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Aproximações entre Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: por uma abordagem pós-crítica radical para os estudos organizacionais

Approximations between Michel Foucault and the Frankfurt School: for a radical post-critical perspective to organizational studies

Resumo

O objetivo deste artigo é demarcar uma mudança teórica e metodológica no campo dos estudos organizacionais com a proposição de uma abordagem pós-critica radical. Inicialmente, buscamos apontar como as teorias pós-críticas são debatidas na área da educação, utilizando essas referências para construção de uma abordagem pós-crítica radical baseada em uma interlocução entre Michel Foucault e a Escola de Frankfurt, assim como no conceito de “radicalização crítica”, que aproxima teoria e práxis. Em seguida, exploramos os pontos de contato entre a perspectiva foucaultiana e frankfurtiana, cerzindo suas aproximações e interlocuções. Na sequência, aprofundamos a articulação entre essas duas perspectivas, problematizando as noções de sujeito, “radicalização crítica” e práxis. Por fim, apresentamos possibilidades para a adoção de uma abordagem pós-crítica radical nos estudos organizacionais, apontando um marco teórico, ontológico, analítico e metodológico, bem como suas implicações do ponto de vista da práxis. Nas considerações finais, enfatizamos que essa abordagem se encontra em construção, estando aberta para contribuições e debate.

Palavras-chave:
Teoria Crítica; Foucault; Pós-Critica; Epistemologia; Metodologia

Abstract

The purpose of this article is to determine a theoretical and methodological change in the field of organizational studies with the proposition of a radical post-critical approach. Initially, we verified how post-critical theories are debated in Education, using these references to construct a radical post-critical approach based on dialogue between Michel Foucault and the Frankfurt School and on the concept of “critical radicalization” which approaches theory and praxis. Next, we explore the similarities between the Foucaultian and Frankfurtian perspectives, closing their approaches and dialogue. Afterwards, we deepen the articulation between these two perspectives, problematizing the notions of subject, “critical radicalization”, and praxis. Lastly, we present possibilities for adopting a radical post-critical approach in organizational studies, formulating an initial theoretical, ontological, analytical and methodological framework, as well as its implications from the point of view of praxis. In the final considerations, we emphasize that this approach is under construction, being open for contributions and debate.

Keywords:
Critical Theory; Foucault; Post-Criticism; Epistemology; Methodology

Introdução

O amor é capacidade de perceber o semelhante no dessemelhante.

Theodor Adorno

No Brasil, as tentativas de estabelecer o que é a crítica nos estudos organizacionais e categorizar suas possíveis linhas de pesquisa vêm animando o debate acadêmico nos últimos anos. A questão é complexa e envolve elementos de natureza teórica, epistemológica e metodológica, a começar pela própria nomenclatura, pois na literatura não há um consenso sobre qual seria sua denominação1 1 “Teoria crítica e pós-modernismo nos estudos organizacionais” (Alvesson & Deetz 1999; Vieira & Caldas, 2006), “Estudos críticos de gestão” (Fournier & Grey, 2000), “estudos críticos em administração” (Davel & Alcadipani, 2003) ou “estudos organizacionais críticos” (Paes de Paula, 2008). . As categorizações também estão longe de se estabilizarem, pois há frequentes acréscimos e supressões, uma vez que o seu escopo se modifica de acordo com a perspectiva dos estudiosos.

Buscando traçar o estado da arte, Faria (2009Faria, J. H. (2009). Teoria crítica em estudos organizacionais: O estado da arte. Cadernos da EBAPE, 7(3), 509-515. doi:10.1590/S1679-39512009000300009
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) fez um exercício nesse sentido, apontando quatro direções para os estudos organizacionais críticos2 2 (1) Teoria crítica frankfurtiana, baseada na Escola de Frankfurt; (2) Teoria crítica em estudos organizacionais, que abrange, para além da Escola de Frankfurt, o marxismo, a psicologia sócio-histórica e a psicossociologia crítica, enfeixando a linha de pesquisa “economia política do poder” do próprio investigador; (3) critical management studies, que faz referência aos estudos conduzidos no contexto anglo-saxônico; e (4) análises críticas em estudos organizacionais, que envolve análises ditas não marxistas e não frankfurtianas, como pós-estruturalismo de Foucault, o pós-modernismo de Lyotard, as análises institucionais de Lourau e Lapassade, o simbolismo de Bourdieu, o imaginário de Castoriadis e a complexidade de Morin. . Recentemente, no III Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais (CBEO), realizado em 2015 na cidade de Vitória, ES, na mesa “Abordagens críticas nos estudos organizacionais”, os pesquisadores participantes também esboçaram uma classificação3 3 A mesa, organizada pelos professores e pesquisadores Deise Luiza Ferraz, Elcemir Paço Cunha, Francis Kanashiro Meneghetti, José Henrique de Faria e Maria Ceci Misoczky apontava: (1) critical management studies; (2) teoria crítica em estudos organizacionais; (3) estudos fundamentados na psicodinâmica do trabalho; (4) análises organizacionais a partir da psicossociologia; (5) estudos organizacionais pós-estruturalistas; (6) fenomenologia organizacional de Guerreiro Ramos; (7) abordagens pós-modernas; e (8) estudos organizacionais fundamentados no marxismo e nas ideias marxianas. . De modo geral, essas tentativas de taxinomia refletem que a crítica se mantém como um termo em disputa na academia. Por outro lado, essa crescente admissão de uma pluralidade de perspectivas também sinaliza que o campo possui abertura suficiente para permitir a reflexão e o alargamento do conceito.

No que se refere ao âmbito internacional, pesquisa realizada com os principais investigadores do campo revela, diferentemente do caso brasileiro, relativo consenso em torno da nomenclatura “critical management studies” (Paes de Paula, Maranhão, & Barros, 2009Paes de Paula, A. P., Maranhão, C. M. S. A., & Barros, A. N. (2009). Pluralismo, pós-estruturalismo e “gerencialismo engajado”: Os limites do movimento ‘critical management studies’. Cadernos da EBAPE , 7(3), 393-404. doi:10.1590/S1679-39512009000300002
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), que abriga uma pluralidade de perspectivas, incluindo até mesmo trabalhos interpretacionistas. Apesar de a ampliação do escopo do que se considera crítica sob essa nomenclatura caracterizar uma possível ameaça para a identidade do campo, por outro lado, ela reflete uma estratégia política para fortalecer o movimento perante o mainstream, posição que é assumida pelos próprios representantes nas entrevistas realizadas e que talvez possa começar a ser debatida no contexto nacional.

Dessa forma, emerge como desafio a necessidade de ir além dessas classificações em prol de um exercício crítico e dialético, capaz de fomentar a práxis em nosso campo. A ideia trazida por este artigo é abraçar uma posição ontológica não essencialista, mas historicizada, sobre o que é a crítica no campo de uma ciência social aplicada, que envolve as organizações e a gestão e que possibilite, acima de tudo, uma dialogicidade entre diferentes perspectivas teóricas.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é demarcar uma mudança no campo com a proposição de uma abordagem pós-critica radical para os estudos organizacionais. A base desta abordagem é a ideia de que não há domínios epistêmicos restritos para o exercício da crítica, mas a possibilidade de uma ancoragem ontológica, historicizada e fundamentada no presente, que promova produtivas interlocuções entre teorias, além do fomento às práticas de resistência, emancipação e mudança.

Além desta introdução, este artigo está estruturado em mais cinco partes. Inicialmente, buscamos apontar como as teorias pós-críticas são debatidas principalmente no domínio da educação, utilizando essas referências para construção de uma abordagem pós-crítica radical nos estudos organizacionais, que será baseada em uma interlocução entre Michel Foucault e a Escola de Frankfurt, assim como no conceito de “radicalização crítica”, que aproxima teoria e práxis. Em seguida, com base na literatura filosófica, exploramos os pontos de contato entre a perspectiva foucaultiana e a frankfurtiana, cerzindo suas aproximações e interlocuções. Na sequência, aprofundamos a articulação entre essas duas perspectivas, problematizando as noções de sujeito, “radicalização crítica” e práxis. Por fim, apresentamos possibilidades para a adoção de uma abordagem pós-crítica radical nos estudos organizacionais, apontando as bases para um marco teórico, ontológico, analítico e metodológico, bem como suas implicações do ponto de vista da práxis. Nas considerações finais, enfatizamos que essa abordagem se encontra em construção, estando aberta para contribuições e debate.

Uma abordagem pós-crítica radical para os estudos organizacionais

A possibilidade de uma abordagem pós-crítica emerge no campo da educação (Paraíso, 2004Paraíso, M. A. (2004). Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: Esboço de um mapa. Cadernos de Pesquisa, 34(122), 283-303. doi:10.1590/S0100-15742004000200002
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), sobretudo a partir da coletânea de Silva (1993Silva, T. T. (1993). Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.), que mostra como os questionamentos pós-modernos e pós-estruturalistas afetam o pensamento crítico na área. Em seguida, em outra coletânea, Silva (1994Silva, T. T. (1994). O sujeito da educação: Estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes .) amplia esses estudos trazendo a perspectiva foucaultiana para avaliar o sujeito na educação. Isso robusteceu um campo de pesquisas pós-críticas no Brasil que questionam o conhecimento (seus efeitos de verdade e de poder), o sujeito (os diferentes modos e processos de subjetivação) e os artefatos educacionais (diferentes práticas e discursos que estes produzem e instituem). Além disso, as promessas modernas, que são caras aos estudos críticos, como liberdade, conscientização, justiça, cidadania e democracia, somaram-se às questões típicas aos estudos “pós”, como gênero, etnia, raça, sexualidade, idade, incluindo questões como diferença, identidade e lutas por representação, ampliando a subjetividade crítica libertadora de Paulo Freire e a subjetividade das pedagogias críticas brasileiras.

Estudando o movimento pós-crítico na educação, Pacheco (2013Pacheco, J. A. (2013). Teoria (pós) crítica: Passado, presente e futuro a partir de uma análise dos estudos curriculares. Revista E-Curriculum, 11(1), 6-22. Recuperado de https://bit.ly/2WQh6EP
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) afirma que o pós-modernismo e o pós-estruturalismo têm como denominador comum a valorização da subjetividade e a descredibilização das metanarrativas. O sujeito deixa de ser visto pelo critério do universal e passa ser considerado pela perspectiva das identidades e das diferenças, ou seja, do ponto de vista da alteridade, que se alinha com as elaborações de Lacan (1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar .) e do último Foucault (2011Foucault, M. (2011). A hermenêutica do sujeito. São Paulo, SP: Martins Fontes .). Nesse contexto, a noção de emancipação também se altera, incorporando as ideias de Laclau (2007Laclau, E. (2007). Emancipation(s). London: Verso.), pois se distancia de uma visão totalizante e estável, bem como da noção de oposição radical, mas mantém uma operacionalidade social e uma produtividade política, apresentando-se como um pensamento de rebeldia, que não é meramente reativo, mas produtor de possibilidades e impossibilidades.

De modo geral, a consulta à literatura revelou que abordagens pós-críticas no campo das ciências humanas e sociais aplicadas ainda são pouco exploradas, mesmo na produção mais recente, pois essa nomenclatura é utilizada, como vimos, primordialmente na área da educação. Para Silva (2007Silva, T. T. (2007). Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo (2a ed.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.), por exemplo, “a teoria pós-crítica deve se combinar com a teoria crítica para nos ajudar a compreender os processos pelos quais, através de relações de poder e controle, nos tornamos aquilo que somos” (p. 47). Pesquisadores como Lopes (2013Lopes, A. C. (2013). Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade & Culturas, 39, 7-23. Recuperado de https://bit.ly/2D0UgmZ
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) e Ribeiro (2016Ribeiro, M. P. (2016). Teorias críticas e pós-críticas: Pelo encontro em detrimento do radicalismo. Movimento, 3(5), 284-317. doi:10.22409/mov.v0i5.32619
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), que abordam a teoria do currículo, concordam que as teorias pós-críticas são inegavelmente marcadas pela influência do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, mas que procuram buscar pontos de contato entre essas correntes “pós” e as “teorias críticas”.

Internacionalmente, essa possibilidade também foi discutida no campo da filosofia por Pruchnic (2012Pruchnic, J. (2012). Postcritical theory? Demanding the possible. Criticism, 54(4), 637-657. Recuperado de https://bit.ly/32M3OwK
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), que retoma questões tratadas por autores situados em campos pós-estruturalistas e pós-marxistas, como Alain Badiou, Antonio Negri, Bruno Latour, Ernesto Laclau, Félix Guattari, Fredric Jameson, Jacques Rancière, Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Michael Hardt, Michel Foucault e Slavoj Zizek, sugerindo que o ethos e os ângulos de suas abordagens estariam engajados nos vetores da teoria crítica frankfurtiana, inaugurando teorias pós-críticas.

Embora cientes do risco dessa empreitada, neste artigo pretendemos propor os esteios para a construção de uma abordagem pós-crítica radical nos estudos organizacionais. Não estamos advogando exclusividade, pois, considerando a diversidade e a amplitude teórica e metodológica disponíveis para edificação de abordagem pós-críticas, há diversas possibilidades elaborativas em aberto. No entanto, nossa proposição tem como diferencial a interlocução entre Michel Foucault e a Escola de Frankfurt e o conceito de “radicalização crítica”, que não separa teoria e práxis. Ou seja, em vez de demarcarmos as distâncias existentes entre essas duas concepções, o que buscamos foi localizar seus pontos de contato, a fim estabelecer um frutífero diálogo no que tange ao sujeito, à práxis e ao movimento da crítica em nossa contemporaneidade. Vale destacar que reconhecemos a importância dos trabalhos sobre o pensamento foucaultiano nos estudos organizacionais (Alcadipani, 2005Alcadipani, R. (2005). Michel Foucault: Poder e análise das organizações. Rio de Janeiro, RJ: EdFGV.; Motta & Alcadipani, 2004Motta, F. C. P., & Alcadipani, R. (2004). O pensamento de Michel Foucault na teoria das organizações. Revista de Administração, 39(2), 117-128. doi:10.18554/rt.v8i2.1693
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; Pereira, Oliveira, & Carrieri, 2012Pereira, R. D., Oliveira, J. L., & Carrieri, A. P. (2012). O poder e a analítica foucaultiana e possíveis (des)caminhos: Uma reflexão sobre as relações de poder em organizações familiares. Gestão.Org, 10(3), 623-652. Recuperado de https://bit.ly/3eW7zlE
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; Souza, Petinelli-Souza, & Silva, 2013Souza, E. M., Petinelli-Souza, S., & Silva, A. R. L. (2013). O pós-estruturalismo e os estudos críticos de gestão: Da busca pela emancipação à constituição do sujeito. Revista de Administração Contemporânea, 17(2), 198-217. doi:10.1590/S1415-65552013000200005
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), que já constituem uma tradição, mas no âmbito deste artigo não pretendemos explorar e detalhar essa literatura, pois o nosso objetivo é focalizar o possível diálogo entre foucaultianos e frankfurtianos.

Os distanciamentos do pensamento de Foucault em relação à Escola de Frankfurt também são discutidos na literatura, sendo usualmente sublinhada a crítica foucaultiana ao sujeito humanista e à questão da razão, o que diferencia o filósofo diante dos frankfurtianos. Sem desconsiderar a importância desse debate, optamos por enfatizar neste artigo as aproximações que são menos exploradas na literatura, com exceção de alguns trabalhos de autores como Ingram (1986Ingram, D. B. (1986). Foucault and Frankfurt School: A discourse on Niezstche, power and knowledge. Praxis International, 3, 311-327.), McCarthy (1990McCarthy, T. (1990). The critique of impure reason: Foucault and the Frankfurt School. Political Theory, 18(3), 437-469. doi:10.1177/0090591790018003005
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) e Honneth (1991Honneth, A. (1991). The critique of power: Reflective stages in a critical social theory. Cambridge: MIT Press., 2009Honneth, A. (2009). Foucault y Adorno: Das formas de una crítica a la modernidad. In Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.), mas enfatizando o enfoque trazido por Hilário e Cunha (2012Hilário, L. C., & Cunha, E. D. L. (2012). Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: Reflexões a partir da obra crítica do poder, de Axel Honneth. Trans/Form/Ação, 35(3), 157-188. doi:10.1590/S0101-31732012000300009
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) a partir de uma crítica ao pensamento Honneth, uma vez que este nos possibilita a discussão da abordagem pós-crítica radical, pois trata especialmente do último Foucault, que aborda a “estética da existência” e a “ontologia histórica de nós mesmos”.

Nesse contexto, entendemos que a crítica dirigida por Foucault (1966Foucault, M. (1966). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes., 1992Foucault, M. (1992). Microfísica do poder (10a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.) ao modelo de sujeito humanista sinaliza uma rejeição à noção de um sujeito constituinte, e não um total afastamento em relação à concepção humanista, uma vez que a possibilidade dessa interlocução foi reconhecida pelo próprio Foucault (1983Foucault, M. (1983). Structuralism and post-structuralism: An interview with Michel Foucault. Telos, 55, 195-211. doi:10.3817/038305519
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), que afirmou em uma entrevista: “se eu tivesse me familiarizado com a Escola de Frankfurt . . . não teria dito várias das coisas estúpidas que disse e teria evitado muitos desvios ao tentar seguir meu próprio caminho - enquanto, nesse meio tempo, avenidas eram abertas pela Escola de Frankfurt” (p. 29). É válido ressaltar que entendemos que essa possível aproximação também se estende ao movimento pós-estruturalista como um todo, que abarca também autores como Lacan e Laclau, sinalizando outra forma de pensar a própria crítica nos estudos organizacionais.

Antes de prosseguirmos, porém, é necessário destacar que a abertura epistêmica e as possibilidades de interlocução aqui defendidas não são sinônimos de um ecletismo teórico inconsistente. Não se trata de realizarmos uma bricolagem de forma irrefletida, apropriando-nos convenientemente das noções ou dos conceitos de diversas correntes de pensamento. O que se busca é situar as diferenças e reconhecer as distâncias que lhes são próprias, para só então buscarmos cerzir possibilidades de diálogo que inaugurem vias de reflexão que antes não se mostravam tão evidentes. Basta lançar um olhar genealógico para a trajetória do pensamento no campo das ciências sociais e humanas para percebermos que essa “postura transgressora” esteve presente em diversos deslocamentos teóricos e analíticos, como no campo dos estudos organizacionais, na interlocução realizada por Tragtenberg (1974/2006)Tragtenberg, M. (2006). Burocracia e ideologia (2a ed.). São Paulo: EdUNESP. (Trabalho original publicado em 1974) entre Marx e Weber e nas aproximações que Guerreiro Ramos (1989Guerreiro Ramos, A. (1989). A nova ciência das organizações: Uma reconceituação da riqueza das nações (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: EdFGV .) realiza entre a teoria crítica e a fenomenologia.

Aproximações entre Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: um deslocamento da analítica da verdade para a analítica do presente

A aproximação entre Michel Foucault e a Escola de Frankfurt não representa uma novidade no campo da filosofia, tendo sido percebida e discutida, por exemplo, por Axel Honneth (1991Honneth, A. (1991). The critique of power: Reflective stages in a critical social theory. Cambridge: MIT Press.) na obra The critique of power. O filósofo constata essa identificação, mas não poupa foucaultianos e frankfurtianos, atribuindo a eles certo funcionalismo por sobrevalorizarem uma versão teórico-sistêmica da sociedade, fundamentada no poder. Além disso, padeceriam de um “déficit sociológico” por não atribuírem papel essencial para a identificação de normas morais e das operações interpretativas pelos sujeitos. Honneth (2009Honneth, A. (2009). Foucault y Adorno: Das formas de una crítica a la modernidad. In Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.) também afirma que não teriam construído uma teoria que explique como os sujeitos experimentam as patologias sociais e expressam essa vivência por meio de conflitos sociais e movimentos políticos.

Honneth (1991Honneth, A. (1991). The critique of power: Reflective stages in a critical social theory. Cambridge: MIT Press., 2009Honneth, A. (2009). Foucault y Adorno: Das formas de una crítica a la modernidad. In Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.) identifica similaridades entre o recurso foucaultiano e o panoptismo, como sistema fechado e autorregulado, e a sociedade administrada (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno T., & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), ou a sociedade unidimensional (Marcuse, 1967Marcuse, H. (1967). A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Além disso, a frase em Vigiar e punir “às Luzes que descobriram as liberdades também inventaram as disciplinas” (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). Vigiar e punir: Nascimento da prisão (36a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes., p. 209), dialoga diretamente com a Dialética do Esclarecimento (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno T., & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), pois o “lado escuro do processo civilizador moderno” em Foucault acena para certa correspondência à “história subterrânea” em Adorno e Horkheimer. No entanto, para Honneth (1991Honneth, A. (1991). The critique of power: Reflective stages in a critical social theory. Cambridge: MIT Press., 2009Honneth, A. (2009). Foucault y Adorno: Das formas de una crítica a la modernidad. In Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.), o fundamento da crítica de Foucault e dos frankfurtianos, que aposta na resistência ao disciplinamento corporal e psíquico, estaria prejudicado porque o próprio processo de construção racional da crítica se entrelaça ao seu objeto, que são as relações de poder e de dominação.

Hilário e Cunha (2012Hilário, L. C., & Cunha, E. D. L. (2012). Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: Reflexões a partir da obra crítica do poder, de Axel Honneth. Trans/Form/Ação, 35(3), 157-188. doi:10.1590/S0101-31732012000300009
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) enfatizam que Axel Honneth acerta ao considerar Michel Foucault praticamente um herdeiro da tradição crítica frankfurtiana, mas falha ao desconsiderar, nessas aproximações, a modificação empreendida por Foucault em seu pensamento a partir de 1976, na direção de uma “estética da existência” e de uma “ontologia histórica de nós mesmos”. Para os autores, essas aproximações precisam ser consideradas a partir da maneira como o próprio Foucault compreende sua vinculação com essa tradição de pensamento, que implica um deslocamento de uma analítica da verdade para uma analítica do presente. Citam então Foucault (2010)Foucault, M. (2010). O governo de si e dos outros: Curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo, SP: Martins Fontes .:

E me parece que a opção filosófica com a qual nos vemos confrontados atualmente é a seguinte. É preciso optar ou por uma filosofia crítica que se apresentará como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou por um pensamento crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade. E é essa forma de filosofia, que de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche, Max Weber etc., fundou uma nova forma de reflexão a qual, é claro, eu me vinculo na medida em que posso. (pp. 21-22)

Hilário e Cunha (2012Hilário, L. C., & Cunha, E. D. L. (2012). Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: Reflexões a partir da obra crítica do poder, de Axel Honneth. Trans/Form/Ação, 35(3), 157-188. doi:10.1590/S0101-31732012000300009
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) percebem esta reorientação a partir da publicação do primeiro volume de História da sexualidade (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). História da sexualidade: A vontade de saber (13a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal .), pois nessa obra o filósofo opera um deslocamento para além da questão do poder e do saber para abranger os modos de constituição do sujeito. Nessa perspectiva, Foucault (2010Foucault, M. (2010). O governo de si e dos outros: Curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo, SP: Martins Fontes .) afirma que “não é o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral da minha pesquisa” (p. 274). Axel Honneth não teria incluído em suas análises essa fase tardia do pensamento foucaultiano, não considerando essa modificação, nem como ela se aproxima de um resgate e uma atualização do projeto frankfurtiano. Nesse movimento, Foucault (2010)Foucault, M. (2010). O governo de si e dos outros: Curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo, SP: Martins Fontes . estaria substituindo a história dos conhecimentos pela análise histórica das formas de veridicção (temos, assim, a analítica do presente no lugar da analítica da verdade), além de substituir a teoria do sujeito e a história da subjetividade pela “análise histórica da pragmática em si”, ou seja, a “história das experiências”.

Sampaio (2011Sampaio, S. S. (2011). A liberdade como condição das relações de poder em Michael Foucault. Revista Katális, 14(2), 222-229. doi:10.1590/S1414-49802011000200009
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) nos lembra que Foucault (1994a)Foucault, M. (1994a). Entretien avec Michel Foucault. In Dits et écrits (Vol. IV, pp. 41-95). Paris: Gallimard. define experiência como “qualquer coisa que se faz sozinho, mas que só se pode fazê-la plenamente na medida em que ela escape à pura subjetividade e a qual os outros poderão, eu não digo exatamente repeti-la, mas pelo menos encontrá-la e atravessá-la” (p. 47). Hilário e Cunha (2012Hilário, L. C., & Cunha, E. D. L. (2012). Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: Reflexões a partir da obra crítica do poder, de Axel Honneth. Trans/Form/Ação, 35(3), 157-188. doi:10.1590/S0101-31732012000300009
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) destacam que Foucault busca ir além dos estados de dominação nos quais a liberdade é obstaculizada, pois postula que o poder não possui apenas um caráter repressivo, mas também se apresenta a partir de feixes positivos, isto é, capazes de produzir sentido e realidade para os sujeitos. Nesse contexto, o sujeito e sua possibilidade de resistência ganham proeminência, não como um ser absoluto, mas como um “lugar de ressignificação”, inserido na perspectiva de uma “ontologia historicizada” (Pereira, 2015Pereira, R. D. (2015). O sujeito em Foucault: Pressupostos, possibilidades e suas interlocuções com os estudos organizacionais. Artigo apresentado no XXXIX Encontro da Anpad, Belo Horizonte, MG.). Nas palavras de Sampaio (2011)Sampaio, S. S. (2011). A liberdade como condição das relações de poder em Michael Foucault. Revista Katális, 14(2), 222-229. doi:10.1590/S1414-49802011000200009
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O sujeito foucaultiano é inacabado por excelência, nesse caso, inacabado não apenas no sentido de algo que ainda não foi terminado ou concluído. Aqui seu significado ganha a história: sujeito construído, produto histórico, somatório de processos de subjetivação. Não é um sujeito interrompido, pois não há uma essência primordial que foi usurpada, é um sujeito presente e pleno de devir. Sujeitos no plural, múltiplos, e não um sujeito-substância e invariável, como produto histórico no lugar de uma concepção essencialista de sujeito. Temos a ausência de um sujeito prometido, o sujeito transcendental e universal - essa é a recusa foucaultiana. (p. 226)

Para Hilário e Cunha (2012Hilário, L. C., & Cunha, E. D. L. (2012). Michel Foucault e a Escola de Frankfurt: Reflexões a partir da obra crítica do poder, de Axel Honneth. Trans/Form/Ação, 35(3), 157-188. doi:10.1590/S0101-31732012000300009
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), tanto Foucault quanto Adorno e Horkheimer “compreendem os processos de sujeição como consequência lógica dos discursos emancipatórios” (p. 183). Considerando que apenas a reflexão não é fundamento seguro da emancipação, uma vez que o seu próprio discurso pode comprometer a autonomia do sujeito, qual seria o recurso da crítica para superar isso? Esta é a aporia, ou em outras palavras, a situação sem saída, partilhada pelos foucaultianos e frankfurtianos, que fundamenta a crítica de Axel Honneth (1991Honneth, A. (1991). The critique of power: Reflective stages in a critical social theory. Cambridge: MIT Press., 2009Honneth, A. (2009). Foucault y Adorno: Das formas de una crítica a la modernidad. In Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.). No entanto, há uma possibilidade, a “radicalização crítica”, da qual trataremos na próxima seção.

Aproximações e articulações entre foucaultianos e frankfurtianos: a “radicalização crítica”

Nosso ponto de partida para abordar essa possibilidade da “radicalização crítica” será a forma como Michael Foucault trata o próprio conceito de crítica. Tomaremos como base as considerações de Senellart (1995Senellart, M. (1995). A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, 7(1/2), 1-14. doi:10.1590/ts.v7i1/2.85117
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), que afirma que o filósofo se apoia em uma leitura particular de Kant, articulada ao seu projeto de “ontologia do presente”. Foucault enfatiza, principalmente, a maneira como Kant se coloca diante da questão do Esclarecimento (Aufklärung) - a saída do homem do estado de minoridade para que tenha coragem de pensar com sua própria cabeça -, que ele aponta como uma “atitude totalmente nova”. Para Foucault (1994b)Foucault, M. (1994b). Qu’est-ce que les lumières? In Dits et écrits (Vol. IV, pp. 562-578). Paris: Gallimard ., a atitude seria um “modo de relação com a atualidade” que coloca o “sujeito em ação”, de modo que a atitude crítica seria indissociável de uma “ontologia do presente”.

Senellart (1995Senellart, M. (1995). A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, 7(1/2), 1-14. doi:10.1590/ts.v7i1/2.85117
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) destaca que Foucault (1990Foucault, M. (1990). Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung - Conférence du 27 mai 1978. Bulletin de la Societé Française de Philosophie, 82(2), 35-63.) teria notado que Kant não leva às últimas consequências sua máxima, pois, uma vez que deslocou a crítica para o plano do saber, acabou neutralizando seus efeitos políticos, fundando uma obediência na própria ideia de autonomia. Isso teria gerado a suspeição da filosofia em relação ao Esclarecimento (Aufklärung), especialmente em relação à sua excessiva racionalização e a suas recaídas dominadoras, linhagem na qual se situam tanto Foucault quanto a Escola de Frankfurt. Dessa forma, a atenção de Foucault se dirige para as práticas imanentes e os mecanismos sociais que produzem o saber real, bem como os seus efeitos de poder. Além disso, o filósofo francês se interroga sobre “o que é o presente ao qual pertenço e como poderia transformá-lo?”. É essa questão que define a atitude crítica em Foucault, pois não se trata de fiar-se em um sujeito plenamente consciente de si, mas precisamente em um sujeito que duvida das posições de verdade e da racionalidade. Um sujeito historicamente situado, mas capaz de resistir e interrogar a si e à realidade que o cerca a partir das relações de poder e dos discursos de verdade de seu contexto. Para Foucault, as práticas de resistência são justamente o elemento-chave da dinâmica do poder.

Veja que, se não há resistência, não há relações de poder, porque tudo seria simplesmente uma questão de obediência. A partir do momento em que o indivíduo está em uma situação de não fazer o que quer, ele deve utilizar as relações de poder. A resistência vem em primeiro lugar, e ela permanece superior a todas as forças do processo; seu efeito obriga a mudarem as relações de poder. Eu penso que o termo “resistência” é a palavra mais importante, a palavra-chave dessa dinâmica. . . . Eu penso que a resistência é um elemento das relações estratégicas nas quais se constitui o poder. A resistência se apoia, na realidade, sobre a situação à qual combate”. (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política de identidade. Verve, 5, 260-277. doi:10.23925/verve.v0i5.4995
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, pp. 268-269)

Foucault reelabora então a sua análise de poder a partir do conceito de “governamentalidade” na conferência primeiro intitulada Qu’est-ce que la critique? de 1978, publicada apenas em 1990. Segundo Senellart (1995Senellart, M. (1995). A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, 7(1/2), 1-14. doi:10.1590/ts.v7i1/2.85117
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), infelizmente esse texto é pouco conhecido, mas é nele que Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung - Conférence du 27 mai 1978. Bulletin de la Societé Française de Philosophie, 82(2), 35-63. evidencia o laço entre a “atitude crítica” e a “governamentalidade”, mostrando com clareza que a crítica não transcende o presente, uma vez que se inscreve nas dobras dos jogos de poder. É na dialética existente entre a resistência ao governo e o desejo de governar que se situa a “atitude crítica”. A tarefa da “governamentalidade” envolve a autocrítica, a contracrítica e a “radicalização crítica”.

Na interpretação de Senellart (1995Senellart, M. (1995). A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, 7(1/2), 1-14. doi:10.1590/ts.v7i1/2.85117
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), a “radicalização crítica” precisa ser compreendida de modo a não desvincular teoria e prática. O autor afirma que Foucault concordava que o papel do intelectual não é o de propor reformas, mas de contribuir, mudando os modos de pensar que impedem que as transformações ocorram. No entanto, Foucault também não recusava a necessidade das ações, mas sim a ideia de que estas devam ser programadas, pois precisam emergir das lutas e resistências aos “jogos de poder”. Além disso, não estava de acordo com a acusação de que isso seria reformismo, pois a reforma é uma maneira de estabilizar um sistema de poder, sendo que essas lutas promovem contínua desestabilização. Para Senellart (1995)Senellart, M. (1995). A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, 7(1/2), 1-14. doi:10.1590/ts.v7i1/2.85117
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A crítica é . . . a experiência permanente da ultrapassagem. A libertação, não como horizonte de uma liberação definitiva, mas como ultrapassagem, que precisa sempre ser reencenada, das linhas de crise que atravessam um sistema (suas “fronteiras”), tal é, para Foucault, a atitude política que se deve tentar realizar. (p. 12)

No contexto da Escola de Frankfurt, essa “atitude crítica” segue uma trajetória similar. Para além das suspeitas e do pessimismo em torno do Esclarecimento (Aufklärung), Foucault e os frankfurtianos partilham da ideia de que a partir da negatividade é possível derivar o afirmativo. Para Horkheimer (1976Horkheimer, M. (1976). Eclipse da razão. Rio de Janeiro, RJ: Labor do Brasil.), o caráter positivo pode ser extraído da renúncia das verdades definitivas e da veneração do finito (ídolos políticos, econômicos ou culturais) e da recuperação da historicidade, que pode colocar em questão essas visões, criticando-as a fim de transcendê-las. Assim, tanto em Michael Foucault como na Escola de Frankfurt, a atitude crítica é a base para a mudança, uma vez que leva ao desprendimento do normatizado e do hábito, estabelecendo um ponto de partida para a construção de novas referências. Vale notar que o projeto original dos frankfurtianos de primeira geração era elaborar uma crítica da filosofia com intenção prática (Bronner, 1997Bronner, S. E. (1997). Da teoria crítica e seus críticos. Campinas, SP: Papirus.; Horkheimer, 1990Horkheimer, M. (1990). Teoria crítica: Uma documentação. São Paulo, SP: Perspectiva.), que é recuperada e atualizada tanto na analítica da verdade quanto na analítica do presente foucaultiana, ambas inspiradas em obras críticas kantianas.

De acordo com Gelamo (2009Gelamo, R. P. (2009). O ensino da filosofia no limiar da contemporaneidade: O que faz o filósofo quando o seu ofício é ser professor de filosofia? São Paulo, SP: EdUNESP.), a analítica da verdade funda-se na ontologia do presente, que “tem como finalidade detectar na atualidade a densidade do problema a ela imanente” (p. 107). O resgate da historicidade e da ontologia do presente, que se traduz em uma “ontologia historicizada” (Pereira, 2015Pereira, R. D. (2015). O sujeito em Foucault: Pressupostos, possibilidades e suas interlocuções com os estudos organizacionais. Artigo apresentado no XXXIX Encontro da Anpad, Belo Horizonte, MG.), que pensa o sujeito na atualidade a partir de sua trama histórica, manifesta-se tanto em Michel Foucault quanto na Escola de Frankfurt. Theodor Adorno, no texto Educação após Auschwitz, teria se dedicado a pensar a atualidade educacional, realizando uma ontologia do presente, procedimento que, segundo Gelamo (2006)Gelamo, R. P. (2006). Analítica do presente e educação após Auschwitz: Aproximações. Artigo apresentado na XXIX Reunião da Anped, Caxambu, MG., também é partilhado por Kant, Nietzsche e Foucault. Outros textos da Escola de Frankfurt seguem essa direção, inclusive a própria Dialética do Esclarecimento (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno T., & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.), com sua análise da indústria cultural e do antissemitismo, além de A ideologia da sociedade industrial (Marcuse, 1967Marcuse, H. (1967). A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), abordando o status do industrialismo na época.

A partir das suspeitas em relação ao Esclarecimento (Aufklärung), entre Michael Foucault e a Escola de Frankfurt também se estabelece um elo quanto à concepção de sujeito, pois ambos partilham da percepção de como, a partir de processos supostamente emancipatórios, o sujeito se essencializa e renova a obediência a partir da própria noção de autonomia. Essa trajetória é realizada por Adorno e Horkheimer (1985)Adorno T., & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. em Dialética do esclarecimento, no excurso de Ulisses, pois, de acordo com alguns interpretadores (Gagnebin, 2006aGagnebin, J. M. (2006a). A memória dos mortais: Notas para uma definição de cultura a partir da leitura da Odisséia. In Lembrar, escrever, esquecer (pp. 13-27). São Paulo, SP: Editora 34., 2006bGagnebin, J. M. (2006b). Homero e a dialética do esclarecimento. In Lembrar, escrever, esquecer (pp. 29-37). São Paulo, SP: Editora 34 .), a Odisseia descreve a construção de um sujeito racional que busca um “eu soberano”, que os filósofos assinalam que deriva da dominação da natureza e da autorrepressão, mostrando, a partir de Marx, Freud e Nietzsche, que o custo desta “odisseia” é alto, pois implica a violação da própria subjetividade, ou seja, o abandono da plasticidade da vida e do seu lado de êxtase. Nas palavras de Gagnebin (2006b)Gagnebin, J. M. (2006b). Homero e a dialética do esclarecimento. In Lembrar, escrever, esquecer (pp. 29-37). São Paulo, SP: Editora 34 .:

Interessa a nossos autores não só descrever essa história, mas sim, também ressaltar o preço pago pela humanidade para chegar à assim chamada “idade da razão”. Isto é: a história da emancipação do mito e do devir adulto não é somente um devir progressivo e luminoso, como pretendiam, as luzes do Iluminismo, mas também deve ser denunciada, seguindo Nietzsche e Freud, como sendo a gênese violenta e violentadora, cujo preço é alto. Antissemitismo e nazismo serão compreendidos como o retorno desta violência recalcada. (p. 30)

Michel Foucault também realiza uma trajetória similar e fala da “morte do sujeito”, mas na realidade está se referindo a esse sujeito racional, que busca um eu soberano, como argumenta Pereira (2015Pereira, R. D. (2015). O sujeito em Foucault: Pressupostos, possibilidades e suas interlocuções com os estudos organizacionais. Artigo apresentado no XXXIX Encontro da Anpad, Belo Horizonte, MG.). Isso porque, na sua interpretação, o filósofo busca descartar o ideal do projeto iluminista de um homem universal e transcendental, fundador da história. Seria preciso abandonar esse ideal de sujeito para que este possa resgatar sua própria subjetividade: “É preciso livrar-se do sujeito constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é chegar a uma análise que possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica” (Foucault, 1992Foucault, M. (1992). Microfísica do poder (10a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 7).

Em síntese, Michel Foucault e a Escola de Frankfurt partilham: (1) de suspeitas em relação ao excesso de racionalização e às tendências dominadoras do Esclarecimento (Aufklärung); e (2) da noção de que os processos suspostamente emancipatórios podem custar a própria autonomia do sujeito. A partir dessas constatações, procuram estabelecer uma “ontologia historicizada” e construir uma analítica do presente, bem como fundar uma nova noção de sujeito, tarefas nas quais Foucault se aprofunda e promove um resgate e, ao mesmo tempo, uma atualização do projeto frankfurtiano.

Por outro lado, foucaultianos e frankfurtianos também realizam uma aproximação no que se refere à “radicalização crítica”, pois, ao buscarem uma analítica do presente, uma “história das experiências”, fundamentam-se nos processos de subjetivação e nas ações dos sujeitos na sua interação com o mundo que os cerca, que engendra as lutas e resistências ao poder constituído, desestabilizando o sistema e construindo “contrapoderes”. Os sujeitos, assim, assumem uma “atitude crítica”, que implica a dialética entre a resistência ao governo e o desejo de governar.

Implicações para os estudos organizacionais: por uma abordagem pós-crítica

As aproximações entre foucaultianos e frankfurtianos também nos permitiram refletir sobre as implicações que uma analítica do presente teria para os estudos organizacionais. As tentativas de encontrar pontos em comum entre a Escola de Frankfurt e os ditos “movimentos pós-modernos” povoam a literatura na área desde o texto de Alvesson e Deetz (1999Alvesson, M., & Deetz, S. (1999). Teoria crítica e abordagens pós-modernas para estudos organizacionais. In S. R. Clegg, C. Hardy, W. R. Nord, M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer (Eds.), Handbook de estudos organizacionais: Modelos de análise e novas questões em estudos organizacionais (Vol. 1, pp. 227-266). São Paulo, SP: Atlas.) no Handbook de estudos organizacionais. Uma questão crucial era como superar o imobilismo político, uma vez que tanto teóricos críticos quanto pós-modernos e pós-estruturalistas tendem a se distanciar da prática nas organizações. No caso dos primeiros, tratava-se de escapar das acusações de concessões ao funcionalismo, enquanto os demais enfrentavam a questão de como recuperar a práxis depois de ter anulado a ação do sujeito em favor de uma hipertrofia da estrutura.

Alvesson e Deetz (1999Alvesson, M., & Deetz, S. (1999). Teoria crítica e abordagens pós-modernas para estudos organizacionais. In S. R. Clegg, C. Hardy, W. R. Nord, M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer (Eds.), Handbook de estudos organizacionais: Modelos de análise e novas questões em estudos organizacionais (Vol. 1, pp. 227-266). São Paulo, SP: Atlas.) sugeriram uma “bricolagem” entre pós-modernismo e teoria crítica, mas enfatizaram mais o primeiro, o que obstaculiza a possibilidade de diálogo. Nota-se, ainda, uma tendência de se perpetuar uma estrutura dualista de interpretação, que coloca os críticos como os “donos do saber sobre a opressão”, os trabalhadores como “engrenagens do sistema” e os gerentes como “os caras maus à serviço do capitalismo”. Ora, quando consideramos a possibilidade de uma analítica do presente e utilizamos o conceito de “governamentalidade”, percebemos que todos estão implicados, de modo que o “. . . importante é dar conta de uma crítica que seja capaz de construir propostas de ação, de resistência e de transformação” (Pereira, 2015Pereira, R. D. (2015). O sujeito em Foucault: Pressupostos, possibilidades e suas interlocuções com os estudos organizacionais. Artigo apresentado no XXXIX Encontro da Anpad, Belo Horizonte, MG., p. 16).

Dessa forma, a “radicalização crítica”, discutida na seção anterior, que coloca Michel Foucault em franco diálogo com a Escola de Frankfurt, recuperando o foco nos sujeitos, nas suas práticas e nas suas histórias em interlocução com o presente, poderia ser a base de uma nova forma de pensar os estudos organizacionais. Assim, partindo da “radicalização crítica” que sustenta essa interlocução, sugerimos uma abordagem pós-crítica radical para estudo das organizações, cujas bases, anteriormente discutidas neste artigo e aqui sumariadas, seriam:

  1. Do ponto de vista teórico, considerando a literatura explorada pelos pesquisadores da abordagem pós-critica, que foi apresentada na segunda seção, defendem-se interlocuções que abarcam desde a Escola de Frankfurt até Michel Foucault e que se espraiam para a teoria crítica e o pós-estruturalismo, incorporando contribuições também da psicanálise freudiana e lacaniana, bem como dos estudos pós-marxistas, que envolvem autores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.

  2. O ponto de vista paradigmático-epistemológico é abandonado em favor de um ponto de vista ontológico, historicizado e focalizado no presente, questão que foi discutida nas terceira e quarta seções, ou seja, os sujeitos são pensados na atualidade a partir de suas tramas históricas e, mais do que a ideia de visões de construção de conhecimento que nos limitam a domínios de atuação científica, o que importa é enfatizar o que a realidade dos sujeitos e de suas histórias está nos contando e também o modo como suas práticas de resistência desestabilizam os sistemas de poder e ressignificam a “governamentalidade”.

  3. Do ponto de vista dos recortes analíticos, conforme discutido nas seções anteriores, enfatiza-se o foco no sujeito e nos processos de subjetivação, destacando identidades, diferenças e alteridade, e o foco na prática, na operacionalidade social e na produtividade política, pois, para além da oposição radical, o que se busca é a construção de possibilidades e impossibilidades.

  4. Do ponto de vista metodológico, de acordo com o que foi abordado nas segunda e terceira seções, encoraja-se a adoção de instrumentos e métodos que respondam mais aos problemas de pesquisa do que a qualquer imperativo de “legitimação científica” imposto nos contextos acadêmicos e institucionais. Assim, privilegia-se a articulação entre diferentes técnicas e caminhos, estimulando, inclusive, a criação de alternativas metodológicas a partir das realidades vivenciadas no campo empírico e, ainda, a utilização de história oral e de construção de narrativas, considerando que o ponto fundamental é a presentificação do passado, tendo em vista o conceito anteriormente explorado de ontologia do presente. Também se incentiva que a tradicional crítica ao sujeito pesquisador “neutro” seja, de fato, acompanhada por uma postura mais engajada e dialógica entre o pesquisador e os sujeitos presentes na realidade sobre a qual se debruça. Mais do que isso, estimula-se o desenvolvimento de projetos propositivos focados na ação e na intervenção sobre a realidade, porém, sem entronizar o pesquisador como produtor inquestionável das respostas ou da “verdade”. Assim, o papel do pesquisador é deslocado para aquele que, em alguns casos, pode agir como facilitador ou catalisador dos processos de intervenção e, em outros contextos, como aquele que inventaria, problematiza e difunde as respostas criadas pelos sujeitos na contingência de suas demandas.

  5. Do ponto de vista da práxis, conforme explorado na quarta seção, a ideia é recuperar o compromisso com uma agenda política focada na ação e na transformação. O caráter de denúncia aos modos de dominação e opressão permanece válido, desde que tal crítica não constitua um fim em si mesma. Ou seja, mais importante do que inventariar o óbvio é propor vias de ação a partir dos contextos de lutas dos sujeitos reais e dos problemas de nosso tempo. Assim, partindo dessa ancoragem no presente, o receio de soar “reformista” deve ser substituído por propostas de ações. Toda e qualquer agenda será sempre entendida como situada e permeada por contradições, porém, nem por isso deixa de ser válida, desde que contribua para desestabilizar os modos de opressão vigentes e que esteja continuamente aberta à ressignificação pelos sujeitos. “Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida na forma da limitação necessária em uma crítica prática na forma do ultrapassamento possível” (Adverse, 2010Adverse, H. (2010). O que é “ontologia do presente”? Nuntius Antiquus, 6, 129-152., pp. 144-145).

Vale ainda acrescentar que, do ponto de vista do método, o próprio Foucault (1999Foucault, M. (1999). História da sexualidade: A vontade de saber (13a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal .) propõe o que chama de prescrições de prudência, que não devem ser tomadas como imperativos metodológicos, que descrevemos a seguir:

  1. Regra da imanência: os fenômenos se estabelecem como domínios a se conhecer a partir de relações de poder que os instituíram como objeto possível, que envolve a tradução desse poder em técnicas de saber e procedimentos discursivos.

  2. Regras das variações contínuas: tanto as distribuições de poder quanto as apropriações de saber são “cortes instantâneos” em processos, que implicam reforço acumulado do elemento mais forte, inversão da relação e aumento simultâneo de dois termos. Em outras palavras, poder e saber são “matrizes de transformações” e assim precisam ser tratados.

  3. Regra do duplo condicionamento: o “foco local” e o “esquema de transformação” realizam encadeamentos sucessivos que se inserem em uma estratégia global, que do mesmo modo se apoia em relações precisas e tênues que lhe servem de suporte e ponto de fixação. Não há aqui uma descontinuidade, mas também nenhuma homogeneidade, e sim um duplo condicionamento que se traduz em uma estratégia baseada em táticas possíveis e táticas que engendram tal estratégia.

  4. Regra da polivalência tática dos discursos: é no discurso que se articulam poder e saber e esse discurso é feito de uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme e nem estável. Assim, não se trata de separar o discurso do dominante e o discurso do dominado, mas entendê-los como uma multiciplidade de elementos discursivos que animam diferentes estratégias, pois o discurso pode ser instrumento e efeito de poder, mas também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida, uma vez que produz poder, mas também pode miná-lo e barrá-lo.

Observe que essas regras se aplicam ao poder tanto em sua perspectiva negativa quanto em sua perspectiva positiva e que elas estão ancoradas na analítica do presente. Por outro lado, vale a pena destacar a importância que Foucault atribui aos procedimentos discursivos. Contudo, ele indica, ao mesmo tempo, a sua forma de analisá-los, de modo que é preciso avaliar com cuidado metodologias de análise de discurso alheias ao corpus de pensamento foucaultiano. Além disso, o foco das regras recai sobre a atitude crítica, a ideia de “radicalização”, a “governamentalidade” e as práticas de dominação e resistência, tal como apresentamos enquanto produto da interlocução entre foucaultianos e frankfurtianos.

Essa abordagem é denominada pós-crítica radical, pois não se atém exclusivamente às fronteiras da teoria crítica e nem ao pós-estruturalismo, mas enfatiza precisamente a interlocução entre ambas perspectivas, priorizando não a teoria, e sim a práxis. Também é “pós” no sentido de demarcar um momento posterior nesse campo de produção do conhecimento, pois procura se deslocar para outra forma de investigação e outra lógica de reflexão.

Mas não se trata de um receituário filosófico: trata-se, antes, de abalar a universalidade daquilo que é reconhecido como óbvio no tempo atual como estratégia para promover outras formas de subjetividade. Na verdade, esse é o trabalho ético que está reservado a todos nós e que Foucault certa vez formulou de maneira muito sugestiva e reveladora: o que está em jogo é um “trabalho paciente que dê forma à impaciência da liberdade”. Essa declaração é reveladora porque deixa transparecer uma tese de fundo que orienta toda a reflexão de Foucault: a de uma indeterminação radical de nossa existência. Mas se essa indeterminação pode ser entendida negativamente como a necessidade de ultrapassamento de limites, ela também pode ser tomada positivamente como o trabalho constante de dar forma à própria existência. (Adverse, 2010Adverse, H. (2010). O que é “ontologia do presente”? Nuntius Antiquus, 6, 129-152., p. 150)

Considerações finais

Neste artigo, nosso objetivo foi apresentar uma abordagem pós-crítica radical para os estudos organizacionais. Para isso, exploramos as contribuições trazidas pelo debate das teorias pós-críticas no campo da educação, evidenciando que elas são profundamente marcadas por pós-modernismo e pós-estruturalismo, porém buscam essencialmente realizar uma aproximação entre essas correntes “pós” e as teorias críticas, unindo questões caras aos estudos críticos - como liberdade, cidadania, justiça e democracia - a questões emergentes nos estudos “pós” - como diferença, identidade e lutas por representação -, valorizando-se a subjetividade.

Considerando a lacuna ainda existente no desenvolvimento de abordagens pós-críticas no campo dos estudos organizacionais, buscamos construir uma abordagem radical que se baseia em uma interlocução entre os pensamentos foucaultiano e frankfurtiano. A consulta à literatura evidenciou que há muitos pontos de contato entre essas matrizes de pensamento filosófico, uma vez que elas partilham tanto da crítica ao excesso de racionalização e dominação derivado do Esclarecimento quanto da noção de que processos, supostamente emancipatórios, podem afetar a autonomia do sujeito. Dessa forma, a saída seria se basear em uma “ontologia historicizada” e em uma “analítica do presente”, ou seja, pensar o sujeito no presente a partir de sua história, refundando a própria noção de sujeito, o que significa fazer recurso à perspectiva foucaultiana de modo a atualizar o projeto frankfurtiano.

Além disso, Foucault e a Escola de Frankfurt se aproximam no que se refere a uma “radicalização crítica”, pois ao buscarem, por meio da analítica do presente, uma “história de experiências”, tomam como base os processos de subjetivação e as ações dos sujeitos no mundo no qual estão inseridos, de modo que evidenciam lutas e resistências desses ao poder constituído. Isso significa que esses sujeitos assumem uma “atitude crítica”, fazendo face à dialética entre a resistência ao governo e o desejo de também governar. Dessa forma, emerge a “radicalização crítica”, que busca unir teoria e práxis, ou seja, o conhecimento da opressão e a vontade de mudança por meio de ações.

Essa aproximação entre Foucault e a Escola de Frankfurt, fundamentada na “radicalização crítica”, ofereceu-nos elementos para estabelecer as bases de uma abordagem pós-crítica radical para os estudos organizacionais. No que se refere à teoria, além de interlocuções entre os supracitados pensamentos, também é possível abranger outras vertentes da teoria crítica e do pós-estruturalismo, incorporando ainda a psicanálise e os estudos pós-marxistas. A referência para a aplicação dessas teorias não seria paradigmática-epistemológica, mas ontológica, historicizada e focalizada no presente, abarcando práticas de resistência dos sujeitos, que trazem novos sentidos à “governamentalidade”. Já os recortes analíticos tomariam como foco o sujeito e os processos de subjetivação, bem como a prática social e a ação política. No que tange à metodologia, buscar-se-ia não o enfoque tradicional, mas alternativas que se adequem ao campo empírico, com destaque para a história oral e a construção de narrativas, colocando o pesquisador não só como um observador, mas também um possível facilitador de intervenções, considerando a centralidade da práxis nesse projeto de investigação, que busca uma agenda política focada na ação e na transformação. Aqui cabem também as prescrições de prudência trazidas pelo próprio Foucault no que se refere ao fenômeno do poder e da resistência.

Como enfatizamos anteriormente, a abordagem pós-crítica radical focaliza principalmente a interlocução entre perspectivas pós-estruturalistas e críticas, evitando ainda a dissociação entre teoria e prática. É “pós” porque procura novas formas de reflexão e investigação e é “radical” no sentido de uma “radicalização crítica”, ou seja, de uma crítica que não se atenha ao pensamento, mas que busque incessantemente a práxis e a transformação social.

Vale ainda ressaltar que, ao propormos as bases para a construção de uma abordagem pós-crítica radical para os estudos organizacionais, não estamos advogando exclusividade, pois, conforme observamos anteriormente, existem muitas possibilidades para elaboração de recortes a partir de teorias pós-críticas e tal prática deve ser incentivada, porque a multiplicidade contribui para a diversificação e a construção do conhecimento. Além disso, estamos cientes do risco dessa empreitada e de suas limitações, pois trata-se de um constructo teórico, analítico e metodológico em edificação, de modo que está sujeito a críticas e novas contribuições.

Agradecimentos

Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo apoio financeiro a este trabalho. Minha gratidão, ainda, pela interlocução realizada com o professor Rafael Diogo Pereira, da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais: suas provocações sobre o pensamento foucaultiano no campo dos estudos críticos foram fundamentais para que este artigo se tornasse realidade.

Referências

  • Adorno T., & Horkheimer, M. (1985). A dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
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  • 1
    “Teoria crítica e pós-modernismo nos estudos organizacionais” (Alvesson & Deetz 1999Alvesson, M., & Deetz, S. (1999). Teoria crítica e abordagens pós-modernas para estudos organizacionais. In S. R. Clegg, C. Hardy, W. R. Nord, M. Caldas, R. Fachin, & T. Fischer (Eds.), Handbook de estudos organizacionais: Modelos de análise e novas questões em estudos organizacionais (Vol. 1, pp. 227-266). São Paulo, SP: Atlas.; Vieira & Caldas, 2006Vieira, M. M. F., & Caldas, M. P. (2006). Teoria crítica e pós-modernismo: Principais alternativas à hegemonia funcionalista. Revista de Administração de Empresas , 46(1), 59-70. doi:10.1590/S0034-7590200600010000
    https://doi.org/10.1590/S0034-7590200600...
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    https://doi.org/10.1590/S0034-7590200300...
    ) ou “estudos organizacionais críticos” (Paes de Paula, 2008Paes de Paula, A. P. (2008). Teoria crítica nas organizações. São Paulo, SP: Thomson Learning.).
  • 2
    (1) Teoria crítica frankfurtiana, baseada na Escola de Frankfurt; (2) Teoria crítica em estudos organizacionais, que abrange, para além da Escola de Frankfurt, o marxismo, a psicologia sócio-histórica e a psicossociologia crítica, enfeixando a linha de pesquisa “economia política do poder” do próprio investigador; (3) critical management studies, que faz referência aos estudos conduzidos no contexto anglo-saxônico; e (4) análises críticas em estudos organizacionais, que envolve análises ditas não marxistas e não frankfurtianas, como pós-estruturalismo de Foucault, o pós-modernismo de Lyotard, as análises institucionais de Lourau e Lapassade, o simbolismo de Bourdieu, o imaginário de Castoriadis e a complexidade de Morin.
  • 3
    A mesa, organizada pelos professores e pesquisadores Deise Luiza Ferraz, Elcemir Paço Cunha, Francis Kanashiro Meneghetti, José Henrique de Faria e Maria Ceci Misoczky apontava: (1) critical management studies; (2) teoria crítica em estudos organizacionais; (3) estudos fundamentados na psicodinâmica do trabalho; (4) análises organizacionais a partir da psicossociologia; (5) estudos organizacionais pós-estruturalistas; (6) fenomenologia organizacional de Guerreiro Ramos; (7) abordagens pós-modernas; e (8) estudos organizacionais fundamentados no marxismo e nas ideias marxianas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2018
  • Aceito
    06 Set 2019
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