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Repensando o espaço público e a economia: contribuição da economia solidária à teoria da democracia

(Re)thinking public space and economy: a dialogue between solidarity economy and democracy theory

Resumo

A economia solidária foi conceitualizada simultaneamente na América do Sul e na Europa nas últimas décadas do século XX. Esse movimento favoreceu a oportunidade para a elaboração conjunta de um framework analítico para pesquisa empírica em ambos os continentes, baseado em definições compartilhadas sobre economia e política. Sendo incompatível com a abordagem ortodoxa, a economia solidária exige uma abordagem substantiva da economia, se referindo a uma visão relacional do homem com a natureza e o ambiente social como a raiz da economia, da política, da mesma forma que a democracia está ligada a um paradigma deliberativo que enfatiza os espaços públicos e a intersubjetividade no compartilhamento de opiniões e decisões. A ênfase da economia substantiva e da democracia, as quais têm sido vistas como independentes, tem um papel a desempenhar em uma luta contra a padronização apoiada pelo projeto neoliberal. Este texto apresenta um diálogo intelectual que promove uma diversidade transformadora.

Palavras-chave
Economia solidária; Economia substantiva; Democracia substantiva; Espaços públicos; Neoliberalismo; Diversidade transformadora

Abstract

Solidarity economy was conceptualized simultaneously in South America and Europe over the last decades of the 20th century. That provides an opportunity for the co-elaboration of an analytical framework for empirical research in both continents, based on shared definitions of the economics and of the politics. Being incompatible with the orthodox approach, the solidarity economy claims for a substantive approach of the economics, referring to a relational vision of the man with his natural and social environment as the root of economy, and of the politics, as the democracy is linked to a deliberative paradigm that focuses on public spaces and the inter-subjectivity in the shaping of opinions and decisions. The emphasis placed on the substantives economy and democracy, which are seen as interdependent, has a part to play in a fight against the standardization supported by the neoliberal project. This text promotes an intercultural dialogue that fosters a transformative diversity.

Keywords
Solidarity economy; Substantive economy; Substantive democracy; Public spaces; Neoliberalism; Transformative diversity

Introdução

O conjunto das práticas existentes na constelação contemporânea da economia solidária questiona a conceptualização de que o espaço público estaria radicalmente separado do espaço econômico. Sob formas diversas, novas configurações de cidadania no espaço econômico e a extensão do domínio público à esfera econômica estão no centro dessas experiências. Elas podem, assim, esclarecer certos aspectos ignorados do espaço público e contribuir para uma reflexão renovada sobre a articulação teórica e histórica do espaço público político e do espaço econômico. Nesse sentido, o objetivo deste texto é refletir sobre as relações contemporâneas entre democracia e economia.

A contribuição da noção de espaço público

Se um autor como Max Weber concebe a política como o exercício do poder de Estado e as formas de sanção que lhe estão atreladas, coube a Hannah Arendt ter insistido em outra faceta do político: atividade cidadã que correlaciona os homens entre si e que define sua humanidade, destacando a faculdade da “aparência” das pessoas e a “convivência” como poder. O espaço público político, tal como abordado por ela, é mais do que um espaço não privado: é um espaço de interações engendrado pelos cidadãos que falam e agem em conjunto. A ação, oposta à obra e ao trabalho, é característica da esfera política. É isso que Jürgen Habermas contesta, ao afirmar que essa definição do âmbito político, por sua “essência”, é incapaz de abarcar a realidade política em sua efetividade. Segundo ele, a dissociação demasiado acentuada entre os registros da atividade humana torna imperceptível o componente ideológico da dominação tal como ele pode emanar, por exemplo, do aumento de desigualdades, apesar da obtenção de liberdades políticas. Para Arendt, a política enquanto ação comum coordenada é poderosa e somente uma manipulação externa à política pode resultar em violência, ao passo que, para Habermas, a ação política não se reduz a uma práxis – ela se revela também como uma atividade racional em relação a um fim e encerra, dessa forma, uma perspectiva estratégica (FERRY, 1989FERRY, J. M. Les transformations de la publicité politique. Hermès, n. 4, p. 75-115, 1989.).

O espaço público político é o fundamento da comunidade política, na medida em que é “a instituição dos intervalos que relacionam sem integrar” para tornar concebível um mundo comum na ausência de um espaço comum inato. Ao contrário da comunidade tradicional, ele não postula a homogeneidade, mas reconhece as diferenças e as divergências, pois é um espaço “pluricentrado”, inscrevendo “a pluralidade no objetivo de uma comunidade que não se funda ou se justifica em nenhuma origem, enquanto ele recusa por princípio qualquer comunhão final” (TASSIN, 1992TASSIN, E. Espace commun ou espace public? Hermes, 10, p. 23-37, 1992., p. 32). A introdução dessa ideia permite “dessubstancializar a vontade geral rousseauniana para transformá-la em um processo de formação da vontade política dos cidadãos” (LADRIÈRE, 2001LADRIÈRE, P. Pour une sociologie de l’éthique. Paris: Presses Universitaires de France, 2001., p. 407). Para Habermas, no entanto, não se deve esquecer o “sistema político”, cuja racionalidade é instrumental; atinente à autoridade pública, ele visa à execução, pela administração, das decisões e orientações elaboradas por meio de mecanismos da democracia representativa.

Atento a essas duas dimensões, Habermas adota, logicamente, uma concepção do político que tematiza a tensão estrutural entre poder comunicacional e poder administrativo. Enquanto Arendt se concentrou no poder comunicacional e Weber no poder administrativo orientado para a eficácia, foi Habermas quem destacou como típico dos Estados constitucionais democráticos uma complementariedade conflituosa entre essas duas formas de poder: o poder comunicacional, que expressa orientações normativas, e o poder administrativo, que as reformula no registro da eficácia, com uma tendência a instrumentalizar o poder comunicacional ao incorporá-lo como uma de suas funções.

Nesse sentido, é preferível falar, como o próprio Habermas reconheceu (1992, p. 175), de “espaço público policêntrico” ou de “espaços públicos plurais” (CHANIAL, 1992CHANIAL, P. Espaces publics, sciences sociales et démocratie. Introduction au dossier: les espaces publics. Quaderni, n. 18, p. 63-73, automne 1992., p. 68) do que de espaço público unificado. É também mais fácil situar o que o associacionismo representa nas democracias contemporâneas e explicar as razões que levaram Alexis de Tocqueville a eleger a ciência da associação como a ciência-mãe na democracia.

Espaços públicos plurais

Na lógica da “teoria da ação comunicativa” (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Francfort, Suhrkamp Verlag, 1981.), o espaço público político é percebido como um ideal de comunicação racional. Porém, a partir de 1990, a inflexão na delimitação do espaço público que acaba de ser mencionada leva a se distanciar dessa abordagem abstrata. O destaque dado à pluralidade dos espaços públicos faz com que o interesse se volte mais ao processo concreto pelo qual a divergência entre a afirmação democrática e a realidade é questionada pelos cidadãos, cujas relações são regidas pelos princípios de igualdade e de liberdade. É sobretudo a falta de reconhecimento dos princípios democráticos que desencadeia, então, a ação coletiva. A esse respeito, convém reconhecer os limites da esfera pública burguesa e liberal. Mais do que um espaço público emblemático, o espaço público burguês do século XVIII são espaços públicos plurais que podem ser identificados, inclusive, em seus conflitos. No sentido genérico, o espaço público constitui simbolicamente a matriz da comunidade política; porém, como bem destaca Geoff Eley (1992)ELEY, G. Nations, publics and political cultures: placing Habermas in the nineteenth century. In: CALHOUN, C. (Ed.). Habermas and the public sphere. Cambridge; London: The MIT Press, 1992. p. 289-339., ele também é, nas formas de expressão concretas pelas quais se manifesta, uma arena de significações contestadas. Nela, diferentes públicos buscam se fazer ouvir e se opõem em disputas que não excluem nem os comportamentos estratégicos nem as tentativas de eliminar outros pontos de vista.

Nesse processo de constituição de espaços públicos, podem aparecer muitas ações cidadãs que não são apenas fruto de uma ação racional: recursos emocionais ou afetivos são igualmente mobilizados para tornar públicas questões que antes eram da ordem do privado. Segundo Habermas (1987)HABERMAS, J. Logique des sciences sociales et autres essais. Paris: Presses Universitaires de France, 1987. (Traduction française)., “a atividade comunicativa orientada para a justiça e a sinceridade” não se reduz à troca de argumentos racionais. Ela passa por atos que supõem tanto uma convicção ou um engajamento daqueles que os realizam como esforços de persuasão, até mesmo de sedução.

Ademais, é pertinente mencionar que os meios de comunicação de massa dominaram progressivamente inúmeros espaços públicos. Monopolizados pelos imperativos sistêmicos, eles se tornam espaços públicos impregnados pelo poder administrativo. Então, a qualidade da vida democrática depende da constituição de outros espaços públicos “autônomos, livres de conflitos” (EME, 1993EME, B. Lecture d’Habermas et éléments provisoires d’une problématique du social solidariste d’intervention. Mimeograph. Paris: CRIDA-LSCI, IRESCO-CNRS, 1993.), que emanem da sociedade civil.

Papel e ambivalência das associações

Essa bipolaridade no próprio cerne dos espaços públicos possibilita a compreensão da importância das associações voluntárias na democracia sem, no entanto, mistificá-las.

Em uma sociedade na qual reinam os meios de comunicação de massa, as associações podem contribuir para a vitalidade de espaços públicos autônomos. Nesse sentido, a associação voluntária é “um conceito sociológico que permite conceber relações engendradas espontaneamente e livres de dominação de modo não contratualista” (HABERMAS, 1989HABERMAS, J. La souvraineté populaire comme procédure. Un concept normatif d’espace public. Lignes, n. 7, p. 29-58, septembre 1989., p. 44) e se emancipar, assim, de um pensamento atomista. Por isso, a insistência de vários autores nas “relações de associação” (OFFE, 1989OFFE, C. Bindung, Fessel, Bremse. Die Unübersichtlichkeit von Selbstbeschränkungsformel. In: HONNETH, A. et al. Zwischenbetrachtungen. Im Prozess der Aufklärung. Francfort-sur-le-Main, 1989.; COHEN; ARATO, 1994COHEN, J. L.; ARATO, A. Civil society and political theory. Cambridge; London: The MIT Press, 1994.) e na “posição eminente na sociedade civil” das associações “em torno das quais podem se cristalizar espaços públicos autônomos”; eles “compartilham a atenção voltada à associação voluntária e à vida associativa enquanto principal meio para a definição dos compromissos públicos” (HABERMAS, 1992HABERMAS, J. Préface à l’édition de 1990. L’espace public. Paris: Payot, 1992., p. 186).

Nem toda associação formada por iniciativa de pessoas livres tem finalidades políticas, mas em cada uma se constata o poder da ação conjunta. A contribuição das associações à democracia se deve ao fato de que elas são lugares em que os cidadãos definem por si mesmos as modalidades de ação. Por não obedecer a uma injunção externa, a gênese das associações lhes confere um caráter de espaço público autônomo. Todavia, a forma associativa também pode ser utilizada pelo aparelho estatal com um objetivo funcional; por exemplo, para organizar serviços ou para favorecer um acordo interinstitucional dificultado pelas divisões administrativas. Além do mais, não são poucas as associações que mantêm relações estreitas com as políticas públicas. Como observa Martine Barthélémy (2000, p. 16)BARTHÉLÉMY, M. Associations: un nouvel âge de la participation? Paris: Presses de Sciences Po, 2000., as associações não são somente a expressão dos cidadãos, também estão envolvidas em relações de poder, pois “mediam os conflitos ideológicos da sociedade global, contribuem para a formação das elites e para a estruturação do poder local e participam da definição das políticas públicas ao mesmo tempo que legitimam a esfera político-administrativa”. Dessa forma, elas participam de fato da política no sentido weberiano, uma vez que podem contribuir para o exercício do poder de Estado e para as formas de dominação a ele associadas.

Em suma, as associações não deveriam ser idealizadas. Nelas está presente a tensão estrutural entre poder comunicacional e administrativo observada por Habermas nos Estados constitucionais democráticos. Enquanto livres associações de cidadãos que não se fundam em uma autoridade externa, elas contribuem para “realizar livremente a formação da opinião e da vontade” por meio dos “contatos horizontais de interação”. No entanto, elas também são parte integrante de um “sistema político” cuja lógica é a racionalidade instrumental, o que implica “comando, imposição, coação e dominação” (LADRIÈRE, 2001LADRIÈRE, P. Pour une sociologie de l’éthique. Paris: Presses Universitaires de France, 2001., p. 389-420).

A contribuição da economia solidária

A teoria crítica preconizada desde 1843 por Marx busca explicar as lutas e as aspirações em movimento no mundo para preparar o advento de um projeto emancipador. Durante a maior parte do século XX, esse projeto foi expresso por uma vulgata marxista prisioneira de seu determinismo econômico, que reduzia o domínio político a uma superestrutura, cuja principal função era mascarar as relações de exploração inerentes ao capitalismo. Esse simplismo engendrou o voluntarismo bolchevique, cujos perigos foram previstos por Mauss (1997, p. 537-566)MAUSS, M. Écrits politiques. Textes réunis et présentés par M. Fournier. Paris: Fayard, 1997. já em 1924 e cujos efeitos catastróficos se tornaram evidentes com a queda do império soviético.

Nas teorias formuladas no fim do século XX, a reação contra esse determinismo que havia feito o projeto de emancipação naufragar no totalitarismo foi muito ampla e se manifestou por um entusiasmo pelas teses de Arendt, obcecada pela importância de preservar a esfera política de qualquer ingerência econômica. Nesse caso, a rejeição da explicação determinista teve um efeito perverso: a desconfiança em relação a qualquer intrusão econômica na esfera política. É essa dificuldade de pensar a interdependência entre economia e política que questiona a perspectiva da economia solidária.

Teoricamente, as inflexões que acabam de ser citadas na abordagem do espaço público levam ao questionamento das concepções demasiado sumárias, segundo as quais a restauração de uma participação solidária ativa passaria pela limitação da esfera econômica. Caso se admita a existência de espaços públicos plurais não baseados exclusivamente na razão e se considere a associação voluntária como um espaço de manifestação da ação no sentido de Arendt, então não é mais possível conceber uma autonomia total da esfera política em relação à econômica. A própria existência do associacionismo questiona esse postulado da autonomia, pois ele é a manifestação de uma liberdade positiva (BERLIN, 1988BERLIN, I. Eloge de la liberté. Paris: Calmann-Lévy, 1988. (Traduction française).) e reveste, dessa forma, uma dimensão política, ao mesmo tempo que endossa igualmente uma dimensão econômica por meio da organização de múltiplas atividades de produção e de consumo em seu seio.

Na prática, em sua complexidade, as experiências associativas contestam a separação entre política e economia que, com frequência, foi deduzida da tipologia das atividades humanas observada por Arendt. Sublinhar as diferenças entre esses registros de atividade – o trabalho, a obra e a ação – é primordial, tanto para evitar uma desastrosa injunção política na economia quanto para se precaver contra a onipotência de uma ordem econômica que anexe a ordem política. Entretanto, a distinção analítica não poderia ser convertida em uma dissociação empírica (EME; LAVILLE, 1996EME, B.; LAVILLE, J. L. Économie plurielle, économie solidaire: précisions et compléments. Vers un revenu minimum inconditionnel ?, La Revue du Mauss Semestrielle, Mauss, Paris: La Découverte, n. 7, 1. trim., p. 246-268, 1996., p. 263-268). Uma vez analisada, a hipótese de uma divisão entre política e economia na realidade não parece sustentável nem do ponto de vista conceitual nem do ponto de vista histórico.

A pluralidade da economia

No plano conceitual, a sociologia econômica (SMELSR. SWEDBERG, 1994SMELSER, N. J.; SWEDBERG, R. (Ed.). The handbook of economic sociology. Princeton University Press, 1994.; STEINER, 1999STEINER, P. La sociologie économique. Paris: La Découverte, 1999.; SWEDBERG, 1994SWEDBERG, R. Histoire de la sociologie économique. Paris: Desclée de Brouwer, 1994.) apresenta uma tradição de pesquisa que entende a economia como uma construção social e institucional. É uma construção social, pois, como destacou Weber, a ação econômica não pode ser completamente explicada por razões individuais: ela passa por mediações e redes sociais (GRENOVETTER, 2000GRENOVETTER, M. Le marché autrement. Paris: Desclée de Brouwer, 2000.). É uma construção institucional, porque, como declararam Émile Durkheim e Marcel Mauss, o comportamento econômico supõe diretrizes políticas e normativas que vão dos arranjos sociais fundamentais até os “hábitos mentais predominantes” (VEBLEN, 1970VEBLEN, T. La théorie de la classe de loisir. Paris: Gallimard, 1970., p. 125).

Essa inscrição da economia na sociedade questiona os postulados da economia neoclássica identificados, a partir dos anos 1870, conjuntamente por William Stanley Jevons, Carl Menger e Léon Walras. Para eles, uma economia “pura” pode ser isolada e constitui uma ciência inspirada no modelo da mecânica. Ancorada na ideia de escassez, ela se dedica à busca do equilíbrio em regime de concorrência perfeita e conduz, logicamente, a uma coincidência entre economia e mercado, assim como a uma visão na qual a dinâmica da sociedade está ligada àquela de um mercado autorregulador.

O paradoxo de uma certa crítica da economia é que ela valida essa visão expansionista do mercado e, ao mesmo tempo, a condena. Com o pretexto de liberar o espaço público e reinventar o político, buscando delimitar uma fronteira estanque entre economia e política, ela endossa a dupla redução da economia ao mercado e do mercado ao mercado autorregulador. Ora, no que pode resultar uma reabilitação do político se a economia de mercado, com sua influência multifacetada sobre a vida humana, restringe cada vez mais as possibilidades de um debate público? A escolha em favor do espaço público, se não for acompanhada por uma democratização da economia, corre o risco de se resumir a uma denúncia a plenos pulmões do horror econômico. A importância da corrente da sociologia econômica é que torna possível a superação dessa indignação impotente, porque reformula até mesmo o sentido do que é designado como econômico. Se Karl Polanyi influenciou tanto “a nova sociologia econômica” (LALLEMENT, 1996LALLEMENT, M. Renaissance de la sociologie économique. Sociologie du travail, XXXVIII-2, 1996.; LÉVESQUE; BOURQUE; FORGUES, 2001LÉVESQUE, B.; BOURQUE, G. L.; FORGUES, E. La nouvelle sociologie économique. Paris: Desclée de Brouwer, 2001.), foi justamente porque contestou a definição da economia como satisfação das necessidades em situação de escassez. Ele substituiu essa acepção formal da economia por outra, substantiva. Partindo do fato de que os homens dependem, para sobreviver, da natureza e dos outros homens, ele define a economia como um tipo de atividade incluída em uma ação humana mais ampla; destinada a garantir a subsistência, ela se caracteriza por uma interação institucionalizada que recorre a meios materiais em um contexto natural e relacional (POLANYI, 1977POLANYI, K. The livelihood of man. Édité par H. W. Pearson. New York: Academic Press, 1977.). Essa abertura ao social e à natureza (MARÉCHAL, 2000MARÉCHAL, J. P. Humaniser l’économie. Paris: Desclée de Brouwer, 2000.; PASSET, 1996PASSET, R. L’économique et le vivant. Paris: Économica, 1996.) está presente em diversos autores (BOULDING, 1973BOULDING, K. La economia del amor y del temor. Madrid: Alianza Editorial, 1973.; MAUSS, 1923MAUSS, M. Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques. Paris: Année Sociologique, 1923.; PERROUX, 1960PERROUX, F. Economie et société, contrainte-échange-don. Paris: Presses Universitaires de France, 1960.; RAZETO MIGLIARO, 1988RAZETO MIGLIARO, L. Economia de solidaridad y mercado democrático. Libro terceiro. Fundamentos de una teoria economica compensiva. Santiago du Chili: Programa de Economia del Trabajo, 1988.), que convergem para determinar vários princípios econômicos, que são os do mercado, mas também da redistribuição e da reciprocidade.

Ao invés de “naturalizar” ou “absolutizar” o mercado, a perspectiva substantiva, ao admitir a pluralidade dos princípios de comportamento econômico, fornece as bases para pensar uma possível democratização da economia. Nesse sentido, podem ser consideradas regulamentação democrática do mercado: a estruturação de financiamentos de redistribuição por uma autoridade pública democrática; e a afirmação de formas de reciprocidade baseadas em relações igualitárias. Quanto mais legítima a pluralidade de lógicas econômicas, mais a revitalização do político tem chances de se tornar realidade. Mesmo que a democratização da economia não se mostre suficiente para uma democratização da sociedade, ela continua sendo indispensável. Ela pode avançar conciliando várias perspectivas: a ação sobre a arquitetura institucional da economia de mercado, ao mesmo tempo que o isolamento dessa economia de mercado, obtida pelo apelo a economias não mercantis e não monetárias, mobilizando a redistribuição pública, cujas normas são fixadas pela democracia representativa; e a reciprocidade igualitária, cujas regras podem ser estabelecidas graças à democracia deliberativa.

A construção institucional da economia e do social

A esse respeito, a história moderna não pode ser reduzida a uma longa renúncia do político gerada pelo triunfo da economia, como defende, por exemplo, Dominique Méda (1995)MÉDA, D. Le travail, une valeur en voie de disparition. Paris: Aubier, 1995., entre outros. A economia atual não se construiu sem controvérsias após a conquista da democracia política.

Resumindo, a prioridade foi dada ao mercado, já que a motivação representada pelo interesse pessoal surgiu como uma barreira para conter a violência das paixões (HIRSCHMAN, 1980HIRSCHMAN, A. O. Les passions et les intérêts. Paris: Presses Universitaires de France, 1980. (Traduction française).) em uma sociedade que buscava compatibilizar liberdade e igualdade. Porém, ao invés de proporcionar a harmonia social, a disseminação da economia de mercado logo acarretou a emergência da questão social. Já na primeira metade do século XIX, antes que a economia neoclássica se impusesse, a economia foi o alvo de um questionamento político.

Contra “o capitalismo utópico” (ROSANVALLON, 1979ROSANVALLON, P. Le capitalisme utopique. Critique de l’idéologie économique. Paris: Seuil, 1979.), a solidariedade foi a noção referencial para inventar proteções capazes de limitar os efeitos nocivos da economia de mercado. O conceito de solidariedade democrática designando o laço social fundado na ação coletiva organizada por cidadãos livres e iguais, após ter sido introduzido no debate filosófico, foi associado, em seguida, à emergência da sociologia, na medida em que rompia com o imaginário liberal e seu individualismo contratualista (BOURGEOIS, 1998BOURGEOIS L. Solidarité. Lille: Presses du Septentrion, 1998 (éd. de 1906).; DURKHEIM, 1991DURKHEIM, E. De la division du travail social. Paris: Presses Universitaires de France, 1991 (éd. de 1930).). Primeiro, ele designou ações coletivas expressas por meio de formas associativas variadas. Amplamente fundadas em uma reciprocidade voluntária, ela própria baseada na liberdade de adesão e na igualdade dos membros, algumas tinham vocação econômica (CHANIAL; LAVILLE, 2001CHANIAL, P.; LAVILLE, J. L. Société civile et associationnisme une analyse sociohistorique. Politique et sociétés, Gouvernance et société civile, v. 20, n. 2-3, 2001.; 2002CHANIAL, P.; LAVILLE, J. L. L’économie solidaire: une question politique. Mouvements, n. 19, La Découverte, janvier-février 2002.), o que leva a determinar nesse associacionismo pioneiro um projeto de economia solidária. A essa primeira acepção da solidariedade, vista como cooperação entre cidadãos na democracia moderna e dotada de um alcance econômico em virtude do apelo a uma reciprocidade igualitária (VIARD, 1997VIARD, B. A la source perdue du socialisme français. Paris: Desclée de Brouwer, 1997.), sucedeu-se uma abordagem que destacava a redistribuição pública, englobando as associações voluntárias em uma relação tutelar. Ao longo das metamorfoses da solidariedade democrática, é a interdependência evolutiva entre ações associativa e pública que se revela como um dos maiores ensinamentos de uma retrospectiva da “socialização” da economia nos séculos XIX e XX.

Uma perspectiva crítica renovada

No entanto, o lugar da economia de mercado permanece uma questão “política, altamente conflituosa” (GADREY, 1999GADREY, J. La gauche et le marché: une incompréhension plurielle. Le Monde, 10, Mars 1999.), e a utopia do mercado autorregulador que fora progressivamente contradita retorna com o neoliberalismo. Diante da dificuldade que o Estado social nacional enfrenta para responder a esse desafio – considerando a terceirização e a internacionalização da economia (PERRET; ROUSTANG, 1995PERRET, B.; ROUSTANG, G. L’Économie contre la société. Paris: Seuil, 1995.) –, a perspectiva da economia solidária, esquecida durante muito tempo, acaba se reatualizando. Mesmo que frágeis, diversas experiências indicam uma resistência à mercantilização do mundo e reatam com um projeto de democratização da economia a partir de compromissos cidadãos. Com a economia solidária, não se trata, portanto, de substituir o Estado pela sociedade civil, mas de mobilizar os dois registros da solidariedade democrática, combinando a solidariedade redistributiva com uma mais reciprocitária para reforçar a capacidade de auto-organização da sociedade. É verdade que a recusa da globalização neoliberal se popularizou graças a grupos militantes, mas, de maneira menos visível, também surgiram iniciativas que buscavam reencontrar uma ação econômica fundada na solidariedade. Pouco a pouco, elas se esforçam para “construir, no dia a dia, uma outra globalização”, conforme os termos usados na síntese da conferência sobre a economia solidária no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2002.

A teoria da economia solidária se constrói a partir de três grandes pressupostos. As iniciativas articulam duas dimensões: econômica e política; elas não são apenas organizações privadas, mas incluem em seu repertório de ações o registro da expressão pública. Recorrem, portanto, a meios econômicos para atingir finalidades que tangem ao modelo de sociedade: justiça social, preservação ambiental, diversidade cultural, entre outros. Em outras palavras, sua ancoragem no espaço público modifica seu modelo econômico, pois elas procedem a uma hibridização de recursos (comerciais, redistributivos, reciprocitários), visando à realização de um projeto coletivo.

Tanto os dados históricos como os estudos atuais sobre a economia solidária questionam as análises que dissociam espaço público e economia. A separação entre esferas política e econômica foi, durante muito tempo, alimentada por uma versão simplista do marxismo que definia a economia como a infraestrutura da sociedade e esquecia as mediações políticas. As teses influenciadas por uma determinada leitura de Arendt reavivaram essa separação, dessa vez a partir de um medo da influência nefasta que a importação das questões econômicas podia ter na decisão política. A economia solidária contesta fundamentalmente essa segmentação, defendendo, ao mesmo tempo, a ideia de que o debate político não pode esquecer as realidades econômicas. É justamente o descompasso entre o horizonte de uma democracia não excludente e o reforço das desigualdades sociais e sexuais que, no começo deste século XXI, assim como no século XIX, explicam a existência de ações coletivas que buscam uma democratização da economia e da sociedade.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2014
  • Aceito
    25 Ago 2015
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