Acessibilidade / Reportar erro

Teorização no transe da crise: política, organizações e pesquisa no pensar em círculos

Theorization within the crisis trance: politics, organizations and research in circular thinking

Resumo

No transe da crise, que futuro podemos e devemos produzir, em termos de teorização sobre organizações e sociedade? De que forma vamos nos conectar com o processo de pesquisar, teorizar e fazer política? Mais do nunca, torna-se vital questionarmos a nossa atuação como intelectuais e nossas teorizações nas sociedades em que vivemos. Precisamos rearticular valores como solidariedade e justiça social em uma produção e atuação acadêmico-intelectual que tenha raízes na interlocução, na dialogia e no engajamento com a sociedade. Engajamento é uma relação que envolve negociação e colaboração entre pesquisadores e praticantes dentro de um espírito de comunidade voltada para a aprendizagem contínua. Nesse processo, o pensar em círculos pode auxiliar pela sua lógica baseada em uma teia de relações, em um pensar e agir em um contexto multidimensional e dentro da concepção global.

Palavras-chave:
Teorização; Política; Pesquisa; Organizações; Crise

Abstract

In the trance of the crisis, what future can and should we produce, in terms of theorizing about organizations and society? How are we going to connect with the process of researching, theorizing and making politics? More than ever, it is vital to question our role as intellectuals and our theories in the societies in which we live. We need to re-articulate values such as solidarity and social justice in an academic-intellectual production and performance that is embedded in interlocution, dialogism and engagement with society. Engagement is a relationship that involves negotiation and collaboration between researchers and practitioners within a spirit of community driven by ongoing learning. In this process, thinking in circles can help because its logic is based on a web of relationships, on thinking and acting in a multidimensional context and within the overall conception.

Keywords:
Theorization; Politics; Research; Organizations; Crises

Em 2020, a chamada “civilização global” enfrenta uma das mais graves ameaças desde sua invenção, o que instiga a reflexão sobre formas alternativas de habitar o mundo e pensar sobre ele (Danowski & Viveiros de Castro, 2014Danowski, D., & Viveiros de Castro, E. (2014). Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis, SC: Cultura e Barbárie.). Resolvemos nos desafiar, nesse âmbito, a pensar a pesquisa e a prática sobre organizações e sociedade para além do contexto urgente que nos interpela no imediato, tentando compreender os impactos, desafios e demandas não apenas da policrise (Morin, 2020Morin, E. (2020, 26 de março). Edgar Morin : « Ressentir plus que jamais la communauté de destins de toute l’humanité ». Entrevista por S. Blin. Libération. Recuperado de https://bit.ly/2FLGTc9
https://bit.ly/2FLGTc9...
), mas do mundo, da sociedade e das organizações que queremos construir a partir dela. Afinal, que ciência devemos e podemos produzir?

São muitos os desafios que se colocam no cenário global que a pandemia de 2020 ajudou a desenhar (Harari, 2020Harari, Y. N. (2020, 20 de março). The world after coronavirus. Financial Times. Recuperado de https://on.ft.com/3mKRaWy
https://on.ft.com/3mKRaWy...
). Não que esses desafios ou preocupações já não estivessem se delineando recentemente. No âmbito político, por exemplo, acirrou-se o explícito confronto que se coloca entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global, um confronto que provoca muitas questões. A globalização - uma perversidade, conforme Santos (2003Santos, M. (2003). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record.) - estaria em marcha para a possibilidade em que uma mobilização global para mudanças políticas, econômicas e sociais minimizaria as profundas desigualdades e acabaria por alcançar o ideal de “ser humano integral e cidadão”? Estaríamos diante de um teste de cidadania em que técnicas cada vez mais sofisticadas venceriam e revelariam de vez seu caráter violento e sagaz?

Ao mesmo tempo que velhos dispositivos estatais de proteção às fronteiras são acionados, assistimos à reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e das tecnologias do poder (Preciado, 2020Preciado, P. B. (2020, 28 de março). Aprendiendo del virus. El País. Recuperado de https://bit.ly/3ct9O0f
https://bit.ly/3ct9O0f...
). Com efeito, as experiências relacionadas ao trabalho em tempos de pandemia atribuem novos contornos à discussão sobre estresse no trabalho remoto, precarização do trabalho, luta de classes, desemprego, entre outras questões. São situações problemáticas que se exacerbam e se aprofundam, sem terem sido causadas pelo coronavírus (Antunes, 2020Antunes, R. (2020, 5 de abril). Coronavirus e neoliberalismo: as consequências sobre a classe trabalhadora e o papel dos sindicatos [vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/362jzl6
https://bit.ly/362jzl6...
). Todas essas preocupações estão assentadas sobre questões ecológicas, culturais, sociais, econômicas e, sobretudo, políticas.

Além disso, em um contexto de desprezo à ciência e desmonte da educação superior, políticos irresponsáveis minam deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na mídia (Harari, 2020Harari, Y. N. (2020, 20 de março). The world after coronavirus. Financial Times. Recuperado de https://on.ft.com/3mKRaWy
https://on.ft.com/3mKRaWy...
). Será que a ciência é capaz de despertar uma “consciência histórica” (Suddaby, 2016Suddaby, R. (2016). Toward a historical consciousness: following the historic turn in management thought. M@n@gement, 19(1), 46-60. doi:10.3917/mana.191.0046
https://doi.org/10.3917/mana.191.0046...
) capaz de levar à reflexão crítica sobre as estruturas de sistemas políticos, econômicos e sociais que abriram caminho para este contexto? Como nossas pesquisas podem regenerar e fortalecer a confiança nas ciências, em especial nas ciências sociais? Seria a radicalização um dos possíveis caminhos para a pesquisa e a prática contemporâneas?

Contextos de crise são, muitas vezes, laboratórios de inovação social. Como pesquisadoras e pesquisadores, cabe a nós refletirmos sobre os desafios da teoria organizacional na abstração dessas inovações e na compreensão dos contextos que perpassam o mundo contemporâneo - sejam eles de cunho ecológico, militar, político, econômico ou cultural (Reed & Burrell, 2019Reed, M., & Burrell, G. (2019). Theory and organization studies: the need for contestation. Organization Studies, 40(1), 39-54. doi:10.1177/0170840617745923
https://doi.org/10.1177/0170840617745923...
) - e sobre a importância não apenas de problematizar esses fenômenos, mas também do compromisso de nos engajarmos de forma ativa com a produção e organização de uma sociedade mais justa e plural (Contu, 2018Contu, A. (2018). ‘… The point is to change it’ - Yes, but in what direction and how? Intellectual activism as a way of ‘walking the talk’ of critical work in business schools. Organization, 25(2), 282-293. doi:10.1177/1350508417740589
https://doi.org/10.1177/1350508417740589...
).

Mais do que nunca, torna-se vital questionarmos a nossa atuação (o que e como fazemos) como intelectuais e nossas teorizações nas sociedades em que vivemos. No âmbito das escolas de administração, é tempo de rearticular valores como solidariedade e justiça social em uma produção e atuação acadêmico-intelectual que tenham raízes na interlocução, na dialogia e no engajamento com a sociedade (Contu, 2018Contu, A. (2018). ‘… The point is to change it’ - Yes, but in what direction and how? Intellectual activism as a way of ‘walking the talk’ of critical work in business schools. Organization, 25(2), 282-293. doi:10.1177/1350508417740589
https://doi.org/10.1177/1350508417740589...
, 2020Contu, A. (2020). Answering the crisis with intellectual activism: making a difference as business schools scholars. Human Relations, 73(5), 1-21. doi:10.1177/0018726719827366
https://doi.org/10.1177/0018726719827366...
; Cunliffe & Scaratti, 2017Cunliffe, A. L., & Scaratti, G. (2017). Embedding impact in engaged research: developing socially useful knowledge through dialogical sensemaking. British Journal of Management, 28(1), 29-44. doi:10.1111/1467-8551.12204
https://doi.org/10.1111/1467-8551.12204...
; Flyvberg, 2001Flyvbjerg, B. (2001). Making social science matter. Cambridge: Cambridge University Press., 2006Flyvbjerg, B. (2006). Making organization research matter: power, values and phronesis. In S. R. Clegg, C. Hardy, T. Lawrence, & W. R. Nord (Eds.), The SAGE handbook of organization studies (pp. 370-387). London: Sage Publications.; Van de Ven, 2007Van de Ven, A. H. (2007). Engaged scholarship: a guide for organizational and social research. Oxford: Oxford University Press .). No contexto dos estudos organizacionais no Brasil, qual é o compromisso de nossas produções e ações com a redução das desigualdades, considerando o histórico silenciamento a que diversos grupos foram relegados em nosso país (Carrieri & Correia, 2020Carrieri, A. P., & Correia, G. F. A. (2020). Estudos organizacionais no Brasil: construindo acesso ou replicando exclusão? Revista de Administração de Empresas, 60(1), 59-63. doi:10.1590/s0034-759020200107
https://doi.org/10.1590/s0034-7590202001...
)?

Em um momento em que o vazio triunfa no âmbito da educação, do consumismo e da organização (Alvesson, 2013Alvesson, M. (2013). The triumph of emptiness: consumption, higher education, and work organization. Oxford: Oxford University Press.) e que testemunhamos uma proliferação de pesquisas sem sentido e valor para a sociedade (Alvesson, Gabriel, & Paulsen, 2017Alvesson, M., Gabriel, Y., & Paulsen, R. (2017). Return to meaning: a social science with something to say. Oxford: Oxford University Press .), cabe repensar nossa forma de fazer pesquisa e teorizar sobre as organizações e a sociedade em que se situam. Será que a tendência para muitos acadêmicos ainda será fazer pesquisa para ter publicações e não para dizer algo socialmente significativo? Será que é possível fazer pesquisa que tenha sentido e alcance para a sociedade para além dos interesses de grupos específicos? O processo de recuperação de sentido e relevância social na pesquisa passa pela transformação de um sistema que ultrapassa os âmbitos pessoais: reforma de organizações, instituições, identidades e práticas acadêmicas (Alvesson et al., 2017Alvesson, M., Gabriel, Y., & Paulsen, R. (2017). Return to meaning: a social science with something to say. Oxford: Oxford University Press .).

Realizar pesquisa com engajamento da sociedade e das diversas partes envolvidas torna-se um caminho valioso para pensar o futuro do trabalho acadêmico. Engajamento é uma relação que envolve negociação e colaboração entre pesquisadores e praticantes dentro de um espírito de comunidade voltado para a aprendizagem contínua. Ao invés de conceber organizações e clientes como lugares instrumentais para coletar dados e obter recursos financeiros, um pesquisador engajado os vê como um lócus de aprendizagem em que praticantes e acadêmicos coproduzem conhecimento sobre questões relevantes para todas as partes envolvidas (Van de Ven, 2007Van de Ven, A. H. (2007). Engaged scholarship: a guide for organizational and social research. Oxford: Oxford University Press .). Com efeito, impacto, sentido e relevância devem ser intrínsecos ao processo de gerar conhecimento e contribuições teóricas para o avanço de um campo de conhecimento. O engajamento da sociedade na pesquisa requer entender que o conhecimento é situado (enraizado em um tempo-espaço social, histórico, cultural, político etc.) e que será fundamental realizar uma construção dialógica de sentido num ritmo permanente de reflexividade compartilhada (Cunliffe & Scaratti, 2017Cunliffe, A. L., & Scaratti, G. (2017). Embedding impact in engaged research: developing socially useful knowledge through dialogical sensemaking. British Journal of Management, 28(1), 29-44. doi:10.1111/1467-8551.12204
https://doi.org/10.1111/1467-8551.12204...
; Haraway, 1988Haraway, D. (1988). Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, 14(3), 575-599. doi:10.2307/3178066
https://doi.org/10.2307/3178066...
; Shotter, 2010Shotter, J. (2010). Situated dialogic action research: disclosing “beginnings” for innovative change in organizations. Organizational Research Methods, 13(2), 268-285. doi:10.1177/1094428109340347
https://doi.org/10.1177/1094428109340347...
).

Nesse percurso, convidamos pesquisadores a pensar e agir em um contexto multidimensional e dentro da concepção global, desafiando a linearidade habitual do fazer e pensar científico. O pensar em círculos, em vez de linhas, se compõe, nos caminhos do artesanato intelectual, de uma teia de relações - próxima à metáfora de Morin (2020Morin, E. (2020, 26 de março). Edgar Morin : « Ressentir plus que jamais la communauté de destins de toute l’humanité ». Entrevista por S. Blin. Libération. Recuperado de https://bit.ly/2FLGTc9
https://bit.ly/2FLGTc9...
) sobre como fazer uma cesta. Entrelaçam-se círculos a tecer o “transe da crise”, que parece nos paralisar, mas não nos impede de agir. Assim, ao entendermos o transe como uma prática cultural ritualística, sensorial e complexa, que traduz um apelo por conexão (Mauss, 2003Mauss, M. (2003). Sociologia e antropologia. São Paulo, SP: CosacNaify.), talvez possamos nos perguntar: mas, afinal, com o que queremos nos conectar? De que forma vamos nos conectar com os processos de pesquisar, teorizar e fazer política?

Referências

  • Alvesson, M. (2013). The triumph of emptiness: consumption, higher education, and work organization. Oxford: Oxford University Press.
  • Alvesson, M., Gabriel, Y., & Paulsen, R. (2017). Return to meaning: a social science with something to say. Oxford: Oxford University Press .
  • Antunes, R. (2020, 5 de abril). Coronavirus e neoliberalismo: as consequências sobre a classe trabalhadora e o papel dos sindicatos [vídeo]. Recuperado de https://bit.ly/362jzl6
    » https://bit.ly/362jzl6
  • Carrieri, A. P., & Correia, G. F. A. (2020). Estudos organizacionais no Brasil: construindo acesso ou replicando exclusão? Revista de Administração de Empresas, 60(1), 59-63. doi:10.1590/s0034-759020200107
    » https://doi.org/10.1590/s0034-759020200107
  • Contu, A. (2018). ‘… The point is to change it’ - Yes, but in what direction and how? Intellectual activism as a way of ‘walking the talk’ of critical work in business schools. Organization, 25(2), 282-293. doi:10.1177/1350508417740589
    » https://doi.org/10.1177/1350508417740589
  • Contu, A. (2020). Answering the crisis with intellectual activism: making a difference as business schools scholars. Human Relations, 73(5), 1-21. doi:10.1177/0018726719827366
    » https://doi.org/10.1177/0018726719827366
  • Cunliffe, A. L., & Scaratti, G. (2017). Embedding impact in engaged research: developing socially useful knowledge through dialogical sensemaking. British Journal of Management, 28(1), 29-44. doi:10.1111/1467-8551.12204
    » https://doi.org/10.1111/1467-8551.12204
  • Danowski, D., & Viveiros de Castro, E. (2014). Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis, SC: Cultura e Barbárie.
  • Flyvbjerg, B. (2001). Making social science matter. Cambridge: Cambridge University Press.
  • Flyvbjerg, B. (2006). Making organization research matter: power, values and phronesis. In S. R. Clegg, C. Hardy, T. Lawrence, & W. R. Nord (Eds.), The SAGE handbook of organization studies (pp. 370-387). London: Sage Publications.
  • Harari, Y. N. (2020, 20 de março). The world after coronavirus. Financial Times. Recuperado de https://on.ft.com/3mKRaWy
    » https://on.ft.com/3mKRaWy
  • Haraway, D. (1988). Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, 14(3), 575-599. doi:10.2307/3178066
    » https://doi.org/10.2307/3178066
  • Mauss, M. (2003). Sociologia e antropologia. São Paulo, SP: CosacNaify.
  • Morin, E. (2020, 26 de março). Edgar Morin : « Ressentir plus que jamais la communauté de destins de toute l’humanité ». Entrevista por S. Blin. Libération. Recuperado de https://bit.ly/2FLGTc9
    » https://bit.ly/2FLGTc9
  • Preciado, P. B. (2020, 28 de março). Aprendiendo del virus. El País. Recuperado de https://bit.ly/3ct9O0f
    » https://bit.ly/3ct9O0f
  • Reed, M., & Burrell, G. (2019). Theory and organization studies: the need for contestation. Organization Studies, 40(1), 39-54. doi:10.1177/0170840617745923
    » https://doi.org/10.1177/0170840617745923
  • Santos, M. (2003). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record.
  • Shotter, J. (2010). Situated dialogic action research: disclosing “beginnings” for innovative change in organizations. Organizational Research Methods, 13(2), 268-285. doi:10.1177/1094428109340347
    » https://doi.org/10.1177/1094428109340347
  • Suddaby, R. (2016). Toward a historical consciousness: following the historic turn in management thought. M@n@gement, 19(1), 46-60. doi:10.3917/mana.191.0046
    » https://doi.org/10.3917/mana.191.0046
  • Van de Ven, A. H. (2007). Engaged scholarship: a guide for organizational and social research. Oxford: Oxford University Press .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br