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Participação cidadã: o gap da governança digital nas autarquias e fundações da educação no Brasil

Citizen participation: digital governance’s gap in Brazilian public authorities and educational foundations

Resumo

O estudo visa preencher a lacuna de pesquisa apontada por Cunha e Miranda (2013Cunha, M. A. V. C. C., & Miranda, P. R. M. (2013). O uso de TIC pelos governos: Uma proposta de agenda de pesquisa a partir da produção acadêmica e da prática nacional. Organizações & Sociedade, 20(66), 543-566. doi:10.1590/S1984-92302013000300010
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) ao explorar a implicação social da aderência a boas práticas de governança digital em autarquias e fundações do setor de educação. Assim, o estudo mensura e descreve o nível de governança digital (GD) em 108 órgãos de atuação nacional usando estrutura fatorial previamente validada. Ao mensurar o nível de GD dos órgãos, geram-se escores organizacionais posicionados em um ranking e, por meio de escalonamento estatístico unidimensional, agrupam-se as organizações em quatro níveis, com base em seu desempenho de GD. Sua distribuição é descrita em níveis A, B, C e D, no território nacional. A região Sudeste concentra mais organizações, mas o Centro-Oeste concentra, proporcionalmente, mais organizações de nível A (maior escore de GD). Resultados revelam que o maior gap para atingir a governança digital no Brasil está na adoção de mecanismos de participação social nos websites, a exemplo de meios de feedback e de consulta popular. Evidencia-se que esta é uma lacuna de natureza político-gerencial, associada à implementação da e-democracia.

Palavras-chave:
Governança Digital; Índice de Governança; Participação Cidadã; Tecnologias de Informação e Comunicação em Serviços Públicos

Abstract

This study helps to fulfil a research gap pointed out by Cunha and Miranda (2013Cunha, M. A. V. C. C., & Miranda, P. R. M. (2013). O uso de TIC pelos governos: Uma proposta de agenda de pesquisa a partir da produção acadêmica e da prática nacional. Organizações & Sociedade, 20(66), 543-566. doi:10.1590/S1984-92302013000300010
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) when exploring the social consequences created by the adoption of Digital Governance best practices within Brazilian public authorities and educational foundations. Therefore, the study both measures and describes the level of Digital Governance (DG) in 108 entities that act throughout the country, using a factorial structure that was previously validated. By measuring the entities’ DG levels, we have generated a group of organizational scores listed in a ranking and, using this unidimensional statistic scaling, we arranged the entities based on their DG performance levels. We describe a four-level distribution (A, B, C and D) throughout the Brazilian territory. The Brazilian South-Eastern region concentrates the highest number of entities. However, the Central region has the highest proportion of level “A” entities (with the highest DG levels). The results point out that the largest gap on achieving Digital Governance in Brazil lies in the adoption of mechanisms for social participation on the websites, such as feedback and popular consultations tools. Evidence shows that this is a political-managerial gap, associated with the implementation of e-democracy.

Keywords:
Digital Governance; Governance Index; Citizen Participation; Information and Communication Technologies in Public Services

Introdução

Desde a década de 1980, a literatura no campo da administração pública tem recorrido à adoção de boas práticas de governança (United Nations, 2007United Nations. (2007). Public governance indicators: A literature review. New York: Autor.) como estratégia para promover a melhoria dos serviços públicos, a macrometa estipulada pelas reformas gerenciais associadas ao new public management (Ruediger, 2002Ruediger, M. A. (2002). Governo eletrônico e democracia: Uma análise preliminar dos impactos e potencialidades na gestão pública. Organizações & Sociedade , 9(25), 29-43. doi:10.1590/S1984-92302002000300004
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; Ruhanen, Scott, Ritchie, & Tkaczynski, 2010Ruhanen, L., Scott, N., Ritchie, B., & Tkaczynski, A. (2010). Governance: A review and synthesis of the literature. Tourism Review, 65(4), 4-16. doi:10.1108/16605371011093836
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) e, no Brasil, à nova administração pública (NAP). Desde então, a literatura nacional tem se voltado ao estudo de múltiplas manifestações da governança, como sua expressão sob a forma de accountability e transparência (Filgueiras, 2018Filgueiras, F. (2018). Indo além do gerencial: A agenda da governança democrática e a mudança silenciada no Brasil. Revista de Administração Pública, 52(1), 71-88. doi:10.1590/0034-7612161430
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; Mota, Diniz, & Santos, 2017Mota, B. F., Diniz, J. A., & Santos, L. C. (2017). A estrutura orçamentária como determinante do nível de transparência fiscal. Contabilidade, Gestão e Governança, 20(2), 293-313. doi:10.21714/1984-3925_2017v20n2a7
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), as implicações de seus efeitos em rede (Bitante, Donaire, Prearo, & Gaspar, 2018Bitante, A. P., Donaire, D., Prearo, L. C., & Gaspar, M. A. (2018). Análise dos fatores componentes da governança em arranjos produtivos locais. Revista Organizações em Contexto, 14(27), 235-270. doi:10.15603/1982-8756/roc.v14n27p235-270
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; Farina, Bitante, Britto, & Pinheiro, 2017Farina, M. C., Bitante, A. P., Britto, L. C., & Pinheiro, L. R. D. (2017). Análise de redes sociais no arranjo produtivo local dos ramos têxtil e de confecções da região da grande São Paulo a partir de uma visão de governança. Gestão & Regionalidade, 33(98). doi:10.13037/gr.vol33n98.3791
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; Pinheiro, Pinho, & Bruni, 2018Pinheiro, F. M. G., Pinho, J. A. G., & Bruni, A. L. (2018). Accountability em parcerias público-privadas: Espaços para avanços em unidades hospitalares sob gestão direta e em regime de parceria. Organizações & Sociedade , 25(84), 155-174. doi:10.1590/1984-9240848
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; Sauerbronn, 2017Sauerbronn, F. F. (2017). Governança pública em saúde pós-reforma gerencial no Brasil: Reconciliando perspectivas para uma análise multinível. Administração Pública e Gestão Social , 9(3), 148-158.; Wegner, Durayski, & Verschoore Filho, 2017Wegner, D., Durayski, J., & Verschoore Filho, J. R. (2017). Governança e eficácia de redes interorganizacionais: Comparação entre iniciativas brasileiras de redes de cooperação. Desenvolvimento em Questão, 15(41), 275-302. doi:10.21527/2237-6453.2017.41.275-302
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) e sua relação com as tecnologias de informação e xomunicação (TICs), sob a forma de governança de TI (Heindrickson & Santos Júnior, 2014Heindrickson, G., & Santos Jr., C. D. (2014). Information technology governance in public organizations: How perceived effectiveness relates to three classical mechanisms. Journal of Information Systems and Technology Management, 11(2), 297-326. doi:10.4301/S1807-17752014000200005
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; Pereira, Macadar, & Daniel, 2013Pereira, G. V., Macadar, M. A., & Daniel, V. M. (2013). Governança de TI na prestação de um e-serviço público. Revista Eletrônica de Sistemas de Informação, 12(2), 1-24.; Santos & Santos Júnior, 2017Santos, L. C., & Santos Jr., C. D. (2017). A study on the impact of non-operational mechanisms on the effectiveness of public information technology governance. Revista de Administração , 52(3), 256-267. doi:10.1016/j.rausp.2017.05.005
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), com destaque para a interface entre governo eletrônico e governança (Braga & Gomes, 2018Braga, L. V., & Gomes, R. C. (2018). Participação eletrônica, efetividade governamental e accountability. Revista do Serviço Público, 69(1), 111-144. doi:10.21874/rsp.v69i1.1017
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). Em 2013, Cunha e Miranda (2013Cunha, M. A. V. C. C., & Miranda, P. R. M. (2013). O uso de TIC pelos governos: Uma proposta de agenda de pesquisa a partir da produção acadêmica e da prática nacional. Organizações & Sociedade, 20(66), 543-566. doi:10.1590/S1984-92302013000300010
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) propuseram uma agenda de pesquisa para o uso das TICs pelos governos, lançando o desafio de pesquisar seus “subtemas”, como “e-administração pública, e-serviços públicos e e-democracia” em sua relação com a sociedade. Este estudo visa contribuir para a lacuna de pesquisa apontada pelos autores ao explorar como organizações públicas têm incorporado TICs à sua prestação de serviços eletrônicos, aqui entendidos como representativos de boas práticas de governança digital.

A governança digital se refere ao uso do meio digital para a execução de funções de governo e participação da sociedade, buscando o bem comum e o fortalecimento da democracia digital. É um “processo que visa à manifestação política e à participação da sociedade civil, junto ao governo, por meios eletrônicos, na formulação, acompanhamento da implementação e avaliação das políticas públicas, com vistas ao desenvolvimento da cidadania e da democracia” (Guimarães & Medeiros, 2005Guimarães, T. A., & Medeiros, P. H. R. (2005). A relação entre governo eletrônico e governança eletrônica no governo federal brasileiro. Cadernos EBAPE.BR, 3(4), 1-18. doi:10.1590/S1679-39512005000400004
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, p. 1). Assim, no contexto da discussão sobre como promover boas práticas de governança frente às mudanças sociais pós-redemocratização, os governos têm mudado sua gestão com o propósito de se aproximar mais da sociedade, o que tem significado utilizar as boas práticas da governança digital para promover a participação cidadã nas decisões do governo. Mas, com efeito, nossas estratégias de governança digital têm promovido a participação cidadã? Para investigar essa problemática, este estudo desenvolve uma análise de casos múltiplos para mapear o nível de governança digital em uma amostra de websites do governo federal.

Com o avanço das TICs, o uso dos websites pelos órgãos da administração pública brasileira vem aumentando, e os portais se tornaram, em alguns casos, as principais ferramentas de interação entre governo e sociedade, especialmente para órgãos e autarquias geograficamente distantes do cidadão-usuário. Assim, entende-se que analisar a governança promovida por esses portais (aqui entendida como governança digital) representa uma proxy para a análise da própria governança do Estado brasileiro. Neste estudo, para mensurar o nível de governança digital em websites do Estado, elege-se um recorte que agrega as autarquias e fundações autárquicas vinculadas ao Ministério da Educação (MEC), que representa um conjunto de órgãos de atuação nacional. Elege-se, portanto, a seguinte pergunta de pesquisa: qual o nível de governança digital nos websites das autarquias e fundações autárquicas vinculadas ao Ministério da Educação?

Para responder a esse questionamento, a presente pesquisa mapeou o estado da arte sobre medidas associadas à governança digital. Estudos prévios (Mello & Slomski, 2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.) reconhecem que o construto da governança digital é representado por cinco fatores: conteúdo, serviço, participação cidadã, privacidade e segurança, e usabilidade e acessibilidade. Assim, esta pesquisa parte da estrutura teórico-metodológica conhecida e a adapta, aplicando-a à população de autarquias e fundações autárquicas que fazem parte do recorte estabelecido. Assim, testou-se o nível de governança digital de 108 websites para descrever, de forma generalizada, o nível de atendimento dessas organizações às boas práticas da governança digital, fator por fator. A partir dos resultados, propõe-se o escalonamento das organizações em quatro grupos, conforme nível de atendimento às boas práticas da governança digital.

Entende-se que o presente estudo apresenta duas contribuições centrais: (1) uma contribuição de natureza metodológica, já que adapta uma escala previamente desenvolvida e a aplica em uma nova perspectiva setorial; e (2) uma potencial contribuição de natureza gerencial aos agentes públicos, que poderão mensurar diretamente o nível de atendimento de suas organizações às boas práticas de governança digital e interpretá-lo sob uma perspectiva comparada, junto aos quatro grupos que compõem o escalonamento desenvolvido neste estudo.

Governança digital

A Política de Governança Digital (Decreto nº 8.638/2016), explicada e desenvolvida pela Estratégia de Governança Digital (EGD) (Brasil, 2016Brasil. (2016). Estratégia de Governança Digital. Brasília, DF: Ministério do Planejamento.), que tem validade até 2019, aplica-se aos órgãos e às entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, promovendo o uso de tecnologia na prestação de serviços públicos digitais, o acesso a informações e a ampliação da participação social na construção de políticas públicas. Assim, as TICs têm mudado a forma de comunicação da gestão pública, com adoção do governo eletrônico (“e-gov”, representado pelos websites) para prestar serviços de modo a atender, mais rápida e eficientemente, às demandas da sociedade. Em termos constitutivos, entende-se que a governança digital representa o estágio evolutivo da disponibilização de serviços públicos em meio digital (o chamado “governo eletrônico”). Assim, a própria EGD brasileira promove a governança digital, estabelecendo como metas a expansão do acesso a informações, a melhoria de serviços públicos e o aumento da participação social (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, 2018Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. (2018). TIC Governo Eletrônico. Recuperado de https://bit.ly/3cOvyDu
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). Assim, demarca-se que a participação social se configura como elemento definidor para a caracterização da governança digital.

Embora aborde a importância de prover formas de mensurar a governança digital, o documento da EGD não apresenta um indicador que permita à própria organização mensurar seu nível de atendimento às boas práticas da governança digital. Evidencia-se, assim, a lacuna a que se dedica a presente pesquisa. Assim, para o propósito deste estudo, recorreu-se à literatura sobre o tema para identificar uma estrutura teórica prévia que permitisse mensurar o nível de governança digital sob uma perspectiva organizacional.

O construto da governança digital surge no contexto das facilidades das TICs aplicadas às funções de governo, construindo uma nova relação entre governo e sociedade. Esta nova relação, por sua vez, é entendida como governança digital (Mello, 2009Mello, G. R. (2009). Estudo das práticas de governança eletrônica: Instrumento de controladoria para a tomada de decisões na gestão dos estados brasileiros (Tese de doutorado). Recuperado de https://bit.ly/2xiGTLR
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). Trata-se de um novo modelo de gestão em direção ao qual se orienta a administração pública brasileira, que se aproxima mais do modelo gerencial com características do modelo societal de administração pública.

A governança digital tem sido explorada, em suas dimensões teóricas, sob duas macrovisões. Há autores, como Freitas e Luft (2014Freitas, R. K. V., & Luft, M. C. M. S. (2014). Índice de governança eletrônica nos municípios: Uma análise do estado de Sergipe. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 13(1), 56-73. doi:10.21529/RECADM.2014008
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), Silva, Celso e Coelho (2012Silva, S. J., Celso, R. P., & Coelho, F. S. (2012). Análise comparativa das políticas de governança eletrônica nos BRIC (s). Revista Debates, 6(2), 37. doi:10.22456/1982-5269.26552
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), Alves e Dufloth (2008Alves, M. V. C., & Dufloth, S. C. (2008). Portais eletrônicos de compras da administração pública: Contribuição para avaliação da governança eletrônica no Brasil. Revista Gestão & Tecnologia, 8(1), 1-19.) e Calista e Melitski (2007Calista, D. J., & Melitski, J. (2007). E-government and e-governance: Converging constructs of public sector information and communications technologies. Public Administration Quarterly, 31(1/2), 87-120.), que discutem a mensuração da governança eletrônica ou a aplicação de índices de governança eletrônica ou suas adaptações, enquanto Cunha, Coelho e Pozzebon (2014Cunha, M. A. V. C. C., Coelho, T. R., & Pozzebon, M. (2014). Internet y participación: El caso del presupuesto participativo digital de Belo Horizonte. Revista de Administração de Empresas, 54(3), 296-308. doi:10.1590/S0034-759020140305
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), Zambrano (2008Zambrano, R. (2008). E-governance and development: Service delivery to empower the poor. International Journal of Electronic Government Research, 4(2), 1-11. doi:10.4018/978-1-60566-918-2.ch007), Albert (2009Albert, I. O. (2009). Whose e-governance?: A critique of on-line citizen engagement in Africa. International Journal of eBusiness and eGovernment Studies, 1(1), 27-40.), Luna, Costa, Moura, Novaes e Nascimento (2010Luna, A. J. H. O., Costa, C. P., Moura, H. P., Novaes, M. A., & Nascimento, C. A. D. C. (2010). Agile governance in information and communication technologies: Shifting paradigms. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 311-334.), Belwal e Al-Zoubi (2008Belwal, R., & Al-Zoubi, K. (2008). Public centric e-governance in Jordan. Journal of Information, Communication and Ethics in Society, 6(4), 317-333. doi:10.1108/14779960810921123
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), e Ştefan (2007Ştefan, G. I. (2007). The challenges of e-governance implementation. Cercetǎri practice și teoretice în Managementul Urban, 2(4), 20-31.) e Saxena (2005Saxena, K. B. C. (2005). Towards excellence in e-governance. International Journal of Public Sector Management, 18(6), 498-513. doi:10.1108/09513550510616733
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) focam na identificação de dificuldades e facilidades na implementação da governança eletrônica.

Segundo Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.),

a governança eletrônica é a utilização pelo setor público de tecnologias de informação e comunicação inovadoras, como a internet, para ofertar aos cidadãos serviços de qualidade, informação confiável e mais conhecimento, de modo a facilitar o acesso aos processos de governo e encorajar a participação do cidadão. (p. 379)

Assim, pode-se assumir que o governo eletrônico é uma ferramenta indissociável da própria concepção de governança digital, razão pela qual se elegem os websites dos casos como unidades de pesquisa para mensurar a governança digital.

No Brasil, ainda são escassas as pesquisas que de fato mensuram a governança digital em organizações. Entre os treze artigos resultantes de busca na base Scientific Periodicals Electronic Library (SPELL), cinco trabalhos apresentam, objetivamente, medidas para governança digital, dentre os quais se destacam o de Souza, Araújo, Araújo e Silva (2014Souza, F. J. V., Araújo, F. R., Araújo, A. O., & Silva, M. C. (2014). Análise das práticas de governança eletrônica dos municípios mais populosos do Brasil: Um estudo baseado no modelo de Mello (2009). Revista de Administração , Contabilidade e Sustentabilidade, 4(3).), que analisa práticas de governança eletrônica; o de Beuren, Moura e Kloeppel (2013Beuren, I. M., Moura, G. D., & Kloeppel, N. R. (2013). Práticas de governança eletrônica e eficiência na utilização das receitas: Uma análise nos estados brasileiros. Revista de Administração Pública-RAP, 47(2), 421-441.), que utiliza o modelo de Mello (2009Mello, G. R. (2009). Estudo das práticas de governança eletrônica: Instrumento de controladoria para a tomada de decisões na gestão dos estados brasileiros (Tese de doutorado). Recuperado de https://bit.ly/2xiGTLR
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); e o de Freitas e Luft (2014Freitas, R. K. V., & Luft, M. C. M. S. (2014). Índice de governança eletrônica nos municípios: Uma análise do estado de Sergipe. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 13(1), 56-73. doi:10.21529/RECADM.2014008
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), que se baseia no modelo aprimorado proposto por Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.) a partir do trabalho anterior do primeiro autor (Mello, 2009Mello, G. R. (2009). Estudo das práticas de governança eletrônica: Instrumento de controladoria para a tomada de decisões na gestão dos estados brasileiros (Tese de doutorado). Recuperado de https://bit.ly/2xiGTLR
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). Assim, entende-se que a literatura brasileira tem adotado como marco teórico preponderante para medidas de governança digital o modelo de Mello e Slomski, tendência seguida no presente estudo.

O modelo de Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.) considera a governança eletrônica como um construto estruturado em duas dimensões: governo eletrônico e democracia eletrônica. “Governo eletrônico” se refere à administração eletrônica e aos serviços eletrônicos, enquanto a “democracia eletrônica” está relacionada à participação cidadã. Essas duas dimensões são representadas por cinco fatores de práticas de governança digital: conteúdo, serviços, privacidade e segurança, usabilidade e acessibilidade, e participação cidadã. As duas primeiras estão relacionadas apenas à dimensão do governo digital, e a última apenas à dimensão da democracia digital. Já privacidade e segurança e usabilidade e acessibilidade estão relacionadas a ambas as dimensões. As relações entre o construto e seus fatores estão representadas na Figura 1.

Figura 1
Modelo explicativo da governança digital

As relações da Figura 1 foram estudadas anteriormente por Holzer e Kim (2006Holzer, M., & Kim, S. T. (2006). Digital governance in municipalities worldwide (2005): A longitudinal assessment of municipal websites throughout the world. New Jersey: National Center for Public Productivity.) e adaptadas por Mello (2009Mello, G. R. (2009). Estudo das práticas de governança eletrônica: Instrumento de controladoria para a tomada de decisões na gestão dos estados brasileiros (Tese de doutorado). Recuperado de https://bit.ly/2xiGTLR
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) e, posteriormente, por Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.). Seguindo a mesma linha, a EGD também corrobora as mesmas relações entre o construto e seus fatores. Nesta pesquisa, preservou-se a estrutura teórica do modelo com os cinco fatores e, assim, as práticas representativas de cada fator associadas à governança digital foram transpostas para a realidade da medida de governança digital em autarquias e fundações autárquicas do Poder Executivo federal vinculadas ao MEC.

O fator “conteúdo” apresenta práticas relacionadas à disponibilização de temas, produções institucionais e informações públicas, sobretudo aquelas ligadas à transparência. O fator “serviços” refere-se à disponibilização de contatos institucionais, inclusive com o gestor do site, analisando, assim, o canal de comunicação para a execução de serviços institucionais. Este fator também se relaciona a práticas que envolvem o registro do cidadão para serviços on-line, como esclarecimento dos serviços prestados pela instituição. O fator “participação cidadã” examina o quanto a instituição oferece de oportunidade para a participação da sociedade nas decisões do governo, logo seus itens se relacionam com mecanismos que envolvem o cidadão, a exemplo de consultas públicas e divulgação de informações ou chamados à sociedade. Este fator também abrange práticas relacionadas à avaliação retroativa dos serviços pela sociedade e à inserção das instituições em redes sociais. O fator “privacidade e segurança” examina políticas de privacidade de dados e segurança da informação que o usuário deposita no site. Por fim, o fator “acessibilidade e usabilidade” se refere a ferramentas disponíveis para melhor uso do site por qualquer pessoa, mesmo com necessidades especiais, bem como à navegação facilitada, observando formulários, símbolos, siglas, figuras, padrões de texto e cores, entre outros aspectos.

Governo digital

O governo digital é entendido pela EGD como o uso de tecnologias por meio digital “como parte integrada das estratégias de modernização governamentais para gerar benefícios para a sociedade” (Brasil, 2016Brasil. (2016). Estratégia de Governança Digital. Brasília, DF: Ministério do Planejamento., p. 7). Esta é uma definição que apresenta o olhar do Estado sobre a temática, representando um compromisso assumido com a sociedade quanto à comunicação entre as partes. Assim, a estratégia visa modernizar o governo e alcançar metas de excelência na prestação de serviços públicos, abarcadas pela nova administração pública (NAP) (Paula, 2005Paula, A. P. P. (2005). Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social. Revista de Administração de Empresas , 45(1), 36-49. doi:10.1590/S0034-75902005000100005
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).

Entende-se que o governo digital consiste na oferta de serviços aos cidadãos de maneira a maximizar os resultados por meio de atividades apoiadas nas TICs (principalmente a internet) como estratégia para aumentar a participação cidadã e dar transparência às ações governamentais. O governo digital, no contexto do setor público, abrange as atividades de e-administração e e-serviços.

E-administração representa o uso de TICs nas atividades administrativas internas à organização, a exemplo da criação e utilização de sistemas eletrônicos de gerenciamento de dados, como o Sistema Eletrônico de Informações (SEI), e de sistemas internos de pagamentos de consultores e passagens, entre outras atividades administrativas. E-serviços, por sua vez, consiste na oferta de serviços públicos por uma organização por meio das TICs, a exemplo de inscrições on-line e emissão de boletos, entre outros serviços digitais.

No Brasil, o governo digital é comumente estudado sob a ótica da oferta de serviços governamentais em meio eletrônico. Na última década, alguns estudos mapearam a oferta de serviços por meio de governo digital, frequentemente por meio de análises dos portais eletrônicos de órgãos, estados ou municípios. Há uma década, Pinho (2008Pinho, J. A. G. (2008). Investigando portais de governo eletrônico de estados no Brasil: Muita tecnologia, pouca democracia. Revista de Administração Pública , 42(3), 471-493. doi:10.1590/S0034-76122008000300003
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) já alertava para o fato de que, mesmo entre os portais eletrônicos dos estados “mais desenvolvidos do país e do Distrito Federal”, os resultados não eram animadores (p. 471). Os portais apresentavam “incorporação tecnológica relevante”, mas faltava “predisposição verdadeira para implantação de procedimentos de accountability e participação” (Pinho, 2008Pinho, J. A. G. (2008). Investigando portais de governo eletrônico de estados no Brasil: Muita tecnologia, pouca democracia. Revista de Administração Pública , 42(3), 471-493. doi:10.1590/S0034-76122008000300003
https://doi.org/10.1590/S0034-7612200800...
, p. 492), contribuindo para que o Brasil estivesse, ainda, “muito longe de construir uma cultura de accountability” (Pinho & Sacramento, 2009Pinho, J. A. G., & Sacramento, A. R. S. (2009). Accountability: Já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública , 43(6), 1343-1368. doi:10.1590/S0034-76122009000600006
https://doi.org/10.1590/S0034-7612200900...
, p. 1365). Alguns anos depois, novo estudo direcionado a portais eletrônicos do Poder Legislativo municipal apontava que havia tecnologia disponível, mas persistia o déficit de “operação democrática, expressa pela participação” (Raupp & Pinho, 2012Raupp, F. M., & Pinho, J. A. G. (2012). Possibilidades de participação no Legislativo municipal por meio de portais eletrônicos. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 17(61), 169-192. doi:10.12660/cgpc.v17n61.7177
https://doi.org/10.12660/cgpc.v17n61.717...
, p. 169). Em estudo posterior de portais eletrônicos de câmaras municipais em 2013, o déficit de contribuição para a geração de accountability persistia: “os portais analisados configuram muito mais a existência de murais eletrônicos do que espaços de construção de accountability” (Raupp & Pinho, 2013Raupp, F. M., & Pinho, J. A. G. (2013). Accountability em câmaras municipais: Uma investigação em portais eletrônicos. Revista de Administração, 48(4), 770-782. doi:10.5700/rausp1120
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, p. 770).

A discussão sobre a efetividade do governo digital como ferramenta de promoção da governança digital revisita um desafio conhecido. Enquanto a governança se refere a um exercício de poder difuso, multinível e em rede, o governo digital se manifesta no uso de tecnologias aplicadas à oferta de serviços públicos. Assim, ao ofertar serviços públicos eletrônicos (ainda que sob a forma simplificada de “murais eletrônicos”) (Raupp & Pinho, 2013Raupp, F. M., & Pinho, J. A. G. (2013). Accountability em câmaras municipais: Uma investigação em portais eletrônicos. Revista de Administração, 48(4), 770-782. doi:10.5700/rausp1120
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), tem-se uma ação típica de governo eletrônico. O real desafio consiste na gestão das TIC, que se apresentam como “ferramentas constitutivas” que formalizam cursos de ação planejada, mas também geram novos espaços de ação (Coleman, 2008Coleman, S. (2008). Foundations of digital government. In H. Chen et al. (Ed.), Digital government: e-government research, case studies, and implementation (pp. 3-19). doi:10.1007/978-0-387-71611-4_1
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), prevendo interação entre atores. Assim, o desafio contemporâneo para o governo eletrônico não é mais a oferta de serviços, mas a gestão dos espaços interativos que emergem a partir da participação cidadã, um caminho para atingir a accountability.

Democracia digital

Onde há comunicação por meio eletrônico entre governo e sociedade, há democracia eletrônica (Mello & Slomski, 2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.). Assim, exemplos de comunicação eletrônica entre governo e sociedade são fóruns, consultas públicas, reuniões com a sociedade, voto, referendos, Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC) e portal eletrônico. Neles, a sociedade deve agir proativamente para que se caracterize a democracia digital. Emerge, assim, a discussão sobre o quanto a participação social por meio eletrônico, que não possui acesso disseminado de forma igualitária, representa verdadeiramente uma democracia.

A democracia eletrônica diz respeito, portanto, à utilização de meio eletrônico, ou seja, ao uso das TICs com vistas a permitir que o governo comunique à sociedade assuntos importantes, possibilitando que ela participe das decisões de forma democrática. Isto caracteriza um governo voltado para accountability, a transparência e a efetividade.

As TICs têm sido reconhecidas como fontes de participação democrática tanto por parte da sociedade como do setor privado. Por meio dos instrumentos das TICs, o acesso ao setor público se ampliou, criando espaços de discussão entre vários atores para definição de políticas públicas. Entretanto, muitos pesquisadores creem que este canal pode não ser verdadeiramente democrático e participativo, tendo em vista a possibilidade de o governo limitar a participação social. Conforme Rothberg (2008Rothberg, D. (2008). Por uma agenda de pesquisa em democracia eletrônica. Opinião Pública, 14(1), 149-172. doi:10.1590/S0104-62762008000100006
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), “é possível que a legitimidade da participação seja comprometida por deficiências” no processo de comunicação (p. 150). Essa participação, embora aberta, pode ser utilizada de forma restrita por grupos corporativos, a exemplo da defesa de interesses individuais de categoria, o que não representaria a vontade da maioria, mas apenas de uma parcela dos cidadãos.

Em termos teóricos, as práticas de democracia digital podem ser caracterizadas sob uma escala de “grau de participação democrática” em que o estágio inicial se caracteriza por “ênfase na disponibilidade de informação e na prestação de serviços públicos”; seguido por “emprego das TICs para colher a opinião pública e utilizar esta informação para a tomada de decisão política”; pela promoção de “princípios da transparência e da prestação de contas (accountability)”; pela “criação de processos e mecanismos de discussão, visando o convencimento mútuo para se chegar a uma decisão política tomada pelo próprio público”; e, por fim, um estágio em que se preveem “possibilidades interativas em massa das novas tecnologias da comunicação”, o que culminaria com a transferência da tomada de decisão “diretamente para a esfera civil” (Silva, 2005Silva, S. P. (2005). Graus de participação democrática no uso da Internet pelos governos das capitais brasileiras. Opinião Pública , 11(2), 450-468., p. 457).

Por envolver a comunicação entre governo e sociedade, os desafios contemporâneos para a democracia digital envolvem, necessariamente, a consideração de interfaces entre esses dois atores. Estudos mostram que, mesmo em portais diretamente orientados à promoção de práticas bem-sucedidas de “democratização do acesso à informação e ampliação da participação cidadã” (Freitas, Lima, & Lima, 2015Freitas, C. S., Lima, F. F., & Lima, F. Q. (2015). Os desafios ao desenvolvimento de um ambiente para participação política digital: O caso de uma comunidade virtual legislativa do projeto e-Democracia no Brasil. Organizações & Sociedade , 22(75), 639-657. doi:10.1590/1984-9230759
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, p. 639), a exemplo do portal e-Democracia da Câmara dos Deputados, persistem limitações relacionadas à participação dos próprios deputados, gerando “certo sentimento de frustração dos usuários da sociedade” (Leonnel, Costa, Tonelli, Leme, & Amâncio, 2018Leonnel, M., Costa, A., Tonelli, D. F., Leme, V., & Amâncio, J. M. (2018). Limites e possibilidades da interação sociopolítica entre sociedade e Câmara dos Deputados pelo portal eletrônico e-Democracia. Administração Pública e Gestão Social, 10(3). doi:10.21118/apgs.v10i3.1518
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, p. 213). Assim, mesmo iniciativas direcionadas à participação popular, como os orçamentos participativos eletrônicos (e-orçamentos), têm seu alcance limitado “ao envio de sugestões e solicitações pelos cidadãos”, não influenciando a decisão política diretamente (Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). e-Orçamentos Participativos como iniciativas de e-solicitação: Uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-Participação. Revista de Administração Pública , 50(6), 937-958. doi:10.1590/0034-7612152210
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, p. 937), o que reforça que a incorporação de TICs não garante necessariamente graus elevados de participação democrática.

Métodos

Os itens originais propostos na escala de Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.) foram adaptados para aplicação à realidade organizacional. A escala-piloto, composta por 76 itens, foi submetida a validação teórica por especialistas (Pasquali & Alves, 2010Pasquali, L., & Alves, A. R. (2010). Testes referentes a construtos: Medidas educacionais e de competências. In L. Pasquali (Org.), Instrumentação psicológica: Fundamentos e práticas (pp. 199-520). São Paulo, SP: Artmed.), cinco juízes escolhidos segundo seu perfil acadêmico e experiência em governança e gestão pública. As avaliações foram tabuladas em uma matriz e calculou-se o coeficiente de validade de conteúdo (CVC), que mede validade e concordância para cada item. Itens que atingiram valor CVC > 0,8 foram considerados aceitáveis, e os demais foram descartados (Hernández-Nieto, 2002Hernández-Nieto, R. (2002). El coeficiente de validez de contenido (CVC) y el coeficiente Kappa em la determinación de la validez de contenido de instrumentos de recolección de datos. Recuperado da base de dados da Universidad de Los Andes.). Os itens resultantes foram analisados por três especialistas, profissionais das áreas de gestão pública, comunicação, informação ou informática, para análise de clareza, pertinência e aplicação à realidade dos websites. Preservou-se a estrutura de análise original de Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.), variando de 0 a 3, sendo 0 “nenhuma prática identificada/prática não implementada/inexistente”; 1 “poucas práticas identificadas/prática com poucas informações”; 2 “algumas práticas identificadas/prática com ausência de algumas informações/implantada, mas de maneira incompleta”; e 3 “práticas totalmente identificadas/a prática está totalmente implantada”. Adotou-se, ainda, a opção “não se aplica”. Chegou-se à versão aplicada da escala, composta por 50 itens listados na Quadro 1.

Quadro 1
Boas práticas de governança digital

A escala foi aplicada por dois pesquisadores aos portais de todas as 108 organizações de natureza jurídica de autarquia e autarquia fundacional do Poder Executivo federal vinculadas ao MEC. Trata-se, portanto, de pesquisa censitária. As coletas individuais foram submetidas a triangulação, técnica que combina dois coletores ou mais para analisar o mesmo objeto ou fenômeno e posteriormente confrontar os dados a fim de explorar possíveis divergências (Zappellini, 2015Zappellini, M. B., & Feuerschutte, S. G. (2015). The use of triangulation in Brazilian scientific research in administration. Administração: Ensino e Pesquisa, 16(2), 241-273.). Além dos itens originais da escala, também foram coletadas informações sobre a região de atuação de cada organização.

A última etapa consistiu na análise dos resultados por meio de testes de correlação com uso do tau-b de Kendall e análise descritiva dos scores de nível de atendimento às boas práticas da governança digital obtidos por cada organização. A partir desses escores, gerou-se um ranking que permitiu escalonar as organizações em quatro diferentes níveis (A, B, C e D). Os resultados descrevem as características de cada conjunto de organizações e sua distribuição entre as regiões brasileiras.

Resultados

Para testar as relações previstas no modelo original de Mello e Slomski (2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.), realizou-se teste de correlação entre os fatores e o construto da governança digital. Nas correlações, utilizou-se o tau-b de Kendall, devido à quantidade de casos e à baixa variância entre observações dos itens (Field, Miles, & Field, 2012Field, A., Miles, J., & Field, Z. (2012). Discovering statistics using R. Thousand Oaks: Sage Publications.). O fator “conteúdo” esteve moderadamente correlacionado ao escore geral de governança digital (tau-b = 0,48, p < 0,001); “serviço” teve correlação fraca, embora limítrofe (tau-b = 0,33, p < 0,001); “participação cidadã” teve correlação moderada (tau-b = 0,53, p < 0,001); “privacidade e segurança” teve correlação fraca (tau-b = 0,29, p < 0,01); e “usabilidade e acessibilidade” teve correlação moderada (tau-b = 0,58, p < 0,001). As correlações confirmaram a maior parte das relações previstas no modelo teórico original. Assim, optou-se por retê-lo. A partir da pontuação atribuída a cada item da escala, geraram-se escores individuais para cada fator. A média destes escores, por sua vez, representou o escore geral de governança digital (IGD) para cada caso. As médias foram tratadas no software IBM SPSS Statistics, gerando gráficos e tabelas. Os dados são apresentados no Tabela 1 e na Figura 2, onde são apresentados os histogramas individuais para cada fator.

Tabela 1
Estatísticas descritivas para os fatores associados a governança digital (n = 108)

Figura 2
Histogramas para as observações em cada fator

Cabe relembrar que os itens foram coletados em uma escala de 0 a 3. Em quatro dos cinco fatores (à exceção de “participação cidadã”), tem-se valores de média bastante elevados, com característica concentração de skewness (valores à direita da média quando observados na curva normal, conforme Field, 2012Field, A., Miles, J., & Field, Z. (2012). Discovering statistics using R. Thousand Oaks: Sage Publications.). Isso indica que a maior parte dos websites pesquisados tem algum nível de atendimento às práticas de governança para a maior parte dos itens, ainda que parcial. Cabe ressaltar, ainda, que as práticas de governança digital mensuradas neste estudo não são de caráter opcional, e se configuram como obrigatórias por derivarem diretamente de estratégias de EGD definidas em lei. O nível de atendimento esperado, portanto, naturalmente já corresponderia ao topo da escala. Assim, investigam-se, para cada fator, as práticas que se caracterizam como lacunas de atendimento.

É no fator “conteúdo” que os websites alcançam maior atendimento às boas práticas. Trata-se de disponibilizar informações sobre a organização, suas políticas, regulamentos, missão, visão e valores, dados relacionados a transparência, conteúdo de eventos gerais e apresentação de documentos traduzidos. Neste fator, há 87,66% de atendimento, na média, às boas práticas esperadas, sendo que 51% das organizações alcançam, no mínimo, este patamar. Onze organizações atingiram 100% de atendimento às boas práticas de conteúdo: Instituto Federal de Brasília (IFB), Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Instituto Federal Goiano (IF Goiano), Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), Universidade Federal do Tocantins (UFT), Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM).

O fator “serviço” se refere à oferta de serviços diversos pelo website. Trata-se do segundo fator com maior nível de atendimento médio (87%), sendo que 66% das organizações atingem, no mínimo, este patamar. Neste aspecto, nenhuma organização teve pontuação 0. Entre as melhores organizações em termos de serviço no Brasil destacam-se: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Universidade Federal de Roraima (UFRR), IFCE, Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

O terceiro fator com maior atendimento pelas organizações é “usabilidade e acessibilidade”, que se refere a boas práticas que facilitam o acesso e a navegação no website. Neste fator, as organizações atendem, em média, a 83,33% das boas práticas, sendo que 54% dos casos alcançam, no mínimo, este patamar. Apenas uma instituição atingiu o topo da escala, a Universidade Federal de Goiás (UFG). No entanto, há outras instituições bem avaliadas neste fator: Inep, Universidade Federal de Itajubá (Unifei), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Instituto Federal de Goiás (IFG), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e Universidade Federal do Pará (UFPA).

O quarto fator em nível de atendimento é “privacidade e segurança”, que se refere à autenticação e conferência de dados pessoais visando à segurança. Em média, as organizações atendem a 82,67% das boas práticas - 54% das organizações atingem, no mínimo, este patamar. Neste fator, há 48 organizações brasileiras com desempenho máximo.

O fator que registrou o menor atendimento às boas práticas de governança entre as organizações brasileiras foi “participação cidadã”. Em média, as organizações foram capazes de atender somente a 54,67% das boas práticas que envolvem participação do cidadão. E, ainda, apenas 54% das organizações atingiram este patamar. Assim, este fator aparece como a maior lacuna para operacionalizar a governança digital. Entre as organizações que obtiveram bom desempenho neste fator, destacam-se: IF Goiano, UFFS, IFCE, IFG, IFNMG, IFRN, Instituto Federal de Rondônia (Ifro), Unifei, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), UFMG, UFPE, UFRR, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e UTFPR.

“Participação cidadã” foi o fator em que as organizações estudadas tiveram pior desempenho. Em especial, destacam-se as práticas P25 e P26, que não foram implementadas completamente pela maioria das organizações (96% das organizações pontuaram 0 ou 1). Essas práticas tratam de realização de pesquisas de satisfação e disponibilização de campos que permitam a manifestação dos usuários para fins de alertas ou para avaliação de eventos nos websites. Assim, esta configura-se com precisão como a principal lacuna para as organizações públicas: a implementação de mecanismos de feedback para o público-alvo.

Ranking da governança digital

A partir da pontuação atribuída a cada item da escala e sua ligação a um fator, geraram-se os escores individuais. A partir da média ponderada destes escores em relação ao número de itens associados a cada fator, calculou-se o IGD de cada uma das 108 organizações. Trata-se de um índice de atendimento organizacional às boas práticas de governança digital. No Quadro 3, tem-se um ranking gerado pelos escores de IGD. A segunda coluna apresenta o grau de atendimento de cada organização à pontuação máxima possível, enquanto a terceira coluna apresenta a posição da organização, em termos percentuais, em relação à média geral. Assim, a organização com maior escore (Inep), por exemplo, atendeu a 92,67% das boas práticas de governança digital, tendo alcançado 14,76% a mais que a média. A pior organização (Universidade Federal de Campina Grande - UFCG), por sua vez, atendeu a apenas 54,33% das boas práticas e teve desempenho 66,29% abaixo da média geral.

Tabela 2
Ranking da governança digital em autarquias - quatro níveis

O posicionamento das organizações, quando interpretado com o propósito de gerar escalonamento estatístico unidimensional, permitiu agrupá-las em quatro grandes grupos: A, que atinge as maiores pontuações em termos de IGD, e B, C e D, que atinge as menores. Para esse escalonamento, considerou-se a distribuição em quartis, com extensão das linhas de corte de posição a todas as organizações que compartilhavam uma mesma pontuação. Assim, o nível A agrega as 28 organizações com melhor desempenho (todas com IGD acima de 85,33%); o nível B agrega 28 organizações que apresentam 85,33% > IGD > 82%; no nível C, há 29 organizações com 82% > IGD > 75,67%; e, por fim, as organizações de nível C apresentam IGD < 75,67%. A Figura 3 representa graficamente a distribuição dos níveis A, B, C e D. Quando analisadas em destaque, as organizações de níveis A e B apresentam pontos fortes relacionados ao fator “conteúdo”, mas apresentam pontos fracos relacionados ao fator “participação cidadã”. Já os níveis C e D apresentaram pontos fortes relacionados ao fator “serviço”, mas, igualmente, apontam escores fracos relacionados ao fator “participação cidadã”.

Figura 3
Níveis de atendimento às práticas do escore geral de governança digital

Por fim, o estudo também permitiu posicionar as organizações do ranking de IGD em relação à sua posição geográfica. Em números absolutos, a região Sudeste concentra o maior número de organizações (32 das 108) e tem o maior número de organizações em níveis A (11) e B (8). As regiões com menor número de organizações são Norte e Centro-Oeste, com 15 cada. No entanto, ao discutir o nível de qualificação das organizações por região, o Centro-Oeste se destaca, já que 40% de suas organizações se enquadram no nível A. Entende-se que esta situação se explica frente à presença de organizações federais bem ranqueadas na região Centro-Oeste, como Inep e IFB, ambas classificadas como nível A. Esses dados são apresentados na Figura 4.

Figura 4
Distribuição dos níveis A, B, C e D no Brasil

Discussão: o gap da participação cidadã e uma agenda de pesquisa

Os resultados do presente estudo evidenciaram a principal lacuna enfrentada pelas organizações estudadas para atender às boas práticas de governança digital: a implementação de práticas de participação cidadã. Suprir esta lacuna é uma meta especialmente desafiadora, porque envolve coordenar esforços internos e externos à organização. Enquanto as práticas associadas à disponibilização de conteúdos e serviços e a busca por acessibilidade e segurança podem ser conduzidas sob o escopo restrito da intenção organizacional - e majoritariamente com esforços intraorganizacionais -, promover mecanismos de participação para o cidadão envolve ampliar o escopo de atores envolvidos na ação do órgão. E mais que isso: envolve dar voz a atores que fogem à governabilidade institucional imediata - um desafio de natureza político-gerencial.

Cabe considerar, no entanto, que este não é um desafio sujeito à discricionariedade do gestor. Embora o nível geral de atendimento das organizações às boas práticas de governança digital seja relativamente elevado (em média, as organizações atendem a 80% das boas práticas), os gaps de atendimento são específicos e apontam a ausência de mecanismos capazes de incluir atores externos à organização no processo de gestão - a própria essência do conceito-chave da governança (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, 2018Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. (2018). TIC Governo Eletrônico. Recuperado de https://bit.ly/3cOvyDu
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). Ao considerar que a governança envolve interação horizontal entre sociedade e governo, para torná-lo mais aberto, transparente e democrático, entende-se que falhar em participação social significa, na essência, falhar na governança das organizações do Estado - e isso não se corrige com TICs, mas com intenção democrática (Clift, 2003Clift, S. (2003). E-democracy, e-governance and public net-work. Publicus.Net. Recuperado de https://bit.ly/3aDVEaz
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).

Para o gestor público, incorporar tecnologias à prestação de serviços é um imperativo que não lhe faculta escolha. Assim, evidencia-se que a lacuna de ação das organizações públicas não passa pela adoção de técnicas ou recursos de TI, mas por práticas associadas à transparência - a chamada “e-democracia”. Sob esta premissa, admite-se a interação direta entre cidadãos e governo como estratégia para que este tome melhores decisões e, assim, enfrente os desafios públicos. Assim, ao abdicar da interação com cidadãos por não inserir mecanismos para manifestação nos websites, as organizações públicas abdicam, indiretamente, de informações de potencial estratégico.

Em tempos de discussão sobre modelos de administração pública de baixa participação social, a exemplo do patrimonialista e burocrático, a discussão sobre implementação de mecanismos de consulta pública, feedback e participação popular se mostra como imperativa para compor a agenda de novas ações para o Estado. Na nova governança pública (Osborne, 2010Osborne, S. P. (Ed.). (2010). The new public governance: Emerging perspectives on the theory and practice of public governance. Abingdon: Routledge.), muito se tem pensado sobre como promover estruturas de governança disseminadas entre Estado e sociedade, mas resultados como os do presente estudo indicam que o gap real está no caminho inverso: da sociedade para o governo. Assim, se há vinte anos o desafio para a governança era a transição para um modelo digital, uma nova demanda se anuncia: a transição para um modelo de disseminação da tomada de decisão, do Estado para a sociedade, mediado pelas TICs.

Ao posicionar os resultados desta pesquisa junto aos de pesquisas anteriores e à agenda para o campo, evidencia-se que o desafio de promover a participação cidadã no e-government não é inédito. Há quase duas décadas, Pardo (2000Pardo, T. (2000). Realizing the promise of digital government: It’s more than building a web site. Recuperado de https://bit.ly/3aOEZRT
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) já provocava: “sim, sim, minha filha também sabe fazer um website, mas governo digital é mais que isso. Quanto mais entendemos que governo digital não significa só fazer um website ou só usar tecnologias, mas transformar a entrega de serviços pelo uso da tecnologia, melhor para todos nós” (par. 4, tradução nossa). Se há duas décadas o desafio era extrapolar o uso das TICs, há uma década a agenda brasileira confirmava a pendência e a apontava como empecilho para o alcance da accountability (Pinho, 2008Pinho, J. A. G. (2008). Investigando portais de governo eletrônico de estados no Brasil: Muita tecnologia, pouca democracia. Revista de Administração Pública , 42(3), 471-493. doi:10.1590/S0034-76122008000300003
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). Nos últimos anos, o desafio tomou novo formato: não se trata mais de ter espaços digitais para que cidadãos deem sugestões, mas de espaços que lhes permitam influenciar a decisão política (Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). e-Orçamentos Participativos como iniciativas de e-solicitação: Uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-Participação. Revista de Administração Pública , 50(6), 937-958. doi:10.1590/0034-7612152210
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).

Ao posicionar a agenda apontada por Sampaio (2016Sampaio, R. C. (2016). e-Orçamentos Participativos como iniciativas de e-solicitação: Uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-Participação. Revista de Administração Pública , 50(6), 937-958. doi:10.1590/0034-7612152210
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) na “escala de participação democrática” de Silva (2005Silva, S. P. (2005). Graus de participação democrática no uso da Internet pelos governos das capitais brasileiras. Opinião Pública , 11(2), 450-468.), percebe-se que o desafio está na transição para o estágio máximo, que prevê tomada de decisão política descentralizada para a sociedade. Esta reflexão indica que a agenda de pesquisa e gerencial para a próxima década (2020 a 2030) trará desafios atualizados para a governança digital, na busca por promover mecanismos que subsidiem decisões políticas com base em interações entre governo e cidadãos. Naturalmente, este desafio deve se apresentar de forma diversa para organizações públicas. Para organizações da educação, como as participantes deste estudo, é de se esperar que grande parte de seus serviços digitais, ofertados aos usuários sob a forma de murais eletrônicos (como divulgação de resultados, serviços de consulta, emissão de documentos etc.), permaneçam inalterados. Mas fatos recentes, a exemplo dos protestos contra a adoção de diplomas exclusivamente digitais pela Universidade de Brasília (Costa, 2018Costa, L. (2018). UnB anuncia que novos diplomas serão apenas digitais e gera polêmica. Eu Estudante. Recuperado de https://bit.ly/2v4crnY
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) - uma alternativa para reduzir custos, que se apoia em digitalização documental, uma bandeira inequívoca -, demonstram que a pressão por considerar as expectativas da sociedade na reformulação de serviços públicos pode surpreender os gestores mesmo em decisões aparentemente administrativas.

Conclusões

Este estudo busca contribuir para o preenchimento da lacuna de pesquisa apontada por Cunha e Miranda (2013Cunha, M. A. V. C. C., & Miranda, P. R. M. (2013). O uso de TIC pelos governos: Uma proposta de agenda de pesquisa a partir da produção acadêmica e da prática nacional. Organizações & Sociedade, 20(66), 543-566. doi:10.1590/S1984-92302013000300010
https://doi.org/10.1590/S1984-9230201300...
) quanto à necessidade de explorar de que forma organizações públicas têm incorporado TICs à prestação de serviços eletrônicos, aqui entendidos como representativos de boas práticas de governança digital. Assim, este estudo mensurou o nível de governança digital em 108 organizações públicas, aplicando uma escala previamente validada (Mello e Slomski, 2010Mello, G. R., & Slomski, V. (2010). Índice de governança eletrônica dos estados Brasileiros (2009): No âmbito do Poder Executivo. Journal of Information Systems and Technology Management , 7(2), 375-408.) aos seus websites, aqui entendidos como lócus para prestação de serviços públicos em meio digital.

Cabe lembrar que atender às boas práticas evidenciadas na escala aplicada não é questão de mérito ou de estratégia organizacional, mas de obrigação estabelecida em legislação (majoritariamente, na Lei de Acesso à Informação). Assim, a expectativa originária para o teste seria, naturalmente, o atendimento a 100% das boas práticas - o que não se observou. As organizações da amostra atingiram, em média, 87,66% de atendimento a práticas associadas à oferta de conteúdos em meio digital; 87% quanto a práticas de ofertas diversificadas de serviços públicos em meio digital; 83,33% quanto a práticas associadas a usabilidade e acessibilidade em seus websites; 82,67% quanto a privacidade e segurança; e, por fim, 54,67% quanto à oferta de meios para participação popular - entendida como participação cidadã.

Os resultados demonstram que as organizações públicas da amostra, embora não impecáveis, são competentes em ofertar serviços e conteúdos em meio digital de forma acessível e com respeito à privacidade, mas falham em promover a participação dos cidadãos, a exemplo da inserção de espaços para consultas populares e feedbacks em seus websites. Assim, os órgãos parecem ter superado o desafio de prestar seus serviços em meio eletrônico, mas seu desafio imediato se evidencia: é preciso estabelecer um fluxo de informações invertido, da sociedade para o governo, o que exige uso das TICs não somente como ferramenta de comunicação, mas como ferramenta estratégica. Isso exigirá planejamento e esforços organizacionais no sentido de estabelecer quais contribuições e sugestões de cidadãos devem ser coletadas, de que forma e com qual tratamento e uso estratégico. Ressalta-se que estes desafios poderão se apresentar sobre um amplo espectro de serviços públicos: desde serviços simples, do tipo mural eletrônico, até serviços complexos, como a decisão sobre configuração de orçamentos.

Entre as limitações do presente estudo, destacam-se as metodológicas, associadas ao uso da escala, que só permite mensuração em quatro pontos, o que gera baixa variabilidade nos dados, limitando a aplicação de técnicas estatísticas inferenciais. Este pode ser um limitador para a revalidação da escala em populações homogêneas, ainda que se atinjam critérios mínimos de amostra probabilística. Adicionalmente, destaca-se a limitação da coleta a websites e sugere-se que estudos futuros testem a manifestação de boas práticas de promoção da governança digital, em especial da participação cidadã, em outros meios de interação, como redes sociais, serviço de informação ao cidadão, consultas públicas e pesquisas presenciais.

Agradecimentos

Ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, patrocinador da turma de mestrado profissional em cujo âmbito a presente pesquisa foi desenvolvida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2017
  • Aceito
    14 Maio 2019
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