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AS IDENTIDADES FRAGMENTADAS NO COTIDIANO DA FEIRA DO PRODUTOR DE MARINGÁ1 1 Agradecemos à Capes e à Fundação Araucária para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná pelo apoio recebido para a realização desta pesquisa.

THE FRAGMENTED IDENTITIES IN EVERYDAY AT THE FEIRA DO PRODUTOR DE MARINGÁ (MARINGÁ FARMERS’ MARKET)

Resumo

Neste artigo, em um trabalho de resgate histórico de mais de 30 anos, procuramos compreender como as práticas cotidianas dos sujeitos vão se alterando à medida que a identidade organizacional do local onde trabalham se modifica. O estudo foi feito na Feira do Produtor de Maringá, fazendo uso de observação, de entrevistas de história oral temática e da análise do discurso. Verificamos que a Feira do Produtor de Maringá apresenta uma identidade fragmentada e constatamos no seu transcurso histórico que, no início, táticas e estratégias encontravam-se ligadas a novas experiências e saberes vinculados ao ofício dos feirantes. À medida que aumenta a formalização da feira e, por sua vez, seus instrumentos disciplinares, novas táticas e estratégias são criadas para driblar esses novos instrumentos de controle, assim como para amenizar a situação das identidades reprimidas, que nesse novo contexto se acentuam. Observamos na pesquisa movimentos de resistências e pequenos protestos por parte de alguns feirantes, no sentido de defender espaços temporários de posições identitárias, muito embora essas lutas sejam ofuscadas diante de uma aparente estabilidade, que se impõe por diferentes instrumentos disciplinares e por diversos discursos que inibem comportamentos não congruentes com os prescritos na feira.

Palavras-chave
Cotidiano; Identidade organizacional; Feira; Michel de Certeau; Pequeno produtor rural

Abstract

In this article, in a work of historic rescue over 30 years, we seek to understand how the daily practices of the subjects are altering as the organizational identity of the premises where work is modified. The study was conducted at the Feira do Produtor de Maringá (Maringá Farmers’ Market) using observation, oral thematic history interviews, and discourse analysis. We verified that the Maringá Farmers’ Market shows fragmented identities and we note in its historical course that in the beginning the tactics and strategies were linked to new experiences and knowledge related to the office of the farmers. As the formalization of the farmers’ market increased as well as their disciplinary tools, new tactics and strategies were created to circumvent from these new instruments of control as well as to ease the situation of repressed identities, which is emphasized in this new context. Furthermore we observed a resistance movement and small protests by some farmers, defending temporary spaces of identity positions, even though these struggles are overshadowed facing an apparent stability that is imposed by different disciplinary instruments and various speeches that inhibit behavior not congruent with the prescribed at the farmers’ market.

Keywords
Everyday; Organizational identity; Farmers’ market; Michel de Certeau; The small rural producer

Introdução

Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil passou a priorizar o fortalecimento do setor urbano industrial, relegando o setor agrícola ao segundo plano, sendo que este se tornou mais uma alavanca para o processo de industrialização (RODANTE, 1985RODANTE, A. Feira de produtores de Maringá e seus reflexos na economia regional. Monografia (Especialização em Desenvolvimento e Planejamento Agrícola)–Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 1985.). Nesse sentido, Zuquin (2007)ZUQUIN, M. Os caminhos do rural: uma questão agrária e ambiental. São Paulo: Senac, 2007. realça que as políticas públicas e os grandes investimentos eram direcionados para expandir o modelo da agroindústria, ficando esquecidos os outros modelos que favoreciam os pequenos proprietários e todos os outros tipos de trabalhadores rurais.

Nesse cenário, segundo Fajardo (2008)FAJARDO, S. Complexo agroindustrial, modernização da agricultura e participação das cooperativas agropecuárias no Estado do Paraná. Caminhos de Geografia, v. 9, n. 27 p. 31-44, set. 2008., na década de 1970 se inicia o processo de modernização agropecuária no estado do Paraná, que tinha como base a mecanização e o uso de insumos químicos e biológicos. Dessa forma, são introduzidas no Paraná as culturas denominadas “modernas” (soja e trigo), concomitantemente ao processo de desarticulação da estrutura cafeeira, que era a atividade produtiva predominante no norte do estado. Como resultado dessa modernização, houve maior produção e produtividade, porém, houve perdas sociais, sendo que um contingente da população rural foi expulso para os centros urbanos, e ainda ficaram excluídos os produtores que não podiam aderir a essa modernização.

Desse modo, segundo Rodante (1985)RODANTE, A. Feira de produtores de Maringá e seus reflexos na economia regional. Monografia (Especialização em Desenvolvimento e Planejamento Agrícola)–Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 1985., os pequenos produtores da região de Maringá, localizada no noroeste do Paraná, foram afetados por todo esse processo. Segundo o autor, o pequeno agricultor dessa região teria como sistema mais idôneo a produção para consumo familiar e venda do excedente para abastecimento interno, e não a produção de produtos para exportação. Em vista dessa realidade, com o intuito de outorgar mais oportunidades para o pequeno agricultor da região, possibilitando vendas diretas do produtor ao consumidor, cria-se a Feira do Produtor de Maringá, em 13 de março de 1982.

A Feira do Produtor de Maringá, de forma semelhante à cidade de Maringá, esteve constituída por migrantes de diversas regiões do Brasil ou descendentes de imigrantes de vários países do mundo, como Japão, Alemanha e Portugal. É de se supor que a feira, ao abrigar essa pluralidade cultural, adquiriu uma identidade singular, a qual, no decorrer do tempo, foi sofrendo transformações em virtude de mudanças no contexto e na história dos sujeitos. Afinal, ela tem mais de 30 anos. Essa feira, na atualidade, chega a ser considerada um patrimônio da cidade e, além de se constituir um lugar de troca e comércio, é lugar de socialização tanto de feirantes como de fregueses, um ambiente muito rico em interações sociais no seu cotidiano. E é precisamente nesse cotidiano em que procuramos nos submergir.

O cotidiano, neste artigo, é observado à luz da perspectiva certeuniana, na qual se descrevem as pequenas práticas que se articulam nos instantes de tempo que constroem o dia a dia. Essas práticas, assinaladas por Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. como táticas e estratégias, vistas como movimentos de resistência diante do poder dominante, se encontram em constante mudança segundo as conveniências de seus articuladores.

Dessa forma, neste artigo objetivamos compreender como as práticas cotidianas dos feirantes (táticas e estratégias) foram se alterando, na medida em que a identidade organizacional se modificou no contexto da Feira do Produtor de Maringá.

Identidade organizacional

Quando falamos sobre “identidade”, normalmente vem à nossa mente respostas a questionamentos como: “quem sou?” ou “quem somos?”. Nesse sentido, definir identidade é uma tarefa complexa que nos leva a questionar assuntos existenciais. Essas questões, na década de 1980, passaram a ser uma preocupação das organizações, pois se acreditava que elas, assim como as pessoas, possuíam uma identidade. Surge assim, no ano de 1985, o primeiro artigo sobre identidade organizacional elaborado por Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295..

Na mesma perspectiva dos estudiosos da identidade pessoal, que afirmavam que existia uma pertença essencial ou um caráter central no indivíduo que denotava sua identidade, Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295. e Whetten (2006)WHETTEN, D. A. Albert and Whetten revisited: strengthening the concept of organizational identity. Journal of Management Inquiry, v. 15, n. 3, p. 219-234, set. 2006. também acreditavam que as organizações tinham atributos centrais que as diferenciavam das outras e estes eram duradouros.

Desde então, surgiram diversos estudos sobre esse tema, mas, no campo dos estudos organizacionais, as discussões sobre o conceito de identidade e sua dinâmica são bastante variadas. Porém, no meio dessas divergências, o que está claro para He e Brown (2013)HE, H.; BROWN, A. D. Organizational identity and organizational identification: a review of the literature and suggestions for future research. Group & Organization Management, v. 38, n. 1, p. 3-35, 2013. é que, ao tratar sobre identidade organizacional, nos referimos às tentativas de uma organização para se autodefinir.

Das muitas abordagens desenvolvidas sobre identidade organizacional, He e Brown (2013)HE, H.; BROWN, A. D. Organizational identity and organizational identification: a review of the literature and suggestions for future research. Group & Organization Management, v. 38, n. 1, p. 3-35, 2013. discutiram ao menos quatro: a funcionalista, a social construtivista, a psicodinâmica e a pós-moderna. Para os autores, as perspectivas funcionalistas sustentam que as identidades são compostas de essência e características muitas vezes tangíveis. Alvesson e Empson (2008)ALVESSON, M.; EMPSON, L. The construction of organizational identity: comparative case studies of consulting firms. Scandinavian Journal Management, Elsevier, Science Direct, v. 24, p. 1-16, 2008. alegam que é comumente argumentado que a identidade organizacional representa a forma pela qual os membros de uma organização se definem como um grupo social em relação ao seu ambiente externo, e como eles entendem ser diferentes diante de seus concorrentes, sendo indiferentes ao discurso e à natureza da cognição, e desconsideram as relações de poder em que as declarações de identidade são feitas, defendidas, esquecidas e contestadas.

Já as perspectivas sociais construtivistas, conforme He e Brown (2013)HE, H.; BROWN, A. D. Organizational identity and organizational identification: a review of the literature and suggestions for future research. Group & Organization Management, v. 38, n. 1, p. 3-35, 2013., consideram a identidade organizacional como socialmente construída em relações realizadas coletivamente. Por outro lado, as perspectivas psicodinâmicas chamam a atenção para outra forma não reconhecida de processos inconscientes nas organizações que moldam as identidades coletivas. E, por último, as perspectivas pós-modernas, associadas muitas vezes aos questionamentos, aos desafios, à indeterminação, à fragmentação e à diferença, envolvem conceitos que têm suas origens em um crescente sentimento de problematização da identidade. Nelas, as perspectivas da identidade organizacional são associadas a teorizações discursivas, imagéticas e análise dos fenômenos de identidade.

Mesmo com todas essas abordagens, pudemos constatar, no transcurso do levantamento bibliográfico desta pesquisa, a tendência dominante nos estudos organizacionais (EO) em considerar a identidade organizacional vinculada aos atributos centrais, distintivos e duradouros da organização, mesmo quando complementadas com outras perspectivas (MACHADO-DA-SILVA; NOGUEIRA, 2001MACHADO-DA-SILVA, C.; NOGUEIRA, E. E. S. Identidade organizacional: um caso de manutenção, outro de mudança. Revista de Administração Contemporânea, ed. especial, p. 35-58, 2001.; CORLEY; GIOIA, 2004CORLEY, K. G.; GIOIA, D. A. Identity ambiguity and change in the wake of a corporate spin-off. Administrative Science Quarterly, v. 49, n. 2, p. 173-208, 2004.; ASHFORTH; ROGERS; CORLEY, 2011ASHFORTH, B. E.; ROGERS, K. M.; CORLEY, K. G. Identity in organizations: exploring cross-level dynamics. Organization Science, v. 22, n. 5, p. 1144-1156, 2011.; CLARK et al., 2010CLARK, S. M. et al. Transitional identity as a facilitator of organizational identity change during a merger. Administrative Science Quarterly, v. 55, p. 397-438, 2010.; GIOIA et al., 2010GIOIA, D. A. et al. Forging an identity: an insider-outsider study of processes involved in the formation of organizational identity. Administrative Science Quarterly, v. 55, p. 1-46, 2010.; SCHULTZ; HERNES, 2013SCHULTZ, M.; HERNES, T. A temporal perspective on organizational identity. Organization Science, v. 24, n. 1, p. 1-21, Jan./Feb. 2013.). Carrieri, Paes de Paula e Davel (2008, p. 130)CARRIERI, A. de P.; PAES DE PAULA, A. P.; DAVEL, E. Identidade nas organizações: múltipla? Fluida? Autônoma?. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, abr./jun. 2008. destacam que nos estudos baseados no conceito proposto por Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295. “generaliza-se o que a alta administração descreve como identidade, ocultando-se a existência dos outros atores organizacionais. Ocultam-se possíveis diferenciações e fragmentações da identidade”.

Ao realizarmos o levantamento da literatura sobre identidade organizacional, o que observamos é que os autores apresentam a fragmentação identitária como problemática, quando o problema não está na fragmentação, mas sim em ocultar ou minimizar essa característica das identidades. Outro ponto a ser questionado é o conceito por eles utilizado de identidade organizacional, pois este está diretamente relacionado às categorias de análise realizadas por Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295., ou seja, discute-se a partir das características centrais, distintivas e duradouras, mas não há referências aos fenômenos que dão vida e formação às identidades organizacionais construídas.

No caso específico dos EO brasileiros, conforme Pimentel e Carrieri (2011)PIMENTEL, T. D.; CARRIERI, A. de P. A espacialidade na construção da identidade. Cadernos EBAPE.BR, v. IX, n. 1, 2011., a baixa disseminação de abordagens que proporcionam outras alternativas de discussão sobre essa temática e a falta de aprofundamento, principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de categorias operacionais ou analíticas, acarretaram que o “debate se restringisse ao bom e velho modelo de Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295., que” supriu “tal lacuna ao oferecer as variáveis necessárias à verificação empírica da identidade organizacional. A partir daí, [...] pouco foi feito para expandir e inovar os estudos sobre identidade organizacional nos EO’s brasileiros” (PIMENTEL; CARRIERI, 2011PIMENTEL, T. D.; CARRIERI, A. de P. A espacialidade na construção da identidade. Cadernos EBAPE.BR, v. IX, n. 1, 2011., p. 11).

Entre os trabalhos que tentaram dar outro rumo à literatura brasileira sobre identidade organizacional, encontram-se os estudos realizados por Caldas e Wood Junior (1997)CALDAS, M.; WOOD JUNIOR, T. Identidade organizacional. RAE – Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 37, n. 1, jan./mar. 1997., os quais expressam que a identidade organizacional não deve ser compreendida exclusivamente no contexto proposto por Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295., pois, para esses autores, a identidade relaciona-se a diversos conceitos e, dessa maneira, a diferentes formas de analisar a organização.

Eles se perguntam se continua fazendo sentido falar em identidade organizacional no contexto em que as tribos organizacionais se tornaram entidades fragmentadas, e sua coerência foi despedaçada e substituída por uma multiplicidade de significados e interpretações. Ante a esse fato, eles assinalam que o conceito de identidade organizacional tem de ser repensado e concluem que possivelmente as organizações precisem da identidade “não por ser-lhes uma característica natural, mas porque o mercado exige a expressão de uma. Portanto, no plano organizacional, a questão talvez seja mais de imagem, estilo e retórica, do que de valores, princípios e características centrais” (CALDAS; WOOD JUNIOR, 1997CALDAS, M.; WOOD JUNIOR, T. Identidade organizacional. RAE – Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 37, n. 1, jan./mar. 1997., p. 17).

Neste artigo, defendemos identidades organizacionais (no plural) nos termos de uma perspectiva não essencialista, ou seja, associadas com teorizações discursivas e imagéticas, tendo caráter fragmentado e transitório ligadas aos fenômenos do cotidiano, como história, memória e relações de poder. Explicamos a seguir o porquê dessa nossa posição.

A definição da teoria dos atributos da identidade organizacional (centrais, distintivos, duradouros), desenvolvida por Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295. e Whetten (2006)WHETTEN, D. A. Albert and Whetten revisited: strengthening the concept of organizational identity. Journal of Management Inquiry, v. 15, n. 3, p. 219-234, set. 2006., aplica conceitos atualmente contestados sobre identidade. Muitos autores, como Maalouf (1999)MAALOUF, A. Identidades asesinas. Madrid: Alianza, 1999., Candau (2012)CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012., Bauman (2005)BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., Silva (2004)SILVA, T. T. da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. e Hall (2004HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.; 2011)HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011., ao falarem sobre identidade social, coincidem em dizer que a identidade não é uma essência, não é fixa nem estável, mas um processo em produção, assim, ela é inacabada e, muitas vezes, contraditória. Ora, se as organizações são fenômenos sociais, é de se supor que elas carreguem em si essa fragmentação que tem essa característica de uma construção inacabada.

A identidade é dependente da diferença e, ambas, são estruturas narrativas e discursivas, são sociais, culturais e não naturais (SILVA, 2004SILVA, T. T. da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.). Essa talvez seja a parte mais importante a ser debatida, porque podemos discutir e questionar as identidades, já que são narrativas e discursos que podem ser transformados.

Mas, ao observarmos o que se fala sobre identidade nas organizações, nos deparamos com uma aparente noção compartilhada de continuidade. Segundo Alvesson (1994)ALVESSON, M. Talking in organizations: managing identity and impressions in an advertising agency. Organization Studies, v. 15, n. 4, p. 535-563, 1994., ela pode ser produto da percepção de continuidade proporcionada pelas narrativas que operam a estabilidade da ordem social ou grupal, interligadas aos hábitos e recursos de comunicação como figuras conceituais, metáforas, signos, entre outros. Em si, a organização procura, segundo Zanelli (2003)ZANELLI, J. C. Interação humana e gestão: uma compreensão introdutória da construção organizacional. Rio de Janeiro: Editora LAB, 2003., preservar sua “identidade” e sobrevivência, e para isso desenvolve uma estrutura normativa e uma estrutura de ação originada principalmente nas posições dirigentes. Dessa forma, percebemos que as organizações procuram alicerces nos quais se apoiar, e para isso criam mecanismos que aparentam dar uma estabilidade identitária.

Este artigo prioriza no estudo das identidades outros aspectos, como os discursos que transitam dentro da organização no seu cotidiano e, com respeito a isso, Hall (2004)HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. reforça o imenso laço entre as identidades e os discursos, pois, segundo o autor, as identidades resultam da compactação ou articulação exitosa dos sujeitos ao fluxo do discurso. E por esse mirante podemos “compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas, [...] elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder [...]” (HALL, 2004HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004., p. 109). Dessa forma, para o autor isso leva a perceber que as identidades são mais o resultado da marcação da diferença e não tanto o seu significado tradicional, entendido como uma identidade sem suturas, central, sem diferenciação interna.

Desse modo, ao falar sobre identidade organizacional, torna-se relevante observar como as várias identidades que conformam uma organização interagem entre elas dando lugar a uma hierarquia, destacando-se umas por cima de outras por meio das relações de poder. Assim, acreditamos que é importante pensar nas diversas identidades presentes na organização, sendo que muitas delas se encontram mudas ou silenciadas sem poder de ser expressas. Nesse sentido, Bauman (2005)BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. afirma a existência de grupos dominantes e dominados e a luta por fazer reconhecer as identidades. Portanto, acreditamos que as organizações são palco dessas lutas identitárias e do jogo do poder. O poder de definir a identidade e sinalizar o diferente (SILVA, 2004SILVA, T. T. da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.), e isso acontece no cotidiano, como veremos a seguir.

O entrelaçamento entre identidade e cotidiano

Falar de cotidiano é falar de Michel de Certeau. Para Leite (2010)LEITE, R. P. A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, n. 3, 2010., o pressuposto certeauniano central para a análise da vida cotidiana são os lances táticos e situacionais que expressam as artes de fazer. Essas táticas, ou pequenas astúcias, encontram-se em um diálogo constante com as estratégias, e ambas envolvem as práticas cotidianas. Para Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., a estratégia é um movimento calculado, manipulado, predeterminado, no qual existe um “próprio”. Já a tática, em Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., é colocada como uma ação que é determinada pela ausência de um próprio. A tática tem por lugar o do outro, é o movimento dentro do campo de visão do inimigo. Ela não tem a possibilidade de totalizar o adversário em um espaço distinto visível e objetivável.

Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. também apresenta outros dois conceitos relevantes ligados à presença e à ausência do próprio, lembrando que o próprio está associado a domínio e poder. Trata-se da noção de lugar e espaço. Para o autor, o lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Já o espaço existe sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram, não possui nem univocidade, nem a estabilidade de um próprio. Em outras palavras, o espaço é um lugar praticado. Para nos esclarecer melhor o conceito de prática, Mayol (2011)MAYOL, P. O bairro. In: CERTEAU, M. de; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2011. explica que esta é:

a combinação mais ou menos coerente, mais ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos ou ideológicos, ao mesmo tempo passados por uma tradição e realizados dia a dia através dos comportamentos que traduzem em uma visibilidade social fragmentos desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciação traduz na palavra fragmentos do discurso. Prático vem a ser aquilo que é decisivo para a identidade de um usuário ou de um grupo, na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede de relações sociais inscritas no ambiente (MAYOL, 2011MAYOL, P. O bairro. In: CERTEAU, M. de; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 39-40).

Observamos nessa citação que as práticas estão estreitamente ligadas a aspectos identitários, pois a cada momento procuramos um lugar no meio das nossas interações sociais, e as práticas, sejam táticas ou estratégias, são movimentos decisivos para encontrar uma posição pelo menos temporária de identidade.

Quando refletimos sobre a vida cotidiana, percebemos que ela é a raiz de nossa existência, e nela o homem se envolve com todas as características de sua personalidade, ou seja, na vida cotidiana manifestamos nossa identidade, e nela a renovamos. Assim, o cotidiano é um território muito amplo no qual nos modelamos e remodelamos, em que existimos, criamos e recriamos nossa identidade.

Quando falamos de identidade e cotidiano, podemos encontrar muitos aspectos interligados, como os discursos e as relações de poder. Woodward (2004)WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. assinala que os discursos criam cenários nos quais os sujeitos podem se posicionar, como, por exemplo, o aluno inteligente, o empresário de sucesso, a mãe afetuosa, essas frases são discursos que nos indicam posições de sujeitos específicos. Mas, além das identidades serem afetadas pelos discursos, também, como assinala Hall (2004)HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004., são afetadas pelas relações de poder.

Ao falarmos sobre relações de poder, entendemos que elas se articulam no cotidiano. Nesse sentido, para Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., o cotidiano é aquilo que nos pressiona dia após dia, nos oprime, mas diante dessa opressão, Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. também enxerga o espaço para a transgressão. Para o autor, o cotidiano está dado pelos procedimentos, pelas práticas que realiza o sujeito comum, segundo sua conveniência e possibilidade para driblar a ordem estabelecida. Conforme Souza e Carrieri (2012)SOUZA, M. M. P.; CARRIERI, A. de P. Identidades, práticas discursivas e os estudos organizacionais: uma proposta teórico-metodológica. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, artigo 3, mar. 2012., segundo a perspectiva certeauniana, é possível conceber como a identidade se constrói cotidianamente nos processos de bricolagens. Percebemos assim que o homem ordinário, comum, não é passivo, não simplesmente aceita identidades impostas, pelo contrário, ele joga com as possibilidades, assim como expressou Certeau (2012, p. 40)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.: “Supõe que à maneira dos povos indígenas os usuários façam uma bricolagem com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras”. Nesse mesmo sentido, Pimentel et al. (2007, p. 5)PIMENTEL, T. D. et al. Mudanças simbólicas: análise discursiva das transformações identitárias e espaciais em uma feira. Cadernos EBAPE.BR, v. 5, n. 1, mar. 2007. assinalam que na perspectiva de Certeau, “o uso cotidiano dos espaços físicos e simbólicos pertencentes a cada grupo social seria um exemplo claro das transformações nas significações culturais e identitárias existentes na sociedade, e em qualquer organização, pois cada grupo transformaria em seu o espaço social, através de bricolagens para seu cotidiano”.

Em Certeau (2012, p. 39)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. também enxergamos a forte ligação entre identidade e diferença, pois nos seus diversos objetos de estudo ele nos traz o “outro”, o diferente, por exemplo, ao se referir aos indígenas, ele assinala: “Eles eram outros, mesmo no seio da colonização que os assimilava exteriormente; seu modo de usar a ordem dominante exercia o seu poder, que não tinham meios para recusar; a esse poder escapavam sem deixá-lo”. Assim, entendemos que, embora muitas vezes sejamos colonizados e oprimidos, existe um espaço à resistência para as nossas lutas identitárias, para defender nossas diferenças nos movimentando, mesmo estando acorrentados, continuando de alguma forma sendo “outros”.

Desse modo, nas diversas obras de Certeau (2012CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.; 2011)CERTEAU, M. de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forence, 2011. e Certeau, Giard e Mayol (2011)CERTEAU, M. de; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2011., um dos pontos que mais se destaca é sua preocupação com o outro, a alteridade, tal como expressa Dosse (2003)DOSSE, F. Michel de Certeau: el caminante herido. México: Universidad Iberoamericana, 2003., analisando os escritos de Certeau sobre Labadie e os comparando com o próprio Certeau:

Nunca fija en una doctrina, la escritura de Labadie avanza al compás de sus encuentros con el otro, entretejida de fragmentos dispersos a la manera de un patchwork: “No crea una obra que sería su lugar” [CERTEAU, La Fable mystique, 1982, p. 402]. Resulta imposible estar más cerca de Certeau mismo y de lo que emana de su obra que nunca consideró como tal, pues lo esencial está en otra parte en el dejar su lugar al otro. […] Podemos decir de él, lo que él dice de Labadie: “Su texto es su caminar. Escribe con sus pies, es decir, geográficamente, una historia de la cual sus publicaciones, sin embargo múltiples y voluminosas, sólo constituyen la puntuación, los fragmentos, los hitos” (DOSSE, 2003DOSSE, F. Michel de Certeau: el caminante herido. México: Universidad Iberoamericana, 2003., p. 511).

Dessa forma, nosso entendimento é o mesmo de Dosse (2003)DOSSE, F. Michel de Certeau: el caminante herido. México: Universidad Iberoamericana, 2003., que Certeau, ele mesmo, se mostra fragmentado, sem lugar, deixando seu lugar para o outro. É nesse sentido que entendemos que este seja possivelmente seu legado mais profundo, pois ele defende que talvez seja necessário que nos dispamos de nossas identidades para entrar na compreensão do diferente, desse outro. Entendemos que não há fragmentação identitária mais profunda do que essa. E é por isso que não a enxergamos como problemática, mas como uma característica que precisa ser reconhecida, para justamente ampliar a nossa compreensão sobre nós e sobre o outro.

Com tudo isso, no âmbito organizacional, os indivíduos ou grupos podem acolher, recusar ou realizar uma bricolagem com os produtos impostos pela organização, que são as normas, as punições, os formalismos, as condutas, as disciplinas, entre outros, valendo-se para isso de pequenas ações, micropráticas, que contribuam para afirmar posições temporárias de identidades.

O que queremos dizer é que são nessas microrresistências que se podem estabelecer as microliberdades das identidades. Em outras palavras, a organização pode nos indicar a ocupação de uma posição de sujeito particular, ou uma posição de grupo, ou uma “identidade organizacional”, mas os funcionários e os grupos podem ou não ocupar essa posição, dependendo de seus interesses e possibilidades, realizando operações camufladas para defender diferenças e identidades. Esses movimentos de resistência, muitas vezes, não são vistos como ameaças diante dos dominantes, porque são práticas ocultas e quase invisíveis.

Assim, o cotidiano vai sendo reinventado constantemente pelos seus praticantes, por sua vez, as identidades também se transformam no cotidiano. Destarte, as várias identidades dentro de uma organização também são transformadas constantemente, mesmo que haja a imposição de uma única identidade organizacional, dependendo das circunstâncias. Em suma, cotidiano e identidade são temas que se encontram entrelaçados, as identidades se constroem e reconstroem no cotidiano e o cotidiano se reinventa, em parte, segundo as identidades.

As feiras e seu cotidiano

As feiras, objeto da nossa pesquisa, são organizações com uma longa tradição cultural, ricas em interações sociais, que matizam as cidades e enfeitam o seu cotidiano. Sua origem

[...] está associada à celebração de festas religiosas, em datas fixas, servindo para a troca comercial dos excedentes da produção local, permitindo igualmente aos mercadores de longe introduzirem-se na região. Esta ligação entre a feira e os dias solenes, está desde o período romano amplamente documentado (Viterbo, Elucidário...Vol. II, p. 254). O próprio étimo da palavra “feira” permite-nos fazer, aliás, também esta ligação com os dias festivos. Em latim, “feria” significa “dia de festa”. Inicialmente teria sido aplicado aos dias festivos da Páscoa e Pentecostes, festas que duravam mais de um dia. O seu uso, ter-se-á depois generalizado a outros dias (Cf. Serafim Silva Neto, História...). [...] Para além da sua função comercial, a feira, [...] teve sempre uma componente muito forte de diversão, através da qual se proporcionava um espaço de convívio e distração indispensável à coesão das comunidades que as organizavam (FONTES, 1999FONTES, C. Feira popular de Lisboa: diversão e poder. 1999. Disponível em: <http://www.filorbis.pt/FeiraPopularCarlosFontes.pdf >. Acesso em: 10 nov. 2015.
http://www.filorbis.pt/FeiraPopularCarlo...
, p. 31).

Desse modo, podemos perceber como as feiras, ao mesmo tempo em que exercem um papel comercial, também se apresentam como um espaço de socialização da comunidade. As feiras, segundo Pierre e Valente (2010)PIERRE, M. C. P.; VALENTE, A. L. E. F. A feira livre como canal de comercialização de produtos da agricultura familiar. In: CONGRESSO DA SOBER, 49., 2010, Campo Grande. Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/15/234.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2015.
http://www.sober.org.br/palestra/15/234....
, são organismos vivos, estando em constante transformação, acompanhando as contradições e os conflitos da sociedade, são espaços onde convivem, competem, cooperam sujeitos sociais de todas as classes. Com essas afirmações, já podemos observar que as feiras são palco da diversidade.

As possibilidades de pesquisa nessas organizações são múltiplas, o pesquisador pode se aprofundar em diversas áreas, como economia, geografia, agronegócio, saúde pública, sociologia, antropologia, entre muitas outras. Pode ainda realizar um recorte urbano, espacial, temporal, de gênero, territorial, entre outros. Dessa forma, essas organizações são complexas e multidimensionais, e precisam de abordagens amplas que não as reduzam (PIERRE; VALENTE, 2010PIERRE, M. C. P.; VALENTE, A. L. E. F. A feira livre como canal de comercialização de produtos da agricultura familiar. In: CONGRESSO DA SOBER, 49., 2010, Campo Grande. Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/15/234.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2015.
http://www.sober.org.br/palestra/15/234....
).

As feiras são lugares praticados, são espaços modelados pelos usuários que as praticam, na perspectiva de Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.. Silva e Rodrigues (2011)SILVA, M. L. P.; RODRIGUES, J. M. O discurso do sujeito na feira livre: uma análise dos jogos de verdade nas relações sociais contemporâneas como construções de saberes. In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 11., 2011, Salvador. Anais... Salvador, 7-10 ago. 2011. apontam que as feiras incorporam-se na vida cotidiana dos sujeitos participantes, e estas se tornam um evento social capaz de mobilizar a arquitetura local e as relações sociais, estabelecendo uma forma de pertencimento e de significar a prática do fazer a feira no cotidiano.

As pesquisas sobre feiras a partir da ótica de Certeau, nas artes de fazer, podem ser observadas no trabalho de Vedana (2004)VEDANA, V. Fazer a feira: estudo etnográfico das “artes de fazer” de feirantes e fregueses da feira livre da Epatur no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre. 2004. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2004., que estuda as artes de fazer de feirantes e fregueses da Feira Livre da Epatur, no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre – RS; e no de Almeida (2009)ALMEIDA, S. P. N. de C. Fazendo a feira: estudo das artes de dizer, nutrir e fazer etnomatemático de feirantes e fregueses da feira livre do bairro Major Prates em Montes Claros. Dissertação (Mestrado em Educação)–Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, MG, 2009., no estudo das artes de dizer, nutrir e fazer etnomatemático de feirantes e fregueses da Feira Livre do Bairro Major Prates, em Montes Claros – MG. Nos estudos organizacionais, também se apresentam outras pesquisas na perspectiva certeauniana, como a de Peixoto (2011)PEIXOTO, D. L. Estratégias e táticas cotidianas: um estudo sobre os sentidos das práticas sociais e suas influências no fazer estratégia de uma barraca em feiras-livres. 2011. 107 f. Dissertação (Mestrado em Administração)–Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, 2011., que, priorizando o fenômeno da estratégia, estuda os sentidos das práticas sociais e suas influências no fazer estratégia de uma barraca em feiras livres na cidade de Vitória – ES. E no trabalho de Gouvêa e Ichikawa (2015)GOUVÊA, J. B.; ICHIKAWA, E. Y. Alienação e resistência: um estudo sobre o cotidiano cooperativo em uma feira de pequenos produtores do oeste do Paraná. Revista Gestão & Conexões, v. 4, n. 1, 2015., que pesquisaram o cotidiano cooperativo em uma feira de pequenos produtores do oeste do Paraná, tentando compreender de que maneira os indivíduos se posicionam em seu cotidiano para romperem com os processos de alienação. Todas essas pesquisas procuraram captar as sutilezas das práticas cotidianas, olhando de perto os movimentos dos praticantes.

Um trabalho que se aproxima deste nosso estudo é o realizado por Carrieri, Souza e Almeida (2008)CARRIERI, A. de P.; SOUZA, M. M. P.; ALMEIDA, G. O. Feirante ou barraqueiro? A construção de identidades e estratégias na Feira do Jubileu em Congonhas. Economia e Gestão, v. 8, p. 70-87, 2008., quando os autores estudaram a construção de identidades e estratégias na Feira do Jubileu, em Congonhas – MG. Nesse artigo em questão, “se pode falar tanto de traços de identidade homogêneos e únicos, como de traços de identidade grupais e fragmentados nas organizações” (CARRIERI; SOUZA; ALMEIDA, 2008CARRIERI, A. de P.; PAES DE PAULA, A. P.; DAVEL, E. Identidade nas organizações: múltipla? Fluida? Autônoma?. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, abr./jun. 2008., p. 72).

No entanto, o trabalho que mais se aproxima à temática da nossa pesquisa, envolvendo identidade, cotidiano e feiras, é o realizado por Pimentel et al. (2007)PIMENTEL, T. D. et al. Mudanças simbólicas: análise discursiva das transformações identitárias e espaciais em uma feira. Cadernos EBAPE.BR, v. 5, n. 1, mar. 2007.. Nele, os autores realizaram uma análise discursiva das transformações identitárias e espaciais da Feira de Arte, Artesanato e Produtores de Variedade, de Belo Horizonte – MG, evidenciando a formação de identidade e a clivagem identitária desta a partir da discussão sobre o tema da identidade nas organizações, com ênfase na questão do espaço e da desterritorialização. Os autores concluíram que, se por um lado, o estudo evidenciou que a construção de identidades se mostra relacionada com o espaço (físico e simbólico), por outro, não se deve considerar apenas as categorias de análise propostas por Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295., pois estas não bastam para explicar o fenômeno da identidade, já que elas mudam contextualmente. Se na nossa pesquisa vamos encontrar resultados semelhantes, é o que veremos a seguir.

Percurso metodológico da investigação

Para realizar esta pesquisa qualitativa, mergulhamos tanto nas lembranças, nas memórias dos sujeitos, quanto observamos de perto a sua realidade. Trabalhamos com diversos tipos de fontes para, de alguma forma, estarmos mais próximas da realidade dos sujeitos no seu agir cotidiano, assim como para resgatar a sua história.

Antes de dar início a essa investigação, em janeiro de 2013 realizamos uma aproximação inicial na feira, assim, conversamos com alguns feirantes e entrevistamos um casal de feirantes, considerado um dos mais antigos da organização. Depois desse primeiro contato, começamos a realizar as pesquisas documentais sobre a história de Maringá e sobre a feira, conseguindo obter informações de documentos oficiais, produções de mídia, artigos jornalísticos e trabalhos científicos. Todas essas informações nos permitiram desenhar os primeiros traços em que se desenvolveu a Feira do Produtor de Maringá.

Posteriormente, em novembro de 2013, decidimos entrar em campo, e para isso fomos várias vezes observar a feira com o intuito de encontrar uma barraca para realizarmos nossa observação. Depois de algumas tentativas infrutíferas, pois os feirantes alegavam que nas barracas já havia gente demais trabalhando, acabamos recorrendo ao mesmo casal de feirantes entrevistado em janeiro. Esse casal trabalhava só, sem a ajuda de outros familiares, e quando perguntamos para eles se era possível realizarmos a pesquisa na sua barraca, trabalhando com eles no dia a dia, não tiveram problemas em nos acolher.

No entanto, eles logo nos avisaram que no mês de dezembro e janeiro teriam de realizar uma longa viagem, e por isso ficariam ausentes da feira. Não vimos problemas quanto a isso, começamos a trabalhar com eles no final de novembro de 2013, participando de duas edições da feira, após o retorno deles retomamos, no final de janeiro de 2014. Participamos de nove jornadas da Feira do Produtor de Maringá. O processo de observação – trabalhando com os feirantes, vendendo seus produtos, lidando com os fregueses, arrumando a barraca, enfim, participando do seu dia a dia – foi uma fase valiosa da pesquisa, pois foi o que realmente nos possibilitou apreciar o cotidiano dos feirantes. Após cada jornada de observação, eram efetuadas as correspondentes anotações de campo, em que foram registradas as diversas situações vivenciadas com eles.

Aproveitamos o intervalo de viagem do casal para efetuar dez entrevistas de história oral temática com outros feirantes, com o intuito de resgatar as memórias deles e suas histórias na Feira do Produtor de Maringá. O conjunto de feirantes entrevistados compreendia pioneiros, filhos de pioneiros e feirantes em geral, com no mínimo 20 anos de feira. Após terminar a observação, no mês de fevereiro de 2014, retomamos as entrevistas, dessa vez entrevistamos o dirigente da feira, três ex-dirigentes e, por último, o técnico da Emater/PR (Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural), encarregado da feira.

No entanto, em virtude dos vazios na pesquisa e novas evidências, tivemos que voltar a campo para completar informações com alguns feirantes já entrevistados e realizamos mais três entrevistas. Portanto, no total, somando a entrevista inicial de 2013, realizamos 18 entrevistas com feirantes e uma com um técnico da Emater/PR.

Quanto à análise dos dados, foi realizada primordialmente por meio da análise de discurso. Assim, procuramos extrapolar o texto, muito embora, de início, para entendê-lo, tivemos que fazer análises lexicais e buscar os temas implícitos, explícitos ou mesmo silenciados nos discursos. Para vislumbrar o seu contexto, procuramos interpretar os aspectos da sintaxe discursiva (como metáforas, metonímias e hipérboles), além das condições sociais da produção desses discursos. Para isso, tivemos que interpretar o lugar de onde vinham os discursos e os aspectos ideológicos defendidos por eles.

Identidades e cotidiano no contexto da Feira do Produtor de Maringá

A Feira do Produtor de Maringá foi constituída por pequenos agricultores que tinham uma história marcada por um contexto histórico/político/econômico que os desfavorecia. Segundo os depoimentos colhidos dos feirantes sobre suas origens, pudemos observar que a maioria foi filho de imigrantes, em especial paulistas e, em menor número, japoneses. Quase todos tiveram um contato muito próximo com a cultura do café e, conforme as suas narrativas, muitos deles foram afetados pelas medidas políticas que desestimularam a produção de café e pela geada negra de 1975, ocorrida no Paraná, originando mudanças tanto na sua produção quanto nas suas vidas. Vale salientar que algumas das lembranças colhidas pelos enunciadores expressam uma vida muito difícil, marcada pelo trabalho intenso e pela falta de recursos econômicos. Na pesquisa, vislumbramos dois grandes momentos na história da feira:

  • O primeiro momento está dado por seu início, sua afirmação e crescimento, até que se cria a Associação da Feira do Produtor Rural de Maringá.

  • O segundo grande momento está dado a partir da criação da associação até os dias atuais.

A Feira do Produtor de Maringá tem sua primeira edição em 13 de março de 1982, nascendo da iniciativa dos técnicos da Emater e do trabalho conjunto de muitas outras instituições, como a Universidade Estadual de Maringá. Mas a Emater, no início da feira, desenvolve um papel bem abrangente, pois foram seus técnicos que trouxeram os primeiros regulamentos, convidaram seus participantes, incentivaram-nos a continuar, brindaram assessoria técnica e trabalharam na sua coordenação. Assim, entendemos que a Emater teve um papel regulamentador, organizador e de assessoria da feira. Destarte, observamos, nesse início, dois discursos dominantes promulgados pela Emater:

  • A feira é um bom negócio. Essa frase é um discurso que incentivava os pequenos agricultores a participarem da feira, na qual teriam rendimento extra. “[...] aí corremos atrás dos produtores para que os produtores realmente passem a participar de uma feira, onde o trabalho mais cansativo foi esse, de convencer o produtor que a feira era um bom negócio” (Técnico da Emater).

  • A feira é uma opção que foi conquistada. Essa frase é um discurso mencionado para os feirantes não desistirem da feira, para valorizar essa opção de venda direta ao consumidor. “[...] começamos a fazer um trabalho de conscientização junto aos produtores desta grande opção que eles tinham conquistado” (Técnico da Emater).

Nesse início, observamos que a feira é considerada um empreendimento com incertezas sobre seu sucesso futuro, por isso precisou de discursos que pudessem convencer os feirantes a participar e continuar nesse empreendimento. Esse projeto de uma feira de produtores se dava pela primeira vez no estado do Paraná, o que aumentava ainda mais essas incertezas. A feira começou funcionando só aos sábados, contava com poucos produtores participantes, segundo a maioria dos entrevistados, tinha em média de 15 a 20 barracas.

Outro ponto que consideramos relevante salientar é a presença da distinção que demarca os feirantes entre eles, sendo uns os “brasileiros” e outros os “japoneses”. Existiam sim alguns feirantes japoneses, mas na sua maioria eram brasileiros descendentes de japoneses. No entanto, mesmo assim, se distinguiam dos outros “brasileiros”, pelos traços físicos e culturais que conservavam da etnia japonesa.

Percebemos, assim, que desde o início da feira existiam processos de categorização social, conformados nesse caso pelos “japoneses e brasileiros”. Ao mesmo tempo, observamos as contradições que habitam no interior das identidades, pois no nível individual, os descendentes de japoneses responderiam que eram brasileiros, mas no coletivo, integrando esse grupo de feirantes, eram japoneses.

A estrutura física da feira era precária, muitos feirantes não tinham cobertura e improvisavam as suas bancas, dessa forma, ela não outorgava condições básicas de conforto e segurança para os feirantes. Para ilustrar esse fato, apresentamos a seguinte lembrança:

[A feira] Era pequena, né? Composta por uma média de “15, 20 produtor”. Na época não tinha barraca, nada, né? Então daí a gente colocava um caixote, improvisava umas banquinhas, né? “Umas porta”, janela que a gente tirava e fazia as bancas, né? Daí era comercializado assim. Era uma correria danada, nossa! (Feirante 4).

O Feirante 4 descreve uma feira modesta, na qual os produtores utilizavam de sua improvisação para poder vender seus produtos. Da perspectiva de Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., essas práticas comuns, que se introduzem com as experiências particulares, são formas de inventar o cotidiano, fabricando maneiras de empregar os produtos de uma configuração não convencionada pelos sistemas de produção. Assim, os caixotes, as janelas e as portas são utilizados de forma diferente do seu uso normal, e servem, nessa arte do improviso, como estruturas para montar as bancas, poder expor os produtos e conseguir vendê-los.

Nesses primeiros anos, os relatos dos feirantes narram muitas artes de fazer, criações do dia a dia. Criações que vão desde a improvisação das barracas até os pequenos detalhes, que tratam do relacionamento com as pessoas, pois muitos dos produtores que estavam mais acostumados com as tarefas do campo começam a ter um contato maior com o centro urbano. A maioria tinha dificuldades para se relacionar com os clientes, alguns até tinham vergonha de mostrar seus produtos, não possuíam conhecimentos sobre vendas e não sabiam negociar.

No início, as táticas e estratégias estavam mais vinculadas às aprendizagens na feira e no campo, pois cada dia tinha seus improvisos. O começo da feira noturna em 1992 produziu modificações na parte produtiva dos feirantes e, por outro lado, salientou ainda mais o discurso de “feira pioneira”, “feira de referência”, “feira exemplar”, pois, além de ter sido a primeira feira de produtores do estado, também foi a primeira que “encarou” o desafio de realizar uma feira noturna na cidade, sem possuir estrutura na época, como a falta de eletricidade no local. Mesmo assim, essa edição noturna foi e continua sendo um sucesso, sendo modelo para muitas outras feiras.

Por outro lado, segundo o engenheiro da Emater entrevistado, desde o início existiram divergências de pensamentos, ou seja, “aqueles do contra”, o que evidencia a falta de coesão e mostra que o grupo não era compacto. O enunciador expressa a dificuldade de formar um grupo homogêneo, sem oposições. Para ele, essas oposições eram conformadas:

  • pelos feirantes, que mostravam opiniões ou apreciações contrárias ou desfavoráveis com as adotadas decorrentes do “ponto de vista de cada um”;

  • pelas “panelinhas”, grupos diferenciados de feirantes que se reuniam para fofocar e criticar o trabalho dos outros, originadas “mais por questão de inveja”. O substantivo inveja, narrado pelo enunciador, expressa um sentimento de cobiça à vista da superioridade de outrem, assim, segundo ele, alguns feirantes apresentavam esse sentimento diante da superação de outros.

O que observamos nesse primeiro momento da feira é que, mesmo existindo a presença de “panelinhas”, existiam menos diferenças entre os feirantes, pois todos gozavam dos mesmos direitos. E mesmo já existindo o regulamento interno, segundo os feirantes, “tudo era mais à vontade”. Por outro lado, quanto às relações de poder, observamos que a Emater, nesse primeiro recorte temporal, pode ser considerada como a instância detentora de poder, pois enunciava os discursos dominantes e decidia o futuro da feira.

Em 4 de julho de 1995 acontece uma profunda mudança identitária na Feira do Produtor de Maringá, pois ela passa a se constituir como uma associação, denominada Associação da Feira do Produtor Rural de Maringá (AFPRM). A criação da associação trouxe inúmeras mudanças no cotidiano da feira, trouxe muitos mais elementos disciplinares, os feirantes passam a ser chamados de associados, começa a ser cobrada uma mensalidade para cobrir as despesas do exercício, passa a existir a assembleia geral, ordinária e extraordinária. A feira passa a ser administrada por uma diretoria e se dá início à atividade eleitoral dentro da feira, tendo eleições todo ano no mês de agosto.

Dessa forma, com o surgimento da Associação da Feira, começam a se multiplicar as regras, pois passam a coexistir dois instrumentos disciplinares, tanto o estatuto social quanto o regulamento interno. Destarte, se apregoa o discurso:

  • O que está escrito no estatuto é lei.

E: Quem determina as regras de funcionamento da Feira?

T: O estatuto, existe um estatuto e um regimento interno, então a diretoria é eleita em cima desse estatuto, e aí sim a diretoria nomeia um grupo de fiscais, próprios produtores, e esses fiscais tem autonomia de autuar, notificar [...]. Então facilita muito o trabalho por causa disso, o que está escrito no estatuto é lei, e se ele não está seguindo aquilo lá, ele é notificado a primeira vez, depois suspenso por 30 dias, e se mesmo assim ele não cumprir o que está escrito, ele fica suspenso por um ano na participação da Feira do Produtor (Técnico da Emater).

O enunciador do fragmento fala de sua posição de poder na feira, pois é representante da Emater e expressa este discurso: “o que está escrito no estatuto é lei”. O léxico “lei” denota uma regra obrigatória, ou seja, o que está escrito no estatuto tem de ser cumprido, não existem outras possibilidades, ou se cumpre ou se é punido, o que se expressa da mesma forma nos seguintes excertos: “Tem um estatuto a ser cumprido, tem uma regra a ser cumprida, tem hora que um fica bravo, mas fazer o quê?” (Feirante 12). “O estatuto é bem montado, então quem não respeita, tem as consequências que tem de aguentar” (Feirante 9).

Nos dois últimos fragmentos fica evidenciado que, independentemente de concordar ou não, o estatuto tem de ser cumprido, não se tem outra escolha. Se um feirante não o cumpre, não o respeita, não o segue, tem de arcar com as consequências e com as punições.

Fica claro que a partir da passagem à associação, com a existência do estatuto, aumentaram as estruturas disciplinares que operam gerando uma aparente estabilidade da ordem grupal. Assim, o estatuto e o regulamento interno são instrumentos que orientam os feirantes, indicando o que é aceito e o que é rejeitado dentro da organização, mas os feirantes podem ser capazes, como assinala Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., de metaforizar a ordem dominante, de ter a capacidade de aceitar, rejeitar ou misturar essas prescrições segundo as suas conveniências, o que pudemos observar no seguinte depoimento:

E: E essas regras não mudam, ou mudam?

F: Disfarçadamente muda, debaixo do pano tem muita coisa aqui que se for pegar pelo estatuto está totalmente fora, do meu ponto de vista. Entendeu? Pelo estatuto da lei, se você for ver aqui dentro está muito, na minha opinião, está muito fora (Feirante 7).

Outro fato muito relevante observado foi que, à medida que a Feira do Produtor crescia e se firmava como um bom negócio, foram aumentando as solicitações de pequenos produtores para fazer parte dela, até chegar em um ponto em que a capacidade da feira não comportava mais, originando-se uma grande lista de espera, chegando a ter, segundo o Feirante 12, 150, 200 solicitações.

Então, com a existência dessa fila de espera tão ampla, se adota outra postura. Se no começo os discursos eram dados para convencer os feirantes a entrarem e não abandonarem a feira, agora, com uma grande fila de espera de produtores querendo participar, o discurso mudou:

  • “Não está satisfeito, vá embora, deixa a vaga para outra pessoa trabalhar”.

Esse discurso dado, segundo a enunciadora do fragmento a seguir, pelo “agrônomo” (Técnico da Emater), é compreendido como um apelo a se retirar, expressado nos léxicos: “vá embora”, em outras palavras, saia como membro da feira, e deixe a sua vaga para outro que se sinta satisfeito com as imposições que se dão.

[...] é complicado, é igual presidente da República, prefeito da cidade, toda essa dificuldade, a gente passa pelo mesmo tipo de dificuldade porque quando faz as coisas e na cabeça da gente acha que é certo, tem gente que acha que aquilo não está certo, tem de ser de outro jeito, mas como nós temos um regimento interno, o que prevalece é aquilo que está escrito ali. Aí não pode falar “eu não gosto aqui ou eu não gosto”... Se não está satisfeito, o agrônomo sempre fala: Não está satisfeito, vá embora, deixa a vaga para outra pessoa trabalhar, por isso que isso aqui funciona muito rigoroso, né? [...] Porque fala assim, muita gente que o agrônomo sempre lembra as pessoas na reunião: quem não precisa da feira então não precisa trabalhar, fica em casa, dá vaga para outra pessoa que está precisando, né? Sempre fala (Feirante 5).

No fragmento apresentado reparamos a existência de divergências de pensamentos entre os feirantes, pois enquanto para uns está certo, para outros está errado, assim percebemos que não há uma identificação única, pois muitos integrantes se identificam com outras coisas, possuem interesses diferentes. “Temos um regimento interno, o que prevalece é aquilo que está escrito ali. Aí não pode falar eu não gosto aqui ou eu não gosto”, esse trecho evidencia como as múltiplas identidades que existem na feira são reprimidas, são vozes silenciadas, ficando só a voz da parte que estruturou e aprovou as normas, sendo desconsiderados os outros pensamentos. Ainda, sobre isso se incrementa o discurso: “Não está satisfeito, vá embora, deixa a vaga para outra pessoa trabalhar”.

Dessa forma, compreendemos que as identidades que não coincidem ou que não se encaixam com as características exigidas nas normas da feira são fortemente abafadas, pois se essas se revoltam podem ser até expulsas, e a feira, para muitos dos seus participantes, não é uma opção que o produtor escolhe, para a maioria é uma necessidade, é o meio de sustento da sua vida. Assim, ficam sem saída, tendo que submeter a sua identidade “diferente” àquela “normalizada” pelo estatuto. Por outro lado, após a associação se constituir, se dá mais ênfase ao discurso do associativismo para enaltecer a ideia de grupo.

Observamos que existe uma forte pressão para o cumprimento do estatuto e do regulamento interno, sufocando as identidades não compatíveis com as normas e impondo outra identidade (a “identidade da feira”). Ainda, se apaga qualquer intento de revolta com o discurso: “Não está satisfeito, vá embora, deixa a vaga para outra pessoa trabalhar”, e se acentua o discurso do “associativismo”. Destacamos que esses dois últimos discursos também foram socializados pelos representantes da Emater.

No nosso convívio na feira e nos depoimentos expressos pelos feirantes, reparamos o domínio do discurso da grande família, da cooperação e da unidade na feira, tanto assim que muitos negam a existência de problemas e relatam apenas problemas da estrutura física, como falta de mais vagas de estacionamento, mas fora isso “tudo é ótimo”.

Mas, pouco a pouco, percebemos que o que imaginamos ser parte natural de qualquer organização, como problemas, conflitos, formações de grupos com diferentes interesses, começou a ser revelado:

E: Como que é o relacionamento entre os feirantes?

T: No modo geral, na grande maioria, tirando alguns da panelinha, são muito bons, um ajuda os outros, precisando de um trabalho o outro ajuda a fazer, então essa troca de ajuda mútua que tem acontecido não só dentro da feira, mas também dentro da propriedade, quando eles moram perto um do outro, troca de serviço. A feira ajudou a criar esse lado da situação, porque como ele convive em grupo, então começa a pensar em grupo também, como um grupo, então dentro da feira a gente vê vários ajudando uns aos outros, principalmente na montagem e desmontagem das barracas, tem ajudado muito. Em compensação tem os outros, que é complicado, né? Mas a gente tenta mudar pouco a pouco (Técnico da Emater).

No trecho observado, o léxico “grupo” é um termo relevante. Na frase “porque como ele convive em grupo”, a palavra grupo denota um conjunto de pessoas reunidas em um mesmo lugar. Na seguinte frase, “começa a pensar em grupo”, o substantivo grupo expressa um conjunto de pessoas que apresenta o mesmo pensamento, a mesma atitude, em prol de um objetivo em comum. Já quando falamos de identidade social, segundo Hogg et al. (2004)HOGG, M. et al. The social identity perspective: intergroup relations, self-conception, and small groups. Small Group Research, v. 35, n. 3, p. 246-276, jun. 2004., um grupo social compreende um conjunto de mais de duas pessoas que possuem a mesma identidade social, identificam-se da mesma forma e têm a mesma definição de quem são, que atributos eles têm e como eles se relacionam e se diferenciam de grupos externos específicos.

Então, percebemos como o significado de grupo vai tendo um sentido cada vez mais profundo na feira. Ela se constituiria um único grupo social, segundo as definições de Hogg et al. (2004)HOGG, M. et al. The social identity perspective: intergroup relations, self-conception, and small groups. Small Group Research, v. 35, n. 3, p. 246-276, jun. 2004., se todos os participantes do grupo se sentissem identificados com ela da mesma forma, tendo assim definições semelhantes de quem eles são como feirantes. Podemos observar, no entanto, que para uma organização como a Feira do Produtor conformar um único grupo é muito difícil, pois geralmente não existe um grupo, mas sim vários, o que fica esclarecido no depoimento do enunciador com a existência da “panelinha”. Esse léxico, que envolve uma metáfora, denota no sentido figurado um grupo fechado ou diferenciado, que se reúne para tramar, fazer intriga. Assim, a existência de panelinhas indica que os integrantes delas não se sentem identificados da mesma forma com a feira, são um grupo separado, que tem outros interesses ao resto dos participantes. Apesar de a maioria dos depoimentos mostrar de forma muito contundente laços de amizade, de grupo, de coesão e de cooperação, começamos a perceber que a identidade da feira não é tão uníssona como se poderia pensar em um primeiro instante, mas sim dividida, pois existem grupos diferentes com interesses distintos. Isso pode ser vislumbrado no seguinte depoimento:

Ah, tem, tem panelinha, mas eu procuro nem pensar nesse lado, porque se eu fico pensando nas panelinhas eu mesmo tinha desistido, mas tem gente fica na banca fazendo fofoca, fazendo coisa, mas eu não sou assim, eu converso com todo mundo, eu procuro aqueles que me olha torto, eu vou lá e falo “bom dia, boa noite”, eu não deixo eles chegar me atingir com as coisas que eles podem fazer, tem panelinha sim, tanta panelinha que a diretoria no começo [...] antes era livre [a candidatura para a diretoria da feira], não importava se eu plantava ou não plantava, a gente podia se candidatar, agora não pode mais, agora fica trocando assim, sai um de Marialva, entra outro de Marialva, sai um de Marialva, entra outro de Marialva e ficam fazendo assim, um tipo de jogo e é errado, então tem panelinha (Feirante 5).

No fragmento apresentado, a enunciadora confirma a existência de panelinhas na feira, mas existem diferenças sobre o que elas seriam. A feirante expressa o termo panelinha em dois sentidos. No primeiro, expresso no começo do fragmento, as panelinhas estão conformadas por grupos de feirantes que fazem fofoca. No segundo, na continuação do fragmento, se subentende o termo como sendo um grupo fechado para se candidatar à diretoria da feira. A enunciadora expressa implicitamente que cargo na diretoria tem acesso limitado, e que existe um grupo “de Marialva” (cidade localizada a aproximadamente 18 km de Maringá) que se reveza na diretoria, sendo este considerado por ela uma panelinha.

Dessa forma, observa-se a existência de diversos grupos dentro da feira, os quais, como foi assinalado anteriormente, possuem interesses diferenciados, gerando a fragmentação da sua identidade. Também percebemos as relações de poder, existindo alguns grupos fortes, como o caso dos que podem ter acesso à diretoria, e grupos fracos, a quem se tem negado essa possibilidade.

Assim, após a passagem para associação, observamos segmentações mais profundas. Um fato marcante de cisão da feira se deu aproximadamente em 2003-2004, quando ocorre uma diferença dos direitos entre processadores e produtores. No próximo depoimento apresentamos esse fato, que estava silenciado nas narrativas da maioria dos feirantes, e que de repente um deles resolveu abrir para nós:

F: Eu sou fundador praticamente da feira, eu ajudei a fundar o estatuto, né? Eu estava na primeira reunião que fundou a associação, eu estava e participei da primeira reunião que fundou a associação e para você ter uma ideia hoje não posso votar nem ser votado. Por quê? Eu era produtor, aí passei a trabalhar com [outro produto], aí classifica que não é produtor, a Emater classifica que não é produtor. Então, se eu não sou produtor, então eu não vou poder votar e nem ser votado, ou seja, não sou ninguém aqui. Eu discordo disso, eu tenho menos direitos e mais obrigação, porque a gente paga mais, quanto a pagar mais também não tem problema [...]

E: Quanta porcentagem de feirantes é processador?

F: De 130 deve ser uns 30, é uma boa porcentagem, né? Então, é uma vergonha, Vixe Maria! Quando foi aprovado isso daí, eu pulei e pulei, mas o cara da Emater, que é o que administra a feira [...] passou por cima de todo mundo e aprovou isso daí, paciência, né? Consequência disso, nós estamos tendo hoje, não nessa gestão, mas na gestão passada tivemos muito problema por causa disso.

E: Isso está dividindo a feira?

F: Porque divide, justamente porque divide né? É a mesma coisa, oh! Vocês não é nada aqui, nós trabalhamos, são todo mundo igual. Então não existe diferença entre produtor e diz o não produtor, nós somos feirante, você não está contente com o que você está fazendo, você faz o que você quiser, né? Mas não precisa discriminar. [...] É ganância do poder, isso não leva a nada, meu Deus do céu, de votar e não ser votado, e se pegar presidência da feira, existe um estatuto e existe a lei municipal, o que estou falando aqui para você, é difícil falar, eu chegar e falar, se eu chegar à prefeitura que a gente não pode votar e não ser votado, então pau danado o pessoal da Emater daqui. [...] Não quero ser presidente daqui, não tenho interesse, mas na última eleição quase que eu me vi obrigado a procurar advogado e entrar com mandato, através de uma ordem para que eu pudesse sair candidato sim, porque estavam extrapolando, porque estavam transformando isto aqui em uma ditadura. Então, sei lá! Mas depois mudou a diretoria, acabou. O único problema que está tendo aqui seria mais esse de pensamento, né? Agora, na próxima eleição, com certeza se esse candidato que fez essas besteiras passadas vier sair candidato de novo, aí os problemas vão voltar e vamos ter que trabalhar para esse pessoal não se eleger. [...] (Feirante 14).

Para entender esse depoimento, reportamo-nos a Hall (2004)HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004., para quem as identidades são produto do jogo do poder e estão mais atreladas à marcação da diferença e da exclusão que ao seu significado mais tradicional, ou seja, uma identidade coesa sem diferenciação interna. No fragmento apresentado, o enunciador sente a marcação da diferença e da exclusão, ou seja, para o enunciador lhe é tirado um direito sem o qual vê sua identidade como feirante suprimida: “não sou ninguém aqui”. E assinala também que não é só ele que sofre essa exclusão, mas sim todo um grupo, os que “não são produtores”, assim, para o enunciador todo esse grupo é ignorado, não tem voz e é discriminado. E argumenta a sua posição com a seguinte expressão: “Eu discordo disso, eu tenho menos direitos e mais obrigação porque a gente paga mais”.

Na sequência, o enunciador comenta sobre as relações de poder envolvidas nessa decisão: “mas o cara da Emater, que é o que administra a feira. [...] passou por cima de todo mundo e aprovou isso daí, paciência, né?”. Nessa expressão, implicitamente entendemos que o representante da Emater teve o poder para aprovar, ou seja, decidir, anular esse direito de votar dos feirantes processadores (que eram fundadores). Assim, segundo esse depoimento, observamos que a Emater se reafirma como um lugar de poder sobre a feira, pois ela possui a faculdade de definir a sua identidade e sinalizar o diferente.

Desse modo, existem identidades silenciadas, o que expressa também o enunciador explicitamente: “o que estou falando aqui para você, é difícil falar”. Efetivamente, durante toda a coleta de dados na feira, que começou em novembro de 2013 e terminou em abril de 2014, percebemos muito receio nos feirantes em falar dos problemas da feira, parecia que quando tocávamos nesses assuntos, muitos dos feirantes não se sentiam à vontade. E a resposta dessa maioria era que não existiam problemas.

Sendo assim, no fragmento apresentado, observamos identidades em disputa, lutas das maiorias contra as minorias, e distinguimos a presença de dois grupos:

  • O grupo forte: especialmente formado por produtores (a maioria) que usufruem de todos os seus direitos (podem votar ou ter cargos políticos dentro da feira).

  • O grupo fraco: conformado especialmente por processadores (minoria) que não têm direito ao voto, não podem ser eleitos membros da diretoria da associação.

Existem, dessa forma, identidades diferenciadas na feira, uns estão conforme, e outros procuram igualdade de direitos e se sentem discriminados. Por outro lado, no final do fragmento, o enunciador fala: “vamos ter que trabalhar para esse pessoal não se eleger”, assim, observam-se estratégias políticas para amenizar a situação dos processadores na feira.

Além desse feirante, outros dois depoimentos de processadores nos confirmaram a existência dessa fragmentação na feira. Subentendemos que, além dos feirantes afetados (que são sócios-fundadores) quererem retomar seus direitos de votar e serem votados, ou seja, de ter uma voz ativa dentro da feira, também almejam que todos os outros processadores (que não são sócios-fundadores) que pertencem à categoria de sócios-colaboradores e, portanto, não têm o direito de votar nem serem votados, passem a ter esse direito. Isso pode ser observado nos seguintes fragmentos:

[...] nós trabalhamos, são todo mundo igual. Então não existe diferença entre produtor e diz o não produtor, nós somos feirantes (Feirante 14).

[...] eu acho que não mexendo com lavoura, eu ou outros companheiros no mesmo ramo, né? Que somos transformadores de produtos, eu tenho certeza que tem muita gente que tem capacidade que pode conseguir fazer alguma coisa melhor para a feira, não porque só mexe na lavoura que consegue (Feirante 5).

Assim, entendemos que esses feirantes se identificam como parte de todo um grupo de processadores e defendem a Feira do Produtor como uma integração entre produtores e processadores, pois todos são feirantes. Em contraposição, temos o discurso defendendo que, sendo uma feira de produtores, o presidente tem de ser produtor: “[...] Porque hoje uma das regras de ser presidente é que você tem que ser produtor, você não pode ser sócio-colaborador, que é quem transforma os produtos, eles não podem. A feira é do produtor, então o presidente tem que ser produtor rural” (Feirante 13).

Existe, portanto, uma luta atual sobre a identidade da Feira do Produtor, uns defendem sua posição, afirmando que esta é uma feira de produtores com alguns membros colaboradores (processadores), e outros lutam para defender que a feira é a integração de produtores e processadores.

Dessa forma, observamos: primeiro, que a Emater tem membros com muito poder sobre a feira; com poder de definir a identidade e marcar a diferença, com poder de assinalar quem pode ou não ter voz ativa, dando essa condição aos produtores e deixando silenciados os processadores. Segundo, existem lutas identitárias no interior da feira, em que se observam os argumentos de Bauman (2005, p. 83-84)BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.: “A identidade [...] é um conceito altamente contestado. Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade”. Enxergamos essas lutas na feira entre um grupo que luta para ser escutado e outro que luta para manter o domínio.

Ressaltamos que para o grupo afetado conformado pelos processadores, a Emater é responsável dessa mudança acompanhada de um grupo de feirantes, o que evidencia mais uma vez o forte poder que ela detém sobre a feira, tendo a liberdade de assinalar o diferente e excluir. Dessa forma, enxergamos que existe mais uma luta dentro dessa organização, que vem ocorrendo desde o início da feira, que está dada pelos feirantes (sem a posse do poder do conhecimento) e os técnicos da Emater (que têm autoridade, por estar investidos do poder do conhecimento). A Emater, como foi visto, desde o início é a instância que cria muitos dos discursos identitários e tem um grande poder de decisão dentro da feira.

O que observamos nesse segundo momento é que, tanto as táticas quanto as estratégias, além de estarem vinculadas aos novos saberes do dia a dia, estão também atreladas a artes da camuflagem para driblar o estatuto, assim como também às questões políticas e reivindicações identitárias dentro da feira, como pode ser observado na frase: “vamos ter que trabalhar para esse pessoal não se eleger”.

Em suma, quando falamos da identidade da Feira do Produtor de Maringá, observamos que ela é atravessada por segmentações, diferenças entre seus participantes, sendo unificadas por meio do exercício da subordinação ao estatuto e ao regimento interno. E podem ser observadas claramente as suas lutas por defender posições identitárias no palco do cotidiano.

Então, não é possível ter noções de identidade sem observar as relações de poder, que podem nomear o diferente, que excluem e dividem, também, isso não seria possível sem observar seu cotidiano, a trajetória dos feirantes. Nessa feira são aclamados os discursos formadores de identidades, nos quais são gerados os sentimentos de pertencimento, em que habitam a história e a memória dos feirantes.

Foi evidente perceber como a visão da identidade organizacional definida pelos atributos centrais, distintivos e duradouros de uma organização, como afirmam Albert e Whetten (1985)ALBERT, S.; WHETTEN, D. A. Organizational identity. In: CUMMINGS, L. L.; STAW, B. M. (Ed.). Research in organizational behavior. Greenwich: Jav Press, 1985. v. 7. p. 263-295. e Whetten (2006)WHETTEN, D. A. Albert and Whetten revisited: strengthening the concept of organizational identity. Journal of Management Inquiry, v. 15, n. 3, p. 219-234, set. 2006., não se aplica neste estudo. Pelo contrário, ele corroborou as afirmações de Maalouf (1999)MAALOUF, A. Identidades asesinas. Madrid: Alianza, 1999., Candau (2012)CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012., Bauman (2005)BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., Silva (2004)SILVA, T. T. da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. e Hall (2004HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.; 2011)HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011., que consideram identidade não como uma essência, não sendo estável, mas um processo em permanente produção, sendo esta inacabada e fragmentada.

Também compreendemos neste estudo as ligações de identidade com os discursos, narrativas e relações de poder assinalados por Silva (2004)SILVA, T. T. da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. e Hall (2004HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.; 2011)HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.. Então, a singularidade deste trabalho consistiu em ter discutido esses conceitos no âmbito organizacional, a partir do estudo do cotidiano, submergindo nas interações do dia a dia da organização, na sua história e nas memórias dos seus membros, e ter realizado a ligação da identidade organizacional com os aportes do cotidiano desenvolvidos por Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.. Ao realizar esse vínculo de identidade e das práticas cotidianas, foi possível apreciar a vasta criatividade do ser ordinário, que na sua condição de feirante pode transgredir a ordem imposta, por meio de pequenos movimentos, para driblar identidades organizacionais impostas. Em suma, observamos a identidade organizacional no plural, ou seja, as identidades da feira, pois existe fragmentação. Pudemos também apreciar as identidades como um processo dinâmico, assim como a relevância dos discursos e as relações de poder nessa dinâmica.

Por outro lado, a partir de Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., vislumbramos a existência das lutas sobre lugares (configurações instantâneas de posições). Dessa forma, observamos como os feirantes se encontram no seu cotidiano, defendendo suas configurações temporárias de posição: uns como produtores, outros como processadores; uns como maiorias, outros como minorias; uns como brasileiros, outros como não brasileiros; uns como técnicos, outros como feirantes. Ao mesmo tempo, pudemos enxergar a existência de lutas sobre as práticas desses lugares em espaços de transgressão, ou seja, no meio das fronteiras estrategicamente constituídas, como as normas e comportamentos estabelecidos pela organização, que muitas vezes instigam identidades diferentes, há possibilidades de estabelecer novas formas de agir, atalhos para reivindicar as identidades reprimidas, silenciadas ou ocultas de indivíduos ou grupos da feira.

Conclusões

A literatura predominante sobre identidade organizacional a compreende como sendo inteiriça e central, deixando de lado os processos complexos que dão lugar às identidades, como são as práticas discursivas, a história, as representações, as relações de poder, entre outros processos que são realizados no terreno do cotidiano. E é justamente porque todos esses processos partem do cotidiano que a identidade não pode estar desligada dele.

O cotidiano é uma arena móvel, onde se realizam as diversas interações sociais, processos dinâmicos que dão origem às diversas identidades sociais, e estas, por sua vez, conformam as organizações. Dessa forma, a identidade organizacional não pode ser vista como algo estático, mas em movimento, maleável, sendo constantemente desenhada pelas circunstâncias do dia a dia.

Assim, a Feira do Produtor de Maringá, sendo uma organização como muitas outras que procuram ter um grupo compacto entre seus integrantes, tentando mostrar uma única identidade organizacional, pode servir para enxergarmos que ela, assim como outras, não possui uma identidade única, mas sim fragmentada. Os seus diversos grupos estão identificados de forma diferente com a organização, eles se criam e se recriam no seu cotidiano, ou seja, nele é que são ditados os discursos formadores de identidades, e também é no cotidiano que os feirantes se reconhecem como parte de um determinado grupo. É no cotidiano que acontecem as relações de poder, poder que marca a identidade e a diferença, ou seja, as diversas interações que dão origem às identidades.

Desse modo, o palco do cotidiano não é uma arena calma, pelo contrário, é nesse palco que ocorrem as lutas por defender espaços temporários de posição identitária, e essas lutas são quase todas invisíveis para os de fora da organização. Elas são ofuscadas diante de uma aparente estabilidade que se impõe por diferentes instrumentos disciplinares e por diversos discursos que inibem comportamentos não congruentes com os prescritos.

Sendo assim, pudemos observar como instâncias na posse do poder, como assinala Certeau (2012)CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. – no caso representado pela Emater –, possuem a faculdade de estabelecer estratégias para fazer valer as suas determinações, formulando discursos e interferindo diretamente em muitas decisões da feira. Da mesma forma, existem grupos privilegiados dentro da organização, pois eles têm mais acesso a essas fontes de poder.

Então, ao pretender desvelar de que forma as táticas e estratégias no cotidiano dos feirantes da Feira do Produtor de Maringá foram se alterando, à medida que a identidade da feira foi mudando nesses 30 anos de existência, reparamos que não poderíamos fazer este trabalho descrevendo cada uma delas, porque todos os dados coletados na nossa pesquisa constituíam pequenas práticas do cotidiano. Dessa forma, destacamos certas características dessas práticas e enxergamos que, à medida que aumenta a formalização da feira e seus instrumentos disciplinares, muitas táticas foram criadas para driblar esses novos instrumentos de controle, assim como para amenizar a situação de identidades reprimidas, que nesse novo contexto se acentuam. Mas isso não quer dizer que no começo era muito diferente, existiam também instrumentos disciplinares, mas eram mais leves. Na pesquisa, achamos que nesse período existiam mais táticas e estratégias ligadas a novos saberes, novas experiências, novas aprendizagens. No período seguinte, essas táticas e estratégias estão ligadas às aprendizagens laborais, mas também ao jogar o jogo em questão.

Enfim, concluímos que o homem ordinário, representado como qualquer integrante da organização, no caso, o feirante, pode enfrentar a ordem dominante no palco do cotidiano, por meio de estratégias definidas, anunciadas e expostas em grupo, também observamos que muitos podem permanecer calados e reprimidos, mas muitos outros podem se expressar por meio de pequenas maneiras (táticas) de mostrar a sua não obediência às prescrições, as quais são muitas vezes uma queixa, um movimento de protesto ante imposições identitárias não aceitas. Dessa forma, as identidades surgem no cotidiano, neste se transformam e realizam as suas lutas, e ao mesmo tempo esse cotidiano é reinventado e recriado, em parte por essas mudanças identitárias.

Por fim, gostaríamos de salientar que mais estudos a partir da perspectiva fragmentada das identidades organizacionais em outros tipos de organização poderão agregar novos aportes teóricos ao fenômeno, assim como no caso da Feira do Produtor de Maringá, um olhar para seu cotidiano a partir do recorte da cultura também poderia enriquecer o entendimento que se tem sobre essa organização.

  • 1
    Agradecemos à Capes e à Fundação Araucária para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná pelo apoio recebido para a realização desta pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2015
  • Aceito
    18 Jan 2016
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