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A Percepção de Profissionais e Gestores da Saúde sobre a Alocação de Recursos na Atenção Primária de Municípios de Minas Gerais

Resumo

Este estudo teve o objetivo de analisar e descrever as percepções de profissionais e gestores de saúde sobre os principais fenômenos que influenciam a alocação de recursos na atenção primária da saúde. Com abordagem qualitativa, a pesquisa de campo deste estudo foi realizada em dez municípios de Minas Gerais, a partir de onze grupos focais, seis entrevistas e dois questionários semiestruturados nos anos de 2014 e 2015 e nove grupos focais e cinco entrevistas no ano de 2018, totalizando a participação de 133 profissionais e gestores de saúde. Ainda foram adicionadas outras fontes de evidências, como observações não participantes, fotografias e documentos da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais e do Ministério da Saúde. Com base na análise de conteúdo, foram obtidas oito categorias de fenômenos que influenciam a alocação de recursos na APS, derivadas de processos cotidianos de interação entre população, profissionais e gestores de saúde. Constatou-se que a atenção primária está em um contexto de mudança institucional, dependente da validade de atores e instituições, em diferentes níveis institucionais. Entre os fatores determinantes da alocação de recursos na APS, destacam-se a influência das agências dos atores envolvidos, da trajetória hospitalar, da iniciativa privada, do corporativismo médico, da influência de políticos, da capacidade de gestão municipal, da infraestrutura e de grupos de indivíduos específicos.

atenção primária; finanças públicas; políticas públicas; níveis institucionais

Abstract

This study aimed to examine and describe the perceptions of health professionals and managers about the main phenomena that influence resource allocation in primary health care. Adopting a qualitative approach, the field research was carried out in ten municipalities in Minas Gerais and involved eleven focus groups, six interviews and two semi-structured questionnaires in 2014 and 2015, and nine focus groups and five interviews in 2018, in which participated a total of 133 health professionals and managers. Other sources of evidence were also included, such as non-participating observations, photographs and documents from the Minas Gerais State Health Secretariat and the Ministry of Health. Based on the content analysis, eight categories of phenomena that influence resource allocation in PHC were obtained, derived from daily interactions between the population and health professionals and managers. Our findings show that primary health care is in a process of institutional change, dependent on the validity of actors and institutions, at different institutional levels. Among the determining factors affecting resource allocation in PHC, the main ones are the agency of the actors involved, the health service flow, the private sector, the medical corporatism, the influence of politicians, the municipal management capability, the infrastructure and groups of specific individuals.

primary health care; public finances; public policy; institutional levels

Introdução

A assistência à saúde é um direito fundamental do ser humano e obrigação do Estado brasileiro. O conjunto de ações e serviços de saúde prestados pela união, estados e municípios constitui o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem a assistência às pessoas por meio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde como um dos objetivos constitucionais. As ações e serviços de saúde, executadas pelo SUS, são organizadas de forma regionalizada, hierarquizada e em níveis de complexidade crescente. A Atenção Primária à Saúde (APS) é o primeiro nível dessa hierarquia regionalizada, prevista como a porta de entrada do SUS e financiada de forma tripartite (Brasil, 1990, 2017).

A APS, que no Brasil também é conhecida como atenção básica, está em destaque nos debates sobre a viabilidade econômica da organização do SUS, principalmente após a década de 2000. A APS pode ser descrita como uma forma de organização do sistema de saúde que busca, entre seus propósitos: resolutividade, integralidade da Rede de Atenção à Saúde (RAS), equidade, empoderamento do indivíduo, mobilização social, prevenção de complicações e promoção da saúde ( Brasil, 2017Brasil. Ministério da Saúde. (2017). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Autor. ; Cardoso et al., 2013Cardoso, C. S., Pádua, C. M., Rodrigues-Júnior, A. A., Guimarães, D. A., Carvalho, S. F., Valentin, R. F., . . . Oliveira, C. D. L. (2013). Contribuição das Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária no perfil das admissões pelo sistema público de saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, 34 (4), 227-234. Recuperado de https://bit.ly/3boRYwn
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; Carvalho, Rossato, Fuchs, Harheim, & Fuchs, 2013; Mendes, 2015)Mendes, E. V. (2015). A construção social da Atenção Primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. .

A Política Nacional de Atenção Básica de 2017 define que a atenção básica é o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em território definido ( Brasil, 2017Brasil. Ministério da Saúde. (2017). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Autor. ).

Diante da mudança na organização do SUS, em razão do protagonismo dado à APS, obtido após os anos 2000 e revisitado na Política Nacional da Atenção Básica de 2017, quatro pontos embasam a pluralidade do problema de pesquisa deste artigo. Primeiro, o sistema de saúde brasileiro possui um modelo cuja trajetória, historicamente, possuiu foco em demanda espontânea, produção de serviços e assistência ambulatorial e hospitalar (Mendes, Leite, & Marques, 2011; Menicucci, 2003)Menicucci, T. M. G. (2003). Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória (Tese de Doutorado). Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais. . Esse modelo coexiste e conflita com as recentes políticas públicas de APS, que focam recursos na prevenção e promoção, buscando equidade e integralidade da rede em detrimento do foco em demanda espontânea ( Brasil, 2017Brasil. Ministério da Saúde. (2017). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Autor. ; Mendes, 2012, 20Mendes, E. V. (2012). O cuidado das condições crônicas na Atenção Primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família . Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde. , 2015Mendes, E. V. (2015). A construção social da Atenção Primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. ; Segall, 1983Segall, M. (1983). Planning and politics of resource allocation for primary health care: promotions of meaningful national policy. Social Science & Medicine, 17 (24), 1947-1960. doi:10.1016/0277-9536(83)90135-1 ; Zielinski, Kronogard, Lenhoff, & Halling, 2009).

Segundo lugar, a implantação da APS, a partir do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, esteve também atrelada às regulamentações que condicionam repasses financeiros ao nível de produção de serviços pelos municípios, com reduzidas políticas de incentivo aos serviços que fortalecem às ações de promoção e prevenção, como preconizado pelas mais recentes Políticas Públicas de Atenção Básica à Saúde ( Brasil, 2017Brasil. Ministério da Saúde. (2017). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Autor. ; Castro & Machado, 2010Castro, A. L. B. D., Machado, C. V. (2010). A política de Atenção Primária à saúde no Brasil: notas sobre a regulação e o financiamento federal. Cadernos de Saúde Pública, 26 (4), 693-705. doi:10.1590/S0102-311X2010000400012 , 2012Castro, A. L. B., Machado, C. V. M. (2012). A política federal de Atenção Básica à saúde no Brasil nos anos 2000. Physis Revista de Saúde Coletiva , 22 (2), 447-506. doi:10.1590/S0103-73312012000200005 ; Mendes, 2015Mendes, E. V. (2015). A construção social da Atenção Primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. ; Mendes et al., 2011Mendes, Á., Leite, M. G., Marques, R. M. (2011). Discutindo uma metodologia para a alocação equitativa de recursos federais para o Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, 20 (3), 373-690. doi:10.1590/S0104-12902011000300013 ; Santos & Rodrigues, 2014)Santos, D. L., Rodrigues, P. H. A. (2014). Política, Atenção Primária e acesso a serviços de média e alta complexidade em pequenos municípios. Saúde e Debate, 38 (103), 744-755. doi:10.5935/0103-1104.20140068 .

Terceiro, a descentralização tem colocado os municípios como principais responsáveis pela gestão e execução de parte significativa dos recursos humanos e financeiros das ações e serviços públicos de saúde (ASPS), tornando-os protagonistas nas Redes de Atenção à Saúde (RAS) (Campos, Hadad, Abreu, Cherchiglia, & França, 2013; Medeiros, 2013Medeiros, C. R. G. (2013). Redes de Atenção em Saúde: o dilema de pequenos municípios . (Tese de Doutorado). Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ; Mendes, 2015Mendes, E. V. (2015). A construção social da Atenção Primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. ; Ohira, Cordoni Junior, & Nunes, 2014). Entretanto, a maior parte desses municípios se enquadra na categoria de pequeno porte, com limitação histórica de acesso aos serviços de saúde, carentes de estrutura e pessoal qualificado para o planejamento e a gestão desses recursos ( Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2011Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2011). Indicadores Sociais Municipais: uma análise dos resultados do universo do Censo Demográfico 2010 . Rio de Janeiro, RJ: Autor. ; Medeiros, 2013Medeiros, C. R. G. (2013). Redes de Atenção em Saúde: o dilema de pequenos municípios . (Tese de Doutorado). Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ; Ohira et al., 2014Ohira, R. H. F., Cordoni Junior, L., Nunes, E. F. P. A. (2014). Perfil dos gerentes de Atenção Primária à Saúde em municípios de pequeno porte do norte do Paraná, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 19 (2), 393-400. doi:10.1590/1413-81232014192.21952012 ; Pinto & Gerhardt, 2013Pinto, J. M., Gerhardt, T. E. (2013). Práticas avaliativas na gestão da Atenção Básica à saúde: estudo de caso em Camaquã e Canguçu (RS). Revista de Administração Pública, 47 (2), 305-326. doi:10.1590/S0034-76122013000200002 ; Santos & Rodrigues, 2014Santos, D. L., Rodrigues, P. H. A. (2014). Política, Atenção Primária e acesso a serviços de média e alta complexidade em pequenos municípios. Saúde e Debate, 38 (103), 744-755. doi:10.5935/0103-1104.20140068 ; Uchoa et al., 2011)Uchoa, A. D. C., Souza, E. L., Spinelli, A. F., Medeiros, R. G., Peixoto, D. C. S., Silva, R. A. R., Rocha, N. S. P. (2011). Avaliação da satisfação do usuário do Programa de Saúde da Família na zona rural de dois pequenos municípios do Rio Grande do Norte. Physis Revista de Saúde Coletiva, 21 (3), 1061-1076. doi:10.1590/S0103-73312011000300016 .

Quarto e último ponto do problema deste artigo, existe uma prevalência de literatura acadêmica sobre análises econômicas de saúde ( Castro & Machado, 2010Castro, A. L. B. D., Machado, C. V. (2010). A política de Atenção Primária à saúde no Brasil: notas sobre a regulação e o financiamento federal. Cadernos de Saúde Pública, 26 (4), 693-705. doi:10.1590/S0102-311X2010000400012 ; Edwards et al., 2013)Edwards, R. T., Linck, P., Hounsome, N., Raisanen, L., Williams, N., Moore, L., Murphy, S. (2013). Cost-effectiveness of a national exercise referral programme for primary care patients in Wales: results of a randomised controlled trial. BMC Public Health, 13 (1), 1021. doi:10.1186/1471-2458-13-1021 , que analisam a macroestrutura de governança nos resultados do sistema ( Caraiola et al., 2015Caraiola, D. M., Jacometti, M., Baratter, M. A., Gonçalves, S. A. (2015). Conciliando agência e contexto na dinâmica da mudança institucional. Cadernos EBAPE.BR, 13 (4), 1473-1482. doi:10.1590/1679-39518879 ; Carvalho et al., 2013Carvalho, H. S. V. C., Rossato, S. L., Fuchs, F. D., Harheim, E., Fuchs, S. C. (2013). Assessment of primary health care received by the elderly and health related quality of life: a cross-sectional study. BMC Public Health, 13 (605), 1-9. doi:10.1186/1471-2458-13-605 ; Glaser, Fast, Harmon, & Green Jr., 2016; Harmon, Haack, & Roulet, 2019) e sobre o determinismo linear da alocação de recursos ( Castro & Machado, 2010Castro, A. L. B. D., Machado, C. V. (2010). A política de Atenção Primária à saúde no Brasil: notas sobre a regulação e o financiamento federal. Cadernos de Saúde Pública, 26 (4), 693-705. doi:10.1590/S0102-311X2010000400012 ; Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Mendes et al., 2011)Mendes, Á., Leite, M. G., Marques, R. M. (2011). Discutindo uma metodologia para a alocação equitativa de recursos federais para o Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, 20 (3), 373-690. doi:10.1590/S0104-12902011000300013 . Ainda há poucos estudos que analisam a alocação de recursos da APS pela perspectiva microinstitucional, com foco nas interações cotidianas entre pessoas, grupos de pessoas, com seus significados e agências ( Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Jepperson & Meyer, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Van Wijk, Zietsma, Dorado, Bakker, & Martí, 2019).

É importante não apenas se preocupar com a viabilidade econômica ou com o aumento de recursos financeiros investidos em APS, sem considerar os aspectos que interferem na distribuição equitativa local, tendo em vista que desconsiderá-los seria manter inequidades com mais recursos disponíveis ( Hartz, 2002Hartz, Z. M. D. A. (2002). Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas . Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz. ; Mendes, 2015Mendes, E. V. (2015). A construção social da Atenção Primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. ). Na problemática proposta, a Nova Teoria Institucional ( Dimaggio & Powell, 1983Dimaggio, P. J., Powell, W. W. (1983). The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields. American Sociological Review, 48 (2), 147-160. doi:10.2307/2095101 ; Jepperson & Meyers, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Powell & Dimaggio, 1991Powell, W. W., Dimaggio, P. J. (1991). The New Institutionalism in Organizational Analysis . Chicago: University of Chicago Press. ; Scott & Christensen, 1995)Scott, W. R., Christensen, S. (1995). The Institutional Construction of Organizations . Londres: Sage Publications. dá suporte teórico para que as organizações sejam compreendidas como instituições infiltradas em uma variedade de influências que partem de diferentes esferas da sociedade, como as influências políticas, sociais, psicológicas, culturais, simbólicas e econômicas ( Alburquerque, 2002Alburquerque, A. R. (2002). Teoría de la organización y nuevo institucionalismo en el análisis organizacional. Administracion y organizaciones, 4 (8), 13-44. Recuperado de https://bit.ly/3h2KYc5
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; Pereira, 2012Pereira, F. A. M. (2012). A evolução da teoria institucional nos estudos organizacionais: um campo de pesquisa a ser explorado. Organizações em Contexto, 8 (16), 274-295. doi:10.15603/1982-8756/roc.v8n16p275-295 ; Senge, 2013Senge, K. (2013). The New Institutionalism in Organization Theory: bringing society and culture back in. The American Sociologist, 44 (1), 76-95. doi:10.1007/s12108-012-9170-5 ; Scott & Christensen, 1995)Scott, W. R., Christensen, S. (1995). The Institutional Construction of Organizations . Londres: Sage Publications. .

Considera-se que o desempenho econômico, político ou social de uma organização é determinado por uma diversidade de níveis institucionais ( Caraiola et al., 2015Caraiola, D. M., Jacometti, M., Baratter, M. A., Gonçalves, S. A. (2015). Conciliando agência e contexto na dinâmica da mudança institucional. Cadernos EBAPE.BR, 13 (4), 1473-1482. doi:10.1590/1679-39518879 ; Dimaggio & Powell, 1983Dimaggio, P. J., Powell, W. W. (1983). The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields. American Sociological Review, 48 (2), 147-160. doi:10.2307/2095101 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Jepperson & Meyer, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Saravanan, 2015Saravanan, V. S. (2015). Agents of institutional change: the contribution of new institutionalism in understanding water governance in India. Environmental Science & Policy, 53 (part b), 225-235. doi:10.1016/j.envsci.2015.01.012 ; Van Wijk et al., 2019)Van Wijk, J., Zietsma, C., Dorado, S., Bakker, F. G. A., & Martí, I. (2019). Social Innovation: integrating micro, meso and macro level insights from institucional theory. Business & Society, 58 (5), 887-918. doi:10.1177/0007650318789104 . No entanto, percebe-se uma concentração de estudos que focam na avaliação de desempenho da APS por meio de uma perspectiva macroinstitucional, da estrutura sobre a agência, principalmente, da análise de dados econômicos, financeiros e indicadores de saúde ( Carvalho et al., 2013Carvalho, H. S. V. C., Rossato, S. L., Fuchs, F. D., Harheim, E., Fuchs, S. C. (2013). Assessment of primary health care received by the elderly and health related quality of life: a cross-sectional study. BMC Public Health, 13 (605), 1-9. doi:10.1186/1471-2458-13-605 ; Edwards et al., 2013)Edwards, R. T., Linck, P., Hounsome, N., Raisanen, L., Williams, N., Moore, L., Murphy, S. (2013). Cost-effectiveness of a national exercise referral programme for primary care patients in Wales: results of a randomised controlled trial. BMC Public Health, 13 (1), 1021. doi:10.1186/1471-2458-13-1021 . Ainda são poucos os estudos que analisam, a partir de uma perspectiva microinstitucional ( Harmon et al., 2019)Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 , a interação de sujeitos e instituições, dentro da APS, que podem influenciar o desempenho esperado da saúde pública pela sociedade.

Então, o objetivo deste estudo é analisar e descrever as percepções de profissionais e gestores da saúde sobre os principais fenômenos que influenciam a alocação de recursos na APS, em municípios de pequeno e médio porte de Minas Gerais. Mais especificamente, este estudo pretende analisar os fenômenos da alocação de recursos na APS por uma perspectiva microinstitucional, apontando os principais atores, instituições e fontes de mudança institucional que têm moldado a alocação de recursos nos municípios analisados, e que impactam os resultados obtidos na APS. O principal diferencial deste estudo em relação aos poucos existentes que analisam a alocação de recursos da APS pela perspectiva microinstitucional é o foco simultâneo na perspectiva dos profissionais e gestores que executam – colocam em prática – as diretrizes do Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Há outros, por exemplo, que focam em usuários e/ou dados secundários ( Mendes, 2012Mendes, E. V. (2012). O cuidado das condições crônicas na Atenção Primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família . Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde. ; Pinto & Gerhardt, 2013Pinto, J. M., Gerhardt, T. E. (2013). Práticas avaliativas na gestão da Atenção Básica à saúde: estudo de caso em Camaquã e Canguçu (RS). Revista de Administração Pública, 47 (2), 305-326. doi:10.1590/S0034-76122013000200002 ; Uchoa et al., 2011)Uchoa, A. D. C., Souza, E. L., Spinelli, A. F., Medeiros, R. G., Peixoto, D. C. S., Silva, R. A. R., Rocha, N. S. P. (2011). Avaliação da satisfação do usuário do Programa de Saúde da Família na zona rural de dois pequenos municípios do Rio Grande do Norte. Physis Revista de Saúde Coletiva, 21 (3), 1061-1076. doi:10.1590/S0103-73312011000300016 . Além disso, este estudo se diferencia pela amostragem composta por profissionais e gestores atuantes em alguns pequenos municípios, os mais predominantes no território nacional.

A partir dos quatro pontos que compõem o problema de pesquisa, este estudo trata da hipótese de que a reorganização da RAS a partir das recentes políticas públicas da APS tem provocado mudanças institucionais na alocação de recursos nos municípios e dos seus atores ( Jepperson & Meyer, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Van Wijk et al., 2019)Van Wijk, J., Zietsma, C., Dorado, S., Bakker, F. G. A., & Martí, I. (2019). Social Innovation: integrating micro, meso and macro level insights from institucional theory. Business & Society, 58 (5), 887-918. doi:10.1177/0007650318789104 . Essas mudanças ainda carecem de estudos e evidências empíricas, principalmente a partir da perspectiva dos profissionais e gestores que lidam com o cotidiano da APS, em especial, em municípios de pequeno porte, predominantes no país, que possuem características peculiares em relação aos municípios de maior porte, em função do contexto histórico da saúde. Tais municípios, que historicamente foram os executores das demandas do estado e do Ministério da Saúde, têm sido, nos últimos quinze anos, os principais planejadores e gestores de uma rede complexa regional, infiltrada por instituições e atores pouco conhecidos na área de administração pública ( Campos et al., 2013Campos, D., Hadad, C., Abreu, D. M. X., Cherchiglia, M. L., França, E. (2013). Sistema de Informações sobre Mortalidade em municípios de pequeno porte de Minas Gerais: concepções dos profissionais de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 18 (5), 1473-1482. doi:10.1590/S1413-81232013000500033 ; Carvalho, Peduzzi, Nunes, Leite, & Silva, 2014; Medeiros, 2013Medeiros, C. R. G. (2013). Redes de Atenção em Saúde: o dilema de pequenos municípios . (Tese de Doutorado). Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ; Menicucci, 2003Menicucci, T. M. G. (2003). Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória (Tese de Doutorado). Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais. ; Ohira et al., 2014Ohira, R. H. F., Cordoni Junior, L., Nunes, E. F. P. A. (2014). Perfil dos gerentes de Atenção Primária à Saúde em municípios de pequeno porte do norte do Paraná, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 19 (2), 393-400. doi:10.1590/1413-81232014192.21952012 ; Pinto & Gerhardt, 2013Pinto, J. M., Gerhardt, T. E. (2013). Práticas avaliativas na gestão da Atenção Básica à saúde: estudo de caso em Camaquã e Canguçu (RS). Revista de Administração Pública, 47 (2), 305-326. doi:10.1590/S0034-76122013000200002 ; Santos & Rodrigues, 2014)Santos, D. L., Rodrigues, P. H. A. (2014). Política, Atenção Primária e acesso a serviços de média e alta complexidade em pequenos municípios. Saúde e Debate, 38 (103), 744-755. doi:10.5935/0103-1104.20140068 .

Este artigo é composto de cinco capítulos, incluindo esta Introdução. No segundo capítulo, haverá uma breve revisão de literatura sobre a alocação de recursos na APS e o contexto de mudança institucional, a partir de uma perspectiva microinstitucional. No terceiro capítulo explicam-se os métodos e procedimentos que foram utilizados neste estudo. No quarto capítulo são apresentados os resultados obtidos. No quinto capítulo há a discussão dos resultados. No último capítulo, apresentam-se as considerações finais para encerramento desta fase do estudo.

A alocação de recursos na APS e a mudança institucional

A alocação de recursos na saúde é um conceito contemporâneo, em razão da infindável discussão sobre o financiamento e a eficiência dos sistemas de saúde. A melhoria dos sistemas de saúde está diretamente relacionada a uma adequada alocação de recursos. Este artigo trata a alocação de recursos como a distribuição de recursos na saúde, entre eles financeiros, materiais, humanos, organizacionais e simbólicos. Após os anos 2000, destaca-se um elevado número de estudos que analisam modelos equitativos de alocação financeira em saúde ( Carnasciali & Bulgacov, 2014Carnasciali, A. M. D. S., Bulgacov, S. (2014). Recursos e competências organizacionais distribuídos na Saúde Pública. Revista de Administração Contemporânea, 18 (6), 832-853. doi:10.1590/1982-7849rac20141664 ; Medeiros, 2013Medeiros, C. R. G. (2013). Redes de Atenção em Saúde: o dilema de pequenos municípios . (Tese de Doutorado). Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ; Mendes et al., 2011Mendes, Á., Leite, M. G., Marques, R. M. (2011). Discutindo uma metodologia para a alocação equitativa de recursos federais para o Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, 20 (3), 373-690. doi:10.1590/S0104-12902011000300013 ; Zielinski et al., 2009)Zielinski, A., Kronogard, M., Lenhoff, H., Halling, A. (2009). Validation of ACG Case-mix for equitable resource allocation in Swedish primary health care. BMC Public Health, 9 (347), 1-8. doi:10.1186/1471-2458-9-347 .

A alocação de recursos também pode ser compreendida como a distribuição do perfil de competências dos profissionais, de medicamentos e de equipamentos para a população que demanda serviços de saúde. Ela é complexa, tendo em vista que o SUS é um sistema integrado hierarquicamente, projetado para ser descentralizado, funcionando por meio de ações e serviços públicos de saúde, coexistente com a iniciativa privada e conivente com diferentes formas de financiamento ( Carnasciali & Bulgacov, 2014Carnasciali, A. M. D. S., Bulgacov, S. (2014). Recursos e competências organizacionais distribuídos na Saúde Pública. Revista de Administração Contemporânea, 18 (6), 832-853. doi:10.1590/1982-7849rac20141664 ).

No Brasil, a alocação de recursos financeiros na saúde pública tem sido regulamentada pela Constituição de 1998; Lei Orgânica da Saúde nº 8.080, de 1990; Lei nº 8.142, de 1990; e Lei nº 141, de 2012, com foco na alocação de recursos e na produção e oferta de serviços de saúde. Entre outras regulamentações, essas leis inseriram os princípios da captação de recursos para a seguridade social e para a distribuição de recursos financeiros entre os entes da Federação.

O sistema brasileiro de saúde ainda pode ser considerado híbrido, em razão da coexistência de formas privadas e públicas de assistência à saúde, colocando em questão os princípios de diretrizes da APS. Meniccucci (2003) analisa a coexistência desses dois sistemas com base no novo institucionalismo, aplicado à análise de políticas públicas e à compreensão de reformas, a partir da consideração de fatores de ordem institucional. Pode-se dizer que essa abordagem busca responder como as escolhas sociais são modeladas, mediadas e conduzidas por arranjos institucionais ( Jepperson & Meyer, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Powell & Dimaggio, 1991)Powell, W. W., Dimaggio, P. J. (1991). The New Institutionalism in Organizational Analysis . Chicago: University of Chicago Press. . Estudos recentes discutem que esses arranjos institucionais são modelados em diferentes níveis de análise, não restritos somente à estrutura e à agência, mas micro, mesos e macro instituições ( Caraiola et al., 2015Caraiola, D. M., Jacometti, M., Baratter, M. A., Gonçalves, S. A. (2015). Conciliando agência e contexto na dinâmica da mudança institucional. Cadernos EBAPE.BR, 13 (4), 1473-1482. doi:10.1590/1679-39518879 ; Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Jepperson & Meyer, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Van Wijk et al., 2019)Van Wijk, J., Zietsma, C., Dorado, S., Bakker, F. G. A., & Martí, I. (2019). Social Innovation: integrating micro, meso and macro level insights from institucional theory. Business & Society, 58 (5), 887-918. doi:10.1177/0007650318789104 .

A alocação de recursos na APS vem passando por um momento de mudança institucional, visto que as políticas públicas ( Brasil, 2017Brasil. Ministério da Saúde. (2017). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Autor. ) vem alterando a forma como os recursos humanos, financeiros e organizacionais são alocados. O modelo de APS como porta de entrada, com equipes multidisciplinares focadas na prevenção e promoção da saúde, ainda é recente em meio a um sistema de saúde que ficou tradicionalmente conhecido pelo foco em demanda espontânea, centrado em atendimento ambulatorial e hospitais e na prestação do serviço médico ( Cardoso et al., 2013Cardoso, C. S., Pádua, C. M., Rodrigues-Júnior, A. A., Guimarães, D. A., Carvalho, S. F., Valentin, R. F., . . . Oliveira, C. D. L. (2013). Contribuição das Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária no perfil das admissões pelo sistema público de saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, 34 (4), 227-234. Recuperado de https://bit.ly/3boRYwn
https://bit.ly/3boRYwn...
; Carnasciali, 2014; Mendes, 2015Mendes, E. V. (2015). A construção social da Atenção Primária à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde. ).

Verificar o contexto de mudanças institucionais na APS a partir das perspectivas dos profissionais e gestores da APS é fazer uma escolha de um nível institucional em detrimento de outro. Assim como os profissionais das Unidades Básicas de Saúde (UBS) são influenciados pelas leis, políticas públicas e outros arranjos institucionais, eles também influenciam, moldam e mantêm outros níveis institucionais ( Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ). Essa perspectiva traz à tona a interdependência substancial entre múltiplos sistemas e seus atores, identificando as soluções inovativas que partem dos indivíduos e que podem vir a alterar as instituições ( Van Wijk et al., 2019Van Wijk, J., Zietsma, C., Dorado, S., Bakker, F. G. A., & Martí, I. (2019). Social Innovation: integrating micro, meso and macro level insights from institucional theory. Business & Society, 58 (5), 887-918. doi:10.1177/0007650318789104 ).

A análise da mudança institucional a partir da perspectiva de níveis de análises vem sendo utilizada em estudos da nova teoria institucional. O papel dos indivíduos no processo institucional e na estrutura social pode ser definido como posições ou habitus . Todo macrofenômeno institucional é, de alguma forma, agregado ao comportamento individual ( Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Jepperson & Meyers, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ; Van Wijk et al., 2019)Van Wijk, J., Zietsma, C., Dorado, S., Bakker, F. G. A., & Martí, I. (2019). Social Innovation: integrating micro, meso and macro level insights from institucional theory. Business & Society, 58 (5), 887-918. doi:10.1177/0007650318789104 .

Autores têm abordado que há mais instâncias no nível microinstitucional da estrutura social (e. g. posições sociais, habitus , rotinas etc.) que estão infiltradas em estruturas sociais em níveis superiores de análises. Também há instâncias macro da agência (e. g. ações coletivas, movimentos sociais etc.) cujo conteúdo não é simplesmente agregações de comportamento de indivíduos. Como resultado, atores podem modificar elementos estruturais com suas ações e práticas locais ( Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ).

As análises macro e microinstitucional estão simultaneamente presentes nas análises institucionais contemporâneas. Priorizar uma em detrimento da outra pode conduzir a diferentes pressuposições, que são válidas na construção social. Estudiosos institucionalistas já contribuem com a priorização de níveis de análises sobre a dicotomia estrutura-agência. Por exemplo, alguns têm focado em como os significados no nível macroinstitucional, como estruturas e lógicas institucionais, modelam o caminho para o pensamento no nível microinstitucional e a tomada de decisões pelos indivíduos. Outros estudiosos dedicam-se a como o comportamento dos sujeitos no nível microinstitucional pode construir e mudar níveis institucionais meso e macro. A análise por meio do foco de níveis institucionais pode contribuir para explicar diretamente como instituições mudam ou persistem ao longo do tempo ( Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ).

Entenda-se neste estudo que o nível microinstitucional não se refere simplesmente ao indivíduo. Ao considerar a natureza das instituições, tudo é micro para alguma coisa e macro para outra. Valores individuais são micro para rotinas, para lógica, mas macro para a neurociência da tomada de decisão, por exemplo ( Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ).

Níveis de análise referem-se a um conjunto de processos causais, cada um representando diferentes graus de complexidade organizacional, também conhecidos como níveis de organização e níveis de complexidade. Herbert Simon refere-se a esses níveis como a arquitetura da complexidade do mundo social, a hierarquia de níveis organizacionais variando de processos psicossociais e comportamentos sociais elementares até vários processos complexos, socio-organizacionais e culturais ( Jepperson & Meyers, 2011Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x ).

As instituições são entendidas neste artigo como mecanismos de articulação, que conectam sistemas de interação social do nível micro ao meso e macro das organizações com a realidade simbólica e a material, e o nível da ação com o estrutural. Essas abordagens ampliam o debate e mostram que há outras formas de se explicar como as instituições são criadas, mantidas e até mesmo alteradas. A mudança institucional reforça a noção de que o papel dos agentes de mudança e seus comportamentos se combinam às características do contexto político e institucional, de modo a desencadear mudanças. O esquema de análise da mudança institucional está associado à visão do neoinstitucionalismo, e aponta que a compreensão das possibilidades de ação dos atores está diretamente relacionada às características das instituições e do contexto político nos quais eles se encontram imersos. A perspectiva da mudança institucional gradual atribui grande centralidade às questões de poder, interesses e distribuição de recursos ( Alburquerque, 2002Alburquerque, A. R. (2002). Teoría de la organización y nuevo institucionalismo en el análisis organizacional. Administracion y organizaciones, 4 (8), 13-44. Recuperado de https://bit.ly/3h2KYc5
https://bit.ly/3h2KYc5...
; Caraiola et al., 2015Caraiola, D. M., Jacometti, M., Baratter, M. A., Gonçalves, S. A. (2015). Conciliando agência e contexto na dinâmica da mudança institucional. Cadernos EBAPE.BR, 13 (4), 1473-1482. doi:10.1590/1679-39518879 ; Jepperson & Meyes, 2011).

Neste artigo, também se entende que as instituições são instrumentos distribucionais carregados de implicações de poder e, quando compreendidas em relação às características de determinado contexto político, estabelecem categorias de atores e possibilidades de mudança institucional. Nessa abordagem, são, portanto, os elementos estruturais do contexto político e de uma instituição focal que contêm neles mesmos as possibilidades de mudança ( Alburquerque, 2002Alburquerque, A. R. (2002). Teoría de la organización y nuevo institucionalismo en el análisis organizacional. Administracion y organizaciones, 4 (8), 13-44. Recuperado de https://bit.ly/3h2KYc5
https://bit.ly/3h2KYc5...
; Bitektine & Haack, 2015Bitektine, A., Haack, P. (2015). The macro and the micro of legitimacy: toward a multilevel theory of the legitimacy process. Academy of Management Review, 40 (1), 49-75. doi:10.5465/amr.2013.0318 ; Caraiola et al., 2015)Caraiola, D. M., Jacometti, M., Baratter, M. A., Gonçalves, S. A. (2015). Conciliando agência e contexto na dinâmica da mudança institucional. Cadernos EBAPE.BR, 13 (4), 1473-1482. doi:10.1590/1679-39518879 .

Métodos e procedimentos

Este artigo é produto de uma pesquisa com finalidade exploratória e descritiva, de abordagem qualitativa. Como meios de pesquisa, foram utilizadas a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa de campo ( Bauer & Gaskell, 2015Bauer, M. W., Gaskell, G. (2015). Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som . Petrópolis, RJ: Vozes. ; Berg & Lune, 2014Berg, B. L., Lune, H. (2014). Qualitative Research Methods for the Social Sciences (8a ed.). Boston: Person Education. ; Creswell, 2014)Creswell, J. W. (2014). Research design: Qualitative, quantitative, and mixed methods approaches (4a ed.). Thousand Oaks: Sage. .

A pesquisa documental foi realizada a partir da análise de documentos dos governos estadual e federal, descritos na Tabela 1 . A pesquisa de campo aconteceu por meio de coleta de evidências primárias nos grupos focais, entrevistas, questionários semiestruturados com profissionais e gestores da APS, além de fotografias e observação não participante. Os sujeitos da pesquisa foram convidados a participar voluntariamente do estudo mediante o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Tabela 1
: Portarias e resoluções utilizadas na análise de conteúdo

A Tabela 1 apresenta algumas das portarias e resoluções selecionadas como referência para complementar o estudo com análises documentais, tendo em vista que o setor saúde possui inúmeras regulamentações, tanto da União quanto do Estado. Essas resoluções e portarias foram escolhidas por serem uma amostra das mais recentes encontradas até a data de início das análises desses dados, em janeiro de 2015, e foram incorporadas na análise de conteúdo juntamente com as outras evidências empíricas.

A coleta de dados primários com os profissionais e gestores da APS deu-se em dois períodos temporais distintos. A primeira etapa foi realizada em nove municípios de uma microrregião de saúde da Zona da Mata do estado de Minas Gerais, nos anos de 2014 e 2015. A segunda etapa da coleta de dados foi realizada em um município de médio porte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG), no ano de 2018. Os municípios e os profissionais da APS participantes desta pesquisa foram escolhidos pela acessibilidade dos pesquisadores, produzindo uma amostra por conveniência e não probabilística ( Berg & Lune, 2014Berg, B. L., Lune, H. (2014). Qualitative Research Methods for the Social Sciences (8a ed.). Boston: Person Education. ). A Tabela 2 descreve algumas características dos municípios que integraram a pesquisa.

Tabela 2
: Área, população estimada e profissionais de saúde da microrregião sob estudo

O interesse pelo significado social que os sujeitos atribuem às experiências, circunstâncias e situações e o foco no nível de análise microinstitucional da APS levou ao uso de uma abordagem qualitativa ( Bauer & Gaskell, 2015Bauer, M. W., Gaskell, G. (2015). Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som . Petrópolis, RJ: Vozes. ; Creswell, 2014Creswell, J. W. (2014). Research design: Qualitative, quantitative, and mixed methods approaches (4a ed.). Thousand Oaks: Sage. ; Denzin & Lincoln, 2000)Denzin, N. K., Lincoln, Y. S. (2000) Handbook of qualitative research (2a ed.). Thousand Oaks: Sage. . A integração do grupo focal com entrevistas individuais permitiu a construção de processo interativo, que aprofundou as circunstâncias individuais e contextuais em torno do fenômeno estudado ( Lambert & Loiselle, 2008)Lambert, S. D., Loiselle, C. G. (2008). Combining individual interviews and focus groups to enhance data richness. Journal of Advanced Nursing, 62 (2), 228-237. doi:10.1111/j.1365-2648.2007.04559.x .

A Tabela 3 apresenta as informações sobre os grupos focais, entrevistas e questionários semiestruturados. Nos anos de 2014 e 2015, foram realizados 11 grupos focais, 6 entrevistas e 2 questionários semiestruturados. Desse processo, participaram 94 sujeitos, incluindo profissionais da APS e da gestão municipal de saúde, com um tempo total de gravação de áudio de 11 horas e 20 minutos. No ano de 2018, foram realizados nove grupos focais e cinco entrevistas. Dessa etapa, participaram 39 sujeitos, também incluindo o mesmo perfil dos participantes da primeira etapa da coleta de dados, com um tempo total de gravação de áudio de 4 horas e 40 minutos. Os pesquisadores formalizaram o convite a todos os profissionais e gestores da atenção primária nos municípios em que a pesquisa foi realizada, por meio de ofício e e-mails. A amostra final dos participantes foi classificada como não probabilística e por conveniência, tendo em vista que nem todos aceitaram ou estavam disponíveis para participar da pesquisa. Para amenizar vieses amostrais, os pesquisadores buscaram mesclar diferentes formatos de coleta de dados, entre grupos focais, entrevistas individuais e semiestruturadas, com o propósito de viabilizar a participação do maior número de sujeitos e de perfis profissionais da APS. Primeiro, optou-se pelos grupos focais com uma equipe multidisciplinar da atenção primária e com gestores da saúde. Quando não foi possível, buscou-se incluir a percepção de gestores e profissionais por meio de entrevista individual. Quando as duas alternativas anteriores não se viabilizaram, deu-se ao sujeito a alternativa de participar do estudo por meio do questionário semiestruturado, baseado nos mesmos roteiros dos grupos focais e das entrevistas individuais. Os pesquisadores realizaram a pesquisa de campo em municípios de porte e estrutura organizacional semelhantes, todos os sujeitos participantes atuavam em UBS e todos os gestores estavam à frente das respectivas Secretarias Municipais de Saúde.

Tabela 3
: Informações sobre a coleta de dados primários: grupos focais, entrevistas e questionários semiestruturados

Os grupos focais, entrevistas e questionário semiestruturado foram realizados a partir do seguinte roteiro: (a) importância da atenção primária no município; (b) pontos fracos da atenção primária no município; (c) pontos fortes da atenção primária no município; (d) situação da promoção e prevenção da saúde no município; (e) informações adicionais sobre a atenção primária do município.

As gravações foram analisadas juntamente com as fotografias, relatórios de observações não participantes e as portarias e resoluções, por meio da técnica de análise de conteúdo convencional, conforme as definições de Hsieh e Shannon (2005)Hsieh, H, Shannon, W. E. (2005). Three Approaches to Qualitative Content Analysis. Qualitative Health Research, 15 (9), 1277‑1288. doi:10.1177/1049732305276687 e Berg e Lune (2014)Berg, B. L., Lune, H. (2014). Qualitative Research Methods for the Social Sciences (8a ed.). Boston: Person Education. . Procedeu-se a transcrição verbatim de cada gravação, incluindo notas sobre alguma interação importante observada durante o grupo focal e entrevista. Na etapa seguinte, concomitantemente, analisou-se o conteúdo das discussões, fotografias, observações não participantes, resoluções e portarias. Por meio do software NVivo, foram agrupadas simultaneamente, em um único arquivo, as análises das diferentes fontes de evidências utilizadas neste estudo. Nessa técnica, as categorias codificadas foram derivadas diretamente dos dados, por meio de similaridade de palavras, imagens e sentidos.

No processo de análise de conteúdo, não houve a quantificação de palavras-chave ou códigos ( Hsieh & Shannon, 2005Hsieh, H, Shannon, W. E. (2005). Three Approaches to Qualitative Content Analysis. Qualitative Health Research, 15 (9), 1277‑1288. doi:10.1177/1049732305276687 ). Não houve análise individual de respostas, mas foco na construção social dos sentidos com base na junção de diferentes fontes de evidências (fotografias, áudios, observação não participante) de uma mesma observação, como de uma mesma UBS ou de uma mesma equipe de saúde. Todos os sentidos que emergiram das fontes de evidências foram levados em consideração e expostos nos resultados. O critério para destacar uma palavra-chave nas fontes de evidência foi a relevância do sentido no contexto geral de todas as evidências. Para isso, os pesquisadores dedicaram esforços para ouvir, ler e observar mais de uma vez todas as fontes de evidências coletadas, antes de iniciar a busca por palavras-chave em cada uma das fontes de evidências, separadamente.

Análises dos resultados

Após análises de todas as fontes de evidências, as palavras-chave foram agrupadas em códigos, e esses códigos agrupados em categorias, de acordo com os sentidos produzidos. Foi possível obter oito categorias com as percepções dos gestores e profissionais sobre os fenômenos que influenciam a alocação de recursos na atenção primária, apresentadas a seguir. Apesar de todas as fontes de evidências terem sido utilizadas na construção social das categorias, por escolha didática dos pesquisadores, somente trechos das transcrições serão apresentados para justificar os sentidos encontrados. Como os áudios foram transcritos literalmente, palavra por palavra, foi proposital a manutenção dos erros gramaticais dos trechos das falas dos profissionais e gestores da APS.

As categorias encontradas, aqui também consideradas como as percepções dos profissionais e gestores da atenção primária sobre os fenômenos que influenciam a alocação de recursos na APS dos municípios, são as seguintes: (a) Princípios e Diretrizes da Atenção Primária; (b) Gestão de Recursos e Planejamento; (c) Participação Social, Informalidade e Comunicação; (d) Rede de Atenção à Saúde; (e) Perfil Profissional e Capacitação; (f) Políticas Públicas e Financiamento da Saúde; (g) Profissionalismo; (h) Mandonismo e Clientelismo Municipal. Ao longo da descrição das análises, serão apontadas palavras-chave que representam os principais sentidos da categoria analisada.

Princípios e diretrizes da atenção primária

A primeira categoria mostra que os princípios da APS são percebidos como importantes para os profissionais e gestores da APS, principalmente os princípios: acesso, equidade, integralidade, participação social, promoção e prevenção.

[A Atenção Primária] é essencial; é a porta de entrada de todos os usuários, onde a gente faz capitação, onde a gente capta, né? É o contato direto com o paciente... Todo o município é a Atenção Básica... Ainda mais por se tratar de uma cidade pequena (Transcrição 15, município 2, 2015).

Destaca-se a ampliação do acesso e da cobertura, obtida a partir da expansão da APS. A inserção de novos profissionais na saúde desses municípios ainda é um fenômeno recente, incluindo aqueles profissionais não médicos que estão no município há menos de cinco anos, principalmente os profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Constatou-se essa situação também no município 10, mesmo após o intervalo de quatro anos após as coletas de dados realizadas no ano de 2015. Foi possível inferir que a APS ainda está em fase de consolidação nesse município, com UBS que ainda estão aguardando a chegada de equipes ou profissionais.

Além do acesso e da cobertura, a integralidade foi destacada como uma das diretrizes importantes e que ainda precisa evoluir. O fluxo e o contrafluxo dos usuários não têm funcionado corretamente, causando problemas no cuidado da saúde. No caso do município 10, que possui uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), essa falta de integralidade fica ainda mais evidente, pois os profissionais relatam que muitos usuários procuram a UPA como porta de entrada ou reclamam que a UBS deveria funcionar com a UPA, no atendimento de demandas espontâneas.

... quando as gargantas deles estão inflamadas, eles querem um antibiótico de todo jeito. Você orienta e fala que não precisa. [Eles dizem:] “a vou na UPA” (Transcrição 22, município 10, 2015).

As práticas de prevenção são incipientes, limitadas aos indicadores das resoluções estaduais e federais que condicionam a transferência de recursos financeiros e as ações de promoção a palestras esporádicas. Foi relatado que os municípios têm apresentado uma demanda espontânea que supera a oferta de seus serviços de urgência e emergência, comprometendo as atividades de promoção e prevenção.

A prevenção inclui os exames que são feitos, exames de sangue, mamografia, preventivos... Dentro dessas atividades, também, né, de prevenção e promoção, tem a questão do PSE (Programa Saúde na Escola) que também é executado... E aqueles calendários que já são predeterminados, né; Outubro Rosa, Novembro Azul... E o principal também são as visitas domiciliares que as agentes de saúde que fazem, né, que eu acho que é o principal canal (Transcrição 5, município 4, 2014).

... o que eu percebo é uma falha realmente na parte de prevenção e promoção no município, porque são pessoas que realmente, por exemplo número de pressão alta, número de diabetes compensadas é muito grande. Tudo isso deve ser trabalhada com a prevenção e a promoção né. É um número alarmante de pacientes com essas doenças crônicas e sem controle nenhum né. O que eu percebo que a nossa ação aqui é mais curativa, infelizmente (Transcrição 32, município 10, 2018).

Por outro lado, apesar de as políticas públicas incentivarem ações de promoção e prevenção, percebe-se que estão vinculadas aos instrumentos de financiamento, baseados em quantidade de produção de serviços.

Nós temos um departamento de Vigilância em Saúde, que trabalha muito bem a questão dos indicadores e das metas. Então, a interação da Atenção Básica, Atenção Primária, com esse Departamento de Vigilância em Saúde no acompanhamento desses indicadores e dessas metas tem feito de maneira bastante importante e traz resultados para nós tanto com relação aos resultados assistenciais, como com relação aos indicadores de assistência também. E são importantes porque você, atingindo determinadas metas, determinados indicadores de assistência... Isso redunda em vinda de recursos, de incentivos e tal (Transcrição 19, município 9, 2015).

Gestão de recursos e planejamento

A segunda categoria que emergiu das evidências trata da gestão de recursos e do planejamento. Entre esses fatores, foram destacados, principalmente: compras públicas, logística de transporte, falta de planejamento da gestão municipal e equipes de saúde.

As compras públicas das prefeituras foram apresentadas como determinantes para o processo de alocação de recursos na saúde municipal. Os profissionais alegaram uma desvinculação entre o setor de planejamento e o de compras. Nos pequenos municípios, destacaram que há escassez de fornecedores em razão de suas características econômicas e que existe uma dependência de fornecedores de outras cidades maiores, o que dificulta o processo de comunicação, troca de produtos e solicitação de orçamentos.

Então, da parte odontológica, acaba que perde um pouco de qualidade de algum produto, alguma coisa assim, porque as pessoas que ficam responsáveis pela compra não são pessoas que entendem de odontologia. Então, eles compram os materiais olhando o preço. Então, acaba que prejudica um pouco os materiais (Transcrição 5, Município 4, 2014).

... falta de recursos humanos e as vezes alguns materiais... A gente tem que improvisar para sair, porque falta um pouquinho: medicamentos. A farmácia tem faltado medicamentos, né?! (Transcrição 25, município 10, 2018).

Houve relatos de que, em alguns casos, a compra de materiais e insumos considera mais a disponibilidade de recursos do que as necessidades e a manutenção de estoques adequados. Mesmo com a compra realizada, muitas vezes, os recursos não chegam no momento necessário, prejudicando as ações de saúde.

E o problema que a gente está enfrentando é o seguinte: conseguir medicamentos de janeiro até maio. Por quê? Abril e maio é a época do reajuste de medicamentos. Então, se tentar conseguir orçamento com os laboratórios, não se conseguia, porque sabe que vai ser reajustado uma hora, e aí é uma coisa que estava agarrando muito. Aí, agora, nós mudamos para ata de registro de preços, porque, ao invés da gente fazer de janeiro a dezembro, a gente faz de maio a maio (Transcrição 2, Município 2, 2015).

Outro ponto destacado nessa categoria foi a questão do planejamento e gestão dos estoques. Um dos relatos sobre um caso do Ministério da Saúde procura exemplificar como esse ponto é importante para a RAS e para a eficiência dos gastos públicos da saúde.

Era aquela época daquela gripe, da gripe do H1N1. E, aí, o Ministério da Saúde comprou muito Oseltamivir, que é o remédio para tratar. [Comprou] muito mesmo. Foi chegando uma época que tinha muito medicamento. O que eles fizeram? Vamos diminuir esses critérios. Agora, a pessoa que nem é tão grave pode passar também. Isso não acontece só com isso. Você vê várias [situações] (Transcrição 1, município 2, 2015).

Com relação aos recursos humanos, há ainda a ausência de profissionais relevantes em algumas equipes e problemas na distribuição desses recursos dentro do município. A gestão da logística de materiais e informações também foi apresentada como relevante, principalmente o transporte. Nos pequenos municípios, a APS tem manifestado uma demanda para encaminhamentos aos serviços de média e alta complexidade em outros municípios, gerando o aumento da necessidade de transporte. No município 10, apesar do maior tamanho em relação aos outros municípios da amostra, essa necessidade de transporte também é observada em relação à dependência com a capital Belo Horizonte.

Outro fator que aumenta a necessidade de transporte são as visitas domiciliares dos profissionais de saúde dentro do município. No caso dos municípios da microrregião de saúde (1 a 9), apesar de o Plano Diretor de Regionalização referenciar os pequenos municípios para o município 9, diversos fatores induzem o fluxo de pacientes para cidades diferentes, principalmente em busca de exames e especialidades com menor preço. No entanto, alguns municípios apresentam iniciativas de integração para solucionar problemas de transporte, como a existência pontual de algumas parcerias intermunicipais para que um ônibus seja compartilhado por mais de um município quando esses integram a mesma rota, como nos casos dos transportes do Consórcio Intermunicipal de Saúde. Mas a prevalência é de uma logística desintegrada, com pouco planejamento e elevado nível de incertezas.

Com relação às trajetórias do sistema, as evidências mostraram que modelos de atenção à saúde distintos ainda coexistem. Foi comum observar dentro das UBS uma mistura de programas de Atenção Primária com atendimentos de demanda espontânea. Os mesmos médicos revezam seus horários entre as atividades da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e do atendimento de urgência e emergência. Então, da mesma maneira como coexistem sistemas públicos e privados ( Menicucci, 2003Menicucci, T. M. G. (2003). Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória (Tese de Doutorado). Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais. ), coexistem modelos de atenção à saúde focados tanto na ESF quando no atendimento de demanda espontânea. A transcrição “ . . . o que eu percebo que a nossa ação aqui é mais curativa, infelizmente” (Transcrição 13, município 10, 2018) representa a percepção de um gerente de UBS sobre a existência de um modelo de atenção à saúde em que predomina o atendimento da demanda espontânea.

Participação social, informalidade e comunicação

A terceira categoria que emergiu no estudo trata da participação social e informalidade na comunicação. Nessa categoria, destaca-se a importância da participação social e a influência da informalidade na comunicação na alocação de recursos na APS. As características dos municípios, principalmente os de pequeno porte, facilitam a comunicação entre profissionais, usuários e gestores. Os profissionais destacaram que não é difícil conhecer a situação de todas as famílias da área de sua abrangência, incluindo seus problemas pessoais. A informalidade é um atributo essencial das relações entre os sujeitos analisados.

Eu acho que... Que gosto de trabalhar aqui no interior, que é bacana, assim, é a proximidade com a gestão, com o secretário de saúde, com o prefeito. Por quê? Todas as vezes que precisamos de qualquer coisa que fosse, como um oxigênio para um paciente terminal em domicílio, fosse uma cama, uma cadeira de rodas, tudo que a gente precisa, assim, pode ser até que passa, mas tudo é feito uma mobilização para conseguir (Transcrição 2, município 2, 2015).

A interação social e a informalidade também auxiliam na humanização do cuidado e na motivação do trabalho das equipes. Por outro lado, a maior aproximação entre esses diversos atores também provoca uma assimetria de poder em algumas decisões da saúde municipal. Por exemplo, cita-se o caso no qual o profissional não achava necessário certo tipo de atendimento. Não satisfeito com a decisão do profissional, o usuário solicitou que a gestão municipal intervisse na decisão. Enfim, o usuário foi atendido e o profissional precisou acatar o pedido da gestão para prescrever o procedimento solicitado.

... tivemos o caso de uma paciente que não veio aqui e foi na prefeita: “Ah! Que estou com um problema na perna aqui”. Realmente, disseram que estava muito feia a perna dela, que precisava de fazer a cirurgia de varizes... Essa paciente, nós conseguimos para ela uma cirurgia dois meses atrás e aí o agente de saúde foi lá, avisou e tal. Mas a cirurgia dela saiu tão rápido, mas tão rápido que ela não conseguiu assimilar que ela ia fazer uma cirurgia. Ela simplesmente não foi. Ela não quis ir. Ficou com medo da anestesia, daquelas histórias (Transcrição 2, município 2, 2015).

Nesse contexto, destaca-se a baixa participação social. Ao mesmo tempo que a população apresenta estar próxima dos profissionais e gestores, também se mostra passiva no processo de produção da saúde, nos moldes das políticas públicas mais recentes, em uma relação de assistencialismo. Esse é um desafio observado em todos os dez municípios analisados. A população ainda carrega a trajetória do sistema de saúde médico hospitalar e pouco conhecimento do significado da atenção primária. Então, a população também influencia no modo como os recursos na APS são alocados.

Acho que pode ser levado para o lado do assistencialismo... Simplesmente, as pessoas perdem a consulta, o exame, porque perderam a hora, não estava a fim de ir... Nós fizemos um levantamento em 2014, porque sempre tem aquela reclamação, né? Não tem consulta disso, não tem consulta daquilo... Faltosos em 2014, deu 23% da população. Parece que a gente só perdeu para [citou o nome de outro município] que foi de 31%. E a média dos outros municípios, 10% (Transcrição 2, município 2, 2015).

... às vezes eles vão direto procurar a UPA, e a UPA manda procurar aqui na unidade. Então vem aqui quando cortou. Quer tomar ponto aqui ou suturar. Não, aqui não faz sutura. Tem que mandar pra UPA (Transcrição 11, município 10, 2015).

A participação social parece ser um ponto crucial na saúde municipal. Mesmo nos Conselhos de Saúde, a participação social é considerada baixa. Por outro lado, a população consegue se mobilizar em casos de doença de algum membro da comunidade, como no relato sobre uma senhora que conseguiu arrecadar em uma igreja cerca de 22 mil reais para realizar uma cirurgia particular que era oferecida pelo SUS por 1.800 reais. Então, a população ainda carece de conhecimento sobre a atenção primária e sobre o funcionamento do sistema de saúde.

Rede de Atenção à Saúde

A quarta categoria mostra que os sujeitos visualizam problemas na RAS da microrregião. Foi apontado que existe limitação de vagas para especialidades e exames nos fluxos da RAS. Ao mesmo tempo que a atenção primária, nesses pequenos municípios, elevou a cobertura para praticamente 100% da população, a regionalização obrigou os municípios de referência a compartilharem a rede de média e alta complexidade com os de menor porte. O aumento da demanda e o compartilhamento da rede provocaram uma escassez de procedimentos como consultas e exames. Isso vem exercendo uma pressão para que a atenção primária se torne mais resolutiva em seu município de origem. Nas condições atuais, as políticas públicas de saúde direcionam as recomendações para tornar a atenção primária a mais resolutiva possível nos municípios. De outro lado, existem relatos de que a atenção primária tem focado na organização do fluxo de pacientes, mesmo em situações que poderiam ser resolvidas dentro do próprio município. O sistema ainda mostra coexistência de modelos diferentes de atenção, com uma rede pouco integrada. Então, existe o encaminhamento, mas o sistema falha na parte do contrafluxo.

... quando a gente precisa de exames mais elaborados – ultrassom, endoscopia, tomografia, ressonância – nem se fala! Demora muito. Então, tem vez que a gente não consegue. Às vezes, um paciente está precisando de um exame, e não consegue (Transcrição 8, município 5, 2015).

Outro fator é a influência da iniciativa privada, que faz com que os municípios busquem alternativas de aquisição de serviços fora da delimitação microrregional e macrorregional do Plano Diretor de Regionalização, na busca por oferta de exames e consultas com preços inferiores. Mesmo assim, houve relatos de que o corporativismo impede que alguns exames e consultas sejam aceitos quando não são indicados pelo profissional médico ou não são realizados em alguma clínica indicada na microrregião.

Em relação à integralidade, acho que precisa mais, principalmente, de todos os profissionais, a enxergar mais o indivíduo como um todo, porque, às vezes, focam só na doença. Precisa focar mais, e a assistente social pode falar melhor do que eu em outros aspectos sociais e psicológicos (Transcrição 5, município 4, 2015).

O vínculo entre profissionais e população foi apontado como um fator importante para o sucesso da RAS. Somente um dos municípios apresentou o quadro de pessoal concursado. O vínculo e a continuidade do cuidado dependem da estabilidade do profissional na RAS, mas a contratação provisória ainda é predominante, permeada por laços sociais e pelo clientelismo político.

Perfil profissional e capacitação

A quinta categoria que emergiu tem relação com os problemas no perfil profissional e a capacitação dos sujeitos envolvidos no sistema de saúde do município. Foi destacado que ser necessário reduzir as contratações por relações de amizades, parentescos e indicações políticas. A limitação de disponibilidade de emprego nesses municípios aumenta a importância das oportunidades de trabalho no setor saúde, levando profissionais sem o perfil e a qualificação desejada a buscar indicações políticas para serem contratados.

Quanto aos médicos, foi destacado que existe uma diferença entre o perfil dos profissionais dos Mais Médicos e do PROVAB e o perfil dos profissionais contratados por indicações políticas. Esses últimos apresentam menos o perfil de médico de saúde da família e mais de “médico de urgência e emergência”, ou seja, que não levam em consideração a amplitude do atendimento ao usuário.

A capacitação também foi destacada para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), em razão da importância desses profissionais para o primeiro contato com o usuário, do acesso às comunidades e famílias e do elo com outros profissionais e equipes.

[O usuário] quer chegar na consulta e quer que resolve a dor do cotovelo dele. Não importa, não quer saber se está com pressão alta... O profissional mais antigo é difícil de mudar, mas a nova geração que está formando já vem com essa mentalidade, né, de Atenção Primária... Isso eu creio que vai de 15 a 20 anos para pegar esse conceito (Transcrição 13, município 7, 2015).

Os participantes destacaram os problemas em contratar pessoas recém-formadas, sem experiência, ou contratar um agente de saúde sem capacitá-lo. A capacitação proporciona um diferencial para o profissional trabalhar na atenção primária, principalmente o ACS, que geralmente possui menor nível de escolarização em relação às outras profissões. Os trechos das transcrições a seguir exemplificam a percepção de profissionais da atenção básica sobre a falta de capacitação:

Falta de capacitação também. O e-SUS chegou. Eles deram para a gente. Vamos fazer sem saber como vamos fazer, e pronto (Transcrição 19, município 9, 2015).

... ela conta com os profissionais essenciais e primordiais, mas sem muitas qualificações, né?! (Transcrição 20, município 10, 2018).

Além da capacitação na área da saúde, foi destacada a importância da capacitação na área gerencial. Houve reclamação sobre o preenchimento dos formulários e o envio de informações ao Ministério da Saúde, e não há indícios dessas informações para uso gerencial. Também houve relatos de preenchimento incorreto e incompleto de formulários. Há uma necessidade de capacitação com o propósito de mostrar a importância gerencial das informações coletadas, para a formação de políticas públicas e para a tomada de decisões da gestão municipal.

Políticas públicas e financiamento

A sexta categoria mostra a coerção das políticas públicas e do financiamento no direcionamento das atividades e ações de saúde nos municípios. Assim como foi prescrito pelas políticas públicas, como a Política Nacional da Atenção Básica, os municípios assumiram diversas responsabilidades, inclusive no financiamento da saúde. E os relatos mostraram que a gestão municipal tem percebido essa apropriação de responsabilidades.

Então, a gente trabalha em cima das políticas de governo, adequando ao município, para nossa realidade. Tanto as políticas da Secretaria de Estado da Saúde quanto do Ministério da Saúde... A gestante, por exemplo, Mães de Minas, do Governo Estadual e a Rede Cegonha, do Governo Federal (Transcrição 3, município 3, 2015).

As evidências levaram a inferir que as políticas públicas focam no alcance de metas de produção de serviços, dificultando um projeto de saúde ampliado. O município convive com a busca de dezenas de indicadores, e para alcançá-los, trabalha com equipes e projetos desconexos, limitando a integralidade da atenção primária e a amplitude do cuidado.

Outro ponto informado é que os recursos são repassados desconsiderando a heterogeneidade das comunidades dentro do município. Apesar da distinção regional em nível de estado, quando o recurso chega ao município, é repassado como se todas as equipes de saúde da família tivessem características semelhantes. Então, mesmo que o incentivo exista, ele não consegue atender todas as peculiaridades das diferentes comunidades.

... você tem que cumprir metas, mas aí pode ser até fictício. A pessoa não cumpre a meta e até inventa. No caso, eu faço as metas, tudo. Faço até mais. Os pré-natais, por exemplo, vem de outra área, eu faço... Da gestão eu vi muitas reclamações da questão de metas. Alguns municípios têm dificuldade... Mas essas metas são muito fictícias. Têm que cumprir tantos exames, vamos supor, de escarros. Às vezes, uma cidade que tem incidência baixíssima de tuberculose ou, às vezes, nem tem e a outra cidade tem muito. Então, essa que tem uma incidência maior vai pedir mais exames, vai cumprir mais a meta (Transcrição 13, município 7, 2015).

Como o município é o principal executor das atividades de saúde e vários programas são financiados por diferentes níveis de governo, o município tem sido com frequência forçado a cobrir os atrasos de repasses financeiros dos outros níveis de governo, ou o subfinanciamento das atividades, para não prejudicar o andamento das ações de saúde. Algumas atividades e programas têm sido prejudicados por causa do subfinanciamento da saúde, da transferência de recursos direcionados e da falta de sincronia entre os três níveis de governo para financiar os programas. O exemplo mais claro dessa situação tem acontecido com o repasse de recursos para medicamentos do governo estadual.

Outro ponto relevante é a coexistência entre o sistema de saúde público e o privado. Existem algumas consultas que não são oferecidas pelo SUS e a complementação pelos consórcios intermunicipais de saúde também não tem sido suficiente para atender a todas as demandas. As gestões dos municípios analisados incluem em suas ações negociações com o setor privado, com o propósito de buscar descontos de procedimentos particulares para a população. Então, questiona-se a universalidade e integralidade do SUS nestes pequenos municípios e destaca-se novamente a influência do corporativismo existente na profissão médica.

A influência do sistema privado na saúde pública provoca o remanejamento do Plano Diretor de Regionalização, quando os gestores municipais precisam realizar uma análise de mercado para encontrar procedimentos com preços mais acessíveis, mesmo em municípios mais distantes. Os preços e a disponibilidade de procedimentos variam por região e por cidade. Na microrregião analisada, existe carência de ortopedia e neurologia.

Quando se para de, parou agora, de fazer cirurgia. Está parado o SUS. Mas particular e convênio faz. Mas qual estrutura que é utilizada para fazer essa cirurgia? É a particular? Isso é um ponto interessante, né? É raro você ver um médico que opera em uma clínica particular. Então, esse é outro ponto que a gente questiona muito. Você não pode fazer pelo SUS, mas você faz lá e usando a estrutura do SUS (Transcrição 2, município 2, 2015).

Outro ponto dessa categoria é o direcionamento do financiamento. Foi relatado que seria necessário existir um direcionamento do investimento de forma mais proveitosa do que a atual. Existem pacotes solicitados pelos entes estadual e federal que nem sempre são adequados ao município, enquanto esses teriam outras prioridades, mas não conseguem financiamento, porque na maior parte das vezes, os recursos vêm direcionados para determinado programa específico. Segundo alguns sujeitos, “tem muito dinheiro investido em lugar errado”.

Eu tenho recursos parado, estadual, desde 2012: Alimentação Saudável. Deu 28 mil de Alimentação Saudável. Aí eu posso comprar o quê? Panfleto, campanha, negócio. Eu vou fazer quantas campanhas? Milhões? Aí, eu não atuo no roubo... Então, o dinheiro da questão do estado, do Governo Federal está engessado... Nós tivemos em um congresso agora em Brasília. Aí, está lá o Ministro falando: “É que os municípios não conseguem executar 30% dos recursos que a gente manda”. Recurso direcionado. Não consegue mesmo, não. Como que consegue? Vou passar só a algodão, vou comprar só panfleto? (Transcrição 10, município 5, 2015).

Existe a noção de associar o desempenho do setor saúde com o quantitativo de consultas. O repasse de recursos está associado a isso. Nesse aspecto, seria interessante questionar se não haveria alternativas a esse modelo de financiamento direcionado e à desvinculação entre as ações e as metas. Se o desempenho da saúde é quantificado pelo número de procedimentos, cria-se uma demanda por mais atendimentos, mais serviços que, às vezes, não são necessários.

Profissionalismo

A sétima categoria abordou a influência do profissionalismo na alocação de recursos, principalmente a influência do profissional médico na RAS e a falta de integração entre as equipes de saúde. O modelo de saúde focado na APS trouxe diversos profissionais protagonistas para o setor saúde. Com isso, também surgiram conflitos por causa das disputas de poder entre profissionais e equipes. Enquanto os novos profissionais e as novas equipes buscam um espaço de importância na RAS, os profissionais mais tradicionais também exercem uma força para manter o poder que já detinham.

O simbolismo em torno do profissional médico vem carregado por um contexto histórico e encabeça a hierarquia profissional na RAS. Simbolicamente, observa-se que o atendimento espontâneo tem maior importância do que a promoção da saúde, que tem maior participação de outros profissionais. Ouviram-se relatos de que a população participa de atividades com outros profissionais, condicionada à presença do profissional médico. Um desafio para os novos profissionais é obter legitimidade, assim como para as ações que vieram mudar o paradigma do modelo focado na demanda espontânea e na doença.

O ACS foi mencionado como um profissional que possui importância no elo entre a comunidade e outros profissionais, já que detém informações sobre a situação familiar e de saúde do paciente e caminha pelos bairros da cidade para observar o espaço físico e social. Apesar de sua importância, existem municípios que não regularizaram essa profissão ou em que a pauta ainda está em tramitação no legislativo local. Nos municípios analisados, os ACS entram no ambiente familiar, têm acesso e legitimidade para fazer parte do grupo familiar, sentar-se no sofá da família e tomar um café.

... as unidades locais não têm agentes de saúde [ACS], não tem a extensão do PSF da estratégia, eles não têm esse programa aqui ainda, em algumas unidades os ACS ficam na recepção, [o] que deixa muito a desejar, né?! O trabalho do ACS é diretamente na rua né, trazendo aquele gargalo que está na comunidade né, até sua equipe pra tentar resolver aqui, coisa que não acontece aqui (Transcrição 26, município 10, 2018).

Ao mesmo tempo que, estrategicamente, existe um esforço para alterar o foco do modelo de saúde, os indicadores estão condicionados às metas vinculadas à produção de consultas e exames. Mesmo que as políticas públicas busquem alterar o contexto do profissionalismo, os fenômenos já legitimados ainda coexistem com a legitimação dos novos profissionais, equipes e suas agências.

Uma coisa que tem muito são os médicos que direcionam o paciente do consórcio para o consultório particular que a fila é menor, vou te cobrar menos, vou te cobrar tanto. Eu exijo que você faça esse exame lá no [clínica] porque a qualidade de [município de outra microrregião] não é boa (Transcrição 2, município 2, 2015).

Outro ponto dessa categoria está na influência do profissional médico no caminho percorrido pelo usuário na RAS, influenciando-o na escolha do serviço público ou privado, no tipo de procedimento e no local em que são realizados. Mesmo que a gestão municipal busque alternativas mais baratas fora da microrregião, o médico pode interferir se vai ou não aceitar o resultado do exame de determinado laboratório ou de determinada cidade.

Eles mesmos [usuário] não entende[m] aqui como atividade preventiva e de promoção. As pessoas mesmo não entendem. Eles querem, ainda é um sistema muito focado no médico, sabe? (Transcrição 29, município 10, 2018).

Mandonismo e clientelismo municipal

A última categoria encontrada neste estudo trata de termos já abordados por outros estudos em administração pública: o mandonismo e o clientelismo. A área da saúde nesses pequenos municípios proporciona muita visibilidade política aos seus participantes, em razão da sua importância social e da interação com a população. Provavelmente por isso, verifica-se a questão do mandonismo e clientelismo ( Santos & Rodrigues, 2014Santos, D. L., Rodrigues, P. H. A. (2014). Política, Atenção Primária e acesso a serviços de média e alta complexidade em pequenos municípios. Saúde e Debate, 38 (103), 744-755. doi:10.5935/0103-1104.20140068 ). Santos e Rodrigues analisaram que, nos pequenos municípios, as instituições políticas do clientelismo e do mandonismo interferem no encaminhamento dos usuários para os municípios referência em média e alta complexidade.

... acho que a saúde de modo geral ainda é um pouco deficiente, por questões políticas... Por questões políticas que envolve coisas assim básicas, o que é preconizado a gente não consegue desenvolver muita das vezes. Eu acho que muita das vezes o próprio comodismo, assim, eu posso falar por mim também. Não a gente julgando toda a política, mas a gente mesmo entra no sistema sabe (Transcrição 33, município 10, 2018).

Para a população dos pequenos municípios, carentes sob o ponto de vista econômico e de qualificação profissional, situações como a descrita anteriormente, que influencia a alocação de recursos na APS, dificultam a garantia da continuidade do cuidado da saúde. Esta acaba sendo feita em locais distantes, requerendo apoio logístico, como transporte, alimentação e hospedagem para usuários e acompanhantes, que também são passíveis de exploração política. A predominância do clientelismo no interior do país, dessa forma, favorece o controle privado dos bens públicos e a nomeação de amigos e parentes para organizações municipais. As oportunidades da política costumam ser oferecidas para os eleitores ou financiadores das eleições ( Santos & Rodrigues, 2014Santos, D. L., Rodrigues, P. H. A. (2014). Política, Atenção Primária e acesso a serviços de média e alta complexidade em pequenos municípios. Saúde e Debate, 38 (103), 744-755. doi:10.5935/0103-1104.20140068 ).

A maioria dos pequenos municípios apresenta dificuldades operacionais para a prática do planejamento e da gestão urbana, dada a falta de estrutura institucional e administrativa, como: profissionais qualificados, instrumentos e condições operacionais apropriadas para o desenvolvimento do processo. Em Minas Gerais, quase 80% dos municípios têm menos de 20 mil habitantes, onde falta quadro técnico capacitado para a gestão e a elaboração de projetos. Os municípios de pequeno porte têm dificuldades para definir as diretrizes e os instrumentos capazes de orientar seu crescimento. As ações dos governos municipais, geralmente, acontecem para saciar determinada demanda ou para minimizar determinado problema. Ou seja, não se investe em ações de planejamento de médio e de longo prazo ( Campos et al., 2013Campos, D., Hadad, C., Abreu, D. M. X., Cherchiglia, M. L., França, E. (2013). Sistema de Informações sobre Mortalidade em municípios de pequeno porte de Minas Gerais: concepções dos profissionais de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 18 (5), 1473-1482. doi:10.1590/S1413-81232013000500033 ; Medeiros, 2013Medeiros, C. R. G. (2013). Redes de Atenção em Saúde: o dilema de pequenos municípios . (Tese de Doutorado). Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ; Ohira et al., 2014Ohira, R. H. F., Cordoni Junior, L., Nunes, E. F. P. A. (2014). Perfil dos gerentes de Atenção Primária à Saúde em municípios de pequeno porte do norte do Paraná, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 19 (2), 393-400. doi:10.1590/1413-81232014192.21952012 ; Uchoa et al., 2011Uchoa, A. D. C., Souza, E. L., Spinelli, A. F., Medeiros, R. G., Peixoto, D. C. S., Silva, R. A. R., Rocha, N. S. P. (2011). Avaliação da satisfação do usuário do Programa de Saúde da Família na zona rural de dois pequenos municípios do Rio Grande do Norte. Physis Revista de Saúde Coletiva, 21 (3), 1061-1076. doi:10.1590/S0103-73312011000300016 ). Pinto e Gerhardt (2013)Pinto, J. M., Gerhardt, T. E. (2013). Práticas avaliativas na gestão da Atenção Básica à saúde: estudo de caso em Camaquã e Canguçu (RS). Revista de Administração Pública, 47 (2), 305-326. doi:10.1590/S0034-76122013000200002 informam que os serviços de saúde em pequenos municípios costumam ser esporádicos na zona rural, influenciados por um ambiente bucólico e pelo clientelismo.

O mandonismo ficou evidente por causa da grande indicação de cargos políticos e influência das decisões da administração municipal nas ações de saúde. Em muitos municípios, o secretário de saúde não era profissional da área de saúde e já tinha atuado em outras secretarias da administração municipal. Associado a essas indicações de chefes na área da saúde, os municípios apresentaram uma rotatividade grande de troca de secretários de saúde ou coordenadores.

Principal ponto de uma cidade pequena: política. Às vezes, passa um paciente na frente que não precisa tanto quanto o outro, por causa de política. Às vezes, um exame prioriza uma pessoa que é favorável na política ou é uma pessoa de família. A gente tem pessoas que trabalham no hospital [leia-se UBS] que são vereadores. Esse é um ponto negativo. Passa pessoa na frente. Agenda consulta com mais prioridade, exame, cirurgia e tudo. Acho que toda cidade do interior. É o principal problema seria essa questão de prioridade, porque no SUS não pode ter prioridades. A prioridade seria de acordo com a necessidade do paciente, com a enfermidade do paciente, não de acordo com o status ou alguma influência (Transcrição 8, município 5, 2015).

Como abordado anteriormente, foi relatado que, além do mandonismo, existe um forte clientelismo na saúde, e que os gestores interferem na prioridade dos atendimentos conforme interesses próprios. Quanto maior o contato do usuário com um gestor municipal, maior a chance de acesso aos serviços de saúde. O mandonismo e o clientelismo são reforçados nesses pequenos municípios por causa da escassez de oportunidades de trabalho, do grande percentual de profissionais com vínculos temporários de trabalho e pela visibilidade política do setor saúde.

Hoje em dia, a Estratégia de Saúde da Família, principalmente, acaba sendo um cargo político também. A pessoa acaba ficando por um tempo... Eu acho que a população perde aquela referência, entendeu? Isso prejudica... E o mesmo acontece com o secretário de saúde que vai mudando (Transcrição 2, município 2, 2015).

O mandonismo e o clientelismo também foram observados na intervenção do partidarismo político e nas relações sociais entre a população, profissionais e gestores de saúde, nas evidências de todos os municípios do estudo.

Discussões

As oito categorias construídas permitiram destacar os fenômenos que influenciam a alocação de recursos na APS, de acordo com as percepções dos sujeitos participantes. Também, encontrar e descrever interações sociais importantes, que demonstram uma mudança institucional, na qual a APS ainda se distancia dos princípios das políticas públicas quando se observa as evidências deste estudo. Tais evidências são importantes a partir de um nível microinstitucional, derivadas dos processos cotidianos de interação entre população, profissionais e gestores de saúde ( Alburquerque, 2002Alburquerque, A. R. (2002). Teoría de la organización y nuevo institucionalismo en el análisis organizacional. Administracion y organizaciones, 4 (8), 13-44. Recuperado de https://bit.ly/3h2KYc5
https://bit.ly/3h2KYc5...
; Bitektine & Haack, 2015Bitektine, A., Haack, P. (2015). The macro and the micro of legitimacy: toward a multilevel theory of the legitimacy process. Academy of Management Review, 40 (1), 49-75. doi:10.5465/amr.2013.0318 ; Caraiola et al., 2005; Glaser et al., 2016Glaser, V. L., Fast, N. J., Harmon, D. J., & Green Jr., S. E. (2016). Institutional frame switching: how institutional logics shape individual action. Research in the Sociology of Organizations, 48 (1), 35-69. doi:10.1108/S0733-558X201600048A001 ; Hall & Taylor, 2003Hall, P. A., Taylor, R. C. R. (2003). As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova, 58 (1), 193‑223. doi:10.1590/S0102-64452003000100010 ; Harmon et al., 2019Harmon, D., Haack, P., Roulet, T. (2019). Microfoundations of institutions: a matter of structure vs. agency or level of analysis? Academy of Management Review, 44 (2), 132-155. doi:10.5465/amr.2018.0080 ; Pereira, 2012)Pereira, F. A. M. (2012). A evolução da teoria institucional nos estudos organizacionais: um campo de pesquisa a ser explorado. Organizações em Contexto, 8 (16), 274-295. doi:10.15603/1982-8756/roc.v8n16p275-295 .

Na descrição das categorias, foram apresentadas as análises e exemplos de como as agências em nível microinstitucional podem influenciar as estruturas vigentes, ou apropriando-se de um termo clássico da teoria institucional, “a gaiola de ferro” ( Dimaggio & Powell, 1983Dimaggio, P. J., Powell, W. W. (1983). The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields. American Sociological Review, 48 (2), 147-160. doi:10.2307/2095101 ). Por outro lado, não foi descartada a importância e a influência da prescrição do Estado no esforço de reorganizar o sistema de saúde. Enquanto o Estado prescreve e regulamenta os municípios e atores no contexto da saúde (isomorfismo), os resultados apresentaram que o nível microinstitucional apresenta agências, instituições e outros níveis institucionais que competem com a estrutura e geram um ambiente de incertezas e mudanças na APS dos municípios. Como exemplo dessas agências, este estudo apresentou as deficiências em ações de prevenção e promoção, o subfinanciamento da APS, a força do corporativismo médico, a falta de qualificação profissional dos colaboradores, a falta de reconhecimento da importância de outros profissionais das equipes de saúde, principalmente, o ACS etc. As evidências empíricas trouxeram uma diversidade de agências no nível microinstitucional que demonstram que a implementação das políticas públicas de atenção primária ainda é um processo social em construção, e que precisa de maior atenção por parte do Estado para que a APS se torne o nível de atenção que coordenará a RAS.

Aspectos simbólicos dentro dos municípios, assim como as ações dos participantes, mostram que a atenção primária, conforme esperado pelas políticas públicas, ainda tem um longo caminho para se estabelecer como porta de entrada e organizadora da RAS. Há evidências no estudo de que a APS tem sido ineficiente e pouco resolutiva na ponta. Adicionalmente, percebe-se que essa legitimação ainda depende de outros atores e instituições, em diferentes níveis institucionais.

A baixa capacidade de planejamento e gerenciamento municipal, aliada à intervenção política, prejudica a implementação das políticas públicas do Estado e, em consequência, prejudica também a APS e a RAS. Nesse aspecto, há o conflito de formas isomórficas distintas, vindas de diferentes instituições e níveis ( Alburquerque, 2002Alburquerque, A. R. (2002). Teoría de la organización y nuevo institucionalismo en el análisis organizacional. Administracion y organizaciones, 4 (8), 13-44. Recuperado de https://bit.ly/3h2KYc5
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; Hall & Taylor, 2003Hall, P. A., Taylor, R. C. R. (2003). As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova, 58 (1), 193‑223. doi:10.1590/S0102-64452003000100010 ; Pereira, 2012Pereira, F. A. M. (2012). A evolução da teoria institucional nos estudos organizacionais: um campo de pesquisa a ser explorado. Organizações em Contexto, 8 (16), 274-295. doi:10.15603/1982-8756/roc.v8n16p275-295 ; Scott & Christensen, 1995Scott, W. R., Christensen, S. (1995). The Institutional Construction of Organizations . Londres: Sage Publications. ; Sitek, 2010)Sitek, M. (2010). The new institutionalist approaches to health care reform: lessons from reform experiences in Central Europe. Journal of Health Politics, Policy and Law, 35 (4), 569-593. doi:10.1215/03616878-2010-017 .

Os fenômenos discutidos na categoria intitulada “Profissionalismo” também evidenciaram a questão da mudança institucional, com o conflito de interesses de diversos grupos de profissionais, a ascensão de alguns e a luta para a manutenção de poder de outros, como o profissional médico e o simbolismo em torno da profissão. Nesse contexto, também se pode destacar a influência da iniciativa privada e do corporativismo da profissão médica. Ambos influenciam o fluxo e o contrafluxo dos usuários, a disponibilidade e preço de procedimentos na microrregião e a coexistência dos sistemas público e privado. Esses dois fatores têm poder para desmantelar a rede microrregional como principal organização do fluxo e contrafluxo de usuários, elevando também a complexidade da logística de transportes, que sobrecarrega gerencialmente, operacionalmente e financeiramente o pequeno município. Os municípios analisados, constantemente, necessitam sair do Plano de Regionalização por questões de preço e de disponibilidade de procedimentos.

A pouca qualificação para gestão e planejamento, a falta de capacitação e de participação popular também foram fatores destacados. A saúde ainda é tratada como uma das funções organizacionais no âmbito da administração pública, e vem sendo pouco integrada a outros aparelhos sociais. A desintegração de setores observada na saúde desses municípios começa com os atores e vai até a desintegração de aparelhos sociais, como educação, transporte, economia e cultura.

As mudanças do ambiente institucional da saúde são evidentes quando se observa e ouve o cotidiano dos profissionais e gestores da APS, e o processo de legitimação das políticas públicas da APS ainda terá um longo caminho para se consolidar, com o desafio de incluir a participação social nesse contexto, que foi tão importante na constituição do SUS na década de 1980.

O Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado da Saúde estão repassando o controle e a gestão da saúde para os municípios, mais por instrumentos financeiros e menos por vias que assimilem cognitivamente as novas atribuições da APS na RAS para os profissionais e para a população. Como consequência, observam-se municípios focados na produção de procedimentos desconexos. Existem evidências de que a expansão da APS tem proporcionado mais acesso para outros níveis de atenção, principalmente em função da demanda manifesta, sem que haja um esforço para torná-la estratégica e resolutiva.

A APS tem focado na população com menor renda, o que pode ser simbolicamente observado nas características da infraestrutura que está sendo construída. Essa população carece de muita informação sobre a organização da APS, ainda com a expectativa de utilizar o sistema de saúde por meio da demanda espontânea, negligenciando a prevenção e a promoção da saúde.

As fotos obtidas neste estudo mostraram que a APS tem se diferenciado do modelo tradicional de saúde, pelo menos, por meio da infraestrutura, já que os locais em que as UBS estão estabelecidas não se assemelham à infraestrutura de hospitais ou clínicas privadas, muitas vezes, funcionando em residências alugadas em bairros residenciais.

A legitimidade de algumas ações da APS ainda não é validada por todos os atores envolvidos no ambiente microinstitucional, com destaque para os próprios usuários, o que tende a deixar o sistema de saúde instável e conflituoso, em plena mudança institucional. A tendência é que, ao longo do tempo, e de não forma linear, diversas agências se tornem validadas, e as instituições infiltradas na APS se tornem isomórficas pela persistência das políticas do Estado sobre a agência individual. O que será da APS ainda não pode ser definido pelo que está escrito nas políticas públicas mais recentes. Nesse intervalo de tempo, haverá intervenções de diferentes atores no nível microinstitucional para que as diretrizes do Estado sejam executadas de acordo com ações que já estão legitimadas. Motivações podem provocar comportamentos individuais, que são mecanismos de transformação com potencial de atingir fatos sociais. A legitimidade formada pelos agentes torna-se consequente para a organização quando são expressas nos discursos e ações. As ações dos avaliadores têm consequência direta para organizações, como as mudanças na disponibilidade de recursos. Os recursos importantes e utilizados por um grupo podem não ser para outro ( Bitektine & Haack, 2015Bitektine, A., Haack, P. (2015). The macro and the micro of legitimacy: toward a multilevel theory of the legitimacy process. Academy of Management Review, 40 (1), 49-75. doi:10.5465/amr.2013.0318 ; Jepperson & Meyer, 2011)Jepperson, R., Meyer, J. W. (2011). Multiple Levels of Analysis and the Limitations of Methodological Individualisms. Sociological Theory, 29 (1), 54-73. doi:10.1111/j.1467-9558.2010.01387.x .

Os fatores apresentados nos resultados e discussões impactam, por exemplo, as diretrizes e os princípios da PNAB de 2017 e a Lei Complementar nº 141 de 2012, e é importante considerar tais fatores ao ler e interpretar tais documentos, tendo em vista que não são completamente absorvidos por uma análise macroinstitucional. Por fim, essa seção pretende expor a seguinte dialética que é permeada pelos fatores apresentados ao longo das categorias: as políticas públicas que pregam o empoderamento do indivíduo e da sociedade como agentes da própria saúde também alimentam um sistema de produção de serviços que enfraquece seus propósitos.

Considerações finais

Este artigo apresentou, analisou e discutiu a percepção dos profissionais e gestores da saúde sobre os fenômenos que influenciam a alocação de recursos na APS. Levantou evidências empíricas de que fatores em nível microinstitucional estão influenciando a alocação de recursos na APS, em desalinhamento com prerrogativas das políticas públicas de APS. Como consequência, fomentam o subdesenvolvimento de toda a RAS e da implementação de políticas públicas de saúde no estado de Minas Gerais. Por exemplo, observa-se algumas divergências entre as propostas da PNAB e os resultados aqui apresentados. Este estudo contribui para o conhecimento na área de gestão pública, principalmente ao mostrar como as agências em nível microinstitucional podem influenciar as políticas públicas no nível macroinstitucional.

A inclusão de evidências empíricas de um município distinto daqueles da microrregião estudada em 2014 e 2015 contribuiu para a validação dos resultados obtidos. O município 10, apesar de possuir maior porte e estar próximo da região Metropolitana do estado, apresentou palavras-chave semelhantes às de outros municípios estudados, levando inferir que as categorias encontradas não são exclusivas da microrregião estudada em 2014 e 2015.

Após toda a análise exposta, este estudo também possibilitou deixar algumas questões para serem incluídas em novas pautas de pesquisa: (a) pelo modo como a APS tem sido construída por seus atores, ela se estabelecerá como uma assistência de saúde para a população economicamente menos favorecida, enquanto indivíduos e famílias com maior poder aquisitivo serão atendidos pelo setor privado?; (b) a APS conseguirá se tornar um modelo resolutivo ou continuará focada na organização dos encaminhamentos?; (c) na APS, outros profissionais e equipes de saúde conseguirão equalizar a assimetria de poder com os profissionais mais tradicionais, como médicos e enfermeiros, para obter legitimidade diante da população?; (d) o fortalecimento da APS conseguirá amenizar as inequidades causadas pelo corporativismo médico e pela iniciativa privada?; (e) a APS conseguirá se estabelecer efetivamente como coordenadora da RAS?

Acredita-se que este estudo trará para a área de administração, no mínimo, contribuições em duas vertentes: a primeira, agregar à área de gestão pública e da saúde conhecimentos sobre fatores intervenientes na alocação de recursos na saúde municipal, além dos fatores econômicos; e a segunda, mostrar as evidências concretas de que a APS ainda não está organizada conforme as políticas públicas do setor nem estabelecida como protagonista da RAS, pelo menos, a partir da perspectiva dos profissionais e gestores da APS.

Agradecimentos

Os autores agradecem às gestões municipais e profissionais da saúde que colaboraram com a participação neste estudo.

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  • Verificação de plágio
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  • Disponibilidade de dados
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  • Financiamento: Os autores agradecem o apoio financeiro do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, por meio do Edital 104/2016.

Editado por

Editor Associado: Wescley Xavier

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2018
  • Aceito
    29 Jul 2020
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