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Accountability interna em forças policiais: explorando os fatores associados ao desempenho de uma corregedoria de polícia militar

Internal Accountability in Police Forces: Exploring the Factors Associated with the Performance in a Military Police Internal Affairs

Resumo

O objetivo deste artigo foi identificar os fatores associados ao desempenho de corregedorias de polícia, órgãos de accountability interna de forças policiais. A pesquisa reveste-se de relevância em função da escassa literatura acerca dos determinantes dos resultados de organizações desenhadas para combater condutas desviantes de funcionários públicos. Para tanto, utilizou-se uma amostra de 797 processos administrativos instaurados contra 1.195 policiais militares de um determinado Estado brasileiro, no período compreendido entre 2005 e 2012. A partir de uma abordagem metodológica quantitativa, constatou-se que o tempo de serviço do acusado na corporação e a complexidade do processo envolvendo a acusação estão associados com uma menor probabilidade de conclusão da investigação. Verificou-se, também, que normas sociais e códigos de condutas, inerentes à força policial analisada, são fatores importantes para explicar a aplicação de sanções aos acusados, evidenciando que alguns crimes parecem ser tolerados, enquanto outros tendem a ser rechaçados pela corporação. Todavia, contrário ao que se esperava, uma maior centralização das atividades de investigação não levou a maior eficiência no processo investigativo, no âmbito da corregedoria estudada: a existência de policiais que se dedicam unicamente à atividade de investigação de seus pares está associada com uma menor probabilidade de conclusão dos processos e de condenação dos acusados. Tais resultados contribuem para o debate teórico sobre o desenho de organizações de controle de conduta de funcionários públicos e para a literatura relacionada ao desempenho dos sistemas de accountability em organizações públicas.

Palavras-chave:
Corregedoria de Polícia; Processo Administrativo Disciplinar; Accountability; Conclusão; Condenação

Abstract

The aim of this paper is to identify the factors associated with the performance of police internal affairs divisions. Little is known about the performance determinants of organizations crafted to prevent deviant behavior of civil servants. To reach our goal, we analyzed 797 administrative proceedings against 1.195 military police of a given Brazilian state between 2005 and 2012. Our quantitative analysis demonstrated that cases involving more experienced police officers and crimes with increased complexity are less likely to be concluded. Our results also suggest that social norms and internal codes inherent to police forces affects the extent of punishment to implicated officers: some crimes seem to be tolerated while others are abhorred by the police force. Surprisingly, an increased centralization in the investigative activity is not associated with increased efficiency of the investigation process. Actually, investigation commissions formed by police officers specialized in investigating their own peers are less likely to have their cases concluded or to condemn police officers. Our results contribute to theoretical debates on the design of watchdog organizations and the literature on organizational performance of accountability bodies.

Keywords:
Internal Affairs; Administrative Disciplinary Proceeding; Accountability; Conclusion; Conviction

Introdução

As reformas empreendidas no setor público nas últimas décadas tinham como uma das medidas centrais a busca por maior eficiência na prestação dos serviços públicos (Kliksberg, 1994Kliksberg, B. (1994). Uma gerência pública para os novos tempos. Revista do Serviço Público, 45(118), 119-142). Mais recentemente, para além da eficiência, verifica-se uma preocupação crescente da sociedade com os aspectos relacionados ao conceito de accountability no âmbito das organizações públicas, exigindo dos seus gestores o desenvolvimento adequado e satisfatório dos serviços públicos (Moore, 1995Moore, M. H. (1995). Creating Public Value: Strategic Management in Government. Cambridge: Harvard University Press.).

Uma das maiores preocupações no campo da administração pública, perante as constantes críticas, consiste em como fomentar a transparência e a responsabilização de seus atos, sobretudo em atividades inerentemente menos transparentes, tais como as atividades policiais (Cabral, Barbosa, & Lazzarini, 2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.). Tal preocupação parece ser vista de forma positiva pelos governos de diversas nações e aqueles que são especialistas no campo de formulações de políticas públicas acreditam que ela pode levar a um melhor desempenho no serviço público (Boyne, 2010Boyne, G. (2010). Performance Management: does it work? In: R. M. Walker, G. A. Boyne, G. A. Brewer (Ed.). Public management and performance: research directions. Cambridge University Press.).

No âmbito das forças policiais, contexto empírico deste estudo, existem diversos stakeholders que demandam prestação de contas, tais como: Ministério Público, Ouvidorias, organizações civis independentes, mídia e sociedade. Contudo, há órgãos internos especializados em supervisionar, vigiar e aplicar, quando necessário, sanções aos profissionais de segurança pública: as corregedorias de polícias. Apesar das deficiências percebidas na operação desses órgãos, a literatura reconhece as corregedorias como mecanismos de regulação da conduta e a sua importância para o controle interno, correição e promoção da transparência (Oliveira, 2010Oliveira, A. (2010). Os policiais podem ser controlados. Sociologias, 12(23), 142-175.).

No entanto, ainda são escassos, na literatura nacional e internacional, estudos que avaliem as investigações internas de maus comportamentos de agentes de segurança pública e que indiquem uma abordagem para a estrutura e gestão desses órgãos (Walker, 2006Walker, S. (2006). Police Accountability: Current Issues and Research Needs. National Institute of Justice (NIJ) Policing Research Workshop: Planning for the Future, Washington, DC, 2006. November 28-29.). A maior parte dos trabalhos sobre essa temática é de orientação qualitativa (Oliveira, 2010Oliveira, A. (2010). Os policiais podem ser controlados. Sociologias, 12(23), 142-175.; Walker, 2006Walker, S. (2006). Police Accountability: Current Issues and Research Needs. National Institute of Justice (NIJ) Policing Research Workshop: Planning for the Future, Washington, DC, 2006. November 28-29.; Stone, 2007Stone, C. (2007). Tracing police accountability in theory and practice: from Philadelphia to Abuja and São Paulo. Theoretical Criminology, 11(2), 245-259.). Estes estudos, embora apresentem nuances interessantes, deixam lacunas no que diz respeito à compreensão dos fatores que possam explicar o funcionamento destas organizações e os resultados dos processos por elas conduzidos.

Dentre os poucos estudos quantitativos na área que buscaram identificar os fatores associados ao desempenho de órgãos de controle de conduta policial, por meio de um exame detalhado dos processos administrativos instaurados contra policiais implicados em condutas supostamente desviantes, destacam-se os desenvolvidos por Cabral, Barbosa e Lazzarini (2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.) e Cabral e Lazzarini (2015)Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829., que dentro do contexto de accountability interna em forças policiais abordaram fatores determinantes do desempenho de corregedorias responsáveis por supervisionar, fiscalizar e responsabilizar policiais civis de um determinado Estado brasileiro. Buscando promover um diálogo com a literatura existente, por meio de uma pesquisa conduzida junto a uma corregedoria especializada em julgar policiais militares, algo inédito na literatura, no presente artigo pretende-se responder a seguinte questão: Quais fatores estão associados ao desempenho de uma corregedoria geral de polícia militar?

Para responder esta questão, utilizou-se uma amostra de 797 processos administrativos instaurados contra 1.195 policiais militares, de um dado Estado brasileiro, supostamente, implicados em malfeitos no período compreendido entre 2005 e 2012. Replicando o protocolo utilizado por Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.), são exploradas variáveis associadas à forma de organização dos processos, características da acusação e perfil dos acusados implicados, no intuito de realizar análises estatísticas inferenciais e identificar os fatores associados à conclusão do processo de investigação e a aplicação de sanções. Para tanto, recorre-se ao modelo de regressão de escolha dicotômica Probit. Os resultados sugerem que processos conduzidos por comissões fixas, formadas por policiais especializados na atividade correcional, afetam negativamente tanto a “conclusão” do processo, como a aplicação de pena àquele considerado culpado. Tal resultado é surpreendente, na medida em que se espera que uma maior centralização e especialização das funções esteja associada a maior celeridade nas investigações. Adicionalmente, verificou-se que casos envolvendo algumas práticas desviantes como “Abuso”, “Homicídio”, “Extorsão”, e “Transgressão”, são mais toleradas no contexto correcional da corporação, enquanto outros crimes, como “Roubo”, aparecem como não tolerados.

Embora a análise descritiva dos processos administrativos represente em si uma importante contribuição para a literatura de administração, o entendimento da dinâmica de responsabilização dos investigados lança luzes sobre aspectos teóricos relevantes no campo da accountability nas organizações públicas (Romzek & Ingraham, 2000Romzek, B. S., & Ingraham, P. W. (2000). Cross pressures of accountability: initiative, command, and failure in the Ron Brown plane crash. Public Administration Review, 60(3), 240-253.). De fato, um maior conhecimento dos fatores associados ao desempenho de um órgão correcional pode contribuir para reforçar o grau de compreensão acerca dos mecanismos de controle de conduta de funcionários públicos, sobretudo quando a possibilidade de viés de natureza corporativa é um fator não negligenciável, isto é, quando os vigiados são os próprios vigias da sociedade (Hurwicz, 2008Hurwicz, L. (2008). But who will guard the guardians? American Economic Review, 98(3), 577-585.). Nesse sentido, os resultados do artigo contribuem para elucidar como se dão as relações de accountability em organizações que são mais fechadas por natureza e não abertas ao escrutínio público, melhorando a confiança e legitimidade das forças policiais. Em segundo lugar, o artigo contribui para o preenchimento de um vazio na literatura que investiga as nuances do trabalho policial militar dentro do tema investigado, que pode ser explicado, em parte, pela natureza confidencial das investigações e pela resistência dos departamentos de polícia para exporem o trabalho das corregedorias ao exame externo minucioso. Por fim, o artigo contribui ao dar continuidade aos estudos sobre accountability policial no nível individual e em sua categoria interna, dimensão em que se analisa como corpos internos de supervisão (corregedorias) realizam investigações de má conduta de agentes policiais (Cabral et al., 2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.; Cabral & Lazzarini, 2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.; Walker, 2006Walker, S. (2006). Police Accountability: Current Issues and Research Needs. National Institute of Justice (NIJ) Policing Research Workshop: Planning for the Future, Washington, DC, 2006. November 28-29.).

Accountability em forças policiais

Accountability é um conceito fundamental nas Ciências Sociais (Mainwaring & Welna, 2003Mainwaring, S., & Welna, C. (2003). Democratic Accountability in Latin America. Oxford University Press, USA.) e tem sido amplamente empregado na literatura por diferentes campos e com distintos propósitos. Embora se reconheça os avanços na construção de um conceito de accountability, ainda não há consenso sobre o seu significado e isso tem gerado uma estrutura conceitual fragmentada, obstando o desenvolvimento de pesquisas e estudos mais consistentes e, principalmente, de uma cultura de responsabilização no setor público (Bovens, 2010Bovens, M. (2010). Two Concepts of accountability: accountability as a virtue and as a mechanism. West European Politics, 33(5), 946-967.; Pinho & Sacramento, 2009Pinho, J. A. G., & Sacramento, A. R. S. (2009). Accountability: can we now translate it into portuguese?. Revista de Administração Pública, 43(6), 1343-1368.).

O conceito de accountability adotado no presente estudo assume que um servidor público deve prestar contas de seu desempenho às partes interessadas que podem ser um corpo de supervisão ou a própria sociedade, e que indivíduos ou organizações podem ser responsabilizados pelas suas ações, conforme destaca Paul (1992Paul, S. (1992). Accountability in public services: exit, voice and control. World Development, 20(7), 1047-1060.).

A partir da delimitação conceitual e da forma como se interpretam as diferentes abordagens de accountability, os autores definem suas próprias tipologias (Bovens, 2010Bovens, M. (2010). Two Concepts of accountability: accountability as a virtue and as a mechanism. West European Politics, 33(5), 946-967.). Mainwaring e Welna (2003Mainwaring, S., & Welna, C. (2003). Democratic Accountability in Latin America. Oxford University Press, USA.), por exemplo, ramificam, no campo político, o que eles chamam de accountability intraestatal em três tipos de relações entre agentes públicos ou agências governamentais e, por consequência, em suas respectivas formas de controle e fiscalização. Romzek e Dubnick (1987Romzek, B. S., & Dubnick, M. J. (1987). Accountability in the public sector: Lessons from the Challenger tragedy. Public Administration Review, 47(3), 227-238.) diferenciaram quatro sistemas de accountability com base em dois fatores críticos: a fonte de controle sobre as expectativas da agência que pode ser interna ou externa, e o grau de controle que é dado à entidade sobre as definições das expectativas da agência.

Por se tratar de um tema bastante complexo é de fundamental importância delimitar a abordagem que será utilizada para realizar um estudo empírico de uma determinada dimensão conceitual de accountability. Nessa linha, uma forma de accountability pública pouco explorada é a das forças policiais, foco deste estudo, sendo algumas referências neste tema Walker (2006Walker, S. (2006). Police Accountability: Current Issues and Research Needs. National Institute of Justice (NIJ) Policing Research Workshop: Planning for the Future, Washington, DC, 2006. November 28-29.), Stone (2007Stone, C. (2007). Tracing police accountability in theory and practice: from Philadelphia to Abuja and São Paulo. Theoretical Criminology, 11(2), 245-259.), Walker e Archbold (2014)Walker, S., & Archbold, C. A. (2014). The new world of police accountability (2nd ed.). Washington, DC: Sage. e Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.).

A responsabilização dos agentes e corpos de supervisão é um princípio basilar de uma sociedade democrática e o significado central da accountability policial, que é um fenômeno multifacetado e extenso (Walker & Archbold, 2014Walker, S., & Archbold, C. A. (2014). The new world of police accountability (2nd ed.). Washington, DC: Sage.). Alcançar accountability policial é um grande desafio, primeiro porque a democracia é um desafio, segundo em razão da própria natureza do policiamento que impõe vários problemas associados à transparência, respeito às garantias individuais e à integridade física dos agentes de segurança.

Para Walker (2006Walker, S. (2006). Police Accountability: Current Issues and Research Needs. National Institute of Justice (NIJ) Policing Research Workshop: Planning for the Future, Washington, DC, 2006. November 28-29.) existem dois níveis de accountability policial: o nível das agências de supervisão relacionado ao desempenho dos corpos de aplicação da lei, e o individual que se refere às condutas dos agentes que devem se basear na legalidade e no tratamento cordial aos cidadãos. Nessa mesma linha, Stone (2007Stone, C. (2007). Tracing police accountability in theory and practice: from Philadelphia to Abuja and São Paulo. Theoretical Criminology, 11(2), 245-259.) argumenta que existem três níveis: interno, externo e social. Corregedorias se encaixam na dimensão interna, enquanto corpos governamentais independentes e agências de observadores civis, como ouvidorias e organizações não-governamentais (ONGs), representam mecanismos de monitoramento externo e social.

De acordo com Stone (2007Stone, C. (2007). Tracing police accountability in theory and practice: from Philadelphia to Abuja and São Paulo. Theoretical Criminology, 11(2), 245-259.), as corregedorias têm basicamente o objetivo de monitorar a ação e/ou omissão dos policiais que impliquem na violação da lei ou regras de conduta da corporação por meio de investigações contra policiais, que podem se originar de diversas fontes, tais como: cidadãos, agentes internos de departamentos de polícia e defensores públicos. A natureza e qualidade das investigações internas de maus comportamentos praticados por agentes de segurança pública figuram entre os maiores problemas enfrentados por corpos de supervisão de forças policiais. Grupos de direitos civis têm denunciado unidades policiais pela falta de investigações minuciosas e justas das queixas dos cidadãos (Walker & Archbold, 2014Walker, S., & Archbold, C. A. (2014). The new world of police accountability (2nd ed.). Washington, DC: Sage.). Essas queixas têm surgido em diversas nações, incluindo países desenvolvidos e emergentes (Cabral & Lazzarini, 2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.). Há uma percepção generalizada de que as apurações tendem a ser mais frouxas a depender do perfil dos acusados (Lewis, 1999Lewis, C. (1999). Complaints against police: The politics of reform. Sydney: Hawkins Press.). Com efeito, alguns indivíduos podem se valer de mecanismos de influência dentro da organização para tentar obstruir os processos que chegam à corregedoria, como também influenciar o resultado do julgamento. Portanto, mecanismos de incentivos internos são indispensáveis no exercício de supervisão (Cabral et al., 2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.).

O fato das corregedorias desempenharem uma função essencial para a garantia do controle da efetividade dos órgãos policiais - como instrumentos de incentivos baseados em punições diretas -, não significa dizer que elas têm eficácia concreta, pois alguns estudos demonstram que as corregedorias podem ser injustas e parciais, sobretudo no tratamento dos escalões inferiores da hierarquia (Cabral & Lazzarini, 2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.; Oliveira, 2010Oliveira, A. (2010). Os policiais podem ser controlados. Sociologias, 12(23), 142-175.).

Pesquisas de cunho qualitativo sobre a atuação de corregedorias da polícia militar podem ser identificadas na literatura: Lemos-Nelson, 2001Lemos-Nelson, A. T. (2001). Judiciary police accountability for gross human rights violations: The case of Bahia, Brazil (Tese de Doutorado). 2001. University of Notre Dame, Indiana, Estados Unidos., Oliveira, 2005Oliveira, A. (2005). Os fazedores de paz: a polícia cidadã dos oficiais policiais militares da Bahia (Tese de Doutorado). 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.. Entretanto, são escassos os estudos que adotem uma estratégia quantitativa capaz de apontar padrões de regularidade nos processos de accountability perpetrados por este tipo de órgão correcional. Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.) apontaram que, apesar da literatura sobre desempenho no setor público ter avançado no entendimento de como alcançar eficácia, um dilema singular permanece: os agentes públicos possuem incentivos para monitorar outros burocratas públicos? O problema de quem vigia o vigia é particularmente relevante quando o monitoramento é realizado internamente, através de corpos de supervisão estabelecidos dentro de uma dada organização pública; comitês de investigação interna em legislaturas públicas e corregedorias de polícia são exemplos típicos (Hurwicz, 2008Hurwicz, L. (2008). But who will guard the guardians? American Economic Review, 98(3), 577-585.). Esses corpos internos terão, então, dois tipos de indivíduos: o agente executor, responsável pela execução de tarefas requeridas pelo serviço público, e o agente monitor, com encargos de monitorar o agente executor (Cabral & Lazzarini, 2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.).

Para Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.) duas medidas de desempenho de governança parecem ser particularmente significativas em agências de supervisão encarregadas de investigação contra agentes que tenham desviado de suas condutas: o tempo em que a investigação é concluída e o resultado dos procedimentos investigatórios. Nesse sentindo, o desempenho da corregedoria, objeto do presente estudo, foi operacionalizado verificando a capacidade deste órgão em concluir um processo investigatório com celeridade e aplicar punições quando necessário.

Fatores associados ao desempenho de uma corregedoria de polícia

Efeito decorrente da posição hierárquica

O processo de tomada de decisão é influenciado pelos efeitos de posição e disposição, que não permitem separar uma decisão de seu contexto e do indivíduo que decide. Sendo assim, é preciso reconhecer que a posição do indivíduo na organização caracteriza-se como um fator explicativo potencial para compreensão do desfecho do processo. Indivíduos mais experientes e com maior status na hierarquia podem influenciar de forma significativa o processo decisório (Milgrom & Roberts, 1990Milgrom, P, & Roberts, J. (1990). Bargaining costs, influence costs, and the organization of economic activity. In: K. Alt, & K. Shepsle (Eds.), Perspectives on Positive Political Economic. Cambridge: Cambridge University Press.). Nessa linha, agentes policiais podem se utilizar de sua posição hierárquica para influenciar os resultados de investigações internas, sobretudo naquelas em que possam figurar como acusados. Além disso, monitores que trabalham em corpos de supervisão podem evitar recomendações de sanções severas contra oficiais posicionados nos níveis hierárquicos superiores da corporação, por temerem alguma retaliação.

Fundamentados nos argumentos apresentados acima, Cabral et al. (2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.) analisaram a influência de variáveis que assinalam a posição hierárquica e o tempo de serviço de policiais civis implicados em processos administrativos disciplinares (PAD) e constataram que elas apresentaram um efeito significativo para explicar a conclusão do processo. De forma complementar, Cabral e Lazzarini (2015)Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829. identificaram que a posição hierárquica mais elevada possui um efeito negativo sobre a probabilidade de condenação, ao menos nos casos que envolvem a aplicação de sanções mais severas. Neste mesmo estudo, verificou-se também a relevância do tempo de serviço como um fator explicativo para os casos em que sanções mais severas foram evitadas. Diante do exposto, espera-se que o desempenho do processo administrativo seja influenciado negativamente pelo efeito de posição dos agentes acusados:

H1A: Quanto mais alta a posição hierárquica e maior o tempo de serviço dos agentes acusados menor a probabilidade de conclusão do processo.

H1B: Quanto mais alta a posição hierárquica e maior o tempo de serviço dos agentes acusados menor a probabilidade de condenação do acusado.

Efeito da separação de papéis e da experiência em comissões de investigação

A especialização e expertise em atividades de accountability têm sido apontadas como fatores importantes para melhorar o desempenho de corpos de supervisão (Boyne, Day & Walker, 2002Boyne, G., Day, P., & Walker, R. (2002). The evaluation of public service inspection: a theoretical framework. Urban Studies, 39(7), 1197-1212.). Todavia, em muitos casos, tais como em alguns órgãos públicos de correição, não há separação de papéis entre agentes executores (aqueles que estão no dia a dia da operação), e agentes monitores, aqueles que têm como função investigar e julgar seus pares. Desta forma, agentes que não possuem familiaridade com as peculiaridades de uma investigação interna em corregedorias podem ser designados para atuar, temporariamente, em papéis investigativos.

Através de análises empíricas Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.) confirmaram a hipótese de que comissões fixas e especializadas são mais efetivas na condução de investigações do que comissões temporárias e não especializadas. No contexto investigado pelos autores, a separação de papéis entre agentes monitores e agentes executores parece acelerar as investigações e aumentar a probabilidade da condenação em casos com duração acima da média. Com o intuito de identificar a ocorrência destes resultados, no contexto empírico do presente artigo, as seguintes hipóteses serão testadas.

H2A: Separação de papéis entre agentes monitores e agentes executores está associada a uma maior probabilidade da conclusão do caso.

H2B: Separação de papéis entre agentes monitores e agentes executores está associada a uma maior probabilidade de condenação dos acusados.

Para além da separação de papéis, Cabral et al. (2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.) chamam a atenção para a influência da experiência acumulada sobre o desempenho dos processos de investigação. Neste ponto, reconhece-se que acusados com experiência em papéis investigativos tenderão a possuir um maior conhecimento sobre os trâmites burocráticos associados aos processos correcionais, podendo utilizar este conhecimento em benefício próprio quando forem alvos de acusação.

De forma complementar, Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.) destacam que laços podem emanar de interações prévias e funcionar como mecanismo que permite, aos acusados, a obtenção de informações sobre a evolução ou andamento dos processos internos, a fim de criar estratégias defensivas e até mesmo para obstruir a investigação. Sob esta perspectiva, é possível que acusados com experiência prévia em atividades de corregedoria possuam laços de amizade e influência estabelecidos com os membros permanentes da corregedoria, que poderiam ser utilizados para influenciar as decisões destes últimos. Boyne, Day e Walker (2002Boyne, G., Day, P., & Walker, R. (2002). The evaluation of public service inspection: a theoretical framework. Urban Studies, 39(7), 1197-1212.) definem esse fenômeno como captura regulatória. Para estes autores se os investigadores e os investigados são próximos, a capacidade de julgamento é comprometida. Tomando por base estes argumentos, serão testadas as seguintes hipóteses:

H2C: Acusados com experiência em comissão de investigação estão menos propensos a terem seus processos concluídos.

H2D: Acusados com experiência em comissão de investigação estão menos propensos a serem condenados.

Efeito da complexidade dos crimes investigados

A natureza complexa de alguns processos a serem julgados pelas corregedorias de polícia, notadamente, é um aspecto fundamental para explicar os resultados do processo de responsabilização. A complexidade de um processo pode tornar a tarefa de investigação e recolhimento de provas demasiadamente cara e lenta. A própria legislação ao reconhecer as dificuldades inerentes a determinados processos pode estabelecer um prazo mais extenso para a defesa.

A complexidade do processo pode decorrer do fato de que a investigação envolve múltiplas acusações e múltiplos indivíduos implicados em acusações. Neste contexto, vários policiais podem ser acusados em um mesmo processo com acusações semelhantes ou distintas. Isso certamente dificultará a coleta de evidências e a falta de alguma informação poderá dificultar a concretização dos procedimentos necessários à elucidação do caso (Boyne et al., 2002Boyne, G., Day, P., & Walker, R. (2002). The evaluation of public service inspection: a theoretical framework. Urban Studies, 39(7), 1197-1212.), mesmo nos casos em que os agentes monitores sejam capacitados para a função de investigação. Conforme demonstrou o estudo de Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.), a complexidade do caso investigado pode aumentar a probabilidade da não conclusão do processo e de absolvição do(s) acusado(s). Tomando por base estes argumentos, serão testadas as seguintes hipóteses:

H3A: Quanto maior a complexidade do processo menor a probabilidade da conclusão do processo.

H3B: Quanto maior a complexidade do processo menor a probabilidade de condenação do acusado.

Efeito das normas sociais e códigos de condutas

As regras informais são uma dimensão importante para explicar os resultados das organizações e seus processos. No âmbito das organizações militares, por exemplo, fala-se sobre um implícito “código de silêncio”. Este código que decorre de um processo de socialização comum na qual os policiais mais velhos ensinariam aos mais novos como executar o policiamento e lidar com o perigo, a autoridade e as pressões por eficiência (Lopes, Ribeiro,& Tordoro, 2016Lopes, C. S., Ribeiro, E. A., & Tordoro, M. A. (2016). Direitos humanos e cultura policial na Polícia Militar do Estado do Paraná. Sociologias,18(41), 320-353.), supostamente estabelecem uma norma que legitima ou “autoriza” certos desvios cometidos pelos colegas de corporação, e que existe para proteger a organização e seus membros das críticas constantes de que são alvos (Lamboo, 2010Lamboo, T. (2010). Policemis conduct: accountability of internal investigations. International Journal of Public Sector Management, 23(7), 613-631.).

Lopes, Ribeiro e Tordoro (2016Lopes, C. S., Ribeiro, E. A., & Tordoro, M. A. (2016). Direitos humanos e cultura policial na Polícia Militar do Estado do Paraná. Sociologias,18(41), 320-353.), por exemplo, assinalam que a desvalorização dos direitos humanos dentro das forças policiais foi identificada em vários estudos brasileiros. Persistem nas corporações policiais, entendimentos compartilhados sobre as restrições impostas à atividade e ao exercício da autoridade policial por parte de uma suposta priorização de uma agenda de direitos humanos (Soares, 2000Soares, L. E. (2000). Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras.). O estudo de Reuss-Ianni e Ianni (1983 citado em Lopes et al., 2016Lopes, C. S., Ribeiro, E. A., & Tordoro, M. A. (2016). Direitos humanos e cultura policial na Polícia Militar do Estado do Paraná. Sociologias,18(41), 320-353.), por sua vez, destaca que os membros das forças policiais, mais precisamente das forças que atuam na rua, tendem a valorizar mais os resultados do que os meios empregados no exercício da função. De forma complementar, Rocha (2013Rocha, A. P. (2013). Polícia, violência e cidadania: o desafio de se construir uma polícia cidadã. Revista Brasileira de Segurança Pública, 7(1), 84-100.) sugere que o comportamento da polícia parece estar de acordo com as concepções de uma parcela da sociedade, que acredita que a boa polícia é dura e que os atos ilegais são necessários em situações específicas.

Numa tentativa de investigar os efeitos das normas sociais e dos códigos de condutas sobre o desempenho de uma corregedoria de polícia, Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.) demonstraram que agentes encarregados de investigar colegas de profissão implicados em desvios socialmente aceitos, tais como: agressões quando a vítima é um transgressor da lei, podem deliberadamente atrasar ou obstruir a investigação, adotando uma estratégia que preserve os comportamentos e condutas inscritos nas normas e códigos sociais da organização. Igualmente, no contexto do presente artigo as seguintes hipóteses serão testadas.

H4A: Acusados de praticar desvios legitimados por normas internas e códigos de conduta (tais como: violência contra suspeitos) estão menos propensos a terem seus processos concluídos.

H4B: Acusados de desvios legitimados por normas internas e códigos de conduta (tais como: violência contra suspeitos) estão menos propensos a serem condenados.

Procedimentos Metodológicos

Coleta de dados

O processo de coleta de dados envolveu uma pesquisa documental em meio físico e digital nos Boletins Gerais Ostensivos (BGO) da Corporação e no Sistema Integrado de Recursos Humanos do Estado a que pertence a Corregedoria de Polícia Militar em análise. A coleta foi realizada, manualmente, entre os meses de janeiro de 2014 e junho de 2015, totalizando mais de 400 horas de trabalho.

Adotando como unidade de análise as acusações instauradas em desfavor dos militares, o estudo abrange uma amostra de 797 processos que investigaram a conduta de 1.195 acusados, que ocupam diferentes postos e graduações na corporação. Todos os 797 processos pesquisados foram abertos entre os anos de 2005 e 2012. Isso significa que entre a abertura do último processo (dezembro de 2012) e a data final da coleta de dados (junho de 2015) transcorreu um período de, no mínimo, 30 meses.

A Corregedoria de Polícia Militar escolhida como objeto de estudo se destaca como um órgão correcional de uma das mais antigas corporações militares do Brasil, com mais de um século de existência e, portanto, carregada de ritos e valores que podem ser cultivados por outros órgãos policiais.

Variáveis de desempenho

Para testar cada uma das hipóteses apresentadas na seção anterior, adotou-se uma abordagem metodológica de natureza quantitativa. Nesse caso, as variáveis dependentes do estudo referem-se à conclusão do processo administrativo disciplinar após decisão das instâncias superiores (Modelos 1 a 5); e o resultado do processo em termos de condenação do acusado (Modelos 6 a 10). É importante destacar que as probabilidades de conclusão e de condenação dos acusados são dois resultados distintos, porém, complementares que afetam a eficácia da supervisão e accountability.

A variável conclusão do processo assume valor igual a 1 (um) para os casos que tiveram seus resultados publicados no Boletim Geral Ostensivo (BGO) da Corporação e zero para os casos que não tiveram seus resultados publicados no BGO até a data de encerramento da coleta de dados. Para esta primeira variável dependente é importante registrar que a conclusão de um processo administrativo disciplinar, no contexto da Corregedoria de Polícia, não coincide com término dos trabalhos realizados pela comissão processante. Isso porque cabe a esta comissão elaborar um relatório final de seu parecer quanto a culpa ou não do acusado, que será apreciado por instâncias superiores responsáveis pela aplicação da pena aos transgressores. Por este motivo, os processos que não tiveram os resultados publicados no BGO até a data final da coleta de dados foram codificados com valor igual a zero.

A variável condenação assume valor igual a 1 (um) nos casos em que o acusado foi condenado pelas instâncias superiores a pena de detenção ou demissão, e assume valor igual a zero nos casos em que não houve condenação contra o acusado. Para que um acusado seja condenado deverá haver provas suficientes que comprovem a autoria e materialidade da suposta prática desviante, tendo como referência os aspectos agravantes e atenuantes no fato ocorrido.

Variáveis de interesse

A estratégia empírica do estudo consistiu em identificar os fatores associados ao desempenho de uma corregedoria de polícia em termos de sua capacidade para conclusão dos processos administrativos e condenação dos acusados. Entre esses fatores, destaca-se um grupo de 11 variáveis explicativas selecionadas com base no referencial teórico discutido e utilizadas para testar as hipóteses formuladas na seção 3, além de um grupo de quatro variáveis de controle.

A Tabela 1 apresenta, resumidamente, as descrições das variáveis empregadas no artigo, contemplando informações relacionadas à média e ao desvio-padrão observados em cada variável em todos os casos pesquisados e, posteriormente, apenas nos processos concluídos. Nesta análise, objetivou-se basicamente saber se as médias entre os dois grupos diferem significativamente.

Tabela 1
Resultados da estatística descritiva das variáveis analisadas

Para além dos resultados apresentados na Tabela 1, considerando-se apenas os processos concluídos, vale ressaltar que: em 42% dos casos o acusado foi absolvido ou condenado a cumprir uma pena mais branda; em 26% dos casos foi condenado a pena de detenção; e em 33% dos casos a pena foi de demissão da corporação.

Análise e tratamento dos dados

Considerando a características das variáveis dependentes adotadas no estudo, utilizou-se o modelo de regressão de escolha dicotômica Probit. No modelo Probit, a probabilidade de resposta está relacionada a uma função de distribuição cumulativa normal padrão (Wooldridge, 2006Wooldridge, J. M. (2006). Introdução à econometria: uma abordagem moderna. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.).

No presente estudo, denotou-se cada observação (Acusação instaurada em desfavor de um agente militar) por i, obtendo-se as seguintes relações:

P r o b C o n c l u s ã o d o p r o c e s s o a d i m i n i s t r a t i v o d i s c i p l i n a r i = 1 = δ ( X i β i )

P r o b C o n d e n a ç ã o d o a c u s a d o i = 1 = δ ( X i β i )

em que, δ é a distribuição normal cumulativa padronizada; Xi indica o vetor de variáveis explicativas e de controle; e βi refere-se ao vetor de coeficientes a serem estimados. A estimação se dá via máxima verossimilhança (Wooldridge, 2006Wooldridge, J. M. (2006). Introdução à econometria: uma abordagem moderna. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.).

Além disso, convém ressaltar que o interesse no presente trabalho está no sentido (ou o sinal) determinado dos coeficientes e não de suas magnitudes e impactos das variáveis explicativas e de controle sobre as variáveis dependentes.

Para tratamento dos dados e análises quantitativas, utilizou-se o programa estatístico STATA 12.

Resultados e Discussão

Na Tabela 2 são apresentados os resultados das regressões estimadas para análise dos fatores associados à conclusão do processo administrativo disciplinar com a publicação do seu resultado no BGO (Modelos 1 a 5); e o resultado do processo em termos de condenação do acusado (Modelos 6 a 10). Foram testadas cinco diferentes especificações para os modelos estimados. Em todos os modelos estimados, a estatística χ2 (qui-quadrado) revela a significância das diferenças entre a matriz observada e a matriz estimada (Hair, Anderson, Tatham, & Black, 2005Hair, J. F., Anderson, R. E., Tatham, R. L. & Black, W. C. (2005). Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman.), reforçando a robustez das análises realizadas. Com base nesses resultados apresenta-se, a seguir, a discussão de cada uma das hipóteses testadas no contexto empírico da corregedoria pesquisada.

Tabela 2
Fatores associados ao desempenho de uma corregedoria de Polícia Militar

Efeitos sobre a conclusão do processo

Quanto aos efeitos de posição, os resultados apresentados na Tabela 2 sugerem que a variável (Oficial) - utilizada para mensurar a posição hierárquica do acusado na corporação - não está estatisticamente associada à conclusão do processo (p<0,36 e p<0,41). Por outro lado, os resultados sugerem que o tempo de serviço do acusado está associado com uma menor probabilidade da conclusão da investigação com a publicação do seu resultado no BGO (p<0,02 e p<0,03). Este último resultado suporta parcialmente a hipótese H1A e fortalece a expectativa teórica de que agentes mais experientes e com maior tempo de serviço na corporação podem influenciar de forma significativa o processo decisório nas organizações (Milgrom & Roberts, 1990Milgrom, P, & Roberts, J. (1990). Bargaining costs, influence costs, and the organization of economic activity. In: K. Alt, & K. Shepsle (Eds.), Perspectives on Positive Political Economic. Cambridge: Cambridge University Press.). Neste caso específico os acusados poderiam usar sua experiência e os laços construídos como mecanismo para postergar a conclusão do processo. Tais resultados contribuem com os estudos anteriores, desenvolvidos na área, que apresentaram resultados distintos ao examinar a associação existente entre variáveis de posição e o desempenho de órgãos correcionais em termos de conclusão dos processos administrativos disciplinar. Cabral et al. (2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105., p. 101) observaram uma associação positiva entre a posição hierárquica, o tempo de serviço do acusado e a morosidade na conclusão do processo. Os autores argumentam que policiais com maior tempo de serviço tendem a construir uma rede de laços na corporação, com grandes “chances do indivíduo acusado conhecer os membros das comissões de processo (ou conhecer pessoas que as conheçam), de modo que tais laços internos possam ser invocados como canais de influência para retardar processos contra o policial”.

Em relação aos efeitos da separação de papéis entre agentes monitores e agentes executores, os resultados apresentados nos modelos 2 e 5 indicam um efeito negativo e significativo da variável Comissão Permanente sobre a probabilidade de conclusão do processo. Este resultado corrobora a proposição teórica de que a separação de papéis afeta o desempenho de uma corregedoria. Contudo, a associação encontrada não suporta a hipótese de pesquisa H2A apresentada na seção 3, visto que a expectativa teórica inicial era de uma associação positiva entre a separação de papéis e a probabilidade da conclusão do caso.

Com relação à associação entre experiência prévia do acusado em comissões processantes e a conclusão do processo, os resultados revelados nos modelos 2 e 5 sugerem que não existe uma associação significativa entre a conclusão do processo e o fato de o acusado já ter atuado como “membro de comissão” (p<0,73 e p<0,65). Logo, os resultados encontrados não suportam a hipótese H2C.

A complexidade inerente ao processo, conforme especificado na hipótese H3A, também se caracteriza como um possível fator que ajuda a explicar o desempenho de um processo administrativo. No contexto deste estudo adotou-se como proxy de complexidade o número de acusados em um único processo (Boyne et al., 2002Boyne, G., Day, P., & Walker, R. (2002). The evaluation of public service inspection: a theoretical framework. Urban Studies, 39(7), 1197-1212.) e os resultados apresentados nos modelos 3 e 5 sugerem que um aumento no “número de acusados” tem um efeito negativo na conclusão do processo (p<0,01 e p<0,01).

Por fim, no que tange ao papel desempenhado pelas normas sociais e códigos de condutas, existentes no âmbito de uma corporação militar, os resultados apresentados nos modelos 4 e 5 indicam que o tipo de crime ou desvio investigado (abuso, homicídio, extorsão, transgressão, roubo ou tráfico) parece não influenciar a conclusão do processo. Apenas, no modelo 5 as acusações de transgressão parecem estar associadas com uma maior probabilidade de conclusão do processo (p<0,06). Estes resultados não suportam a hipótese H4A.

Efeitos sobre a probabilidade de condenação

Com base na Tabela 2, nesta subseção são apresentados e discutidos os resultados dos fatores associados à probabilidade de condenação dos acusados nos processos administrativos concluídos (Modelos 6 a 10), cujos resultados foram publicados no BGO da corporação. Um primeiro ponto a ser destacado diz respeito ao número de observações contidas na amostra. Durante a pesquisa documental foram coletadas informações de 1.195 acusados, todavia apenas 704 acusados tiveram seus processos concluídos até a fase final da coleta de dados. Portanto, as análises sobre a probabilidade de condenação do acusado são realizadas considerando apenas 704 observações.

Em termos de efeito de posição, os resultados reportados nos Modelos 6 e 10 indicam que não existe uma associação significativa entre a posição hierárquica (Oficial) do acusado e a probabilidade de condenação (p<0,52 e p<0,14). Os resultados reportados nos modelos 6 e 10 também não indicaram associação significativa entre o tempo de serviço do acusado e a probabilidade de condenação (p<0,84 e p<0,93). Estes resultados não suportam a hipótese H1B, segundo a qual quanto mais elevada a posição hierárquica e maior o tempo de serviço do acusado menor é a probabilidade de condenação (Milgrom & Roberts, 1990Milgrom, P, & Roberts, J. (1990). Bargaining costs, influence costs, and the organization of economic activity. In: K. Alt, & K. Shepsle (Eds.), Perspectives on Positive Political Economic. Cambridge: Cambridge University Press.).

Para a hipótese que assinala a associação esperada entre a separação de papéis e a probabilidade de condenação, os resultados reportados nos Modelos 7 e 10 indicam que os processos conduzidos por uma Comissão Permanente estão associados com uma menor probabilidade de condenação (p<0,00 e p<0,01). Tais resultados, embora sejam contrários à proposição apresentado na hipótese H2B, estão alinhados com os argumentos apresentados por Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.), que também identificaram, na média, uma associação negativa entre a separação de papéis e o desempenho de uma corregedoria em termos de sua capacidade para punição dos acusados. Todavia, é importante registrar que os autores identificaram uma associação positiva entre a separação de papéis e a conclusão da investigação, quando tomaram por referência em suas análises o tempo de tramitação do processo. Segundo os resultados apresentados por Cabral e Lazzarini (2015), em casos de longa duração a separação de papéis entre agentes monitores e agentes executores contribui para a responsabilização do acusado. Este resultado pode indicar, em certa medida, que os casos investigados por comissões permanentes sejam justamente aqueles mais complexos e com maior dificuldade para coleta de provas, acusação e conclusão. Neste caso, a expertise em atividades correcionais parece contribuir para a melhoria do sistema de supervisão da Polícia Militar (Boyne et al., 2002Boyne, G., Day, P., & Walker, R. (2002). The evaluation of public service inspection: a theoretical framework. Urban Studies, 39(7), 1197-1212.). Apesar da relevância dos resultados apresentados pelos autores, ao considerarem tanto a conclusão do processo quanto o seu tempo de tramitação, não foi possível implementar tal estratégia empírica no contexto do presente artigo, em função das diferenças existentes nas bases de dados.

Para a hipótese associada ao efeito da experiência prévia do acusado em comissões processantes sobre a probabilidade de sua condenação, os resultados apresentados nos Modelos 7 (p<0,66) e 10 (p<0,65) foram semelhantes aos obtidos nos Modelos 2 e 5, sugerindo que não existe uma associação significativa entre o fato de o acusado já ter atuado em comissões processantes e a a probabilidade de condenação. Resultados semelhantes foram encontrados por Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.). Mesmo em contextos empíricos distintos, os resultados sugerem que os acusados, que já desempenharam o papel de monitor, parecem não ter a habilidade suficiente para utilizar a experiência e os possíveis laços construídos durante a sua atuação em comissão processante para postergar a conclusão do seu processo ou evitar punições, não suportando a hipótese de pesquisa H2D.

Com relação à hipótese que admite a existência de uma associação negativa entre a complexidade do processo e a probabilidade de condenação, os resultados apresentados no Modelo 8 sugerem uma associação significativa entre o número de acusados e a probabilidade de condenação (p<0,00), mas este resultado não permanece significativo no Modelo 10 (p<0,15). Como o Modelo 10 é o mais robusto, os resultados obtidos não suportam a hipótese H3B. Tais achados são contrários aos resultados obtidos no estudo de Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.), que identificaram uma menor probabilidade de condenação nos casos que envolvem múltiplos acusados.

Diferentemente dos resultados observados nos Modelos 4 a 5, que apresentam os fatores associados à conclusão dos processos, a maioria das variáveis utilizadas como proxies para expressar as normas sociais e os códigos de condutas existentes entre os membros da corporação pesquisada apresentou uma associação significativa com a probabilidade de condenação do acusado. Nos Modelos 9 e 10 os resultados indicam que as variáveis “Abuso”, “Homicídio”, “Extorsão”, e “Transgressão” possuem efeito negativo sobre a probabilidade de condenação, e que a variável “Roubo” possui efeito positivo sobre o mesmo evento de interesse sugerindo que a corporação parece não tolerar este tipo de prática. Neste caso, um policial que pratica um ato não “autorizado” pelas normas sociais e códigos de conduta da corporação, quando tiver o seu processo concluído, provavelmente será condenado.

Por outro lado, o sinal negativo e significativo das variáveis “Abuso”, “Homicídio”, “Extorsão”, e “Transgressão” fortalece a constatação de Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.) de que o desempenho de um arranjo de accountability correcional no contexto das polícias é afetado pelas características da acusação e pelas regras informais e códigos de condutas cristalizados na cultura da organização. Em relação à variável “Homicídio” ressalta-se que os resultados das regressões indicam uma associação apenas marginal entre a prática deste delito e a probabilidade de condenação nos Modelos 9 e 10. Neste sentido, uma análise mais detalhada considerando o tipo de condenação aplicada aos acusados de praticar este tipo de crime poderia revelar que, quando condenado, os militares estariam sujeitos a uma condenação com maior grau de severidade. Por sua vez, os resultados observados nas variáveis “Abuso” e “Transgressão” também encontram suporte nos argumentos de (Lamboo, 2010Lamboo, T. (2010). Policemis conduct: accountability of internal investigations. International Journal of Public Sector Management, 23(7), 613-631.). Para este autor, certos desvios são vistos como inerentes ao exercício da atividade policial, por isso eles seriam autorizados em nome da proteção do próprio policial. Adicionalmente, Rocha (2013Rocha, A. P. (2013). Polícia, violência e cidadania: o desafio de se construir uma polícia cidadã. Revista Brasileira de Segurança Pública, 7(1), 84-100.) chama a atenção para o fato de que esta autorização não parece vir apenas dos colegas de corporação, mas também da própria sociedade, ao menos de uma parcela, que defende uma polícia dura numa lógica de que os fins justificariam os meios empregados.

A Tabela 3, a seguir, apresenta um resumo dos principais resultados obtidos para cada uma das hipóteses lançadas no estudo.

Tabela 3
Resumo dos resultados

Considerações finais

Diante da necessidade de compreender o comportamento de corpos de supervisão da atividade policial, este artigo objetivou, com base na discussão teórica sobre accountability policial, identificar os fatores associados ao desempenho de uma corregedoria. Os resultados obtidos sugerem que o tempo de serviço do acusado na corporação e a complexidade do caso estão associados com uma menor probabilidade de conclusão do processo, tais resultados estão alinhados com os achados dos estudos de Cabral et al. (2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.) e Cabral e Lazzarini (2015)Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829., ou seja, a experiência acumulada por policiais militares e civis implicados em processos parece diminuir a probabilidade de punição. Em termos de condenação do acusado, apenas as normas sociais e códigos de condutas parecem explicar o processo de aplicação de sanções nos processos pesquisados, evidenciando que alguns crimes parecem ser tolerados, como “Abuso” e “Transgressão”, enquanto outros seriam vistos com reserva pela corporação, tais como “Roubo”. Ao que aparenta, não resta dúvida aos investigadores quanto ao caráter do policial quando a acusação se trata de “Roubo”, ao passo que abusos de autoridade podem ser vistos como um efeito colateral inerente à profissão. Tais resultados são consistentes com os estudos de Lamboo (2010Lamboo, T. (2010). Policemis conduct: accountability of internal investigations. International Journal of Public Sector Management, 23(7), 613-631.), Rocha (2013Rocha, A. P. (2013). Polícia, violência e cidadania: o desafio de se construir uma polícia cidadã. Revista Brasileira de Segurança Pública, 7(1), 84-100.), Cabral e Lazzarini (2015)Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829..

Por outro lado, os resultados do estudo indicaram que a posição hierárquica, a experiência prévia do acusado em comissões de investigações e a prática de crimes legitimados por normas internas e códigos de conduta da corporação não interferem com a probabilidade de conclusão do processo. Em termos de responsabilização, os resultados também indicaram que as características do acusado e a complexidade do processo não influenciam na condenação. Com base nestes dados, pode-se supor que os agentes implicados em acusações não se valem de mecanismos de influência e redes de relacionamentos para evitar que os processos sejam concluídos.

Não obstante, embora os resultados obtidos possam sugerir que não exista um tratamento diferenciado para os acusados em função da sua posição na corporação e da sua participação em comissões de investigação no passado, é preciso registrar que a variável utilizada no presente estudo, para mensurar a posição hierárquica do acusado, apresenta limitações que poderiam explicar o seu efeito não significativo do ponto de vista estatístico. Tendo em vista que a simples distinção entre “oficial ou praça” parece não revelar os efeitos desejados, medidas que especifiquem de forma mais precisa os diferentes postos e graduações da escala hierárquica da polícia militar (Coronel; Tenente Coronel; Major; Capitão; e 1º Tenente) talvez sejam capazes de revelar resultados distintos dos obtidos neste trabalho.

Contudo, o resultado mais surpreendente do estudo é que a separação de papéis entre agentes monitores e executores está associada com uma menor probabilidade de conclusão dos processos e de condenação. Tais resultados colocam em discussão a hipótese de que a separação de papéis é um meio importante para melhorar o desempenho dos sistemas de accountability em organizações públicas, particularmente, no contexto das corporações militares. Este resultado revela a necessidade de um exame mais detalhado sobre o efeito da separação de papéis em processos com maior duração e como estratégia para complementar os resultados deste estudo, assim como foi possível observar em Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.). Isso porque, a atuação das comissões especializadas, isto é, fixas, podem ser mais frequentes em investigações com maior complexidade, que é um fator importante para explicar o desfecho do processo.

Sob o ponto vista prático, os achados deste trabalho ampliam o debate sobre o funcionamento de arranjos internos de accountability na esfera policial e evidenciam a premência de uma maior transparência nos processos instaurados, no âmbito das corregedorias de polícia, como uma estratégia para aumentar a confiança e a legitimidade das forças policiais. Uma maior transparência sobre as atividades desenvolvidas pela corregedoria poderia melhorar a compreensão do cidadão sobre os fatores que explicam a elevada proporção de processos que são conduzidos por comissões de investigação que não são fixas, isto é, especializadas, bem como as razões pelas quais as probabilidades de conclusão e condenação são menores nos processos conduzidos por estas comissões. Além disso, pode-se supor que a ampliação da transparência nos processos administrativos disciplinares possa contribuir para o questionamento e desconstrução de certas normas sociais e códigos de conduta que favorecem a absolvição de acusados por práticas de crimes considerados aceitáveis no âmbito da corporação e até mesmo da sociedade.

Do ponto de vista teórico, os resultados apresentados neste artigo colocam em evidência a necessidade de ampliar a literatura acerca dos fatores associados ao desempenho das corregedorias de polícia que, por sua natureza, são menos abertos ao exame público (Boyne et al., 2002Boyne, G., Day, P., & Walker, R. (2002). The evaluation of public service inspection: a theoretical framework. Urban Studies, 39(7), 1197-1212.; Walker & Archbold, 2014Walker, S., & Archbold, C. A. (2014). The new world of police accountability (2nd ed.). Washington, DC: Sage.) e lança luzes sobre aspectos teóricos relevantes no campo da accountability nas organizações militares (Romzek & Ingraham, 2000Romzek, B. S., & Ingraham, P. W. (2000). Cross pressures of accountability: initiative, command, and failure in the Ron Brown plane crash. Public Administration Review, 60(3), 240-253.; Walker, 2006Walker, S. (2006). Police Accountability: Current Issues and Research Needs. National Institute of Justice (NIJ) Policing Research Workshop: Planning for the Future, Washington, DC, 2006. November 28-29.), na medida em que muitas das hipóteses derivadas da teoria não foram suportadas no contexto empírico investigado no artigo. Ademais ao trazer evidências empíricas contrárias à literatura sobre o efeito da separação de papéis no desempenho dos processos administrativos, o trabalho contribui para o debate teórico acerca da importância da especialização e expertise em atividades correcionais (Boyne et al., 2002) e constitui um passo importante para a consolidação de estudos quantitativos voltados ao exame sistemático dos fatores que podem influenciar a conclusão do processo de investigação e a responsabilização dos acusados (Cabral et al., 2008Cabral, S., Barbosa, A. C., & Lazzarini, S. G. (2008). Monitorando a polícia: um estudo sobre a eficácia dos processos administrativos envolvendo policiais civis na corregedoria geral da Bahia. Organizações & Sociedade, 15(47), 87-105.; Cabral & Lazzarini, 2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.).

Em que pesem os esforços empreendidos no desenho metodológico da pesquisa, o presente estudo apresenta limitações que devem ser observadas. Uma dessas limitações foi se restringir apenas ao exame de um órgão correcional e apenas ao nível interno de accountability policial. O artigo também teve como limitações a falta de acesso aos processos instaurados nos anos anteriores a 2004; e a ausência de dados sobre algumas variáveis utilizadas em estudos anteriores, como Cabral e Lazzarini (2015Cabral, S., & Lazzarini, S. G. (2015). The “guarding the guardians” problem: an analysis of the organizational performance of an internal affairs division. Journal of Public Administration Research and Theory, 25(3), 797-829.), o que inviabilizou uma análise comparativa mais aprofundada e uma maior compreensão do fenômeno investigado. Dentre as medidas faltantes figura a reincidência criminal do policial implicado e a repercussão na mídia dos desvios.

Considerando essas limitações, como sugestões para estudos futuros na área recomenda-se o desenvolvimento de novas pesquisas com abordagem quantitativas como estratégia para compreender os fatores que afetam o comportamento da corregedoria de outras polícias militares do país utilizando, se possível, bases de dados com um conjunto mais amplo de variáveis e técnicas de análises estatísticas mais robustas. Espera-se, por fim, que o presente artigo estimule as corporações policiais a abrirem seus dados para que pesquisadores possam explorar outras questões ligadas às investigações contra policiais acusados de desvios.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2017
  • Aceito
    12 Dez 2017
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