, no entanto, de forma distinta do “eu social”. Destacando a narrativa dos autores, “[...] o ator identifica-se com as tipificações da conduta in actu socialmente objetivadas, mas restabelece a distância com relação a elas quando reflete posteriormente sobre sua conduta” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 102). Emana, assim, o conceito de papéis, que é a atuação de atores junto ao acervo objetivado de conhecimentos, comum a uma rede social. Os papéis protagonizados pelos indivíduos estabelecem uma tipologia, necessária para a institucionalização da conduta, pois as instituições apropriam-se da experiência do indivíduo, por meio dos papéis que desempenham.

O mundo social, objetivado e acessível a qualquer sociedade, se constitui das experiências individuais desenvolvidas no contexto de papéis de uma instituição. Assim, por meio da interiorização de um papel, o indivíduo estabelece sua realidade e participação no mundo social. Os papéis desempenhados pelos atores representam a própria ordem institucional, pois possibilitam a continuidade das instituições por meio do desenvolvimento de suas experiências reais. Segundo Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., os papéis exercem ainda a importante função social de integrar as diversas instituições em um mundo dotado de sentido. Estabelece, assim, a condição de aparelho legitimador da sociedade.

Cada papel impõe a possibilidade de adentrar em uma parcela específica do acervo total de conhecimento possuído pela sociedade. Entre os papéis de uma instituição, para efeitos deste estudo, destaca-se o de mediador do acervo comum de conhecimento de setores específicos. Ao assumir esse papel, o indivíduo é inserido em um conhecimento específico socialmente objetivado. Vale destacar que esse acervo encontra-se estruturado para destacar a sua relevância, que pode ser tanto do conhecimento geral quanto do conhecimento relevante para papéis particulares. Nas palavras dos autores, “[...] a distribuição social do conhecimento acarreta uma dicotomização no que se refere à importância geral e à importância para papéis específicos” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 107). Destarte, a sociedade se organiza de forma a possibilitar que certos atores possam se dedicar a atividades específicas, a fim de acumular e produzir conhecimentos especializados. Portanto, esses atores especialistas posicionam-se na condição de gerenciadores desse conhecimento. Os autores destacam que “em todos esses casos os especialistas tornam-se administradores dos setores do cabedal do conhecimento que lhes foi socialmente atribuído” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 108). O reconhecimento de que os especialistas são detentores de conhecimentos específicos possibilita que qualquer membro da sociedade possa recorrer a eles, quando houver necessidade. Os especialistas incorporam assim a função de auxiliar os leigos a entenderem o conhecimento específico.

A relação entre papéis desempenhados e o conhecimento configura-se como fundamental tanto na perspectiva de representação da ordem institucional – mediando conjuntos de conhecimentos institucionalmente objetivados – quanto na qual cada papel é veículo de um determinado conhecimento.

O desenvolvimento das atividades especializadas conduz tanto à especialização quanto à segmentação do estoque comum de conhecimento. Em decorrência da segmentação, emana o contexto de prestígio social dos especialistas, que justifica o fato de os atores com melhor reconhecimento possuírem maior probabilidade de institucionalizar seu conhecimento.

A institucionalização de um conhecimento pode apresentar uma extensão mais vasta ou mais estreita das suas estruturas importantes. O compartilhamento de forma generalizada pela sociedade de estruturas importantes indica uma ampla institucionalização do conhecimento, ao passo que um limitado compartilhamento aponta para uma restrita institucionalização.

A sociedade disponibiliza o acervo de conhecimento, porém, sua extensão e atualização são particulares para cada indivíduo. Assim, o indivíduo tem à sua disposição o sentido objetivo da ordem institucional, admitido como natural e certo, entretanto, ele pode apresentar dificuldades de interiorização dos significados. Essa dificuldade se origina na consciência reflexiva de cada indivíduo, condicionada à sua lógica e experiência de institucionalização. Nesse sentido, é possível entender e aceitar a coexistência de processos institucionais distintos, sem a integração total pela sociedade (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.).

A segmentação da ordem institucional e a contínua geração e distribuição do conhecimento determinam o desafio de estabelecer significados integradores que abarquem a sociedade e ofertem um contexto de sentido objetivo para a experiência e o conhecimento social do indivíduo. Esse cenário apresenta ainda o desafio de legitimação institucional entre os diferentes tipos de atores que, por vezes, podem estar em conflito de interesses (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.). A segmentação social possibilita o estabelecimento de subuniversos de significação socialmente separados, nos quais o desenvolvimento de um determinado conhecimento específico pode se tornar obscuro na comparação com o acervo comum de conhecimento. Os subuniversos de significados podem se originar de diferentes arranjos sociais, tais como sexo, idade, escola de pensamento, entre outros.

A continuidade do subuniverso está associada a um grupo social que irá assegurar a sua existência e a manutenção do significado em questão, principalmente nas ocasiões em que se estabelecer conflito com a produção de outros especialistas. Berger e Luckmann (2008, p. 118)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. apontam que “[...] estes conflitos sociais traduzem-se facilmente em conflitos entre escolas rivais de pensamento, cada qual procurando estabelecer-se e desacreditar, quando não liquidar, o corpo de conhecimento competidor”. No entanto, os autores destacam que um corpo de conhecimento (universo científico de significação) pode atingir um determinado grau de autonomia, que se desassocie do grupo social que o originou, possibilitando assim, inclusive, uma ação de retorno sobre o grupo social que o estabeleceu.

À medida que se aumenta a quantidade de subuniversos existentes, associados, ainda, ao respectivo avanço da autonomia de cada um deles, emana respectivamente a dificuldade nos processos de legitimação. Essa dificuldade de legitimação é constatada entre leigos de um universo científico de significação, tanto por não conhecerem todas as opções existentes quanto por não compreenderem efetivamente qual devem adotar. Para os já iniciados, o desafio consiste na sua permanência em um universo científico de significação, pois a troca deste por outro emergente pode comprometer a legitimação do primeiro.

A variação de velocidade dos processos desenvolvidos pelas instituições e pelos subuniversos científicos de significação irá influenciar na maior ou menor dificuldade de implantar a legitimação global da ordem institucional, e das legitimações específicas de determinadas instituições e subuniversos.

Para Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., a necessidade de legitimação origina-se quando as objetivações de ordem institucional necessitam ser transmitidas de uma geração para outra. A transição do corpo de conhecimento de uma geração para outra envolve a transmissão das objetivações de ordem institucional a indivíduos que não possuem a memória e os hábitos originais, e que só realizam a incorporação do novo conhecimento se o identificarem como plausível. Dessa forma, se a harmonia histórica e biográfica do indivíduo é rompida, para restaurá-la, são necessárias explicações e justificativas dos elementos da tradição institucional. Destacando a narrativa dos autores, “[...] tornando assim inteligíveis ambos os aspectos dessa unidade, é preciso haver explicações e justificativas dos elementos salientes da tradição institucional. A legitimação é este processo de ‘explicação’ e ‘justificação’” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 128).

Um aspecto importante da legitimação é que ela não se restringe à transmissão de valores, pois, ao justificar uma ordem institucional, ela envolve também a transmissão do conhecimento. A legitimação não apenas aponta para o indivíduo que ação deve realizar em detrimento de outras, mas avança no sentido de justificar por que “as coisas são o que são”. Nesse sentido, o conhecimento antecede os valores na legitimação das instituições. Assim, “[...] a legitimação justifica a ordem institucional, dando dignidade normativa a seus imperativos práticos” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 128).

Emana, assim, a concepção do universo simbólico como matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. O indivíduo identifica a sua existência como pertencente a esse contexto, pois todas as situações da sua vida cotidiana são abarcadas pelo universo simbólico. O conjunto de teorias legitimadoras existentes se estabelece como integrante desse todo, edificado por um conjunto de ordens institucionais. Os autores destacam que “[...] a cristalização dos universos simbólicos segue os processos [...] de objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimento. Isto é, os universos simbólicos são produtos sociais que têm uma história” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 133).

Para Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., os universos simbólicos realizam a legitimação da biografia individual e da ordem institucional de forma semelhante se estiverem apoiados em um processo organizado e ordenado. Sob esse aspecto, o universo simbólico disponibiliza a hierarquia de realidades que subsidiaram a apreensão subjetiva do novo conhecimento pelo indivíduo, de forma inteligível e menos assustadora. Assim, o universo simbólico realiza a legitimação final da ordem institucional, constituindo um conjunto integrado de significados, mesmo para os setores discrepantes da vida cotidiana (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.).

O universo simbólico se origina da objetivação social dos processos de reflexão subjetiva, logo, pela perspectiva cognoscitiva, o universo simbólico é teórico. É no universo simbólico que deve ocorrer a legitimação da ordem institucional, na medida em que essa estabeleça um todo dotado de sentido. Podem surgir problemas que afetem a ordem institucional e, nesse caso, ela deve estabelecer teorias a fim de atender a um novo contexto. Caso não ocorram alterações teóricas, não se observa a necessidade de uma nova legitimação no universo simbólico.

No universo simbólico, podem existir indivíduos que o concebam de maneira distinta, originando-se, assim, variações de interpretação. Quando essas variações de interpretação começam a ser partilhadas por um conjunto de indivíduos, emerge a objetivação de uma nova realidade que irá desafiar a realidade do universo simbólico constituído. Esse conjunto de indivíduos torna-se uma ameaça tanto ao universo simbólico quanto à ordem institucional legitimada pelo universo simbólico em questão. Tal cenário imputa ao universo simbólico a necessidade de reprimir essa ameaça. A legitimação dessa repressão desencadeia a atuação de mecanismos conceituais que atuam de forma a preservar o status quo do universo em relação ao desafio estabelecido. Segundo Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., esses mecanismos conceituais de defesa atuam como componentes de modificação e legitimação do universo simbólico vigente. O mecanismo conceitual de conservação do universo é um produto da atividade social e deve apresentar as melhores razões possíveis, a fim de afirmar a sua superioridade.

Sociedades distintas podem estabelecer um confronto de seus universos simbólicos específicos. Nesse confronto, cada sociedade possui o objetivo de que seu universo simbólico prevaleça sobre o da adversária. Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. destacam que, em paridade ou em virtude da proximidade com a plausibilidade intrínseca, o êxito do universo simbólico está menos associado ao contexto teórico e mais dependente do poder de seus legitimadores.

A ciência moderna apresenta-se como um mecanismo extremamente desenvolvido de conservação do universo simbólico e, como tal, pertencente a uma minoria de especialistas. Tal cenário implica um corpo de conhecimento que se afasta do conhecimento comum da sociedade, em parte caracterizado pelos aspectos sagrados pertencentes a outros mecanismos conceituais de conservação. No entanto, a sociedade reconhece o conhecimento como legitimado, bem como os especialistas responsáveis pela manutenção do universo simbólico. “[...] o membro ‘leigo’ da sociedade não sabe mais como tem de manter conceitualmente seu universo, embora, evidentemente, ainda saiba quem são aqueles que presume serem os especialistas da conservação do universo” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 152).

A terapêutica e a aniquilação se apresentam como duas aplicações do mecanismo conceitual de conservação do universo que merecem destaque. A terapêutica utiliza o mecanismo conceitual para evitar que os indivíduos pertencentes a um universo simbólico migrem para outro. A terapêutica atua nos desvios das definições que se originam no interior do universo simbólico por meio de um corpo de conhecimento, cria um mecanismo conceitual para explicar esses desvios e mantém a realidade que está ameaçada.

A aniquilação utiliza o mecanismo conceitual para liquidar tudo que se situa fora do universo simbólico de uma sociedade, além disso, é também considerada como legitimação negativa. Em um indivíduo ou grupo estranho a uma dada sociedade, não passíveis da terapêutica, a aniquilação atua de forma a negar todo e qualquer fenômeno ou interpretação de fenômeno destoante do universo simbólico da sociedade em questão. A atribuição de um contexto ontológico inferior é o recurso empregado para neutralizar os destoantes do universo simbólico.

O entendimento do universo simbólico, construído e constantemente alterado por uma sociedade, envolve a compreensão do arranjo social dos definidores que fazem a sua definição e o da evolução dos conceitos que construíram essa realidade “do abstrato ‘o que ?’ ao sociologicamente concreto ‘Quem diz?’” (BERGER; LUCKMANN, 2008BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 157). Assim, a divisão do trabalho de forma organizada possibilita a especialização de corpos de conhecimento.

Os especialistas dos novos corpos de conhecimento que se estabelecem atuam com a pretensão de se consolidarem de forma hegemônica no universo simbólico. A aspiração desses especialistas é saber o significado último do que todo mundo sabe e faz, e não o todo. Para Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., desse estágio de desenvolvimento do conhecimento emerge a teoria pura e o fortalecimento das ações institucionalizadas que, por consequência, são legitimadas. Nesse contexto, as ações que se tornaram rotineiras e institucionalizadas possuem uma restrita flexibilidade para alterações, com tendência a se perdurar ao longo do tempo, salvo venham a se tornar problemáticas para a sociedade.

Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. apontam, em sua obra, a importância do indivíduo na legitimação das instituições e dos universos simbólicos, que devem ocorrer no contexto das sociedades e de seus respectivos interesses. As teorias emanam como fruto do processo de legitimação e pertencentes ao contexto histórico de uma sociedade. Em um contexto de retroalimentação, as teorias desenvolvidas tanto legitimam as instituições sociais existentes como também possuem potencial para confirmar as instituições sociais que as originaram, ratificando assim a sua legitimidade. Os especialistas que desenvolvem a legitimação podem se originar tanto da condição de justificadores dos fenômenos que ocorrem nas instituições sociais quanto de fenômenos que emergem em contraposição ao status quo. As transformações sociais se desenvolvem em um contínuo processo de entendimento da realidade e de suas contradições, compreendidas no curso do desenvolvimento histórico. Essas contradições se refletem em uma disputa em que a vencedora irá moldar o universo simbólico. Assim, o núcleo da proposta dos autores é que a sociedade se compõe de universos simbólicos que foram legitimados como produto da ação de indivíduos e de suas interações com o mundo real.

Na sequência, a abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. se insere em um quadro teórico de autores que estudam o campo científico.

Discussão

A sociologia do conhecimento é definida por Camic (2001)CAMIC, C. Sociology of knowledge. In: SMELSER, N.; BATES, P. (Org.). International encyclopedia of the social sciences. Elsevier, 2001. p. 8143-8148. como o somatório de proposições teóricas e estudos empíricos que tratam do relacionamento de processos e produtos da cognição humana em associação com os fatores socioculturais. Adicionalmente, o autor aponta que a sociologia do conhecimento possui a atribuição de tratar as origens e transformações de uma ampla gama de produtos e processos intelectuais. Como exemplos dessas formas de manifestações, destacam-se as ideias, as ideologias, as ciências, as teorias, as visões de mundo, as doutrinas políticas ou religiosas, as crenças morais, entre outras.

Merton (1970)MERTON, R. K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970. é um autor que aparece com destaque nos estudos da área da sociologia do conhecimento. O autor critica a obra de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., publicada inicialmente em 1967, por esses terem negligenciado a análise focada na relação entre os tipos de conhecimento e as bases socioculturais. Vale destacar que Merton (1970)MERTON, R. K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970. desenvolve essa análise tratando os tópicos como esferas de produções mentais e bases existenciais. Segundo Camic (2001)CAMIC, C. Sociology of knowledge. In: SMELSER, N.; BATES, P. (Org.). International encyclopedia of the social sciences. Elsevier, 2001. p. 8143-8148., o trabalho desenvolvido por Merton resultou em um corpo próprio de conhecimento, originando a sociologia da ciência. Nesses termos, pode-se interpretar a sociologia da ciência como um importante subcampo da sociologia do conhecimento (KURZMAN, 1994KURZMAN, C. Epistemology and the sociology of knowledge. Philosophy of the Social Sciences, v. 24, n. 3, p. 267-290, 1994.). Para Guarido Filho (2008)GUARIDO FILHO, E. R. A construção da teoria institucional nos estudos organizacionais no Brasil: o período 1993-2007. 2008. 242 f. Tese (Doutorado em Administração)–Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008., a abordagem de Merton se apoia na institucionalização de dimensões normativas, responsáveis por delinearem a conduta do cientista.

No arcabouço de pesquisadores da sociologia do conhecimento, identifica-se ainda Knorr-Cetina (The manufacture of knowledge, de 1981)KNORR-CETINA, K. D. The manufacture of knowledge. An essay on the constructivist and contextual nature of science. Oxford: Person Press, 1981., que, em artigos de 1977 a 1981, apresentou uma abordagem que se aproxima da teoria construtivista. O cerne dessas pesquisas foi, a partir de experiências realizadas em laboratórios científicos, conhecer a gênese do conhecimento científico, apoiando-se, para tanto, no processo de produção envolvido nessa dinâmica (HOCHMAN, 1994HOCHMAN, G. A ciência entre a comunidade e o mercado: leituras de Kuhn, Bourdieu, Latour e Knorr-Cetina. In: PORTOCARRERO, V. (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. cap. 8.).

Em seus estudos, Moura (2009)MOURA, A. M. M. A interação entre artigos e patentes: um estudo cientométrico da comunicação científica e tecnológica em biotecnologia. 2009. 269 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Informação)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. apresenta dois pontos que merecem destaque. O primeiro está ligado ao dinamismo da área de sociologia do conhecimento. Para tanto, recorre a Rodrigues Júnior (2002)RODRIGUES JÚNIOR, L. Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da sociologia do conhecimento: é possível uma solução construtivista? Episteme, Porto Alegre, n. 14, p. 115-138, jan./jul. 2002., que apresenta uma denominação mais ampla e integradora do estudo da sociologia do conhecimento e da sociologia da ciência – a Sociologia do Conhecimento Científico. Segundo Rodrigues Júnior (2002)RODRIGUES JÚNIOR, L. Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da sociologia do conhecimento: é possível uma solução construtivista? Episteme, Porto Alegre, n. 14, p. 115-138, jan./jul. 2002., essa área se destina a estudar tanto os aspectos estruturais que abarcam as diversas influências dos fatores sociais e cognitivos no domínio das organizações científicas quanto as questões concernentes à origem e à legitimação do conhecimento científico. O segundo aspecto relaciona-se à crítica de que os estudos da sociologia da ciência não possibilitam identificar os efeitos sociais da ciência, apesar da sua importância na identificação, descrição e medição da própria ciência. Moura (2009)MOURA, A. M. M. A interação entre artigos e patentes: um estudo cientométrico da comunicação científica e tecnológica em biotecnologia. 2009. 269 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Informação)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. apoia tal afirmação nos estudos de Bem-David (1975)BEM-DAVID, J. Sociologia da ciência. Rio de Janeiro: FGV, 1975. 190 p., que ressaltam que o grande volume e a alta difusão dos efeitos sociais da ciência tornam inviáveis as tentativas de analisá-los de forma individualizada.

Bourdieu (1991)BOURDIEU, P. The peculiar history of science reason. Sociological Forum, v. 6, n. 1, p. 3-26, 1991. propõe que a disputa política, que se desenvolve sobre a propriedade científica, incorpora ainda a questão epistemológica do significado e da natureza das descobertas científicas. Tal acepção configura o campo científico como uma arena de disputas, na qual os cientistas pleiteiam o monopólio da autoridade e da competência científica. Para Santos Júnior (2000)SANTOS JÚNIOR, V. L. dos. Organização e interação dos pesquisadores na prática científica: um estudo de grupos de pesquisa da UFRGS. 2000. 103 f. Dissertação (Mestrado de Filosofia e Ciências Humanas)–Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000., os consumidores/clientes do campo são os próprios pares/concorrentes do produtor do conhecimento. Dessa forma, temos a configuração da importância do arranjo social que estrutura e sustenta o campo científico e a dependência deste para com os demais campos científicos. A proposta de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. para a ordem institucional apresenta similaridades com esse significado. Para os autores, a legitimação de uma ordem institucional se insere em uma conjuntura de conflitos e competições, cujos autores pleiteiam a prevalência de suas proposições. A abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. estabelece uma perspectiva indissociável entre o arranjo social e o indivíduo, pois posiciona que sociedades distintas podem estabelecer confrontos de seus universos, de tal forma que a sociedade vencedora impõe seu universo sobre a sociedade adversária, inserindo, assim, as disputas na esfera das sociedades. No entanto, os autores também afirmam que os papéis desempenhados pelos atores representam a própria ordem institucional. Assim, apesar de as disputas ocorrerem no âmbito dos arranjos sociais, elas se desenvolvem por meio dos papéis desempenhados pelos atores no arranjo social. Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. asseveram a importância do papel do ator na disputa, ao afirmarem que o êxito do universo simbólico está mais dependente do poder de seus legitimadores do que da plausibilidade intrínseca da teoria apresentada, isso, obviamente, em uma situação de paridade entre as partes.

Entre os papéis desempenhados em uma instituição, o de mediador do acervo comum de conhecimento de setores específicos se destaca por tornar-se administrador do cabedal do conhecimento que lhe foi socialmente atribuído. Tal posição tem importância por ser o referencial ao qual a sociedade irá recorrer quando da necessidade de entender um conhecimento específico da área. A relação dos papéis desempenhados e o conhecimento configuram-se como fundamentais, tanto na perspectiva de representação da ordem institucional – mediando conjuntos de conhecimentos institucionalmente objetivados – quanto na qual cada papel é veículo de um determinado conhecimento.

A abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. pode se beneficiar dos estudos de bibliometria e de cienciometria, na medida em que esses, ao apontarem os principais autores de um campo científico, também estão expressando, de forma análoga, os autores que ocupam o papel de mediador do acervo comum de conhecimento. Essas técnicas não revelam em si o conhecimento, mas sim os autores que conformam a ordem institucional e que possibilitam a continuidade das instituições por meio do desenvolvimento de suas experiências reais. Para os autores, os papéis são responsáveis por integrar as diversas instituições, estabelecendo um universo simbólico dotado de sentido. Estabelece, assim, a condição de aparelho legitimador da sociedade.

A concepção da ciência como instituição social desperta o interesse em diagnosticar a dinâmica social que estrutura a comunidade científica. Sob as análises desenvolvidas nessa esfera de interesse, destacam-se os estudos realizados por Merton (1988)MERTON, R. K. The Matthew effect in science, II: cumulative advantage and the symbolism of intellectual property. Isis, v. 79, p. 606-623, 1988., que, entre muitas contribuições apresentadas, propõe o Efeito Mateus, o qual se insere na discussão de valores da ciência. Para o entendimento do Efeito Mateus, torna-se necessário a elaboração de um pequeno preâmbulo que destaca a importância atribuída por Merton (1957)MERTON, R. K. Priorities in scientific discovery: a chapter in the sociology of science. American Sociological Review, v. 22, n. 6, p. 635-659, 1957. à originalidade e à sua respectiva posição como valor soberano da ciência, sobretudo por configurar seu próprio avanço. Tal contexto revela um ponto de interesse dos cientistas, o sistema de reconhecimento e recompensas, seja ele material ou simbólico. Para o autor, o sistema de recompensas e de reconhecimento da ciência se constitui em uma instituição social, e se, por um lado, resguarda a primazia sobre a originalidade, por outro, demanda a necessidade de universalização do conhecimento para possibilitar a sua validade e a sua legitimidade. Assim, tanto a propriedade científica quanto o sistema de recompensas decorrem das relações interativas dos cientistas, que resultaram no reconhecimento social do conhecimento. Sob esse aspecto, o conhecimento é disponibilizado ao público que tem livre utilização sobre ele (MERTON, 1988MERTON, R. K. The Matthew effect in science, II: cumulative advantage and the symbolism of intellectual property. Isis, v. 79, p. 606-623, 1988.). Quanto mais o conhecimento for utilizado por outros cientistas, mais os pares reconhecem a contribuição proporcionada pelo trabalho realizado, afirmando, assim, a propriedade intelectual. Para Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., somente com o processo de universalização do conhecimento se constrói as bases que potencializam os processos de institucionalização e legitimação do conhecimento. Nesse processo, é envolvida a legitimação da própria ordem institucional e, em última estância, do universo simbólico. Apesar de o enfoque de Merton (1957MERTON, R. K. Priorities in scientific discovery: a chapter in the sociology of science. American Sociological Review, v. 22, n. 6, p. 635-659, 1957.; 1988)MERTON, R. K. The Matthew effect in science, II: cumulative advantage and the symbolism of intellectual property. Isis, v. 79, p. 606-623, 1988. se voltar para o sistema de recompensas e o de Berger e Luckmann (2008) para a institucionalização da ordem institucional, observa-se similaridade entre as abordagens desses autores, na ênfase à socialização do conhecimento.

Apesar da possibilidade de discussão dos aspectos éticos dessa dinâmica do campo científico, o Efeito Mateus atua de forma a dar maior visibilidade para os autores de destaque de uma determinada ordem institucional, reforçando assim a proposição de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. sobre a importância do papel dos especialistas. Tal dinâmica social, em parte, é justificada por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., ao afirmarem que os papéis desempenhados pelos autores representam a própria ordem institucional. Nessa perspectiva, uma maior atribuição de reconhecimento aos autores mais conhecidos – ação essa desenvolvida pelos seus pares – tem a finalidade de reforçar a própria institucionalização da ordem institucional pelo grupo social que a suporta.

Vale destacar que, para Bourdieu (2006)BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 322 p., o campo científico se configura como um campo de embates dos cientistas na busca do monopólio da autoridade e da competência científica. As análises contributivas de Merton (1988MERTON, R. K. The Matthew effect in science, II: cumulative advantage and the symbolism of intellectual property. Isis, v. 79, p. 606-623, 1988.; 1995)MERTON, R. K. The Thomas theorem and the Matthew effect. Social Forces, v. 74, n. 2, p. 379-424, 1995. demonstram a importância e as limitações do sistema de autoria e de citação da produção científica, que devem ser consideradas quando do desenvolvimento de estudos do campo científico.

O exercício de relatar as citações e as referências expressa publicamente a propriedade intelectual da obra, possibilitando, ao longo do tempo, que as considerações apresentadas na obra sejam reconhecidas (GUARIDO FILHO, 2008GUARIDO FILHO, E. R. A construção da teoria institucional nos estudos organizacionais no Brasil: o período 1993-2007. 2008. 242 f. Tese (Doutorado em Administração)–Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.). Segundo Small (2004)SMALL, H. On the shoulders of Robert Merton: towards a normative theory of citation. Scientometrics, v. 60, n. 1, p. 71-79, 2004. , quando os cientistas adotam uma literatura como base de seus estudos, eles estão estabelecendo as estruturas de suas comunidades. Ainda, segundo esse autor, os cientistas estão envoltos no contínuo processo de interpretar e adaptar os conhecimentos do campo científico, tendo como base o conhecimento já institucionalizado e legitimado. Nesse sentido, Small (2004)SMALL, H. On the shoulders of Robert Merton: towards a normative theory of citation. Scientometrics, v. 60, n. 1, p. 71-79, 2004. e Cronin (2004)CRONIN, B. Normative shaping of scientific practice: the magic of Merton. Scientometrics, v. 60, n. 1, p. 41-46, 2004. explanam que, ao realizar as citações, os autores estão declarando o entendimento das bases às quais se atribuíram o reconhecimento e as recompensas do campo científico, e não somente construindo e atribuindo significado ao texto. Esse contexto reputa as citações e as referências, tanto em relação à condição de elemento indicativo de prestígio ao pesquisador quanto de estruturação do agrupamento social que delineia o campo científico. Dessa forma, retomamos a proposição da importância dos papéis desempenhados pelos pesquisadores de um agrupamento social, estabelecidos por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. na institucionalização e legitimação da ordem social.

Um ponto a se destacar na abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. é o de identificar a linguagem como uma instituição fundamental da sociedade. Nos processos de legitimação, a linguagem se constitui em um elemento de elaboração e de disseminação do conhecimento. A linguagem possibilita que o novo conhecimento estabelecido seja externalizado pelo indivíduo produtor e, posteriormente, internalizado pelo mundo social, constituindo uma ligação de reciprocidade entre as partes. Assim, é a linguagem que possibilita a objetivação de novas experiências, que se integrarão ao estoque de conhecimento existente. A linguagem permite as sedimentações coletivas de forma coerente, sem a necessidade de reconstrução do processo original.

Na esfera da produção científica, o processo de transmissão do conhecimento objetivado pela linguagem possui uma estrutura básica, com protocolo de tipificação, que possibilita o compartilhamento do conhecimento. Nesse sentido, foram identificadas 25 normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que tratam de assuntos relacionados à institucionalização da linguagem envolvida na publicação científica. Destarte, Curty e Boccato (2005)CURTY, M. G.; BOCCATO, V. R. C. O artigo científico como forma de comunicação do conhecimento na área de Ciência da Informação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 94-107, jan./jun. 2005. apontam a adequação de consultar as seguintes normas durante a elaboração de um artigo científico: NBR 6022, NBR 6023, NBR 6024, NBR 6028, NBR 6032 e NBR 10520.

Diante da plausibilidade das argumentações apresentadas, o Quadro 1 expõe os conceitos dos principais itens da abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. e da sua aplicação nos estudos do campo científico.

Quadro 1
Conceitos dos principais itens da abordagem de Berger e Luckmann

Nesse contexto, a abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. se estabelece como um elemento de apoio teórico aos estudos que envolvem a investigação de campos científicos.

Considerações finais

As análises desenvolvidas pela pesquisa apontam que a argumentação dos processos de institucionalização e legitimação do conhecimento, proposta por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., se apresenta como um referencial teórico passível de utilização na análise de campos científicos. A sociologia do conhecimento, abordada por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., contém elementos que viabilizam a sua utilização na interpretação e justificação de estudos científicos.

A utilização da abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. nos estudos da produção do campo científico se apresenta como uma alternativa e/ou como uma possibilidade de combinação para os autores que tratam tanto da temática da institucionalização quanto da temática da sociologia do conhecimento. Assim, a abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. pode consubstanciar a contribuição de autores, tais como Merton (1957MERTON, R. K. Priorities in scientific discovery: a chapter in the sociology of science. American Sociological Review, v. 22, n. 6, p. 635-659, 1957.; 1970MERTON, R. K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.; 1988MERTON, R. K. The Matthew effect in science, II: cumulative advantage and the symbolism of intellectual property. Isis, v. 79, p. 606-623, 1988.; 1995)MERTON, R. K. The Thomas theorem and the Matthew effect. Social Forces, v. 74, n. 2, p. 379-424, 1995. e Bourdieu (1983BOURDIEU, P. O campo científico. In: BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.; 1991BOURDIEU, P. The peculiar history of science reason. Sociological Forum, v. 6, n. 1, p. 3-26, 1991.; 1992BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.; 2006)BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 322 p., nos estudos da produção científica, ampliando o contexto teórico das pesquisas da área.

Os estudos que se baseiam no levantamento de trabalhos do campo científico, em sua grande maioria, partem do pressuposto de que as redes de pesquisa exercem grande influência no processo de disseminação da informação, mas em alguns casos se distanciam do referencial teórico que justifica tal afirmação. Na proposta de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008., o conhecimento inicialmente é institucionalizado em um grupo que interpreta as afirmações do autor como factíveis e plausíveis, e com sua transmissão para demais gerações ocorre o processo de legitimação. Assim, na perspectiva desses autores, não é a forma de falar, de agir e da autoridade do autor que legitima o valor do conhecimento, mas sim a interpretação como factível e plausível às afirmações resultantes de suas pesquisas. Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. expandem essa perspectiva para outros aspectos que envolvem o processo de institucionalização e legitimação do conhecimento.

Diante das lacunas de argumentação e entendimento dos processos de institucionalização e legitimação do conhecimento, este estudo apresenta a abordagem de Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. como um referencial teórico a ser utilizado. A adequação dessa perspectiva se materializa ainda na figura do especialista como elemento central nos processos de análise da disseminação da informação e do conhecimento.

Esta pesquisa apresenta a possibilidade de desenvolver estudos que analisem a adjacência entre a abordagem da sociologia do conhecimento com a bibliometria e a análise de redes sociais. Assim, recomenda-se, para estudos futuros, a realização de pesquisas com o objetivo de utilizar a bibliometria e a análise de redes sociais como técnicas que instrumentalizam o processo de legitimação do conhecimento, proposto por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.. Esses e outros estudos correlatos são factíveis de aplicação da abordagem teórica de Berger e Luckmann.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2014
  • Aceito
    25 Mar 2015
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