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Caracterização do público lojista de um centro de compras no agreste das confecções: tendências disposicionais e tensões administrativas

Characterization of the staff of a shopping center in the textile commercial pole of agreste: dispositional tendencies and administrative tensions

Resumo

Este artigo visa avançar no sentido de caracterizar o público lojista, proprietários de negócios e gerentes/responsáveis de um centro de compras situado em uma região específica do interior do Nordeste brasileiro. Por meio de uma leitura contextualizada da noção de habitus (Bourdieu), toma como objetivos específicos: (1) explorar similaridades e diferenças, em termos de tendências disposicionais administrativas, no referido público; e (2) identificar possíveis focos disposicionais para a tensão existente entre tal público e a administração do empreendimento. Trata-se de um estudo exploratório, em que foram aplicados 159 questionários e realizadas observações de campo de inspiração etnográfica. Acredita-se que a elaboração de uma ferramenta teórica própria (a noção de tendências disposicionais administrativas) para caracterizar esse tipo de público, nesse tipo de contexto, seja algo que pode contribuir para o conhecimento de fenômenos dessa natureza (objeto dos estudos organizacionais) e, desse modo, servir de inspiração a demais estudos no campo. Os resultados identificaram três tendências disposicionais administrativas que parecem ser significativamente recorrentes entre os pesquisados, a saber: (1) manutenção de práticas próximas à administração-feirante; (2) adaptação ao novo ambiente de negócios; e (3) hibridismos administrativos.

Palavras-chave:
Agreste das Confecções; Centro de Compras; Habitus; Tendência Disposicional; Público Lojista

Abstract

This article characterizes the staff, business owners and managers of a shopping center located in a specific countryside region in northeastern Brazil. A contextualized reading of the notion of habitus (Bourdieu) was used to achieve two objectives: (1) verify similarities and differences in administrative dispositional tendencies for the target population; and (2) identify dispositional tendencies for the tension between the staff and the company’s administration. This exploratory study assessed 159 interviews and field observations of ethnographic nature. The development of a theoretical tool (the notion of administrative dispositional tendencies) to characterize this population in this specific context can contribute to the knowledge of phenomena of this nature (object of Organizational Studies) and inspire other studies in the field. The results show three administrative dispositional tendencies that seem to be significantly recurrent among respondents, namely: (1) maintenance of practices close to administration; (2) adaptation to the new business environment; and (3) administrative hybridity.

Keywords:
Textile Commercial Pole of Agreste; Shopping Center; Habitus; Dispositional Tendencies; Staff

Introdução

A atividade de produção e comercialização de confecções, disseminada a partir dos municípios-eixo de Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe na segunda metade do século 20, se alastrou rapidamente para além dos limites geográficos do Agreste pernambucano. Passou a reunir milhares de pessoas em torno da atividade, a ponto de tornar possível e até mesmo confortável se referir à região como “agreste das confecções” (Sá, 2018; Souza, 2012Souza, A. M. (2012). “A gente trabalha onde a gente vive”: A vida social das relações econômicas: Parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no agreste das confecções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.).

Se de início a comercialização da produção se dava principalmente por meio de feiras de rua específicas denominadas de “Feiras da Sulanca”, neste século foram construídos centros de compras em cada um dos municípios-eixo. Foi assim que parte de um público, historicamente chamado de “sulanqueiros”, também passou a atuar em espaços de box ou lojas para hoje vender a produção local também em tais centros de compras. No entanto, acostumados à dinâmica comercial de feira livre, traço marcante da história coletiva local, possuir um box ou uma loja num destes novos espaços de comercialização vem sendo um desafio para muitos desses agentes, afinal, este novo ambiente é dirigido por um corpo administrativo que age conforme critérios e lógica diferentes daqueles da feira de rua e sincrônicos às práticas de gestão competitiva no mercado contemporâneo.

O negócio da confecção tem grande relevância para a economia da região, segundo estimativas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) (2013)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. (2013). Estudo econômico do arranjo produtivo local de confecções do Agreste pernambucano. Relatório Final. Recife, PE: Autor., conta com mais de 12 mil empreendimentos (em sua grande maioria, informais), aproximadamente 107 mil trabalhadores e mais de 25 mil familiares diretamente ocupados com a atividade, produzindo 842,5 milhões de peças/ano.

A motivação que nos levou a optar pela sociologia bourdieusiana decorre do êxito de estudos anteriores que utilizaram tal abordagem - conforme se explicita mais adiante, na terceira seção - para dar conta de fenômenos mais ou menos similares a este, no mesmo contexto do interior nordestino. Esta abordagem nos permitiu avançar com a caracterização do público lojista, termo que será aqui utilizado para designar os proprietários de negócios e/ou seus gerentes/responsáveis de um centro de compras agrestino.

Com a emergência desses novos espaços para comercialização da produção local, faz-se necessário compreender como as práticas de gestão e comércio estão se adaptando (ou não) às demandas deste novo ambiente de negócios, ou seja, como os agentes que cresceram envoltos na história coletiva local do comércio de feira de rua estão lidando com a nova condição de público lojista.

A partir de um estudo exploratório realizado por meio de entrevistas estruturadas (tipo questionário) e de observações de inspiração etnográfica, este trabalho tem como principal objetivo caracterizar o público lojista de um dos centros de compras do agreste das confecções. Para tal, recorre-se a um instrumento teórico da sociologia bourdieusiana, a noção de “habitus” (disposições). Em função dos objetivos traçados, foi articulada uma terceira noção a partir das de “habitus feirante” e “filhos das feiras”: “tendências disposicionais administrativas”, que norteia a análise dos dados empíricos elaborados.

Muito embora não seja proposta do trabalho apresentar contribuição teórica, acredita-se que a elaboração de uma noção própria para caracterizar esse tipo de público, nesse tipo de contexto, seja algo que pode contribuir para o conhecimento de fenômenos dessa natureza (objeto da área de estudos organizacionais) e, desse modo, servir de inspiração a demais estudos no campo.

O trabalho tem como objetivos específicos: (1) explorar similaridades e diferenças, em termos de tendências disposicionais administrativas, no referido público; (2) identificar possíveis focos disposicionais, no mesmo público, para a tensão existente entre este e a administração do empreendimento.

Para caminhar neste sentido, alguns aspectos constitutivos do contexto são realçados na próxima seção. Em seguida, a trajetória conceitual que dá sustentação ao instrumento teórico elaborado e utilizado neste trabalho é recuperada. Já após a descrição da metodologia, os principais dados são apresentados e analisados conjuntamente, sendo seguidos pelas considerações finais.

O agreste das confecções e um dos seus centros de compras

A migração da produção doméstica para venda e comercialização de confecção na região em questão se fez notar a partir dos anos de 1950/1960, em Santa Cruz do Capibaribe, como principal alternativa de sobrevivência encontrada por famílias - destacadamente aquelas que vieram da zona rural para se estabelecer nas incipientes urbanidades agrestinas - que procuravam superar as dificuldades de plantio decorrentes da crescente seca local (Lira, 2009Lira, S. M. (2009). O “desenvolvimento” do aglomerado de micro e pequenas indústrias de confecções do Agreste/PE: As suas inter-relações socioespaciais (Tese de doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE.; Milanês, 2014Milanês, R. B. (2014). Uma experiência de desenvolvimento econômico e industrial sem amparo e protecionismo estatal: o caso do Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. Trabalho apresentado na 5ª Conferência Internacional de História Econômica & VII Encontro de Pós Graduação em História Econômica, Niterói, RJ.; Oliveira, 2011Oliveira, R. V. (2011). O pólo de confecções do Agreste de Pernambuco: Ensaiando uma perspectiva de abordagem. Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG.).

Com condições materiais desfavoráveis e renda econômica limitada, parte crescente da população agrestina passou a utilizar o aprendizado doméstico em confecções e a criatividade para a costura de roupas a partir de retalhos, a princípio junto com os comerciantes que se dirigiam à capital, Recife, com o intuito de lá vender produtos locais (queijo, galinha, carvão etc.) e que, ao regressar, traziam a custo zero os restos de tecidos das indústrias de sua região metropolitana. Foi justamente este “lixo” da indústria da capital litorânea que veio a ser utilizado, pelas costureiras locais para a confecção de colchas e tapetes inicialmente e, em seguida, para a produção de roupas, tendo como seu principal atrativo de venda os preços baixos (Gomes, 2002Gomes, S. C. (2002). Do comércio de retalhos à feira da Sulanca: Uma inserção de migrantes em São Paulo (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.; Milanês, 2014Milanês, R. B. (2014). Uma experiência de desenvolvimento econômico e industrial sem amparo e protecionismo estatal: o caso do Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. Trabalho apresentado na 5ª Conferência Internacional de História Econômica & VII Encontro de Pós Graduação em História Econômica, Niterói, RJ.).

O produto da costura doméstica, que anteriormente era somente destinado ao uso familiar, passou também a ser vendido nas feiras de rua. Comumente, os donos das unidades produtivas e seus familiares se responsabilizavam pela comercialização da produção, se utilizando de viagens para a venda daquela produção doméstica nas feiras de outras localidades, comércio este que atendia outras populações nordestinas também de limitado poder aquisitivo. Com a atividade se estabelecendo, ganhando novos produtores, vendedores e clientes, a procura pelos retalhos aumentou, fazendo com que algumas indústrias da capital passassem a cobrar pelo que antes era dado. Em seguida, alguns compradores passaram a trazer a matéria-prima também de São Paulo, e o que antes era vendido nas feiras dos municípios de outros estados, a partir dos anos de 1970/1980, passou a ser comercializado também nas feiras de rua de demais municípios do Agreste, principalmente Caruaru e Toritama (Oliveira, 2011Oliveira, R. V. (2011). O pólo de confecções do Agreste de Pernambuco: Ensaiando uma perspectiva de abordagem. Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG.). Assim foi formada a Feira da Sulanca, que “ficou conhecida, então, como feira que possui produtos simples, de qualidade inferior e preços acessíveis a camadas da população de baixa renda” (Lira, 2006Lira, S. M. (2006). Os aglomerados de micro e pequenas indústrias de confecções do Agreste/PE: Um espaço construído na luta pela sobrevivência. Revista de Geografia, 23(1), 98-114. Recuperado de http://bit.ly/3Bs4d5e
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, p. 102).

As feiras de rua têm importância fundamental na constituição dessa região. Era principalmente nesses dias que os comerciantes ganhavam mais dinheiro, as pessoas da cidade abasteciam suas despensas com produtos que eram cultivados na zona rural, e os agricultores se abasteciam dos produtos da cidade, onde os compadres e familiares que moravam em sítios e cidades vizinhas aproveitavam a ocasião para colocar os assuntos em dia, assim alimentando e interligando a dinâmica sociocultural local. Nos lugares em que ocorria a feira, circulavam pelas mesmas ruas pessoas de diferentes classes sociais, com seus diversos hábitos. A feira no Agreste pernambucano representou muito mais que apenas um lugar onde produtos eram comercializados, e até os dias atuais é relevante na vida e no jeito de ser da população agrestina (Sá, 2018Sá, M. (2018). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios do Agreste. Recife, PE: Ed. Massangana -Fundaj. Recuperado de http://bit.ly/2v3ceBE
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).

A maioria das pessoas que sobrevivem das confecções no Agreste possui poucos anos de estudo e não teve acesso a especializações que as qualificassem para desempenhar tais atividades. O saber prático foi transmitido de geração a geração por meio de um empirismo coletivo e “compensou” a falta ou a limitação escolar com o apoio de longas jornadas de trabalho duro.

Em paralelo à consolidação das feiras, multiplicam-se unidades produtivas em forma de “fabricos” (núcleos produtivos domésticos e informais) e “facções” (unidades de trabalho contratadas pelas fábricas maiores, ou mesmo pequenos fabricos, para a execução de etapas do processo produtivo, como o corte ou a costura). Tais unidades, a princípio, contavam com a constante presença do trabalho familiar, tendo como forma predominante o sistema produtivo doméstico e uma alta incidência de relações informais de trabalho, ou seja, pouca ocorrência de trabalhadores contratados e forte exploração de mão de obra familiar (inclusive crianças desde a mais tenra infância) e/ou subempregada e sem qualificações. Com o passar do tempo, alguns fabricos tomaram dimensões variadas, se estruturando, modernizando as suas técnicas de gestão, passando a atender mercados consumidores mais exigentes e convertendo-se, dessa forma, em fábricas (Freire, 2016Freire, C. (2016). Da sulanca à fábrica: Configurações do trabalho no polo de confecções de Pernambuco (Tese de doutorado). Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB.).

Nos anos de 1990, assim como nos anos anteriores, o agreste das confecções deu sinais contraditórios em relação às mudanças que vinham ocorrendo. Alguns produtores e comerciantes incorporaram atividades de serviços relacionadas à consultoria de gestão, às técnicas de produção, à qualificação dos seus trabalhadores, ao design dos seus produtos. Alguns se filiaram ao sindicato da categoria - por exemplo, o Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado de Pernambuco (Sindivest) -, se associaram a instituições como o Sebrae, enquanto outros, por não terem condições de se adequar às exigências desse outro mercado, pela pouca escolaridade ou por simplesmente julgarem desnecessários esses serviços, continuaram com a produção caseira e o comércio nos bancos de feira, até hoje, de modo similar ao que ocorria décadas atrás (Andrade, 2008Andrade, T. S. (2008). A estrutura institucional do APL de confecções do Agreste pernambucano e seus reflexos sobre a cooperação e a inovação: O caso do município de Toritama (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.; Oliveira, 2011Oliveira, R. V. (2011). O pólo de confecções do Agreste de Pernambuco: Ensaiando uma perspectiva de abordagem. Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG.).

No início deste milênio, algumas ações articuladas por instituições locais e orientadas pelo Sebrae e Sindivest marcaram uma reconfiguração discursiva da atividade na região, de acordo com os interesses da emergente elite empresarial local. Com o desejo deste grupo de atingir novos mercados e desvincular seus produtos da imagem depreciativa associada ao termo “sulanca”, houve uma ação com o objetivo de reposicionar, internamente e externamente, a imagem dessa produção local (Oliveira, 2011Oliveira, R. V. (2011). O pólo de confecções do Agreste de Pernambuco: Ensaiando uma perspectiva de abordagem. Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG.). Para isso, “seria preciso desconstruir a marca ‘sulanca’, que sempre esteve associada a produtos de baixíssima qualidade. Operou-se uma reelaboração discursiva visando por no lugar da ‘Feira da Sulanca’ o ‘Pólo de confecções’; no lugar de ‘sulanqueiro’, a denominação ‘empresário’ ou ‘empreendedor’” (Oliveira, 2011Oliveira, R. V. (2011). O pólo de confecções do Agreste de Pernambuco: Ensaiando uma perspectiva de abordagem. Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG., p. 23).

Essas mudanças discursivas tiveram como propósito uma melhor apresentação do empresariado local e da sua produção, desvinculando-os da imagem de sulanqueiros e de produção de peças de baixa qualidade para atender as camadas da população de baixa renda. Junto desse processo, a partir dos anos 2000, houve a construção de centros comerciais em Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe. Estes novos equipamentos para a comercialização da produção também vieram modificar a paisagem do agreste das confecções, se tornando uma representação concreta do cenário contemporâneo local.

Construído por um grupo empresarial e inaugurado na década passada, o centro de compras que serviu de campo empírico para este estudo está localizado em um dos principais municípios agrestinos, numa área de mais de 100 hectares, com uma estrutura de mais de 50 mil metros quadrados de área coberta, estacionamento para cerca de 3 mil veículos e mais de 100 ônibus, que acaba proporcionando comodidade aos visitantes quando comparado com as feiras de rua. Seu espaço coberto é dividido em módulos, sendo mais de 90% dos negócios voltados para o vestuário, e o restante do mix dividido entre restaurantes, lanchonetes, lojas de calçados, acessórios, serviços, entre outros.

Em síntese, tais centros comerciais construídos na primeira década do século 21, além de materializarem o encontro do comércio de feira de rua com o mercado capitalista convencional, representam tanto relevantes mudanças na dinâmica comercial-urbana da atividade na região quanto desafiam os proprietários de tais negócios e/ou seus gerentes/responsáveis - ou seja, o conjunto que chamamos de público lojista neste trabalho - a se adequar a um novo ambiente e formato de negócios menos voluntarista e espontâneo, com mais regras, constrangimentos e outras possibilidades (mais ou menos diferentes, a depender de cada situação de negócio particular) das que perpassam as feiras da sulanca agrestinas.

Da noção de habitus às tendências disposicionais administrativas como instrumento teórico

Este trabalho se estrutura a partir de uma leitura teórico-epistemológica construtivista e pragmática da epistemologia bourdieusiana (Sá, 2015aSá, M. (2015a). Construtivismo bourdieusiano como linguagem: Uma interpretação pragmática. Configurações, 16(1), 115-128. doi:10.4000/configuracoes.2881
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), muito embora usos ortodoxos ou doutrinários (a repetição acrítica do seu modelo teórico) ainda aconteçam no século 21, mesmo tendo o próprio Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e campo. In P. Bourdieu, O poder simbólico (pp. 59-73). Algés: Difel. (Trabalho original publicado em 1984). registrado que seu trabalho científico não era algo a ser simplesmente replicado e que seus conceitos não deveriam ser acriticamente operacionalizados noutros contextos específicos. Para muitos, com os quais concordamos - Wacquant (1992)Wacquant, L. (1992). Preface. In P. Bourdieu, & L. Wacquant (Orgs.), An invitation to reflexive sociology (pp. IX-XIV). Chicago: The University of Chicago Press ., Lahire (2003)Lahire, B. (2003). O homem plural. São Paulo, SP: Instituto Piaget., Santoro (2008)Santoro, M. (2008). Putting Bourdieu in the global field: Introduction to the Symposium. Sociologica, 2, 1-32. doi:10.2383/27719
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-, seu maior legado estaria na oferta de uma caixa de ferramentas, um modo de fazer pesquisa social, um habitus científico, para dizer nos seus termos (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago: The University of Chicago Press.). Além do próprio autor ter enfatizado suas noções centrais (habitus, campo ou capital) em diferentes estudos, o que realmente deveria governar a ação investigativa em sua epistemologia seria a especificidade do objeto construído (Baranger, 2012Baranger, D. (2012). Epistemología y metodología en la obra de Pierre Bourdieu (2a ed.). Posadas: Autor.; Bourdieu, 1991Bourdieu, P. (1991). Meanwhile, I have come to know all the diseases of sociological understanding: An interview with Pierre Bourdieu, by Beate Krais. In P. Bourdieu, The craft of sociology: Epistemological preliminaries (pp. 247-259). Berlin: Walter de Gruyter.), já que suas próprias definições de cada um dos termos variam em alguns dos seus trabalhos, como bem aponta Lahire (2001)Lahire, B. (2001). Champ, hors-champ, contrechamp. In B. Lahire (Org.), Le travail sociologique de Pierre Bourdieu: Dettes et critiques (pp. 23-57). Paris: La Découverte., no caso da noção de campo. Robbins (2000)Robbins, D. (2000). The socio-genesis of the thinking instruments. In D. Robbins, Bourdieu and culture (pp. 25-41). Thousand Oaks: Sage. destaca que os “instrumentos de pensamento” bourdieusianos surgiram em função de problemas de pesquisa que ele precisou enfrentar, logo, o significado de seus conceitos está associado a tais enfrentamentos e contextos de uso (Wacquant, 2006Wacquant, L. (2006). Seguindo Pierre Bourdieu no campo. Revista Sociologia e Política, 26, 13-29. doi:10.1590/S0104-44782006000100003
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), o que demanda aos pesquisadores que se inspiram em tais instrumentos um esforço de ressignificação conforme os objetos que elaboram, nos contextos específicos nos quais estes são estudados.

Santoro (2008)Santoro, M. (2008). Putting Bourdieu in the global field: Introduction to the Symposium. Sociologica, 2, 1-32. doi:10.2383/27719
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, além de reiterar a visão de Wacquant (1992)Wacquant, L. (1992). Preface. In P. Bourdieu, & L. Wacquant (Orgs.), An invitation to reflexive sociology (pp. IX-XIV). Chicago: The University of Chicago Press . de que o maior legado do sociólogo francês foi seu modus operandi, e não o opus operatum de suas pesquisas, destaca que a riqueza reflexiva da sociologia bourdieusiana está em “pensar com e contra Bourdieu”, ou seja, fazer um uso aberto e criativo de sua obra.

No caso deste trabalho, nos propomos a contribuir e dialogar

com a mais recente sociologia da formação do habitus econômico que tem vindo a ser produzida internacionalmente, [e assim contribuir com] a dinamização da teoria a partir de novos contextos, que obrigam a abrir frentes de pesquisa diferenciadas e ao desenvolvimento de propostas de trabalho inovadoras. (Pereira, 2018Pereira, V. B. (2018). Prefácio. In M. Sá, Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste (pp. 13-15). Recife, PE: Ed. Massangana., p. 15)

Neste sentido, o movimento que se faz nesta seção é justificar a elaboração de um instrumento teórico específico em função dos objetivos declarados. Para tal, parte-se do resgate da ideia original de habitus em Pierre Bourdieu para, em seguida, recuperar usos da noção (no interior nordestino) que dão suporte e possibilitam a construção do termo “tendências disposicionais administrativas” como instrumento teórico - que norteia as análises apresentadas logo após breve descritivo dos procedimentos metodológicos adotados no estudo, já na seção seguinte.

Habitus como noção

Uma das principais elaborações que marcaram a tradição sociológica fundada por Pierre Bourdieu foi o conceito de habitus. Fruto de um esforço para “romper com o paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, a da economia clássica e do seu homo economicus” (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e campo. In P. Bourdieu, O poder simbólico (pp. 59-73). Algés: Difel. (Trabalho original publicado em 1984)., p. 61), e, assim, libertar-se da divisão corpo/mente impregnada em gerações da filosofia e do pensamento social ocidental, esta foi uma ferramenta conceitual criada para melhor compreender como o social é incorporado pelos indivíduos e vice-versa, ou seja, como cada agente tem “capacidades criadoras e inventivas que a palavra hábito não diz” (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e campo. In P. Bourdieu, O poder simbólico (pp. 59-73). Algés: Difel. (Trabalho original publicado em 1984)., pp. 61-62).

Para o próprio Bourdieu (1996)Bourdieu, P. (1996). Espaço social e espaço simbólico. In P. Bourdieu, Razões práticas: Sobre a teoria da ação (pp. 13-33). Campinas, SP: Papirus.,

os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas - o que o operário come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial. (p. 22, grifo nosso)

Também é válido aqui recuperar as palavras do autor para registrar a centralidade da ideia de disposições no conceito:

A palavra disposição parece particularmente apropriada para exprimir o que recobre o conceito de habitus (definido como sistema de disposições): com efeito, ele exprime, em primeiro lugar, o resultado de uma ação organizadora, apresentando então sentido próximo ao de palavras tais como estrutura; designa, por outro lado, uma maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e, em particular, uma predisposição, uma tendência, uma propensão ou uma inclinação. (Bourdieu, 1983/1994Bourdieu, P. (1994). Esboço de uma teoria da prática. In R. Ortiz. (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia (pp. 46-81). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1983)., p. 61, grifo do autor)

Em sua fase mais madura, o sociólogo francês não se restringiu às definições proferidas anteriormente (Bourdieu, 1983/1994Bourdieu, P. (1994). Esboço de uma teoria da prática. In R. Ortiz. (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia (pp. 46-81). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1983)., pp. 61-62, 1979/2007Bourdieu, P. (2007). A distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo, SP: Edusp. (Trabalho original publicado em 1979)., p. 162), e sim reelaborou a noção de habitus de diferentes modos para “comunicar uma certa atitude ou postura teórica, de designar - e inculcar - um certo modo de olhar para o mundo” (Brubaker, 1993Brubaker, R. (1993). Social theory as habitus. In C. Calhoun, E. LiPuma, & M. Postone (Eds.), Bourdieu: Critical perspectives (pp. 212-234). Cambridge: Polity Press., p. 217). Aqui se segue este olhar retrospectivo que o próprio autor lançou sobre os conceitos que criou em função de problemas práticos e localizados de pesquisa (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago: The University of Chicago Press.), e se trata o conceito de habitus como noção (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e campo. In P. Bourdieu, O poder simbólico (pp. 59-73). Algés: Difel. (Trabalho original publicado em 1984).), ou seja, como um instrumento teórico-epistêmico de uso aberto ao qual o pesquisador recorre para tentar descrever as “ações estratégicas localizadas” (Robbins, 2000Robbins, D. (2000). The socio-genesis of the thinking instruments. In D. Robbins, Bourdieu and culture (pp. 25-41). Thousand Oaks: Sage., p. 27), indicar “a disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e campo. In P. Bourdieu, O poder simbólico (pp. 59-73). Algés: Difel. (Trabalho original publicado em 1984)., p. 62, grifo nosso).

Raízes localizadas das tendências disposicionais administrativas como instrumento teórico

A noção de habitus e a sociologia bourdieusiana já se mostraram úteis como ferramental teórico a outras investigações que envolvem pessoas e negócios no interior nordestino desde os anos 1970. Entre os primeiros trabalhos estão o de Lopes (1975)Lopes, J. S. L. (1975) O “vapor do diabo”: o trabalho dos operários do açúcar (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ., que investigou os operários da cana-de-açúcar; Garcia Jr. (1976)Garcia, A. R., Jr. (1976). Terra de trabalho: Trabalho familiar de pequenos produtores (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ., que buscou entender o trabalho familiar de pequenos produtores; e Garcia-Parpet (1977)Garcia-Parpet, M.-F. (1977). O Bacurau: Etude de cas d’un marché situé dans une usina du Nord-Est du Brésil (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ., que analisou o caso de uma feira situada em usina na Zona da Mata de Pernambuco. Mais recentemente, Sá (2011)Sá, M. (2011). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios. Recife, PE: Editora UFPE. investigou as origens e a trajetória de vida de feirantes para compreender como eles administram seus negócios e, depois, a condição contemporânea de proprietários de negócios de confecção no Agreste pernambucano (Sá, 2015bSá, M. (2015b). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Universidade do Minho, Braga., 2018), enquanto Freire (2016)Freire, C. (2016). Da sulanca à fábrica: Configurações do trabalho no polo de confecções de Pernambuco (Tese de doutorado). Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB. analisou as trajetórias de empresários locais, para apreender em suas narrativas a formação e a reprodução de configurações locais do trabalho.

Para além das práticas de gestão de negócios periféricos, a noção bourdieusiana serviu para explicitar o modo como as origens familiares, as trajetórias de vida e as experiências de trabalho constituíram os feirantes e, consequentemente, seus modos de administrar um negócio de feira, ou seja, um tipo de “administração-feirante” - entendida como um conjunto de atividades necessárias ao planejamento e funcionamento cotidiano de um negócio de feira. São atividades que vão desde a escolha devida do ponto, passando pelo controle financeiro, até decisões sobre a implementação de melhorias na estrutura do negócio etc. Usa-se o termo como sinônimo de “gestão”; de todo modo, trata-se de uma realidade que pede uma abordagem específica ao fenômeno administrativo (Sá, 2011Sá, M. (2011). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios. Recife, PE: Editora UFPE., p. 68).

Por meio da perspectiva teórica adotada, o que estaria “por trás” deste tipo de administração seria um conjunto de disposições, relativamente coerentes e duradoras na extensão de um microcosmo social, denominado de “habitus feirante”. Este seria um jeito de estar, sentir e agir socioculturalmente partilhado por gerações criadas e socializadas nos corredores da Feira de Caruaru1 1 Feira de fama internacional e reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. .

O habitus feirante orienta a ação de pessoas que, por conta própria ou com a ajuda de familiares e amigos, se viram nas margens do mercado de trabalho “formal”, para o qual muitos não foram preparados. Encontram, reproduzem e elaboram na feira os (des)caminhos de quem não tem uma profissão - enquanto habilitação para o desempenho de atividade específica formalizada e geralmente certificada por meio de diplomas - ou uma escolaridade completa que lhe seja útil e permita a obtenção de um emprego qualificado. Ou então de pessoas que se conformaram com ou “se fizeram” na feira. Enfim, quer seja por opção ou por falta dela, atuam no mesmo contexto, compartilham discursos do senso comum que justificam tal condição, bem como as práticas a esta vinculadas. (Sá, 2015bSá, M. (2015b). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Universidade do Minho, Braga., p. 175)

Para justificar a noção de “tendências disposicionais administrativas” como instrumento teórico, é preciso recuperar, mesmo que brevemente, outra noção também desenvolvida a partir do “habitus feirante”. O termo “filhos das feiras” serviu para nortear uma interpretação sobre como a histórica coletiva local foi, ao mesmo tempo, incorporada e modificada pelos proprietários de negócios de produção e comercialização de confecções, que constituíram um campo de negócios específico no Agreste pernambucano. Tal dinâmica não pode ser somente restrita à economia, uma vez que tem raiz sociocultural, ou seja, conforma e é conformada pelas pessoas que lá vivem e trabalham, no modo periférico de negociar e de estar naquele pedaço de mundo (Sá, 2015bSá, M. (2015b). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Universidade do Minho, Braga., p. 25). Esta expressão orientou o olhar e possibilitou atentar para duas forças antagônicas e coexistentes neste processo de diferenciação em curso na região: a manutenção e a modificação das heranças disposicionais das feiras de rua, ou seja, a manutenção de tais heranças mais próximas ao habitus feirante ou sua modificação no sentido de uma adaptação aos desafios impostos pela dinâmica do mercado contemporâneo para o qual parte dos filhos das feiras se projeta - em particular, quando se esforça para ou mesmo chega a incorporar a atitude e se identificar com a denominação de empresário ou empreendedor (Sá, 2015bSá, M. (2015b). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Universidade do Minho, Braga., p. 177).

No estágio exploratório deste estudo, não se ambiciona caracterizar as principais disposições que possibilitam a construção de um entendimento sobre o referido público lojista. No entanto, é possível, sim, avançar com algumas tendências disposicionais a partir do confronto desta ferramenta conceitual com o material empírico. Assim sendo, aqui se entende a noção de “tendências disposicionais administrativas” (ou, daqui por diante, apenas “tendências administrativas”) como um instrumento teórico ao qual o pesquisador pode recorrer e fazer uso no sentido de explicitar alguns princípios de práticas de gestão incorporadas, ainda que em caráter exploratório. É este termo que orienta o olhar e a análise dos dados que se seguem após uma breve explanação acerca dos procedimentos metodológicos adotados ao longo do trabalho de campo e do tratamento dos dados nele elaborados. É justamente por meio do seu potencial de uso que se pretende explorar similaridades e diferenças no referido público e indicar principais focos para a tensão existente entre este e a administração do empreendimento.

Metodologia

Este artigo apresenta uma etapa exploratório-descritiva de uma pesquisa mais ampla no contexto do agreste das confecções. Sua ênfase está em seu caráter descritivo, sendo esta sua principal limitação; por outro lado, acreditamos que também haja nele uma contribuição para um melhor entendimento do fenômeno pesquisado. Quanto à abordagem metodológica, trata-se de uma pesquisa que elabora dados de forma quantitativa e qualitativa, uma vez que, além de utilizar métodos estatísticos e informações relevantes do público lojista, recorreu a técnicas de inspiração etnográfica (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago: The University of Chicago Press.; Geertz, 2008Geertz, C. (2008). A interpretação das culturas. São Paulo, SP: LTC Editora.) com registro das observações em diário de campo, conversas com o público estudado e mesmo experiências em interações de consumo (como clientes), ao longo de um período de nove meses.

Um dos centros de compras de uma das três principais cidades-eixo do Agreste de Pernambuco se configurou como campo empírico. A escolha do centro de compras se deu não apenas pela sua localização estratégica num desses municípios centrais, sendo um empreendimento importante para a economia da região, mas também pela abertura e interesse demonstrado por sua atual gestão em conhecer melhor os perfis do seu público lojista.

Um dos instrumentos de acesso e sistematização dos dados foi um questionário semiestruturado utilizado para descrever os aspectos que envolvem o público lojista do centro de compras em estudo. Sua elaboração foi feita a partir da literatura, sendo estruturado em cinco partes: (1) perfil do entrevistado; (2) histórico recente de atividades econômicas/formação para desempenho de atividades econômicas; (3) negócio atual; (4) administração do negócio atual; e (5) visão/relacionamento do público lojista com a administração do centro de compras.

A aplicação do questionário ocorreu durante os meses de setembro e outubro de 2016, em que foram entrevistados 159 proprietários de negócios e/ou gerentes/responsáveis do universo de lojas do referido centro de compras. A ideia inicial foi aplicar o questionário com ao menos o proprietário ou gerente/responsável de todos os 190 negócios instalados no centro de compras; no entanto, alguns não quiseram ou não tiveram tempo para responder. Assim sendo, não houve seleção dos sujeitos da pesquisa nem definição quanto ao número final de questionários aplicados. O percentual de entrevistados (83,68%) em relação ao universo constitui uma amostra significativa. Já as demais observações e interações de campo (qualitativas) se deram entre os meses de agosto de 2016 e abril de 2017.

A tabulação dos dados ocorreu logo em sequência, com utilização do programa IBM SPSS Statistics (versão 21), no qual foram avaliados e interpretados por meio de análise estatística descritiva. Além dos questionários, os pesquisadores também realizaram uma análise compreensiva das notas de campo e de fotos. Nesta foi possível sistematizar algumas questões gerais acerca da dinâmica do público lojista e do seu cotidiano no centro de compras.

O registro das observações diretas e das impressões das interações de campo (que se deram ao longo de todo o período da pesquisa) foi feito por meio de notas tomadas individualmente. Após um primeiro período de observações e impressões mais gerais, passou-se a tomar como foco do trabalho de campo o registro de observações mais específicas que pudessem subsidiar o avanço na compreensão de alguns aspectos de interesse da pesquisa - em particular relativos a dimensões qualitativas integradas às partes do questionário.

A análise da estatística elaborada e das notas de campo se deu por associação entre as informações geradas e os subtópicos que compõem a seção seguinte, ou seja, (1) histórico e formação para atividades econômicas, (2) administração do negócio atual e (3) relacionamento com a administração do centro de compras. Tais subtópicos podem ser lidos como eixos estruturantes da análise. O produto de tais procedimentos toma forma na redação da quinta seção.

Por fim, aqui ainda é válido registrar uma ressalva. Ao nos alinharmos e trabalharmos a partir de uma interpretação pragmática do construtivismo bourdieusiano como linguagem (Sá, 2015aSá, M. (2015a). Construtivismo bourdieusiano como linguagem: Uma interpretação pragmática. Configurações, 16(1), 115-128. doi:10.4000/configuracoes.2881
https://doi.org/10.4000/configuracoes.28...
), somos obrigados a um esforço de ressignificação conceitual. Ou seja, na seção seguinte não se procura operacionalizar conceitos (como o de habitus), mas, sim, por meio da noção de tendências disposicionais administrativas, caracterizar o público pesquisado em termos disposicionais e na contingência da condição exploratória do estudo.

Apresentação e análise dos dados

Do público lojista pesquisado, cerca de 42% são proprietários de negócios, enquanto 58% dos entrevistados são gerentes ou responsáveis. Deste universo de respondentes, a maior parcela (81%) é composta de mulheres, destacando dessa forma a preferência do sexo feminino para estar à frente não só do atendimento, mas também das vendas da maioria dos negócios, contra apenas uma pequena parcela (19%) de homens. A maior concentração de idade dos respondentes corresponde à faixa dos 18 aos 34 anos, representando 53% do público lojista; já as pessoas na faixa etária de 35 a 54 anos também têm uma presença considerável no centro de compras (35%), enquanto a dos mais velhos é mínima (11%). Considerando o estado civil, 48% dos entrevistados declararam-se solteiros. O percentual de casados, entretanto, também é relevante (44%), seguido por uma minoria de viúvos, separados e que “vivem juntos” (3%, 4% e 1%, respectivamente).

Do total do universo dos pesquisados, 48,4% do público lojista nasceram em Caruaru, enquanto 33,3% nasceram em outra cidade do interior de Pernambuco. Esses números se distanciam ainda mais quando nos referimos às cidades onde eles foram criados, com uma maioria de 62,9% dos entrevistados em Caruaru, contra apenas 28,3% em alguma outra cidade localizada no interior de Pernambuco. Observamos que a maioria do público lojista desse centro de compras nasceu e/ou foi criada em cidades que compõem o agreste das confecções, estando inserida desde a sua origem em um contexto no qual o comércio de feiras de rua teve e ainda tem importância fundamental na vida de grande parcela da sua população. Tal história coletiva local acaba deixando marcas nos hábitos, nas práticas de comercialização e nos modos de administrar negócios de parte significativa do referido público, o que corrobora a perspectiva teórica adotada neste trabalho.

Quanto ao nível de escolaridade, 52,2% dos entrevistados possuem ensino médio completo, porém, foi observado em campo que o nível de escolaridade de grande parte dos respondentes muitas vezes não corresponde a sua forma de se expressar e de desenvolver argumentos de modo estruturado e articulado. Enquanto isso, 30,9% cursaram ou estão cursando o ensino superior e, por fim, 8,9% dos entrevistados atingiram somente a primeira etapa de escolarização. Verifica-se também que 74% dos entrevistados estudaram a maior parte do tempo de suas vidas letivas em instituição pública, enquanto 25% estudaram por mais tempo em instituições privadas.

Histórico e formação para atividades econômicas

Do universo do público lojista, 43,4% dos entrevistados realizaram algum curso profissional, sendo apenas 11,9% destes voltados para a área de atuação, como vendas e atendimento. Por outro lado, 56,6% não realizaram nenhum tipo de curso profissional, como pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição por público e curso técnico ou profissionalizante

Em conversas travadas ao longo do período de observação, alguns pesquisados imputavam à administração do centro a necessidade de oferta de treinamentos específicos (não há clareza para muitos deles do tipo de relação entre as partes, muitos lamentam serem tratados como empregados) em marketing, finanças, layout de loja etc. Já outros criticavam a direção do empreendimento por oferecer “curso de vendas” quando, aos olhos deles, “vender a gente sabe, né!”. De todo modo, o interesse em fazer cursos apareceu mais entre a parcela do público responsável pelas lojas mais organizadas aos moldes do que a administração deseja para o centro (mais próximas do modelo de loja de shopping center convencional), ou seja, entre aqueles que “menos precisariam”. Já entre aqueles cujas lojas mais se aproximam da estética e dinâmica do comércio de feira de rua (produtos empilhados, promoções improvisadas, vitrines não projetadas, abordagem explícita aos transeuntes etc.), muitos relataram não sentir necessidade disso.

Levando em consideração o contexto histórico da região, a estatística e as observações feitas no decorrer da pesquisa, nos é possível afirmar que uma significativa parcela do público lojista desse centro de compras demonstra apetências e propensões para gerir seus negócios a partir de saber prático incorporado por meio de experiências prévias no comércio local, o que tende a aproximar suas práticas contemporâneas àquelas do comércio de feira de rua (de onde adveio parte significativa dos comerciantes e comerciários locais). Tal afirmação demarca o ponto de partida das tensões administrativas vivenciadas por portadores da herança social e íntima partilhada por gerações agrestinas: ter aprendido a fazer negócios de modo condizente com aquela prática comercial que associamos à ideia de tradição. É justamente tal herança coletiva e individual que se confronta com o novo ambiente de negócios que, além de simbolizar e materializar a modernização do agreste das confecções, demanda de tais agentes respostas aos enfrentamentos cotidianos relativos tanto à adaptação ou não às diretrizes e anseios da administração do empreendimento quanto ao modo de estar e atuar num centro comercial (algo diferente do tipo de negócio característico da região).

Administração do negócio atual

Um aspecto importante a ser observado aqui é o fato de parcela considerável dos proprietários dos negócios (53,5%) também possuir outros pontos de venda nas demais concentrações comerciais da região, conforme Tabela 2. Desse total, 22% estão localizados no próprio centro de compras pesquisado; 20,1% em outros centros de compras do agreste; 12% em feiras de rua; e 13,8% em lojas fixas situadas no entorno das feiras de rua. Ou seja, este estudo nos permite ter uma visão não somente dos proprietários e dos negócios do centro de compras estudado, mas também se projeta para o contexto agrestino mais amplo no qual as disposições administrativas herdadas do comércio de feira são expostas a outros ambientes de negócios imersos em um mesmo cenário cultural.

Tabela 2
Frequência dos pontos de venda em outras localidades

No caso do centro de compras que abrigou a pesquisa empírica, 20,2% dos entrevistados afirmaram ter pelo menos uma pessoa da família do proprietário trabalhando na loja, e 79,7% afirmaram não possuir nenhum familiar do proprietário contratado e trabalhando no negócio, tal como demonstra a Tabela 3. Diferente do que é mais recorrente nos negócios de confecções da região, por exemplo, um estudo do Sebrae (2013)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. (2013). Estudo econômico do arranjo produtivo local de confecções do Agreste pernambucano. Relatório Final. Recife, PE: Autor. estimou que aproximadamente 80% dos negócios de confecções localizados nos dez principais municípios são informais e contam em média com dois familiares atuantes, demonstrando uma marcante presença do trabalho familiar. Estes dados apontam para uma reconfiguração de pessoal diretamente envolvido no empreendimento e, consequentemente, para uma possível tendência a mudanças disposicionais nos modos de administrar seus negócios, uma vez que pode não se tratar mais apenas de algo familiar. Por outro lado, constatou-se que é recorrente entre o público lojista que familiares fiquem responsáveis por diferentes pontos de vendas, inclusive com marcas e segmentos diferentes. Ou seja, pode ser que esteja acontecendo uma reconfiguração no modo como os laços familiares e disposicionais se fazem presentes no negócio quando este toma lugar em um centro de compras como o pesquisado.

Tabela 3
Distribuição por número total de trabalhadores e número de trabalhadores da família

Entre os proprietários respondentes (42%), cerca de 11% afirmam possuir fonte de renda extra, enquanto aproximadamente 30% possuem apenas esse negócio. Neste conjunto, destaca-se que o modo como enxergam seus negócios ainda parece um tanto distante da lógica das práticas de gestão competitiva do mercado contemporâneo. Apenas 26,6% do total dos entrevistados responderam ter pretensão de expandir o negócio, enquanto 52,5% não têm essa intenção, e 20,9% não souberam responder, conforme Tabela 4. Indo além, notou-se por meio das observações de campo que parte disso se deve ao fato de muitos dos proprietários respondentes afirmarem que têm no negócio uma fonte de renda para sobrevivência, e não uma intenção de crescimento/grandes lucros, o que os aproxima do modo como feirantes responderam questão similar, ou seja, a maioria não se vê aumentando o negócio (Sá, 2011Sá, M. (2011). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios. Recife, PE: Editora UFPE., p. 77).

Tabela 4
Distribuição por público e pretensão de expansão do negócio

Os argumentos e dados articulados até aqui reforçam a atualidade da herança coletiva local do comércio de feira de rua nas práticas de muitos dos membros do público lojista objeto deste estudo. Mas há também outras fontes para as tendências disposicionais administrativas observadas. Do universo de entrevistados, 59,5% já realizaram alguma melhoria na sua loja, porém 52,5% não pretendem aumentar ou expandir o seu negócio. Ou seja, melhoram o layout das suas lojas, pois acreditam que podem “se dar bem” e prosperar realizando pequenos investimentos na aparência (interna ou externa), porém, não o suficiente para se aventurarem expandindo seus negócios ou abrindo outros. Essa informação, quando associada à anterior, permite especular a ocorrência de hibridismos administrativos, havendo uma incorporação da lógica da gestão competitiva de mercado em alguns aspectos e não em outros. Tal hipótese também se apoia nas observações de inspiração etnográfica. Por meio destas se pôde perceber que, por exemplo, um proprietário que carrega sua mercadoria num saco de estopa idêntico aos que circulam pelas feiras de rua da região pode, ao mesmo tempo, incrementar o layout de sua loja com tendências modernas de design de interiores.

Quanto ao porte dos negócios, 95,6% são pequenos e médios (o porte foi definido com base na quantidade de pessoas que trabalham na loja/box; consideraram-se pequenos os negócios com até 2 pessoas, médios os com 3 a 5 pessoas e grandes os com mais de 5 pessoas), dos quais 33,3% utilizam algum tipo de tecnologia para gerenciá-los, e 62,3% não utilizam nenhum tipo de tecnologia para tal, conforme Tabela 5. Observou-se em campo certa resistência ou falta de intimidade com a tecnologia voltada para o mercado, o que acaba dificultando sua utilização e reforçando o uso das práticas tradicionais de administrar negócios recorrentes na região (fazer contas de cabeça, não possuir livro caixa, não fazer banco de dados dos clientes etc.).

Tabela 5
Distribuição por número total de trabalhadores e utilização de tecnologia para gerenciamento do negócio

O controle financeiro do negócio é realizado por 66,7% dos entrevistados, entre os quais 70% o fazem de maneira manual, através de cadernetas ou livro caixa, enquanto 30% fazem por meio de algum programa básico de computador, tal como demonstra a Tabela 6. Apenas 7,5% afirmam não realizar nenhum controle financeiro, justificando nunca ter precisado se utilizar de algum método para chegar onde estão. Apesar das dificuldades e limitações com o uso da tecnologia para gerir seus negócios, 55% se utilizam de redes sociais para divulgar suas lojas.

Tabela 6
Distribuição por número total de trabalhadores e realização de controle financeiro

Em síntese, também aqui é possível seguir com a hipótese de que há tendências disposicionais divergentes no seio do público lojista - por um lado, a manutenção de práticas rudimentares de controle financeiro, por outro, uso de tecnologia da comunicação (rede social) para divulgação do negócio.

Além da presença ou não da intencionalidade declarada ou desejo de crescimento, do investimento ou não em melhorias na loja, de como é feito o controle financeiro ou o uso de tecnologias, o modo de lidar com as atividades administrativas de um negócio se consolida, em seu gestor, por meio de experiências significativas que foram incorporadas no devir de sua trajetória de vida e trabalho. Neste sentido, e também por meio da associação das observações com o instrumento teórico, nos foi possível elaborar duas principais tendências disposicionais que podem ser vistas como extremos de um continuum no qual também se dão hibridismos. Tais tendências viabilizam, em um dos lados, a reprodução de práticas recorrentes comuns ao comércio de feira de rua e, em outro, a assimilação (ou mesmo o esforço nesse sentido) de práticas relativas ao que pode ser denominado de gestão competitiva de mercado convencional.

Relacionamento com a administração do centro de compras

A grande maioria dos entrevistados que não acredita no crescimento do centro de compras estudado (45,3% do total) está entre os atuantes em negócios que possuem uma média de 6 a 12 anos de funcionamento, conforme Tabela 7. Apesar desse tempo trabalhando neste ambiente de negócios, grande parte do público lojista (25,8%) ainda não conseguiu lidar bem com a dinâmica administrativa adotada pela gestão do centro de compras, e 27,9% não conseguem enxergar possíveis melhorias para o local. Por não concordarem com as normas internas de funcionamento pré-determinadas pela administração do centro de compras (por exemplo, horário de abertura e fechamento ou quantidade limite de manequins expostos fora das lojas etc.), parte do público lojista resiste às possíveis melhorias por meio de uma atitude pré-reflexiva (não consciente) de preservar algumas disposições incorporadas que herdaram do comércio de feira de rua. Do público que está há mais tempo atuando no centro de compras, 27,7% acreditam em seu crescimento. Por já estarem relativamente estabelecidos há mais tempo nesse centro de compras (5 a 12 anos) e terem vivenciado momentos de “altos e baixos” nos seus negócios, parecem ter incorporado um “sentido prático” para o enfrentamento dos efeitos das oscilações nas dinâmicas políticas, institucionais e econômicas nacionais e internacionais. Em conversas informais, demonstraram certa segurança adquirida por meio da sobrevivência/superação de momentos negativos anteriores, capacidade de se nutrir dos aprendizados práticos, tornados corpo (Bourdieu, 1979/2007Bourdieu, P. (2007). A distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo, SP: Edusp. (Trabalho original publicado em 1979).), para lidar com as flutuações das suas atividades, nos seus períodos de alternância, crescimento, relativa estagnação e retração.

Tabela 7
Distribuição do tempo de existência da loja e crença no crescimento do centro de compras

Entre os pesquisados também encontramos um percentual significativo (60,8%) que afirma ter um relacionamento ruim ou péssimo com a administração do centro de compras, contra 18,3% que mencionaram ter um relacionamento ótimo ou bom, e 20,9% regular. Entre os motivos mais citados pelos que classificaram o relacionamento como ruim ou péssimo está a dificuldade de comunicação entre as partes (82,3%), envolvendo uma série de barreiras de ordem física e pessoal que, segundo eles, acabam prejudicando o bom funcionamento desse processo, por exemplo, o “excesso de burocracia” e a forma que a administração utiliza para comunicar as suas ações (geralmente por meio de comunicações internas). Isso acaba desagradando boa parte dos entrevistados, que alegam não ver espaço para diálogo com a administração. Outro problema que afeta esse relacionamento é o histórico de conflitos entre o público lojista e as diferentes gestões que passaram pelo centro de compras, gerando um bloqueio e uma resistência que ainda hoje impedem o melhor desenvolvimento possível dessa relação.

A descrença da maioria dos entrevistados em um futuro promissor para o centro de compras, a discordância com as práticas de gestão do empreendimento, as dificuldades de comunicação e o histórico de conflitos, enfim, tudo isso corrobora a percepção de que as tensões instauradas entre as partes (público pesquisado e administração do empreendimento) foram um dos aspectos mais marcantes observados naquele clima organizacional. Ao longo da aplicação dos questionários, muitos dos pesquisados se aproveitavam da situação para desabafar tais insatisfações com os pesquisadores. Após a conclusão desta etapa e durante o período dedicado às observações, já noutro estágio da construção da relação pesquisado-pesquisador, as reclamações seguiram e se tornaram mais enfáticas. Muitos creditavam as dificuldades pelas quais o empreendimento passava (fechamento de lojas, frequência de público externo menor que a desejada etc.) à sua gestão. Por mais que uma relação desta natureza tenda a ser permeada por conflitos, afinal, em diversos pontos os interesses das partes são divergentes, o êxito comercial do empreendimento está associado ao êxito em vendas dos negócios nele instalados. Entretanto, os tensionamentos administrativos não superados se tornaram entraves às negociações e a melhores sincronias entre os interesses das partes.

A lente teórica aqui utilizada nos permite analisar a dimensão íntima e coletiva (disposicional) da problemática. Tendo advindo de uma história coletiva local vinculada ao comércio de feira de rua e encontrando-se num centro de compras dirigido conforme os padrões de mercado contemporâneo, parte significativa do público pesquisado nos parece ter dificuldades de se sentir confortável no centro de compras, tal como parece ter se sentido sua geração anterior por entre bancos de feira de rua. Por outro lado, a administração do empreendimento, possuidora dos códigos, diplomas e termos por meio dos quais a dinâmica de mercado se expressa, não parece ter encontrado estratégias e formas mais contextualizadas de se comunicar com seu público lojista. Ao que nos parece, por trás de tal dificuldade estão as diferentes trajetórias de vida, socialização e trabalho que impõem entraves disposicionais a uma interação bem-sucedida entre as partes.

Tudo o que foi colocado anteriormente nos leva a indicar que há atitudes, propensões e tendências disposicionais administrativas distintas e até mesmo contraditórias entre os diversos perfis de proprietários de negócios e gerentes/responsáveis. Para que seja possível tanto melhor compreender as disposições mais significativas ao referido público quanto os maiores entraves para um melhor relacionamento deste com a administração do empreendimento, é preciso aprofundar o conhecimento tanto das principais disposições administrativas que governam suas ações quanto dos elementos do complexo disposicional do referido público que dificultam uma compreensão mais ampliada da lógica da gestão do centro de compras.

Considerações finais

Neste artigo, por meio do uso do instrumento teórico (elaborado em função do momento exploratório da pesquisa) para análise do material empírico produzido, foi possível avançar na caracterização do público inscrito em seu título, como pôde ser visto na seção anterior. Além disso, também nos foi possível identificar três tendências administrativas que parecem ser significativamente recorrentes entre proprietários e gerentes/responsáveis dos negócios situados no referido centro de compras. Tais tendências, sintetizadas uma a uma a seguir, permitem estabelecer similaridades e diferenças no conjunto dos entrevistados.

A primeira delas, “manutenção de práticas próximas à administração-feirante”, pode ser elaborada por meio da observância de propensões e atitudes associadas às práticas vinculadas ao comércio de feira de rua ou mesmo variações destas. O modo como os produtos são expostos no box ou na vitrine da loja, a informalidade na abordagem e no atendimento aos potenciais clientes, o hábito de alimentar-se no próprio estabelecimento comercial sem reservas, a dificuldade de aceitação e adequação às normas estabelecidas pela administração do centro de compras, a pouca utilização de tecnologia para a gestão do negócio etc. São apenas alguns dos indícios empíricos reunidos como ilustrativos desta tendência que se observa entre os indivíduos que estão próximos, no centro de compras, da reprodução e reconfiguração de práticas anteriormente associadas ao “habitus feirante”.

Contrária à anterior, a segunda tendência pode ser denominada de “adaptação ao novo ambiente de negócios”. Nesta, o proprietário ou gerente/responsável incorpora o cumprimento de diretrizes de funcionamento determinadas pela administração (por exemplo, horários de abertura e fechamento, dias de funcionamento), acredita ter necessidade de aprimorar o modo de atendimento ao cliente, faz uso de tecnologia para gestão do negócio, aproxima seu discurso e práticas gerenciais daqueles associados à administração convencional (podendo até usar termos como mercado, desempenho, fidelização, inovação, pesquisa de mercado, público-alvo, nicho, estratégia etc.). Os “filhos das feiras” que mais “modificaram a feira em si” constituiriam a referência comparativa aqui.

Entre as duas primeiras tendências antagônicas estaria uma terceira, denominada de “hibridismos administrativos”. Por meio desta seria possível conceber os modos de gestão que misturam práticas associadas às duas tendências anteriores.

A partir da elaboração de tais tendências é possível identificar que, da parte do público lojista, os principais focos disposicionais para a tensão existente entre este e a administração do empreendimento encontram-se entre os indivíduos mais próximos da primeira e terceira tendência. Ou seja, aqueles que mais adaptam seu modo de agir ao novo ambiente de negócios tendem a oferecer menos resistência e melhor introjetar a dinâmica de gestão vigente no centro de compras.

Para a organização estudada, aconselha-se implementar estratégias mais efetivas para melhor se relacionar com seu público lojista (que em sua maior parte externa insatisfações acerca da gestão do empreendimento), afinal, os bloqueios e a resistência observados no referido público inviabilizam uma evolução razoável da relação. Nessa linha, é importante melhorar a comunicação entre a gestão do centro de compras e o público lojista. Sugere-se utilizar ferramentas de comunicação de via dupla, na qual o lojista também possa compartilhar sua opinião com a gestão do empreendimento, como a promoção de reuniões periódicas e a criação de situações de diálogo entre as partes em busca do melhor entendimento possível.

Ao final, para seguir adiante na investigação, projeta-se a necessidade de avançar com o estudo em dois sentidos: explicitar detalhadamente similaridades e diferenças em termos disposicionais e identificar os principais focos (também disposicionais) no referido público para a tensão existente entre este e a administração do empreendimento. Também se recomenda aprofundar o estudo realizando pesquisas com a percepção dos gestores e funcionários do centro de compras, buscando, assim, uma noção do todo. Este estudo também pode ser tomado como referência para a realização de outros nos demais centros comerciais da região, visando entender seu público lojista e estabelecer comparações.

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  • 1
    Feira de fama internacional e reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2017
  • Aceito
    30 Jan 2019
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