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Os sentidos de público e de tecnologia para a Administração Pública e Gestão Social

What “public” and “technology” means for public administration and social management

Resumo

Pensar o futuro da teorização sobre gestão social e gestão pública requer um esforço coletivo, criativo e amplo. Duas vertentes orientam nossa reflexão sobre esse futuro: os sentidos de público e de tecnologia. Que sentidos o termo “público” emana nas pesquisas sobre gestão pública? Como esses sentidos produzem efeitos inesperados e indesejáveis? Que sentidos o termo “tecnologia” pode alcançar nas pesquisas sobre gestão social? Como produzir pesquisas que teorizem sobre esses sentidos, produzindo conceitos significativos para auxiliar gestores públicos e sociais em sua prática cotidiana?

Palavras-chave:
Sentidos de Público; Sentidos de Tecnologia; Administração Pública; Gestão Social

Abstract

Thinking about the theoretical future of social and public management requires a collective, creative and broad effort. Two aspects guide our reflection on this future: the meanings of public and of technology. What meanings does “public” exude in research on public administration? How do these senses produce unexpected and undesirable effects? What meanings can technology have in social management research? How to produce research that theorizes about such meanings, producing powerful concepts to assist public and social managers in their daily practice?

Keywords:
Meanings of Public; Meanings of Technology; Public Administration; Social Management

Pensar o futuro da teorização sobre gestão social e gestão pública requer um esforço coletivo, criativo e amplo. Duas vertentes orientam nossa reflexão sobre esse futuro: os sentidos do público e da tecnologia. Que sentidos o termo “público” emana nas pesquisas sobre gestão pública? Como esses sentidos produzem efeitos inesperados e indesejáveis? Que sentidos o termo “tecnologia” pode alcançar nas pesquisas sobre gestão social? Como produzir pesquisas que teorizem sobre esses sentidos, produzindo conceitos significativos para auxiliar gestores públicos e sociais em sua prática cotidiana?

A respeito dos sentidos do público, ancoramos nossas reflexões na ideia de público como oposto ao privado e ao secreto (Bobbio, 1986Bobbio, N. (1986). O futuro da democracia: Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.). O primeiro sentido de público recobra o que Bobbio classificou como o governo do poder público no público, o tornar não secreto coisas da vida pública. Trata-se de voltar as lentes de investigação para o esfacelamento das esferas participativas, democráticas, como é característico de espaços participativos de deliberação, bem como em órgãos de controle com representações. Os últimos anos têm nos mostrado que o enfrentamento às instâncias de controle social - da sociedade sobre o Estado - tem crescido, não apenas no Brasil, mas também em países cujas democracias foram postas contra a parede, como Hungria, Turquia, Polônia, Filipinas, Nicarágua, Venezuela, Panamá e outros, regredindo sensivelmente em seus aspectos democráticos, quiçá flertando com o que Mechkova, Lührmann e Lindberg (2017Mechkova, V., Lührmann, A., & Lindberg, S. I. (2017). How much democratic backsliding? Journal of Democracy, 28(4), 162-169. Recuperado de https://bit.ly/2WEb5f3
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) classificam como autocracias eleitorais.

Não obstante o caráter crucial do controle sobre a administração pública enquanto dimensão de uma democracia (Arantes et al., 2010Arantes, R. B., Loureiro, M. R., Couto, C., & Teixeira, M. A. C. (2010). Controle democráticos sobre a administração pública no Brasil: Legislativo, tribunais de contas, Judiciário e Ministério Público. In M. R. Loureiro, F. L. Abrucio, & R. S. Pacheco, Burocracia e política no Brasil: Desafios para a ordem democrática no século XXI (pp. 109-147). São Paulo, SP: FGV Editora.), medidas de enfraquecimento desses órgãos e dos espaços de participação cresceram exponencialmente. Dois aspectos cruciais nesse fenômeno merecem destaque. O primeiro deles diz respeito ao enfrentamento desses espaços como algo que pode tornar a gestão pública mais eficiente, desfazendo-se de estruturas que podem atrapalhar o bom funcionamento de engrenagens. Ora, não seriam essas as estruturas que garantem decisões minimamente democráticas e que desvelam interesses e ações escusos, emantados de uma suposta eficiência? O sentido da eficiência não poderia também estar maquiando a retirada de uma parcela da população dos processos de fiscalização e deliberação da e na ação pública, principalmente no que tange à representação de grupos historicamente excluídos? Um dos sentidos da eficiência não estaria eclipsando a função social do serviço público?

Um caso emblemático é a manutenção do Sistema Único de Saúde (SUS) que, apesar das históricas críticas, garante a universalidade do acesso em um país de extrema desigualdade. Aqui, a ideia de eficiência omite não apenas uma básica relação de inputs e outputs, como também o estrangulamento orçamentário ao qual o SUS tem sido paulatinamente exposto e ao qual é amplamente sensível (Soares, 2000Soares, L. T. (2000). As atuais políticas de saúde: Os riscos do desmonte neoliberal. Revista Brasileira de Enfermagem, 53(n. esp.), 17-24. doi:10.1590/S0034-71672000000700003
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). Isso para não tocar no que representa a ampla rede de apoio à saúde, eminentemente pública, que inclui diversas fundações, centros de pesquisa, hospitais, universidades e tantas outras organizações. Essa avaliação das organizações públicas só seria possível porque a ideia de eficiência recai sobre as organizações privadas. Então, deparamo-nos com um segundo sentido de público: o público como oposto ao privado. Isso implica não apenas assumir algo como pertencente a todos, mas também entender que a coisa pública possui lógicas distintas da coisa privada, sem segmentar potenciais tomadores de serviços ou mesmo tipos de prestação de serviços que possam sobrepor o ponto de equilíbrio.

No contexto da saúde, os tempos atuais dão mostras que a iniciativa privada não está disposta a enfrentar grandes questões, como a pandemia do Covid-2019. O mesmo poderia ser pensado a respeito da devolução de aeroportos concedidos à iniciativa privada, por não serem lucrativos - Viracopos e o aeroporto de Natal, por exemplo. Com efeito, devemos refletir sobre os aspectos críticos da substituição dos serviços públicos pela iniciativa privada em áreas essenciais. Outro exemplo, o da educação, revela que a eficiência do sistema de vouchers desmorona quando consideramos relações triviais de oferta e procura. O deslocamento dos estudantes para a rede privada impactaria o preço de mensalidades quando do crescimento da demanda, a ser custeada pelo Estado.

Em suma, as discussões que buscam deslocar a ideia de ineficiência de diversos serviços públicos são problemáticas, embora, evidentemente, elas existam e devam ser sanadas para um melhor funcionamento dos serviços direcionados à sociedade. Todavia, os excessos acontecem, em muitos casos, quando ignoramos a natureza dos processos e suas complexidades, que por tenderem à universalização, precisam heuristicamente incorporar diversas forças assimétricas. Afinal, o público, diferentemente do privado, deve assumir necessariamente o caráter social dessas organizações, que as tornam legítimas ao não submeterem os cidadãos à exigência da viabilidade financeira para efetivar a prestação de serviços essenciais.

Neste contexto, algumas questões podem instigar investigações e teorizações futuras. Quanto ao sentido de público oposto ao que é secreto, ou do governo do poder público no público, sobretudo os modos de participação e controle, como podemos melhor teorizar sobre os impactos do esvaziamento das esferas de participação e controle no e do Estado em relação à abrangência das políticas públicas? De maneira mais aguda, como teorizar sobre os mecanismos legais que abarcam medidas autoritárias em países de democracias cada vez mais frágeis? Como teorizar sobre o impacto do autoritarismo e da redução dos órgãos de controle sobre os indicadores de corrupção nesses países? Sobre o sentido do público oposto ao privado, quais e como são operados os novos condicionantes de proteção aos interesses de classe mediados pelo Estado? Que teorias permitiriam pensar as zonas de equilíbrio entre a função social de diversas organizações públicas e suas medidas de eficiência? Como teorizar sobre a função ideológica da eficiência nos discursos sobre as organizações públicas?

No campo da gestão social, as tecnologias da informação e comunicação (TICs) revelam um sentido de ampliação do espectro de possibilidades de pesquisa e prática (Cançado, Pereira, & Tenório, 2015Cançado, A. C., Pereira, J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: Epistemologia de um paradigma (2a ed.). Curitiba, PR: CRV.; Cançado, Rigo, & Pinheiro, 2016Cançado, A. C., Rigo, A. S., & Pinheiro, L. S. (2016). Por una agenda de investigación para la gestión social: Control social, paradigma, escala y cuadro de análisis. Práxis Sociológica, (21), 65-94. Recuperado de https://bit.ly/2QFViZB
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). Algumas experiências concretas já estão à disposição de forma gratuita para celulares, como o SuperSUS (desenvolvido pela fundação Oswaldo Cruz) e o Mudamos+ (desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). O primeiro ensina direitos e deveres da população em relação ao SUS, por meio de jogo. O segundo é um aplicativo que coleta assinaturas eletrônicas em projetos de lei de iniciativa popular, mudando a relação entre eleitores e seus representantes. Outro exemplo, já não tão recente, aconteceu na Islândia durante a crise financeira de 2008-2009. A população decidiu, à revelia do poder público, elaborar uma nova constituição. Foram escolhidas 25 pessoas (não políticos) que passaram a interagir com o restante da população por WhatsApp, Facebook e Instagram. As sugestões eram compiladas e apresentadas semanalmente. O processo aconteceu em três meses (Marinho, Cançado, & Iwamoto, 2019Marinho, F. A., Cançado, A. C., & Iwamoto, H. M. (2019). Icelandic crowd-sourced constitution and social management: Practice and theory in citizens democratic participation. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 15(2), 129-144. Recuperado de https://bit.ly/3agqOFd
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). A constituição não foi aprovada pelo Judiciário, mas o importante foi a experiência.

No seu conjunto, as três experiências demonstram que a pesquisa sobre a gestão social, aliada às TICs, revela um promissor caminho para a teorização sobre modalidades e processos de participação mais efetiva da população. O controle social, entendido como o controle do Estado pela sociedade, pode ampliar seus horizontes atingindo um maior número de cidadãos por meio das TICs (Halachmi & Holzer, 2010Halachmi, A., & Holzer, M. (2010). Citizen participation and performance measurement: Operationalizing democracy through better accountability. Public Administration Quarterly, 34(3), 378-399. Recuperado de https://bit.ly/2Jb5fd9
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; Kakabadse, Kakabadse, & Kouzmin, 2003Kakabadse, A., Kakabadse, N. K., & Kouzmin, A. (2003). Reinventing the democratic governance project through information technology? A growing agenda for debate. Public Administration Review, 63(1), 44-60. doi:10.1111/1540-6210.00263
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). Essas possibilidades, porém, podem passar pelo desafio relativo ao próprio acesso à internet, seja pela falta de cobertura (principalmente em regiões com baixa densidade demográfica), seja pelo custo do acesso ao serviço. No campo da gestão social, as teorizações futuras passam, certamente, pela revisão da relação entre organizações da sociedade civil, o próprio cidadão, a iniciativa privada e o Estado. As TICs, apesar das possibilidades e desafios, podem suscitar produções teóricas que ressignifiquem essa relação, trazendo mais transparência e efetividade.

Referências

  • Arantes, R. B., Loureiro, M. R., Couto, C., & Teixeira, M. A. C. (2010). Controle democráticos sobre a administração pública no Brasil: Legislativo, tribunais de contas, Judiciário e Ministério Público. In M. R. Loureiro, F. L. Abrucio, & R. S. Pacheco, Burocracia e política no Brasil: Desafios para a ordem democrática no século XXI (pp. 109-147). São Paulo, SP: FGV Editora.
  • Bobbio, N. (1986). O futuro da democracia: Uma defesa das regras do jogo Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
  • Cançado, A. C., Pereira, J. R., & Tenório, F. G. (2015). Gestão social: Epistemologia de um paradigma (2a ed.). Curitiba, PR: CRV.
  • Cançado, A. C., Rigo, A. S., & Pinheiro, L. S. (2016). Por una agenda de investigación para la gestión social: Control social, paradigma, escala y cuadro de análisis. Práxis Sociológica, (21), 65-94. Recuperado de https://bit.ly/2QFViZB
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  • Halachmi, A., & Holzer, M. (2010). Citizen participation and performance measurement: Operationalizing democracy through better accountability. Public Administration Quarterly, 34(3), 378-399. Recuperado de https://bit.ly/2Jb5fd9
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  • Kakabadse, A., Kakabadse, N. K., & Kouzmin, A. (2003). Reinventing the democratic governance project through information technology? A growing agenda for debate. Public Administration Review, 63(1), 44-60. doi:10.1111/1540-6210.00263
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  • Marinho, F. A., Cançado, A. C., & Iwamoto, H. M. (2019). Icelandic crowd-sourced constitution and social management: Practice and theory in citizens democratic participation. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 15(2), 129-144. Recuperado de https://bit.ly/3agqOFd
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  • Mechkova, V., Lührmann, A., & Lindberg, S. I. (2017). How much democratic backsliding? Journal of Democracy, 28(4), 162-169. Recuperado de https://bit.ly/2WEb5f3
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  • Soares, L. T. (2000). As atuais políticas de saúde: Os riscos do desmonte neoliberal. Revista Brasileira de Enfermagem, 53(n. esp.), 17-24. doi:10.1590/S0034-71672000000700003
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020
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