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A ideologia da arquitetura e da literatura moderna no Estado Novo

The ideology of modern architecture and literature in the “New State”

Resumo

O objetivo desse ensaio teórico é resgatar o desenvolvimento da arquitetura e da literatura moderna e seus laços indissolúveis com os grupos de poder político e econômico, com consequências diretas sobre a sociedade brasileira e sobre a própria ideia de Brasil. A relação tríplice aqui estabelecida - política, econômica e cultural - se dá a partir de um movimento dialético em que o sentido ideológico imputado no Estado Novo remete à ideia de uma nação progressista que rompesse tanto com os traços de uma oligarquia agrária como com a dependência externa, no plano econômico e político. Como resultado, observou-se a inocuidade de qualquer tentativa de deslocar o centro e fazer convergir o que era periférico do ponto de vista econômico e social, sendo a arquitetura e a literatura conservadoras em qualquer tentativa de superar seus objetos de crítica social. No caso da arquitetura, seu conservadorismo se dá na aproximação do poder político como forma de se estabelecer como a verdadeira arquitetura brasileira. Na literatura, observamos mudanças restritas ao plano estilístico, ficando em segundo plano o caráter ideológico da transformação.

Palavras chave:
Estudos organizacionais; Estado novo; Modernismo; Marxismo

Abstract

This essay aims to retrieve the development of modern architecture and modern literature and their indefeasible ties with political and economic power groups, which had direct impacts on Brazilian society and on the very self-image of Brazil. The triple relationship established here - political, economic and cultural - comes from a dialectical movement in which the ideological meaning of the “Estado Novo” (the Brazilian Third Republic) presents the idea of a progressive nation that would break with agrarian oligarchic vestiges as well as with external dependence, both on the political and economic fields. As a result of this process, we point out the innocuousness of the attempts to displace the centre and to renew economic and social characteristics taken as peripheral. The movement was not able to create a convergence around modern meanings, and literature and architecture remained strongly conservative in their attempts of critically overcoming the social critic. Conservatism in architecture is noted for its rapprochement with political power as a way to establish itself as the legitimate Brazilian architecture. In literature, the changes were restricted to style, setting aside ideological transformations.

Keywords:
Organization studies; New State; Modernism; Marxism

1. INTRODUÇÃO

O campo dos estudos organizacionais tem se mostrado aberto a debates que transcendem a ideia clássica de organização pautada em arranjos sociais formais cujos objetivos possam ser reconhecidos pelas partes e precedidos de certo planejamento. Essa transformação no campo, passa, dentre outros aspectos, por compreender tanto organizações historicamente esquecidas, como por romper como a necessidade de localizar a ideia de organização ao estender o debate para o nível de sociedade. Mostras profícuas destas incursões podem ser encontradas nos trabalhos Czarniawska (1997), Mac-Allister (2001), Fischer (1996), Saraiva (2009), Saraiva e Carrieri (2012), Imasato e Verás (2012IMASATO, T.; VÉRAS, M. L. Brasília e Modernidade: um ensaio sobre o processo de produção da capital brasileira. Gestão e Sociedade, v. 6, n. 15, p. 335-359, 2012.), Brulon e Peci (2013BRULON, V.; PECI, A. Organizações públicas e espaços às margens do Estado: contribuições para investigações sobre poder e território em favelas. Revista de Administração Pública, v.47, n.6, p. 1497-1517, 2013.), Brulon (2015BRULON, V. (Des)Organizando o Espaço Social de Favelas: o campo burocrático do Estado em ação no contexto da “pacificação”. (Tese) Doutorado em Administração. Fundação Getúlio Vargas - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Rio de Janeiro: FGV/EBAPE, 2015.), Lacerda (2016LACERDA, D. S. The production of spatial hegemony as statecraft: an attempted passive revolution in the favelas of Rio. Third World Quarterly, v. 37, n. 6, p. 1083-1101, 2016.), entre tantos outros.

Em complemento ao nível social de análise fortemente presente nos Estudos Organizacionais, cabe demarcar a emergência da administração política enquanto espectro de análise dos fenômenos organizacionais/sociais. Essa perpassa vários campos da administração, lançando luz sobre as transformações nas esferas política e econômica brasileira, na forma de organização e estruturação do Estado para “gerir o processo das relações sociais de produção” (SANTOS e RIBEIRO, 1993SANTOS, R. S.; RIBEIRO, E. M. A Administração Política Brasileira. Revista de Administração Pública , v. 27, n. 3, p. 102-135, 1993., p. 106), também difundidas nos trabalhos como os de Santos et al. (2009SANTOS, R. S.; BARRETO, E. F.; RIBEIRO, E. M.; BARRETO, M. G. P. O expediente: a dimensão esquecida da administração política. Organizações & Sociedade, v. 16, n. 49, p. 373-388, 2009.), Santos et al. (2016SANTOS, R. S. et al. A crise, o Estado e os equívocos da administração política do capitalismo contemporâneo. Cadernos EBAPE.BR, v. 14, n. 4, p. 1011-1034, 2016.), Gomes (2012GOMES, F. G. O jovem percurso da administração política. Revista de Administração Pública , v. 46, n. 1, p. 7-24, 2012.), Sumiya, Silva e Araújo (2014SUMIYA, L. A.; SILVA, M. P.; ARAÚJO, M. A. D. Paradigmas e críticas presentes na construção do campo de conhecimento da Administração Política. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, v. 8, n. 1, p. 35-49, 2014.).

Neste mote, tenho como propósito resgatar o desenvolvimento do modernismo, em particular a arquitetura e a literatura, e seu laço indissolúvel com os grupos de poder político e econômico que emoldura a ideia de um país vanguardista e progressista, fundamental na transição de uma economia agrário exportadora para uma economia industrial. Inscrito em um cenário de mudanças, a ideia de se desenvolver um movimento cultural compatível com o projeto de nação do Estado Novo ganhou corpo, todavia, sem alterar o âmago das relações de poder que atravessam as esferas política, econômica e cultural. Para além do resgate histórico, busco sinalizar como as formas e as produções culturais mantêm reciprocidades com a economia e a política, reciprocidades estas que carecem de maior atenção por parte dos pesquisadores que tomam a cultura como tema.

É, antes de tudo, necessário situar este texto num universo dialético, onde qualquer mudança significativa tem correspondência em outras esferas, como a cultural, política, legal e econômica. Nesse ensaio, a interdeterminação é compreendida a partir do movimento dialético entre base e superestrutura, dentro do qual qualquer entendimento em um dos níveis - político, legal, econômico, cultural, dentre outros - leva inevitavelmente a uma análise processual dos estágios antecedentes e da relação que o elemento em questão estabelece com os demais.

O resgate histórico aqui empregado rememora o aspecto ideológico do Estado Novo amparado na concepção de homem brasileiro supostamente emancipado da dependência europeia, que visa se lançar não apenas como culturalmente estabelecido, mas economicamente autossuficiente, a partir da ideia desenvolvimentista de substituição do país agrário pelo país industrial. Ideologia enquanto elemento superestrutural, com correspondência e reciprocidade imediata nas questões de ordem concretas da vida, como a economia, e que em nada se aproxima com a ideia de ideologia como falsa consciência. Indo além, sob base materialista, a função ideológica da cultura e de outras formas exerce justamente o papel de pilar desse processo de desenvolvimento, uma vez que um modelo de reprodução econômica não poderia funcionar sem o esteio de atividades não econômicas.

É justamente esse potencial que uma leitura dialética confere à adoção da arquitetura e da literatura moderna, quando não apenas provoca rupturas com estágios precedentes, mas também conformam uma forma de pensamento estabelecido em outras esferas da vida social - econômica e política. A significação refletida no modernismo, como em toda produção estética, traz em si seu caráter ideológico e sua posição frente às questões sociais da vida. Neste sentido, representa, antes de tudo, a concretude de ideias, posicionamentos, concordância ou resistência ao momentaneamente estabelecido, sendo um ponto fixo de um processo.

Para fazer cumprir o objetivo proposto, este trabalho está dividido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. Inicio apresentando elementos centrais do materialismo histórico que ilustram a relação dinâmica entre a base e a superestrutura. A seção subsequente situa a operacionalização da arquitetura dentro da sociedade, seu potencial inclusivo ou exclusivo na dinâmica espacial. Em seguida, resgato a literatura moderna e suas transformações, bem como o tratamento dado pela mesma às relações de poder no campo econômico e político quando da transição do campo para a cidade.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O MATERIALISMO HISTÓRICO

Abro esta seção pedindo desculpas aos leitores por não me delongar nas bases do materialismo histórico. Tratarei apenas de expor como é possível entender a relação da arquitetura e da literatura moderna com os aspectos político e econômico. A exposição de elementos centrais do materialismo histórico é mais um exercício que sinaliza o pano de fundo da construção argumentativa, que qualquer tentativa operacional de fazer aproximar teorias ou elementos históricos de diferentes campos da sociedade. No caso do Brasil, em particular, como sinalizou Sodré (1990), essa investida é fundamental a fim de compreender os processos de desenvolvimento que se entrelaçam em esferas diversas.

A concepção materialista da história deve ser encarada como base da explicação histórica, mas não a explicação histórica em si (HOBSBAWM, 1998HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras , 1998.). O materialismo histórico permite tratar a concomitância entre o geral - o absoluto de um processo de desenvolvimento - e o particular - ligado ao tempo, ao lugar e às circunstâncias nas quais se apresenta - torna-se possível a partir do método dialético, no qual o absoluto e o relativo formam uma unidade indestrutível e insuperável, apesar do caráter abstrato que em alguns momentos é atribuído pelo capital ao absoluto, ao universal, como desconexo de particularidades (PAÇO-CUNHA, 2010PAÇO-CUNHA, E. Gênese, Razoabilidade e Formas Mistificadas da Relação Social de Produção em Marx: a organização burocrática como abstração arbitrária. (Tese) Doutorado em Administração. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2010.).

A dialética materialista em contraposição à dialética idealista evidencia o início e o fim do processo de apreensão da vida social no real, nas contradições materiais da produção da vida a partir dos meios e técnicas disponíveis num dado estágio do desenvolvimento histórico. A dialética materialista representa não apenas o processo reflexivo do homem frente às determinações materiais imediatas da vida social, mas também o caráter dinâmico já citado em outras passagens do próprio materialismo histórico. No materialismo histórico, é através da dialética que as múltiplas determinações entre base e superestrutura são apreendidas, tendo centralidade o desenvolvimento das forças produtivas humanas, a base, contudo, sem implicar em absoluto em qualquer relação determinista ou mecânica. É necessário reforçar este caráter dinâmico evocado no movimento dialético da base e da superestrutura para que não se denote ao materialismo histórico função determinista e sim dialética, que por consequência imprime dinamicidade. Deve-se, pois, considerar, em cada realidade a apreensão de suas próprias contradições, suas dinâmicas próprias (interna) e suas transformações (LEFEBVRE, 2006LEFEBVRE, H . Le Marxisme. Paris: Presses Universitaires de France, 2006.).

A base representa a existência real dos homens, todas as relações de produção correspondentes a uma determinada fase do desenvolvimento humano. Em sua dialética interna, ou seja, a partir das próprias contradições nos modos de produção de uma certa época, temos o caráter processual da base. A esta base dinâmica corresponde uma superestrutura também dinâmica que agrega elementos como a política e a cultura, que não refletem direta e mecanicamente o modo de produção da base em si, mas as relações da vida social nas quais é central o modo de produção econômica (WILLIAMS, 2011aWILLIAMS, R. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011a.). Este reflexo não corresponde à totalidade em si, mas sim a parcela refletida no particular esboçada na concepção de uma estética marxista, de forma que a arte, por exemplo, represente a apreensão do homem sobre o real e suas contradições.

Especificamente nos elementos constituintes da superestrutura, qualquer tentativa de compreender o processo de desenvolvimento e seus estágios em um campo específico da vida humana, como a ciência, a filosofia, a arte, a política ou a religião, apenas a partir de suas próprias contradições e reformulações, de sua dialética interior (LUKÁCS, 2010LUKÁCS, G. Introdução aos Escritos Estéticos de Marx e Engels. In. MARX, K.; ENGELS, F. Cultura, Arte e Literatura: textos escolhidos. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.), no curso da história, é equivocada. A compreensão do desenvolvimento destes campos só é possível a partir da relação de cada uma dessas esferas entre elas e com o correspondente estágio de desenvolvimento econômico e suas especificidades - donde resulta o caráter materialista do método histórico em Marx. Todavia, antes é necessário ressaltar que este caráter aparentemente economicista se deve ao momento preponderante que colocava em questão categorias como mais valia e valor na centralidade das relações existentes (FORTES, 2008FORTES, R. V. Procedimento investigativo e forma expositiva em Marx - duas leituras: Lukács/Chasin. Verinotio - Revista on-line de Educação e Ciências Humanas, v. 5, n. 9, p. 73-105, 2008.), de forma que não restringe o pensamento de Marx às esferas econômicas, e sim assenta a estrutura social sobre sua base.

Lukács (2010LUKÁCS, G. Introdução aos Escritos Estéticos de Marx e Engels. In. MARX, K.; ENGELS, F. Cultura, Arte e Literatura: textos escolhidos. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.) aponta que a evolução de todos esses campos é determinada pelo trajeto de toda a história da produção social, e somente a partir deste conjunto de relações é possível lançar luz às transformações em cada campo de maneira singular. Por outro lado, em conjunto, o materialismo histórico viabiliza a compreensão dos fenômenos de base e superestrutura, em que pese a hierarquia destes fenômenos sociais, considerando “as tensões internas (contradições) que contrabalançam a tendência do sistema a se manter como interesse vigente” (HOBSBAWM, 1998HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras , 1998., p. 162).

A relação estabelecida por Marx e Engels (2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.) sinaliza que as ideias - formadas pelos elementos superestruturais - da classe que domina uma certa época são também ideias da própria época, uma vez que este domínio tende a se manifestar em todos os aspectos. Seria um equívoco, entretanto, pensar que se trata aqui de uma relação causal entre as transformações produtivas na esfera econômica com consecutivo efeito na política, na arte, na religião, na ciência ou na filosofia. Pelo contrário, o caráter materialista está justamente na impossibilidade de compreender o desenvolvimento destes campos somente a partir de suas conexões imanentes (LUKÁCS, 2010LUKÁCS, G. Introdução aos Escritos Estéticos de Marx e Engels. In. MARX, K.; ENGELS, F. Cultura, Arte e Literatura: textos escolhidos. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.).

É esta relação dialética que se faz presente também na ideologia enquanto aspecto superestrutural. A partir de Lukács (1981LUKÁCS, G. Per l’ontologia dell’essere sociale. Roma: Editoi Riuniti, 1981.), Vaisman (2010VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio - Revista on-line de Educação e Ciências Humanas , v. 6, n. 12, p. 40-64, 2010.) recobra o sentido da ideologia enquanto elemento fundamental para a manutenção das condições concretas presentes na organização da produção, uma vez que estas últimas só são possíveis se condicionadas num conjunto de atividades “organizadoras da sociedade” (VAISMAN, 2010VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio - Revista on-line de Educação e Ciências Humanas , v. 6, n. 12, p. 40-64, 2010., p. 47). Por outro lado, destaca Vaisman (2010VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio - Revista on-line de Educação e Ciências Humanas , v. 6, n. 12, p. 40-64, 2010.) o próprio filósofo húngaro resgata em Marx uma caracterização mais restrita de ideologia, que em sua relação inexorável com as questões concretas, assenta na ideologia o auxílio para compreensão e consciência dos conflitos sociais, uma vez que por ser extensão não determinada das contradições de ordem econômica, seu reconhecimento pode ser meio para o reconhecimento dessa última. Assim, a concepção de ideologia requer necessariamente este caráter imanente com as questões do ordenamento social, não sendo possível compreender toda e qualquer transformação no campo da cultura dissociando de outras esferas da vida.

3. A SAGA DA ARQUITETURA MODERNA EM TRÊS ATOS: MONUMENTOS PARA O GOVERNO, O ENGODO DA POPULARIZAÇÃO DA ARQUITETURA E A LEGITIMAÇÃO INSTITUCIONAL

Antes de tratar da arquitetura moderna e sua consolidação como a verdadeira arquitetura brasileira, cabe elucidar algumas questões que fazem parte do próprio campo da arquitetura, ou nos termos dialéticos, das transformações no campo a partir de suas próprias contradições. Aqui, especificamente, o principal embate àquela época girava em torno do papel da arquitetura, do seu distanciamento da função primária de servir ao homem.

Num sentido mais amplo, a produção social do espaço se insere em uma perspectiva inclusiva e participativa que se estabelece entre sujeitos e o espaço habitado. Essa relação se dá não apenas a partir da vontade do sujeito sobre o espaço, mas também sobre formulações de um materialismo histórico, em que o sujeito produz a consciência sobre o objeto (LEFEBVRE, 1991LEFEBVRE, H . The Production of Space. Oxford: Blackwell Publishing, 1991.; LEFEBVRE, 1969LEFEBVRE, H . O Direito a Cidade. São Paulo: Documentos, 1969.; TRICÁRICO, 2007TRICÁRICO, L. T. Para o modernismo, a modernidade. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 14, n. 15, p. 210-238, 2007.). Essa dialética socioespacial (SOJA, 1993SOJA, E. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Zahar , 1993.) se caracteriza pelo peso idêntico entre sujeito e objeto, que perde força quando se observa um sujeito como definidor do espaço, em que este mesmo sujeito conscientiza o objeto (TRICÁRICO, 2007TRICÁRICO, L. T. Para o modernismo, a modernidade. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 14, n. 15, p. 210-238, 2007.).

Historicamente esta produção volta sua lente para os espaços extraordinários - objetos excepcionais, monumentais, destinados ao culto - em contraposição ao espaço da vida cotidiana representativa da produção social do espaço. Kapp (2006KAPP, S. Contra a Integridade. MDC. Revista de Arquitetura e Urbanismo, v. 1, n. 2, p. 8-11, 2006.) destaca que a produção de espaços monumentais é representativa do deslocamento do arquiteto enquanto trabalhador manual para trabalhador intelectual, surgida no Renascimento, e mantida intacta no movimento moderno, acrescentando-se neste último “a monumentalidade dos edifícios oficiais e o refinamento das residências mais caras, etc., subestimando sua origem mais representativa” (FERRO, 2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006., p. 37).

Apesar de se originar numa tentativa de contraposição a uma ordenação tradicional, Kapp (2006KAPP, S. Contra a Integridade. MDC. Revista de Arquitetura e Urbanismo, v. 1, n. 2, p. 8-11, 2006.) ressalta que o movimento moderno foi mais tradicional que a tradição que buscou superar. Mesmo imbuídos de uma possibilidade de projetar espaços comuns - moradias, comércios, convívios - os arquitetos modernos não abandonam as premissas originadas da tradição monumental, em que está presente a ideia de autoria da obra de arte, para a qual existem usuários passivos, seja por contemplar a obra via observação, ou por serem personagens dentro de um script determinado pelo autor.

O percurso realizado para explicitar a saga gloriosa da arquitetura moderna brasileira tem como principal base a obra de Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.). O primeiro ato, por assim dizer, tem a ver com as obras públicas monumentais desenvolvidas para o Estado Novo, que estão inscritas em um complexo sistema econômico e político-ideológico de construção/afirmação de uma identidade nacional. Essa tal questão nacional, segundo Ianni (2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.), sempre se apresenta, seja como desafio, obsessão, impasse ou incidente. No plano político-ideológico, a revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas - e com apoio de um grupo modernista através do movimento verdeamarelismo - põe fim à Velha República, deflagrando a política de cunho populista, fortemente acentuada a partir de 1950, que visava chancelar a construção de um país amparado pelas tradições nacionais e pelo povo brasileiro. Compunham este quadro a interpretação paternalista de Gilberto Freyre, impressa em Casa-grande e Senzala, e o integralismo de Plínio Salgado, a exemplo (CHAUI, 2000CHAUI, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.).

No campo econômico, Prado Junior (1999)PRADO JUNIOR, C. História e Desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e a prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense , 1999. destaca que os lucros oriundos da exportação do café contribuíram para alavancar a industrialização no país. Aliado a uma política de exportação da produção de base, o café alcançou lucros vultosos não apenas pela política protecionista do governo brasileiro durante a Velha República, como também por não encontrar concorrência no mercado externo, uma vez que os países europeus e os Estados Unidos voltavam suas atenções para a produção industrial. A reboque dos lucros auferidos pelo café, a produção industrial se intensifica no país, particularmente quando da desvalorização da moeda, uma vez que não apenas cria concorrência interna frente aos produtos exportados, como consegue atender ao mercado externo que passava por restrições financeiras, particularmente durante a primeira Grande Guerra. A consolidação da produção industrial como eixo central da economia brasileira se dá após a crise geral com o crack da Bolsa de Nova York, de forma que a produção cafeeira se encontrava em completa substituição (PRADO JUNIOR, 1999PRADO JUNIOR, C. História e Desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e a prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense , 1999.; MARINI, 2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.; SILVA; FURTADO, 1970).

De acordo com Marini (2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.), o fluxo de capital oriundo das atividades agroexportadoras para as atividades industriais deve ser compreendido com o intermédio do sistema bancário, na medida em que este passa a drenar parte do capital excedente para subsidiar o investimento na indústria, em particular, na importação de máquinas. Ademais, a articulação entre agroexportadores e industriais era conveniente, também, na manutenção do preço do café, preservando as receitas da oligarquia e operacionalizando um protecionismo que seria de interesse da indústria (FURTADO, 1970; MARINI, 2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.). O compromisso firmado em 1937, pelo Estado Novo, garante a manutenção dos ganhos mediante a compra e o armazenamento dos excedentes, ao passo que a redução paulatina da produção agrária - para manutenção do ganho médio - implicava na liberação de mão de obra para a indústria e migração para a cidade, e formação de um contingente de reserva de trabalhadores - e a consequente pauperização do trabalho, ao passo que esvaziava qualquer discussão acerca da reforma agrária (MARINI, 2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.).

Retomando a ideia de uma identidade nacional, o elemento desenvolvimentista calcado na industrialização se tornou bandeira da construção do homem brasileiro, progressista e vanguardista, difundida tanto com Vargas, na Nova República, com a intensificação da produção industrial em detrimento da atividade agrária e com a consequente migração do campo para a cidade (PRADO JUNIOR, 1999PRADO JUNIOR, C. História e Desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e a prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense , 1999.), quanto com Kubitschek, em 1950, sob a ideia de nação urbana construída como questão nacional e o desenvolvimento da consciência nacional das classes sociais (CHAUI, 2000CHAUI, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.; FURTADO, 1984FURTADO, C. Cultura e Desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.).

A transição da República Velha para a Nova República ou Estado Novo continha em si, então, dois marcos bastante claros. No plano econômico, representava a consolidação da transição de uma economia agrária para uma economia industrial. No plano político-ideológico, caracterizava-se discursivamente por defender os interesses da camada mais pobre da população e por salvaguardar o ethos progressista brasileiro, agora fundado na urbe. Em complemento a esta identidade nacional, viu-se necessário e oportuno demarcar monumentalmente a transição com a construção de ministérios, e aí se inserir desde já o complemento que se tornaria um importante componente da representatividade vanguardista brasileira: a arquitetura moderna.

Em 1938 foi inaugurada a Exposição Nacional do Estado Novo, cujo objetivo era reforçar o devir de uma identidade brasileira. A exposição contava, em um dos seus setores, com maquetes e plantas de novos edifícios que incorporavam o programa de construção de prédios públicos para suportar repartições e departamentos na capital, Rio de Janeiro. Apesar da monumentalidade, argumentava-se que os prédios públicos iriam além das construções da Velha República, restrita a bibliotecas, teatros e palácios.

Face ao propósito de inserção do homem comum - do trabalhador - à política do Estado Novo, os primeiros ministérios criados foram os do Trabalho e o da Saúde Pública. O primeiro visava estabelecer uma ação mais completa junto ao trabalhador/cidadão, contemplando questões ligadas à educação, alimentação, habitação etc. (GOMES, 1982GOMES, A. M. O Trabalhador Brasileiro. In. OLIVEIRA, L.L. et al. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar , 1982.), e o segundo, conduzido por Gustavo Capanema, tinha como objetivo preparar o homem brasileiro para a nova era que se inaugurava, da industrialização e do progresso (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

A aliança entre a arquitetura moderna e o Governo é deflagrada na década de 30, particularmente com os edifícios dos Ministérios da Educação e Saúde, da Fazenda e do Trabalho. O concurso para a construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde (MES), realizado em 1935, pode ser tomado como ponto de partida da confluência entre o projeto político-ideológico do Estado Novo e o projeto estético-ideológico da arquitetura moderna. O projeto vencedor do concurso, de autoria de Archimedes Memória, recebeu pesadas críticas por parte de representantes modernistas, sendo empreitada uma apelação junto ao ministro Capanema, diretamente realizada por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) destaca que o próprio ministro Capanema estava descontente com o projeto vencedor, uma vez que era uma mescla de estilo neoclássico e elementos decorativos que remetiam a uma fictícia civilização marajoara que teria existido na região norte do Brasil, não convergente com a ideia progressista e a formação do novo homem brasileiro. A partir de uma intervenção realizada junto ao presidente Vargas, Capanema argumenta a favor de se reconsiderar o projeto de Lúcio Costa para o edifício do MES, antes eliminado na primeira fase do concurso (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

Em complemento às negociações políticas que envolviam a incorporação da arquitetura moderna no projeto político-ideológico do Estado Novo, outro aspecto legitimador foi a inserção de Le Corbusier ao grupo de arquitetos que pensariam as edificações do poder público brasileiro, particularmente da equipe que trabalharia no projeto do MES - donde se destaca Oscar Niemeyer. Le Corbusier reforçaria o caráter qualitativo da arquitetura moderna, em disputa com os acadêmicos neocoloniais. Para o arquiteto francês, a inserção no mercado brasileiro era de grande interesse, uma vez que na França esse era conhecido mais por seus livros que por suas obras, e não encontrava espaço para seus projetos devido à forte recessão financeira ainda decorrente da primeira Grande Guerra e pelo predomínio das Escolas de Belas Artes na arquitetura francesa (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

A batalha do concurso do MES foi travada entre neocoloniais e modernistas. Os primeiros, ligados a conservadores reformistas dos anos 20,

[...] alegavam que, o culto, à tradição colonial, localizava-se o nacionalismo da proposta. Por outro lado, a crença na tradição forneceria as raízes das quais brotaria o futuro, que para eles é essencialmente restaurador, devendo recuperar os valores de um Brasil pretérito (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006., p. 48).

Em oposição à ideia reformista dos neocoloniais, os modernistas destacavam a necessidade de romper com este passado superficial e desenvolver formas que tomassem como norte o futuro, estabelecendo uma forte ligação entre as bases da arquitetura colonial e modernista. A tendência modernista em revisitar este passado “glorioso” brasileiro é também apontada por Ferro (2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006., p. 311), para quem “a emancipação nacional pedia fundamento autóctone”. Dessa forma, nada mais cabível que mergulhar nos traços de uma cultura popular pretérita - até mesmo para contrabalancear o cajado elitista do que estava sendo produzido, ressalta Ferro (2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.) - e no caso da arquitetura, estabelecer a linha evolutiva que unia o clássico ao modernista.

Outro componente do projeto do prédio do Ministério da Educação e Saúde nos permite compreender quão determinante era o ideário do homem brasileiro a ser fixado nas obras públicos do Estado Novo. A respeito das obras de arte a serem colocadas no edifício, Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) sinaliza que para o ministro Capanema a principal estátua deveria ser a estátua do homem brasileiro. Sentado, nu como O Pensador de Rodin; dissipando calma, domínio e afirmação em seu aspecto (Arquivo Capanema, CPDOC/FGV). O esboço da estátua feito por Celso Antônio foi prontamente rechaçado pelo ministro Capanema, por ter a aparência de um homem sertanejo, barrigudo, pouco atlético (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.). Até mesmo o aspecto do homem sentado é modificado, pois não traduz a marcha que deve ser imputada ao homem brasileiro, cujo modelo deveria ser o homem branco. Aliados às instâncias de poder, se propondo oferecer não apenas uma renovação estética bem como um complemento ideológico à identidade brasileira proposta pelo Estado Novo, os arquitetos modernos vencem a batalha frente aos neocoloniais (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

A propósito do ideário do homem brasileiro, é mister pensar a rejeição de uma figura que remetesse aos traços da Velha República. Ianni (2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.) recobra a crítica de Rui Barbosa (1951, apudIanni, 2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.) ao modo de vida caipira então existente no Vale do Paraíba - esboçado no personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato - como forma de se desvencilhar de um “conjunto de padrões e valores, formas de viver e trabalhar” (IANNI, 2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 106). Em complemento, o ideário do brasileiro progressista reforça-se na ideia de trabalho produtivo, no combate à preguiça e ao ócio que, evidentemente, se materializam na atividade industrial.

Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) aponta que a partir da construção do MES inaugura-se um mercado ativo de construção de prédios públicos no qual os arquitetos modernos exerceram amplo domínio. Paralelo à aproximação das instâncias de poder, o crescimento da arquitetura moderna desloca o status da boa arquitetura antes de posse da academia, de tendências neoclássicas, para os grupos de profissionais a serviço do Estado. Essa mudança provoca, por razões bastantes claras, também a transição de uma formação acadêmica neoclássica que passa, particularmente nos anos 50 em diante, a advogar em prol de uma arquitetura moderna.

Paralelo ao concurso do MES, os modernistas concorreram com projetos para outras duas edificações - ministérios da Fazenda e do Trabalho - no governo de Getúlio Vargas. O concurso do ministério da fazenda se iniciou em 1936 e teve como desfecho a vitória a arquitetura de tendência moderna revolucionária, de autoria de Alves de Souza e Enéas Silva (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

Embora Alves de Souza e Enéas Silva tenham vencido o concurso e recebido o valor estipulado, o projeto por eles desenvolvido não foi executado, a princípio, pela decisão de construir este edifício numa área distinta à estabelecida anteriormente pela Velha República. Posteriormente, é atribuído ao arquiteto de inclinação neoclássica Luiz Moura o projeto do Ministério da Fazenda, mas com constantes intervenções do ministro Souza Costa. Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) destaca que o revés sofrido por Alves de Souza e Enéas Silva não se dá apenas pela negação do Ministro da Fazenda em construir o prédio por eles projetado, mas também pelo silêncio de outros membros do movimento modernista, diferentemente ao concurso do MES, quando Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, dentre outros, saíram em defesa da proposta de Lúcio Costa. Para Cavalcanti (2006), fica evidente que os critérios implícitos à pertença ao grupo modernista se estabeleciam para além das escolhas estético-estilísticas, sendo fundamental o status social conferido à família de origem, como bem se observa nas famílias Costa, Niemeyer, Reidy, e Moreira e Leão.

A terceira obra que marca a inclinação do Estado Novo às suntuosas edificações é o Ministério do Trabalho, do qual a importância reside mais no papel que este ministério representou para o governo Vargas que por eventuais polêmicas em seu concurso. Com a construção do prédio do Ministério do Trabalho, consolida-se o novo período da economia com foco nas atividades industriais.

Vazio de disputas estéticas entre os arquitetos, o prédio do Ministério do Trabalho é significativo por inaugurar (uma vez que foi o primeiro dos três edifícios a ter sua obra concluída) a força do Estado Novo a partir das edificações monumentais. A função ideológica deste empreendimento reluzia na representação de Vargas, para o qual o prédio era revestido de harmonia e sobriedade e fruto de um exercício patriótico (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.). Instaurava-se ali o abrigo das discussões trabalhistas que salvaguardavam o Brasil dos delírios extremistas, uma vez que visa encerrar os confrontos de classes num ponto médio: a legislação trabalhista.

Ianni (2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.) destaca que a reforma nas leis trabalhistas, da situação do trabalhador da indústria, é tomada como elemento central do projeto de modernizador da Revolução de 30, mas também como resposta às reivindicações nascentes em greves nas lavouras cafeeiras, no embate estabelecido pelos trabalhadores frente ao modus operandi oligárquico e patrimonialista de controle e repressão durante a Velha República. Não obstante essa origem contestatória a partir do trabalho rural e esse efeito imediato na regulação do mercado de mão de obra, Bello (1936, apudIanni, 2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.) aponta que as medidas tomadas no Congresso Legislativo incidem sobre o trabalhador urbano, melhor disciplinado, cabendo ao trabalhador rural a condição de não valor. A modernização do trabalho configura-se aqui como mais um aspecto ideológico - reciprocidade dialética entre base e superestrutura - de um modo de produção e ordenamento social cujo retorno imediato sobre a economia resulta na própria equalização entre oferta e demanda de força de trabalho, que evidentemente atende ao mercado e às grandes empresas industriais (IANNI, 2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.).

No bojo de uma ordem urbana e industrial, a nova era de edificações públicas é instaurada com a aproximação entre Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer, responsável nos anos 40, 50 e 60 pelo projeto do Conjunto da Pampulha, e por Brasília, o mais famoso dos legados modernistas. Para Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) o projeto da Pampulha pode ser considerado o marco inicial de um modernismo genuinamente brasileiro, que nos conduz à máxima do ser moderno significando ser brasileiro (SIMÃO, 2001SIMÃO, M. C. R. Preservação do Patrimônio Cultural em Cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.). Rompe-se com o racionalismo de influência europeia - particularmente Le Corbusier - e incorpora-se a arte ao projeto arquitetônico atrelada ao incremento das curvas, proporcionadas pela adoção de novos materiais na construção.

A inflexão expressa na ruptura com o estilo modernista europeu parece ter se mantido no campo estético, uma vez que a “arquitetura moderna brasileira”, no que parece ser a superação do fracasso dos projetos habitacionais populares, recobra seu sentido monumental a serviço dos grupos de poder econômico e político, e afasta, por hora, qualquer possibilidade de função social da arquitetura, sendo tão contemplativa quanto a arquitetura neocolonial, talvez numa obscura confusão entre poder público e poder-ser-público (SIMÃO, 2001SIMÃO, M. C. R. Preservação do Patrimônio Cultural em Cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.).

A maximização do aspecto monumental da arquitetura moderna a serviço do poder político é alcançada com a construção de Brasília, novamente possibilitada no fortuito encontro entre Niemeyer e JK. Construir Brasília era parte de um planejamento no qual se forjou a ideologia de um crescimento geral para toda sociedade a partir do crescimento de um substrato específico da economia um crescimento que colocava a posteriori a distribuição de riquezas (IMASATO; VERÁS, 2012IMASATO, T.; VÉRAS, M. L. Brasília e Modernidade: um ensaio sobre o processo de produção da capital brasileira. Gestão e Sociedade, v. 6, n. 15, p. 335-359, 2012.; FERRO, 2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.).

Essa premissa coincide com um dos pilares do crescimento difundido pela economia neoclássica, o gotejamento (trickle-down effect of growth), cujo pressuposto garante que mesmo um crescimento concentrado provocará um crescimento generalizado. De acordo com esta ideia, o crescimento de uma parcela da população já enriquecida implicaria também o crescimento dos mais pobres pelo processo de gotejamento, o que se mostrou falacioso em países que apresentam profunda desigualdade social, cujo crescimento se manteve sempre concentrado (GAVA, 2009GAVA, R. Autodeterminação Local e Desenvolvimento: uma análise da dinâmica social no município de São Roque de Minas. (Tese) Doutorado em Administração - EBAPE/FGV. Rio de Janeiro: EBAPE/FGV, 2009.). Crescimento este que se manifesta na mobilização de recursos investidos em transporte, geração e fornecimento de energia, infraestrutura urbana, além dos investimentos na produção de insumos estratégicos, com a criação das estatais. Não obstante o crescimento da economia e da renda per capita a partir de 1940, a distribuição de renda permaneceu fortemente desigual, estando os 40% mais pobres da população com 9,7% da renda total, enquanto os 10% mais ricos detinham 47,9% desta mesma renda (IANNI, 2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.).

Retomando os lastros da epopeia modernista da construção de Brasília, desfazem-se aqui os laços com o braço europeu modernista na recusa ao flerte de Le Corbusier em participar no projeto da nova capital - há que se considerar que essa recusa fortalecia ainda mais a ideia de um Brasil moderno (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.). Na construção de Brasília os arquitetos modernos se depararam com um problema que fugia à capacidade literalmente idealizadora do projeto: a usabilidade. Não obstante o caráter contemplativo que a capital federal se deu como proposta, na qual os habitantes não eram convidados à confluência, mas sim à dispersão, dado que a disponibilidade de espaço não era problema, o que se viu em Brasília pode ser considerado, em parte, uma subversão ao ordenamento da vida antes pensado. Os planos dos idealizadores de Brasília para o grande contingente de trabalhadores que vieram principalmente das regiões norte e nordeste para trabalhar nos canteiros de obra, atraídos pelo chamariz governamental, era o deslocamento deste contingente para outras partes da região centro-oeste a fim de trabalhar nas atividades agrícolas, cuja produção seria destinada ao sustento dos hipotéticos moradoras da nova capital. Todavia, a profecia governamental e modernista não se cumpriu, dando lugar aos acampamentos de excluídos que mais tarde foram legalizados. Apesar da subversão dos indesejáveis, Brasília permaneceu uma cidade segmentada, na qual impera a funcionalidade arbitrária e segregacionista (FERRO, 2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.).

A separação racional pela qual a cidade foi construída e que imputa a seus habitantes uma lógica inconteste se apresentava já no ordenamento dos canteiros de obra, cuja elaboração taylorista sobre o homem de primeira classe (TAYLOR, 1995TAYLOR, F. W. Princípios de Administração Científica. São Paulo: Atlas, 1995.) desumanizava os trabalhadores e os exigia adaptação à racionalidade ordenada no projeto, como é possível compreender nos relatos de Ferro (2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.).

Desde aquele momento (a chegada maciça dos imigrantes à Brasília), apareceram os primeiros sinais de violência no canteiro - sempre abafados pela imprensa. Não falo da violência intrínseca à manufatura da construção. Mas da outra, suplementar, canteiros e acampamentos cercados por “forças de ordem”, jornadas intermináveis de trabalho, alimentação precária. Anos mais tarde, quando fui preso, convivi com operários que participaram desta construção. Eles me contaram um sofrimento que mal imaginávamos então: suicídios numerosos, operários se jogando sob caminhões, disenteria quase cotidiana, cercados, sem poder sair (FERRO, 2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006., p. 305).

Os dizeres de Ferro (2006FERRO, S. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.) apontam que, desde a construção, a pessoalidade não seria marca da nova capital federal. A ideia de progresso vista sob a ótica da monumentalidade e da industrialização já fazia imperar a lógica produtivista do capital na própria produção do monumento. Sinaliza-se assim que a crítica modernista se mantém retórica, pois segue em atribuir o caráter passivo e reativo dos ditos homens brasileiros e se esgota na mesma monumentalidade sobre a qual impôs crítica. O que se ensaia como uma transformação estética amparada e amparando uma ideologia desenvolvimentista cessa num esteio ao projeto de poder de grupos dominantes.

O segundo ato diz respeito à falaciosa popularização da arquitetura propagada pelos arquitetos modernos. No ceio do ideário progressista do Estado Novo diversas mudanças na estrutura social do país se tornaram flagrantes, fazendo emergir demandas em diversos campos. A transição de uma economia essencialmente agrícola para a economia voltada para as atividades industriais trouxeram não apenas a possibilidade de mudança de um país exportador de produtos primários e importador de produtos industrializados - com reflexos evidentes na balança comercial e na dependência da variação cambial (PRADO JUNIOR, 1994PRADO JUNIOR, C. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense , 41 ed., 1994.) - mas também nas mudanças habitacionais decorrentes do crescimento do processo de centralização em grandes áreas urbanas e o inchaço populacional ocasionado pelo fluxo migratório rural em decorrência da precarização da produção agrícola (PRADO JUNIOR, 2011; LEFEBVRE, 1999LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.; HARVEY, 2008HARVEY, D. Right to the City. New Left Review, v. 53, sep/oct, p. 23-40, 2008.).

A política desenvolvimentista baseada na industrialização deflagrada na era Vargas e com reflexos durante todo o século XX trouxe consigo elevado déficit habitacional. O fluxo migratório das zonas rurais, somado ao estabelecimento dos imigrantes europeus que se iniciou no final do século XIX sinalizou a urgente necessidade de se pensar políticas habitacionais - aliadas às políticas higienistas - e proporcionar dignidade aos trabalhadores das indústrias, representantes do homem progressista brasileiro. Concomitante a esta necessidade declarada pelo Governo, os grupos de arquitetos modernos, em oposição aos neoclássicos e ao academicismo impregnado pelas ideias das Escolas de Belas Artes, argumentavam que a nova arquitetura era não apenas uma mudança estética, como também a tentativa de romper o elitismo que pairava. Em suma, era hora de popularizar a arquitetura, substituindo a construção de teatros e palácios por habitações para a população (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.).

O composto legitimador dos arquitetos modernos primava também por uma conotação ético-ideológica - que coadunava perfeitamente com o momento político que o país atravessava - que os diferenciava dos predecessores e contemporâneos, demarcada na preocupação em construir moradias econômicas e aproximar a arquitetura social. De acordo com Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.), a primeira obra modernista de habitação popular foram os apartamentos econômicos da Gamboa, de Lúcio Costa e Warchavchik, em 1933, sendo coincidente ao lançamento de Casa-grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Dessa forma, a obra da Gamboa representaria um abraço por parte dos arquitetos às “ideias de Freyre a respeito da democracia racial e seu otimismo em relação à sociedade brasileira” (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006., p. 130).

Essa democracia racial, segundo Gomes (1982GOMES, A. M. O Trabalhador Brasileiro. In. OLIVEIRA, L.L. et al. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar , 1982.), se daria pelas facilidades da vida moderna que tornaria desnecessário o uso de empregadas domésticas, liberando esta força de trabalho ao destino das indústrias, que por consequência traria a tão almejada igualdade social e racial. Para Cavalcanti (2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.) e Kapp (2006KAPP, S. Contra a Integridade. MDC. Revista de Arquitetura e Urbanismo, v. 1, n. 2, p. 8-11, 2006.), as intervenções da arquitetura moderna não representaram qualquer possibilidade de inserção social por parte dos trabalhadores, pelo contrário, constituíram outro mecanismo de domesticação destes trabalhadores, e por não romper com os ideais do objeto arquitetônico como obra de arte, creditado a um autor (artista ou intelectual), com usuários passivos, sejam eles observadores que contemplam a obra, sejam personagens que nela atuam segundo o roteiro estabelecido pelo autor (KAPP, 2006KAPP, S. Contra a Integridade. MDC. Revista de Arquitetura e Urbanismo, v. 1, n. 2, p. 8-11, 2006., p. 8).

O problema de habitação deve ser necessariamente compreendido dentro da nova dinâmica de distribuição da população no Brasil, a partir da confluência de interesses da oligarquia, burguesia industrial e o Estado. É central nesta tríade o êxodo de mão de obra do campo para as cidades. Marini (2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.) destaca que a pauperização do trabalho tem reflexos direto no inchaço urbano e nas condições precárias de moradia que assolaram as grandes cidades, bem como nos problemas sociais que se acentuam na década de 40, uma vez que a massa de trabalhadores que migrava do campo para as cidades - dado o desaquecimento da produção agroexportadora para manutenção do preço - não tinha condições de competir com a mão de obra empregada na indústria, restando a ela postos de trabalho com pequena qualificação e remuneração proporcional, reforçando o que Sodré (1990SODRÉ, N. W. Formação Histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.) e Fernandes (2005FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaios de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 5ª ed., 2005.) definiram como revolução burguesa sem proletariado.

O terceiro ato diz respeito à legitimação institucional que recai sobre a arquitetura moderna, quando da criação e da ocupação do SPHAN - atual IPHAN - em 1937, que a cristaliza como a verdadeira arquitetura brasileira, num autêntico grand finale. Um olhar lançado ao percurso do movimento modernista e da situação política e econômica brasileira no Estado Novo nos permite compreender a confluência dos ideários, e por consequência, a produção modernista no campo da antropologia, sociologia, literatura, pintura e principalmente arquitetura; como este fortuito encontro contribuiu para formatar ideologicamente o ethos do homem brasileiro urbano e operário.

É inegável que a produção moderna, nos mais diversos campos, apresentou confluência até então inédita, a rigor, sendo legítimo o tratamento de movimento em razão concomitância e homogeneidade das produções. Neste contexto, o ministro Gustavo Capanema decidiu criar, em 1936, um órgão que determinasse, defendesse e propagasse o patrimônio artístico nacional (CAVALCANTI, 2006CAVALCANTI, L. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2006.). Foi delegado a Mário de Andrade, um dos maiores expoentes da literatura - e de todo o movimento - modernista o anteprojeto da instituição nascente. Para Capanema, o grupo modernista liderado por Mário de Andrade apresentava as melhores condições de auxiliar, no plano cultural, a formatação da mentalidade do homem brasileiro.

Dessa forma, este órgão não apenas seria responsável por pensar os novos monumentos, mas também de resguardar os monumentos do passado passíveis de serem protegidos para a posteridade. Se considerarmos que estão inscritas neste encontro a legitimação e a cristalização estilística e ideológica tanto do movimento modernista quanto do Estado Novo, sendo os interesses complementares, não seria difícil prever quais monumentos seriam escolhidos para proteção do órgão pensado por Mário de Andrade. Encontra-se aí não apenas o legado modernista, mas também o legado do Estado Novo.

4. A LITERATURA MODERNISTA DO NOVO E DA RENOVAÇÃO

A relação dialética presente nos movimentos culturais conduz, necessariamente, a um quadro estrutural resultante das convergências e divergências de particularidades em campos específicos, como a arquitetura, literatura, música e outros. Da mesma forma, este quadro estrutural exerce influência direta sobre estas manifestações, todavia, de maneira não determinista. No caso da literatura, Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) sinaliza que a compreensão da força de uma renovação estética passa por entender as relações que um movimento mantém com os outros aspectos da vida cultural, e de que maneira as expressões deste movimento se inserem num contexto mais amplo de sua época. Para além da necessidade de se contextualizar o momento histórico destacado por Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.), a compreensão do estabelecimento de um movimento cultural frente aos pares representa não só a superação, em algum grau, deste movimento, mas também uma hegemonia (IANNI, 2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.) que o coloca na condição d’avant-garde. Gramsci (1978aGRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a.) sinaliza que as relações de hegemonia se explicitam no interior do bloco histórico, de modo que possam desvelar como o domínio cultural representa também o domínio de uma classe social sobre a sociedade num determinado momento.

O funcionamento ideológico da produção cultural, e como o foi no modernismo, busca desenvolver não apenas o caráter essencial de sua própria produção, mas também confrontar as produções às quais impõe contrariedade e as instituições culturais que as suportam. A partir daí, desfazer-se de todo ordenamento social construído culturalmente por um período ao qual se opõe, destituindo poderes e os assumindo com nova roupagem, estabelecendo novas formas de dominação (WILLIAMS, 2011cWILLIAMS, R. Política do Modernismo. São Paulo: Editora Unesp , 2011c.).

No caso da literatura, de forma geral, essa superação contém em si tanto a necessidade de uma reforma estilística a partir da nova forma de linguagem, como o engajamento com outros aspectos da vida cultural e as questões que permeiam o contexto de um determinado período histórico. Em razão destas mudanças, Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) assevera que qualquer nova posição estética na literatura contém em si um projeto estético - ligado às modificações operadas na linguagem - e um projeto ideológico, diretamente conectado com o pensamento, a visão de mundo de uma dada época, em um dado tempo e espaço social. É essa conexão do caráter ideológico com o concreto - não determinado, mas dialético - que confere à literatura potencial de reflexão sobre a realidade, uma vez que a produção literária pode não apenas expressar sentidos socialmente criados, como também ser produtora de significados que transformem estes sentidos sociais (WILLIAMS, 2011bWILLIAMS, R. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras , 2011b.).

Embora categoricamente projeto estético e projeto ideológico sejam tratados nas suas particularidades, Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) reforça que o projeto estético na literatura já contém em si o projeto ideológico, dado que a contraposição do novo frente ao velho, o ataque às maneiras de dizer, representam também um ataque às maneiras de ver uma época e suas nuances. Se considerarmos a linguagem como uma das formas de externalização da visão de mundo - reforçando, legitimando, sustentando ou encobrindo as reais relações com a natureza e a sociedade - investir contra as formas e os conteúdos empregados pelo velho é já investir contra o ver o ser deste tempo.

A superação do velho pode ser tomada a cabo pelo projeto modernista, mesmo em escala mais ampla, para além do caso brasileiro. De acordo com Williams (2011cWILLIAMS, R. Política do Modernismo. São Paulo: Editora Unesp , 2011c.), o caráter semântico do termo moderno data do fim do século XVI como sinônimo de ‘agora’, sendo seu uso um marcador do tempo que sucedeu ao Medieval e a Antiguidade. Já no século XVIII, ressalta o autor britânico, os termos ‘modernizar’, ‘modernismo’ e ‘modernista’ recobravam a ideia de renovação e melhoria. Já o uso contemporâneo, cunhado no século XX, traz o ‘modernismo’ como significado de um movimento cultural que fixa a ideia do moderno, da transição, do novo em resposta ao seu predecessor imediato (WILLIAMS, 2011cWILLIAMS, R. Política do Modernismo. São Paulo: Editora Unesp , 2011c.).

Ao analisar o projeto estético/ideológico do modernismo brasileiro, particularmente na literatura, Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 21) indica que, do ponto de vista estético, há uma ruptura frente à linguagem tradicional; do ponto de vista ideológico, identifica-se a busca por uma consciência do país, a legitimação de uma expressão artística genuinamente nacional e o “caráter de classe de suas atitudes e produções”. Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) sinaliza a existência de uma curiosa convergência entre o projeto estético e o projeto ideológico do movimento literário moderno, dado que este apresenta um rompimento com a linguagem bacharelesca, artificial e idealizante que refletia a consciência ideológica da oligarquia rural detentora do poder até 1920, antes das transformações provocadas pela imigração e pela intensificação da industrialização, urbanização e a crise econômica.

O caráter ideológico da literatura moderna denota aqui uma clara tentativa de se desvencilhar das barreiras da linguagem oficializada e, sobretudo, das velhas formas de compreensão do mundo sob a lente de uma oligarquia agrária, indo ao encontro do que Williams (2011c, p. 6) denomina fundamento ideológico artes modernas, que numa tomada de posição antiburguesa, “ou escolhem a valorização aristocrática anterior da arte como um domínio sagrado acima do dinheiro e do comércio, ou as doutrinas revolucionárias” que apontam para a arte como “uma vanguarda libertadora da consciência popular”.

Cândido (1989CANDIDO, A. Literatura e Desenvolvimento. In: CANDIDO, A. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, p. 140-162, 1989.) ressalta que este caráter ufanista presente na literatura pode ser compreendido desde o descobrimento da América Latina, quando da exaltação da terra encontrada. De certa forma, esta característica se transformou numa marca herdade pelos intelectuais latino-americanos, no qual a “literatura se fez linguagem de celebração e terno apego” (CANDIDO, 1989CANDIDO, A. Literatura e Desenvolvimento. In: CANDIDO, A. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, p. 140-162, 1989., p. 140). A reboque da manutenção do status quo, o caráter ideológico modernista compõe um quadro de sedimentação identitária que nossa formação histórica nos privou (HOLANDA, 1995HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 26 ed., 1995.; FREYRE, 2003FREYRE, G. Casa-grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 48 ed., 2003.), buscando consubstanciar a ideologia do homem brasileiro progressista (CHAUI, 1987CHAUI, M. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 2ª ed, 1987.), conforme a operacionalização apontada por Gramsci (1978bGRAMSCI, A. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1978b.), na qual o popular se apresenta na literatura como “[...] um determinado conteúdo intelectual e moral que seja a expressão elaborada e completa das aspirações mais profundas de um determinado público, isto é, da nação-povo numa certa fase de seu desenvolvimento histórico” (GRAMSCI, 1978bGRAMSCI, A. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1978b., p. 90).

Em tese, o caráter ideológico e estético - aqui separado apenas para preservar as categorias utilizadas no campo da literatura - representaria uma inflexão ao refinamento academicista que segregava o popular e idealizava o real. Tal empreitada tomou a cabo a inspiração na vida cotidiana e o caráter folclórico, transpostos numa linguagem coincidente à modernidade do século XX. Não obstante as mudanças observadas, Oliveira (2011OLIVEIRA, M. V. F. A Ruína e a Máscara: as contradições de uma modernização conservadora em Inferno Provisório, de Luiz Ruffato. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2011.) destaca a inocuidade do projeto estético da literatura moderna em razão da incessante necessidade de rápida transformação do em tradição.

Além da necessidade de cristalização enquanto ‘nova’ literatura brasileira, outro ponto que repele a possibilidade de superação do velho no projeto ideológico da literatura moderna é o amparo de sua produção por parte de uma parcela refinada da burguesia rural brasileira, detentora de fortunas geradas pelo café (LAFETÁ, 2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.). Indo além, cabe destacar que, apesar de assumir adornos que a aproximava de uma suposta transformação que acompanhava a nova etapa de desenvolvimento do país, no caso, a industrialização, a produção artística moderna não contou com financiamento dos industriais - particularmente em São Paulo. Já no plano estético, por outro lado, Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 23) destaca que a literatura moderna comunga com a industrialização “tanto na temática quanto nos procedimentos (a simultaneidade, a rapidez, as técnicas de montagem, a economia e a racionalização)”.

A contradição aqui estampada encontra resolução em Williams (2011bWILLIAMS, R. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras , 2011b.; 2011cWILLIAMS, R. Política do Modernismo. São Paulo: Editora Unesp , 2011c.). Para o autor, a consolidação do modernismo está intimamente vinculada ao crescimento das grandes cidades e no movimento migratório provocado pela industrialização, que modifica por completo a forma da produção literária, que embora produza estranhamentos urbanos - alienação - como tema, mantém primazia no caráter universal da produção modernista, da nova linguagem, que em si já afasta o modernismo das contradições existentes na sociedade, e por consequência, do seu suposto ponto de partida enquanto produção artística. Assim, a universalidade seria a negação das diferenças, o relevo da razão, a manutenção dos padrões estéticos e ideológicos nas mãos de poucos.

Para Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.), o aparente estranhamento pode ser compreendido ao observamos o caráter nitidamente capitalista do formato das relações de produção agrária em São Paulo, bem como a formação de uma burguesia industrial financiada com os lucros decorrentes das atividades agrárias. É preciso destacar que o crescimento dessa burguesia industrial, por vezes, não decorre de investimento direto da velha oligarquia agrária, mas por alianças estrategicamente estabelecidas a fim de manter os privilégios dos dois grupos. Como exemplo, cabe tomar a redução da capacidade de importação - necessária à industrialização - a partir dos anos 1920, para a qual a solução passou por elevar as divisas disponíveis alavancando o lucro das atividades agroexportadoras com incentivos e com a superexploração do trabalho (MARINI, 2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.). Marini (2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.) destaca que esta geração de divisas para alavancar a indústria não apenas torna distante qualquer possibilidade de distribuição de renda, mas também representa o abandono por parte da burguesia industrial de qualquer fraseologia revolucionária.

A relação dialética entre base e superestrutura desvela nesta última, uma vez mais, a conveniência do relacionamento com a oligarquia agrária. Trata-se aqui de uma burguesia educada na Europa, adaptada ao estilo moderno europeu, de forma que não poderia se manter livre do contato com a arte. Assim, torna-se compreensível a adoção, por parte do ethos burguês, da arte moderna que confrontava com o velho estilo da oligarquia agrária, mas não de forma a romper completamente com o velho, tanto no plano estético quanto no ideológico. Indo além, é possível afirmar que o ‘novo’ era deleite do ‘velho’, de forma que os poetas modernos se fizessem presentes nos suntuosos banquetes e festas promovidos pela aristocracia, como assinala Mário de Andrade em “O Movimento Modernista”, no que Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) afirma ser a união do culto da modernidade internacional com a prática da tradição brasileira promovida pelos artistas do modernismo e os senhores do café.

No plano ideológico a literatura moderna apenas estende o caráter conservador das supostas transformações, sendo apêndice de um domínio que se desloca do rural para o urbano, das atividades agrárias para as industriais, numa sutil adaptação às contingências econômicas após a crise do café no fim da década de XX. Ainda no plano ideológico, o movimento literário oblitera qualquer possibilidade de incorporar o ordinário, fundamentalmente questões contraditórias concretas, e por consequência, de externalizar outra via superestrutural de reconhecimento destas mesmas contradições, mantendo-se do lado mais forte.

O isolamento entre o aspecto estético e ideológico parece ser fazer presente na análise de Sodré (1999SODRÉ, N. W . Literatura e Histórica no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Graphia, 2 ed., 1999.). Embora o autor não trate de uma eventual separação entre os dois aspectos, dá como destaque dessa produção o rompimento com o academicismo então praticado, além da necessária construção de uma produção originalmente nacional. Em termos contextuais, Sodré (1999SODRÉ, N. W . Literatura e Histórica no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Graphia, 2 ed., 1999.) destaca a complexidade do período de nascimento da literatura moderna, sendo raros os períodos de liberdade - mais presente entre 1930 e 1935 - e intensas as repressões. Qualquer reflexão sob o ponto de vista da dialética interna nos conduz a duas possibilidades, sendo elas a inércia frente ao concreto, onde predominam as mudanças na forma, ou a superação de parte das determinações, na qual as contradições concretas seriam enredo literário.

Neste último campo, pelo resgate de Sodré (1999SODRÉ, N. W . Literatura e Histórica no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Graphia, 2 ed., 1999.), ao que tudo indica as investidas recaíram sobre a velha oligarquia agrária, na produção de romances regionalistas. Uma ilação possível do silenciamento de parte dos literários modernos frente às questões sociais é a separação necessária entre a produção do início da década de 1920 e a produção no estágio de amadurecimento, já na década de 1930. Nesta direção, Bueno (2004BUENO, L. Nação, Nações: os modernistas e a geração de 30. Via Atlântica, n. 7, out, p. 83-97, 2004.) ressalta ser complexo admitir que haja uma continuidade dos projetos citados de uma geração para outra, do movimento literário modernista à época da Semana de Arte Moderna para os modernistas pós-revolução de 30, uma vez que a ênfase das gerações apresentava desacordo. Para Bueno (2004BUENO, L. Nação, Nações: os modernistas e a geração de 30. Via Atlântica, n. 7, out, p. 83-97, 2004.), num primeiro momento predominava a ideia de um país novo, que dá lugar à concepção de país subdesenvolvido a ser tratado pela geração de 30. O plano ideológico da geração de 20, do país novo, mergulha em uma utopia de um projeto de vanguarda artística que pensa o presente e projeta o futuro (WILLIAMS, 2011cWILLIAMS, R. Política do Modernismo. São Paulo: Editora Unesp , 2011c.), enquanto a geração de 30, tomando para si a referência de país subdesenvolvido, se propõe a discutir o próprio presente.

De maneira mais incisiva, Sodré (1999SODRÉ, N. W . Literatura e Histórica no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Graphia, 2 ed., 1999.) entende que a proeminência literária entre os anos de 1925 e 1930 nada tem a ver com o que classificou como “simples agitação primária da chamada Semana de Arte Moderna”, distinguindo o novo do moderno, sendo o primeiro o que se encontrava na Semana de Arte, e o moderno a literatura que de fato rompia com o caráter academicista presente na literatura nacional (SODRÉ, 1999SODRÉ, N. W . Literatura e Histórica no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Graphia, 2 ed., 1999., p. 73). Este novo, impregnado na Semana, pode ser tomado como uma subversão aos padrões estéticos dominantes, todavia, sob a proteção das estruturas subjacentes, nas quais a burguesia se fazia conciliadora com o latifúndio e impulsionava as artes com pretensões subversivas (SODRÉ, 1988SODRÉ, N. W . História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 8 ed., 1988.). É essa a separação inscrita na literatura moderna, quando o caráter estético não contempla o plano ideológico, ou de maneira mais precisa, não se estabelece do ponto de vista materialista. De acordo com Bosi (1994BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 43 ed., 1994., p. 384), “fórmulas mais ou menos anárquicas” e “regressões literárias ao inconsciente” não removem o peso da tradição, em particular, quando se unem oligarquia e burguesia, sendo necessário, então, estabelecer o ponto de partida de uma nova literatura na “vivência sofrida e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais e morais do grupo em que se vive”.

A inocuidade enquanto revolução encontrada no combate ao academicismo das primeiras produções e o caráter contestatório da produção regionalista que colocava em xeque as velhas oligarquias possuem um ponto em comum. Ambas resvalam - não necessariamente por conveniência - as estruturas política e econômica dominantes em períodos específicos. No caso das produções do início dos anos 20, o modus operandi da velha oligarquia foi constantemente silenciado, evidenciando ainda mais a relação pacífica entre os grupos. Já na produção literária de caráter denuncista, de poesia militante e de combate, alinham-se os interesses de uma burguesia industrial - dada a crítica da poesia regionalista às oligarquias - e de um projeto político de país urbano e industrial e protetor dos trabalhadores.

O interesse que antes passava por modificar a cena cultural do país para uma realidade mais moderna intenta agora revolucionar essa mesma realidade, modificá-la profundamente, superando a posição burguesa, inserindo em seu bojo o proletário. A ideia de uma caminhada conjunta entre projeto estético e projeto ideológico se faz ainda mais falaciosa quando Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) lança como hipótese à sua análise que a transição da fase heroica - consolidação estética da literatura modernista - para a fase da revolução - retomada do projeto ideológico - na qual a conscientização política, a literatura combatente e participante “colore” o projeto estético. Não obstante o lançamento de novas matizes para a produção literária, há que se considerar o desvio dessa mesma produção literária do seu curso de profunda experimentação estética, destruindo, portanto, “o sentido mais íntimo de modernidade” (LAFETÁ, 2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 34).

Qualquer possibilidade de uma produção cultural que fosse de encontro a uma dominação econômica e política cai por terra quando a aproximação do grupo modernista com a classe dominante nos conduz ao que Gramsci (1978aGRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a.) caracterizou ser a mediação das relações hegemônicas, na qual a classe dominante tem a seu serviço um grupo de intelectuais que legitima sua dominação para além da própria esfera essencialmente de ordem material, incutindo a partir da hegemonia social e da construção de ideologias um vínculo orgânico entre o modo de produção e as superestruturas.

Se tomarmos como premissa o pressuposto da dissociabilidade entre o projeto estético e o ideológico, mesmo respeitando as peculiaridades de cada projeto na literatura modernista, nenhum outro ponto de chegada pode ser visto que não o continuísmo, na medida em que se esvaem as possibilidades de mudança a partir de uma tomada de consciência sob a lente das produções culturais. Lafetá (2000LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) corrobora essa ilação quando destaca que a ideologia de esquerda está ausente nas obras da fase heroica da literatura moderna, sendo escassas produções que aprofundassem em questões sociais que a ‘nova’ organização produtiva e urbana deflagraram, e ausentes aquelas que induzissem a consciência a respeito de uma revolução proletária.

Apesar de condicionar a consolidação do movimento modernista ao processo que contemplasse tanto a ruptura estética quanto a ideológica, a primazia da mudança estética suspenderia o caráter ideológico do movimento, convenientemente adequado a um período em que se fazia necessário o ‘apoio’ da nova burguesia industrial e que se lançava em críticas às velhas oligarquias. Após a Revolução de 30, a ascensão das questões trabalhistas e de um programa de governo populista que teve como bandeira estas mesmas questões não representaria uma nova conveniência, um retorno ao projeto ideológico que trouxesse à baila as denúncias sociais?

Sob o ponto de vista das relações de classe, Marini (2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.) demarca que o surgimento da burguesia industrial e de um novo proletariado resulta na estabilização do poder dessa nova burguesia e nas garantias afirmadas pelo Estado Novo, cujos resultados imediatos são concessões sociais aos trabalhadores e uma organização sindical rígida, dentro de um modelo corporativista (MARINI, 2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.). Se tomarmos o caráter ideológico da produção literária e sua relação dialética com elementos de ordem política e econômica, vamos ao encontro do que Ianni (2004IANNI, O. A Ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.) assevera ser o próprio retrato da formação social brasileira, um complexo de episódios que se assemelham e ciclos que se repetem de maneira monótona, de modo que o então presente capitalista, urbanizado e industrial convivesse com vários momentos pretéritos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse ensaio teórico é resgatar o desenvolvimento do modernismo - tomando como referências a arquitetura e a literatura - e seu laço indissolúvel com os grupos de poder político e econômico, com consequências diretas sobre a sociedade brasileira e sobre a própria ideia de Brasil. A relação tríplice aqui estabelecida - política, econômica e cultural - se dá a partir de um movimento dialético em que o sentido ideológico imputado no Estado Novo remete à ideia de uma nação progressista que rompesse tanto com os traços de uma oligarquia agrária como com a dependência externa, no plano econômico e político.

Sob o manto da formação do verdadeiro homem brasileiro, o modernismo vai ao encontro dos anseios do Estado Novo, que após a “revolução de 30”, emoldura a ideia de um país vanguardista e progressista. Em complemento ao novo estágio que o país experimentava, a ideia de se desenvolver um movimento cultural compatível com o projeto de nação ganhou corpo. O caminho aqui trilhado nos leva ao que Marini (2014MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e Revolução. Florianópolis: Insular, 2014.) estabeleceu como premissas básicas de uma revolução burguesa: assumir o antagonismo nação-imperialismo como principal contradição, manifesta no interesse em rompermos com a dependência econômica e cultural estrangeira; admitir um dualismo estrutural na sociedade, que oporia o pré-capitalismo ao capitalismo.

Não obstante o intento da burguesia, não se trata aqui de um confronto frente às aspirações da oligarquia. O caráter progressista que se manifesta fundamentalmente na transição de uma economia agrário exportadora para uma economia industrial, é chancelado pelo sistema bancário que subsidia a importação de máquinas para as indústrias a partir da drenagem do capital excedente das atividades agroexportadoras. As transformações que poderiam colocar em xeque o poder da velha oligarquia são suavizadas com os acordos firmados pelo Estado Novo, na medida em que este garante a manutenção do ganho médio da velha oligarquia, sem que essa mantenha níveis elevados de produção. Há aqui um elemento que incide sobremaneira no devir de Brasil do Estado Novo, pois acelera a migração de trabalhadores para os grandes centros urbanos em razão do desaquecimento das atividades agroexportadoras, gerando não apenas excedente de mão de obra, como um novo ordenamento urbano.

O projeto vanguardista encontra-se num movimento de interdeterminações. A primeira diz respeito às necessárias intervenções urbanas para sanar o déficit habitacional provocado pelos inchaços populacionais. Além disso, nota-se a necessidade de criação de um sistema de proteção da nova classe trabalhadora no Brasil e, por fim, do Estado Novo demarcar simbolicamente o estágio de desenvolvimento que rompe com a dependência externa. Essa ordem tríplice encontra refúgio na arquitetura moderna e seu funcionamento ideológico. A aproximação junto ao poder político confere à arquitetura moderna o status de arquitetura genuinamente brasileira, amparada na superação do classicismo a partir das edificações ministeriais - voltadas para proteção do trabalhador, e por supostamente romper com o caráter contemplativo de seus predecessores, incorporando em seu propósito a construção de moradias populares, transpondo as divisões classistas.

Essa posição traz em seu discurso a legitimação estética e ideológica de inserção nas camadas populares, indo ao encontro do ethos vigente no Estado Novo. Todavia, a proposta estética embutida de seu cunho ideológico que aparentemente encontrava ressonância pela suposta democratização da arquitetura, em si, era insuficiente para solidificar a arquitetura moderna como estilo brasileiro. Este status demandou outro movimento que culminou na cristalização da arquitetura moderna e do próprio caráter progressista, na medida em que a criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) passasse a legitimar a arquitetura moderna e seu legado para a posteridade.

No campo literário, a crítica domesticada dos modernos se mantém quando da inocuidade das reformulações no plano ideológico - aqui separado do estético pelos próprios modernos. É possível afirmar que a reforma estilística na literatura modernista se apresentou como um fim em si mesmo, uma vez que o dito projeto estético - aparentemente autônomo de seu cunho ideológico - manteve distante, durante a década de 20, as questões cotidianas e as lutas de classe, dentro do que Sodré (1988SODRÉ, N. W . História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 8 ed., 1988.) classificou como subversão fomentada por uma burguesia que concilia seus interesses aos da oligarquia.

A inserção da crítica pode se fazer notar nos romances regionalistas, já na década de 30, todavia, restringindo o caráter denuncista às condições de trabalho no campo. Questões ligadas à precarização do trabalho e à vida urbana não foram tratadas - seja por conveniência, seja por descompasso histórico. Como resultado, observa-se o silenciamento frente à desigualdade social presente tanto na economia agrária como na industrial. Tal qual a própria transição da atividade agrária para a industrial, a literatura moderna se faz distinta em tudo que é aparente, mantendo intacta sua essência.

Retomando o caráter ideológico da arquitetura e da literatura moderna, é possível afirmar que a primeira manteve relação íntima com o ideário progressista presente no Estado Novo, uma vez que ao ser financiada pelo governo, determina as vicissitudes urbanas no plano estético, e contribui para afirmação do ideal brasileiro. No caso da literatura, apesar de compor perfeitamente o ideal de nação progressista e emancipada da produção literária europeia, verifica-se uma relação que é estabelecida menos com o caráter político do Estado Novo e mais sobre suas bases condicionantes, pois incide de maneira direta à preservação das contradições existentes nos modos de produção mais determinantes, seja ele o proeminente na oligarquia agroexportadora ou na burguesia industrial.

Evidentemente que o esforço aqui empregado não deve ser encarado como avanço no tratamento histórico, uma vez que outras áreas se debruçaram sobre estas questões, em particular, a história e o próprio campo da arquitetura. Entretanto, acredito que pode ser um bom exercício, tanto nos estudos organizacionais quanto na administração pública, de compreensão dessa relação direta e material da cultura com elementos de ordem política e econômica a partir de uma perspectiva histórica, que abrem perspectivas de se observar movimentos do Estado e das empresas junto às atividades culturais, bem como o conteúdo destas mesmas, em consonância ou coalizão com questões dessa mesma ordem. E em complemento, compor um exemplo de maior amplitude da operacionalização ideológica da cultura nas questões sociais concretas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2016
  • Aceito
    12 Abr 2017
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