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A Nova Precarização do Trabalho: um Mapa Conceitual

Resumo

A nova precarização do trabalho, a precarização flexível, apresenta mudanças e novos elementos significativos no quadro de precariedade do trabalho. Enquanto manifestação histórica, insere-se paulatinamente no bojo das reformas estruturais-econômicas e institucionais-políticas. O objetivo deste texto foi propor um mapa conceitual da nova precarização do trabalho. O mapa conceitual é uma ferramenta crítica para o desenvolvimento de uma investigação científica e articula conceitos, contexto e influências teóricas para promover o avanço da pesquisa no campo do objeto estudado. Três dimensões consubstanciaram o mapa proposto: o contexto, sintetizado na ascensão do neoliberalismo, na hegemonia do setor financeiro, na reestruturação produtiva e na globalização da economia; as práticas flexíveis, na condição de manifestações e causalidades dos arranjos sociais, expostas em termos de naturalização do desemprego, fatalismo econômico, esvaziamento do Estado, santidade dos contratos, desregulamentação, intensificação do trabalho, captura do savoir faire , descentralização e desterritorialização das unidades produtivas, manipulações tecnocráticas, enfraquecimento dos sindicatos, trabalho parcial ou temporário, terceirização e desespecialização; e, as categorias, expressões relacionais identificadas como capitalismo flexível, empresa flexível, flexibilidade (regulação flexível), precarização social e a passagem da subsunção formal à real. Fornecendo uma imagem síntese que busca apreender criticamente a concreticidade do real, o mapa pode ser utilizado como roteiro para novas pesquisas e contribuir para a crítica no campo dos estudos organizacionais.

precarização do trabalho; precarização flexível; mapa conceitual; neoliberalismo; capitalismo flexível

Abstract

The new precarization of work, flexible precarization, presents changes and significant new elements within the context of precarious work. As a historical manifestation, it has gradually been included within structural-economic and institutional-political reforms. This paper aims to propose a conceptual map of the new precarization of work. The conceptual map is a critical tool for developing a scientific investigation and links concepts, context, and theoretical influences to promote the advancement of research in the field of the object studied. Three dimensions embodied the proposed map: the context, synthesized in the rise of neoliberalism, in the hegemony of the financial sector, in productive restructuring, and in economic globalization; flexible practices, in the condition of manifestations and causalities of the social arrangements, exposed in terms of the naturalization of unemployment, economic fatalism, the emptying of the State, the sanctity of contracts, deregulation, work intensification, the capture of savoir faire , decentralization and deterritorialization of productive units, technocratic manipulations, the weakening of the unions, part-time or temporary work, outsourcing, and despecialization; and the categories, relational expressions identified as flexible capitalism, flexible business, flexibility (flexible regulation), social precarization, and the movement from formal to real subsumption. Providing a synthesized image that seeks to critically apprehend the concreteness of the real, the map can be used as a script for new research and to contribute to critiques in the field of organizational studies.

work precarization; flexible precarization; conceptual map; neoliberalism; flexible capitalism

Introdução

As inovações e reformas estruturais-econômicas e institucionais-políticas, levadas a cabo nas décadas de 1970 e 1980, impactaram diretamente o mundo do trabalho, resultando em novas formas de precarização das condições de trabalho e da vida do trabalhador. De acordo com Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , após o longo período de crescimento da economia capitalista, entre o pós-guerra e os anos 1970, iniciou-se uma fase de crise do padrão de acumulação baseada no binômio Taylorismo/Fordismo, cuja determinação profunda está na estrutura do sistema do capital.

Foi nessa fase, devido aos obstáculos impostos ao processo de acumulação capitalista, que um conjunto de práticas que articulava novas e velhas formas de explorar a força de trabalho redesenhou a divisão internacional do trabalho ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ). Por conseguinte, o chamado Toyotismo — forma de arranjo produtivo com base na flexibilidade dos processos — alcançou poder ideológico e estruturante do complexo de reestruturação produtiva do capital. Tal fato tornou a flexibilidade uma categoria objetiva universal na onda da globalização1 1 . Neste trabalho, a expressão globalização se refere ao mesmo tempo: ao disfarce ideológico — mito justificador ( Bourdieu, 1998 ) ou conto de fadas ( Mészáros, 2005 ) — legitimador do processo de precarização do trabalho e das relações sociais; e ao fenômeno concreto ligado à disseminação dos mercados financeiros por meio de redução de controles legais e aprimoramento dos meios tecnológicos. e financeirização da economia ( Alves, 2000Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Antunes, 2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ).

Não obstante tais mudanças tenham sido operadas no seio das relações e organização da produção/trabalho, o processo de reestruturação dos arranjos produtivos se inseriu em um quadro de transformações mais profundas que envolveram todo um arranjo societal. Esse quadro está ligado à resposta do capital diante das crises do regime fordista de acumulação — base da expansão das forças produtivas nos países capitalistas centrais pós-Segunda Guerra — e do Estado de Bem-Estar Social. Isso gerou uma mudança profunda nos padrões de concorrência e reordenação das forças produtivas e dos Estados nacionais. Tal mudança contemplou o uso de novas tecnologias e novas formas de organizar e controlar o trabalho ( Harvey, 1992Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna (17a ed.). São Paulo, SP: Loyola. , 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Hobsbawm, 2015Hobsbawm, E. J. (2015). Era dos extremos (17a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. ).

Diante desse contexto, a regulação do trabalho passou a ser transferida do âmbito social para o privado, resultando em um aumento da informalidade dos trabalhadores, da desigualdade social e da destruição de redes de proteção social ao trabalhador. Nesse cenário se inseriu a flexibilização, caracterizada por permitir a redução do emprego e o aumento da mobilidade do pessoal via superação de situações de controles institucionais. Suas principais modalidades de vínculo são o trabalho temporário, o trabalho em tempo parcial, a terceirização e a suspensão temporária do contrato, resultando em um quadro geral de precarização do trabalho ( D’Arisbo, Boff, Oltramani, & Salvagni, 2018D’Arisbo, A., Boff, D., Oltramari, A. P., Salvagni, J. (2018). Regimes de flexibilização e sentidos do trabalho para docentes de ensino superior em instituições públicas e privadas. Trabalho, Educação e Saúde, 16(2), 495-517. doi:10.1590/1981-7746-sol00125 ; Faria & Kremer, 2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. .

A precariedade do trabalho não é uma realidade nova, é resultado de uma condição socioestrutural que transforma a força de trabalho em mercadoria. Portanto, a precariedade do trabalho é intrínseca à subsunção do trabalho ao capital, ao passo que a precarização é um processo da luta de classes e da correlação de forças entre capital e trabalho, localizado numa determinada dimensão histórica (F. Martins & Lima, 2016Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. ; Pereira, Tassigny, & Bizarria, 2017Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 ).

Embora a precarização do trabalho não seja um fenômeno novo, há, no entanto, um novo processo de precarização. Essa nova precarização está ligada às alterações provocadas pelo paradigma neoliberal, que solapou as bases do Estado de Bem-Estar Social por meio do esvaziamento do Estado e da flexibilização do mercado de trabalho, entre outras políticas ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Mészáros, 2007Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. ; Pochmann, 2009Pochmann, M. (2009). What Brazil learned from labour flexibilization in the 1990s. International Labour Review, 148(3), 269-282. doi:10.21118/apgs.v1i3.1321
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; Quinlan, 2012Quinlan, M. (2012). The ‘pre-invention’ of precarious employment: the changing world of work in context. Economic and Labour Relations Review, 23(4), 3-24. doi:10.1177/103530461202300402
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). Esse novo processo de precarização tem como componente central a flexibilidade ( Antunes, 2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2009bAntunes, R. L. (2009b). Século XXI: nova era da precarização estrutural do trabalho? In R. L. Antunes & R. Braga (Orgs.), Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (pp. 231-238). São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Harvey, 1992Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna (17a ed.). São Paulo, SP: Loyola. , 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Mészáros, 2007Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. ).

De acordo com Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , a economia mundial atual está sob comando e hegemonia do capital financeiro, que demanda flexibilização crescente dos contratos de trabalho. Isso torna a terceirização a modalidade de gestão central das estratégias empresariais, ocultando as reais relações de trabalho em relações de contrato flexíveis, por tempo determinado, entre empresas. Segundo Pereira et al. (2017)Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 , o programa neoliberal impõe uma política de Estado desregulatória em âmbito global e é caracterizado pela terceirização dos contratos de trabalho, novas tecnologias e subcontratação.

Segundo Standing (2014)Standing, G. (2014). O precariado e a luta de classes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 9-24. doi:10.4000/rccs.5521
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, a atual classe trabalhadora precarizada é a primeira, dentro do capitalismo moderno, em que a regra geral é o trabalhador ter maior nível de habilitação do que a exigida pelo trabalho que ele desempenha. Villen (2017)Villen, P. (2017). A face qualificada-especializada do trabalho imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno Crh, 30(79), 33-50. doi:10.1590/S0103-49792017000100003
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, por seu turno, demonstra que atualmente profissões consideradas “privilegiadas” ou “blindadas”, ou seja, funções que demandam alta qualificação, também sofrem processo de precarização. Da mesma forma, Mészáros (2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. evidencia que há uma crise estrutural do sistema capitalista — cuja gênese remonta ao final da década de 1960 e início da década de 1970 — que inaugura um período em que não apenas trabalhadores sem qualificação, mas também um grande número de trabalhadores altamente qualificados, não conseguem emprego. Para isso, conforme o autor, mesmo décadas mais tarde, os apologistas do sistema não oferecem soluções, mas apenas discursos vazios e promessas repetidas.

Há uma forte relação entre precariedade — trabalhos inseguros e irregulares que incluem questões ligadas às horas trabalhadas ou da renda recebida pelos trabalhadores, trabalho casual, contratos de curto prazo ou temporários, trabalhadores por conta própria, subcontratados, imigrantes2 2 . De acordo com Villen (2017) , os movimentos migratórios revelam em escala global tendências de enfraquecimento de todo o mundo do trabalho, o que resultou em esgarçamento das relações sociais e contribuiu para o fenômeno da discriminação, em particular o racismo. Esse movimento migratório é de caráter estrutural, sistêmico e internacionalmente interligado no sistema capitalista globalizado . Por seu turno, argumenta Antunes (2018) que a explosão dos trabalhadores imigrantes é a ponta do iceberg do processo de precarização do trabalho imposta pelo neoliberalismo. Tais trabalhadores recebem sempre os piores salários, os horários mais desconfortáveis e estão sujeitos a todo tipo de discriminação. Paradoxalmente, segundo o autor, tais trabalhadores são os que possuem mais fatores de transformações das sociedades por serem portadores coletivos de uma necessidade de emancipação social. , clandestinos, trabalhadores a distância ou domésticos — e condição de classe ( Estanque, 2014Estanque, E. (2014). Rebeliões de classe média? Precariedade e movimentos sociais em Portugal e no Brasil (2011‐2013). Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 53-80. doi: 10.4000/rccs.5540 ; Quinlan, 2012Quinlan, M. (2012). The ‘pre-invention’ of precarious employment: the changing world of work in context. Economic and Labour Relations Review, 23(4), 3-24. doi:10.1177/103530461202300402
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). Portanto, quando falamos de precarização do trabalho, devemos deixar claro que a precarização está diretamente ligada à classe trabalhadora, obviamente ( Estanque, 2014Estanque, E. (2014). Rebeliões de classe média? Precariedade e movimentos sociais em Portugal e no Brasil (2011‐2013). Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 53-80. doi: 10.4000/rccs.5540 ).

Nessa linha, é importante pontuar que todo processo de precarização, por mais excludente que possa ser, deve ser entendido a partir da lógica dialética da exclusão/inclusão, uma vez que compõe a totalidade da sociedade capitalista, sendo, portanto, parte funcional do seu sistema orgânico. Destarte, em que pese a localização histórica razoavelmente recente do processo de precarização do trabalho ligada à hegemonia neoliberal e às novas práticas oriundas das transformações nas relações de produção, a nova precarização do trabalho é, conforme pontua Alves (2000)Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. , resultado de processos sócio-históricos estruturais e de longa duração da acumulação capitalista em que a globalização do capital procurou acelerar a lei geral de acumulação, enfraquecendo o mundo do trabalho e a perspectiva de classe.

Considerando as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e o novo processo de precarização oriundo das alterações dos arranjos produtivos, o objetivo deste artigo é propor um mapa conceitual da nova precarização do trabalho. O mapa conceitual é uma ferramenta crítica para o desenvolvimento de investigação científica que se justifica para a futura construção de um framework conceitual do processo de precarização do trabalho inserido nas discussões do campo dos estudos organizacionais. O framework conceitual é um sistema de conceitos, afirmações, expectativas, crenças e teorias que dão suporte e informação para uma pesquisa, e não deve ser originado somente de uma revisão da literatura. Como ferramenta crítica, deve evidenciar o posicionamento ontológico e epistemológico da pesquisa.

Como dispositivo visual, o mapa conceitual pode apresentar os elementos da teoria e o andamento do fenômeno que está sendo estudado. O objetivo da elaboração de um mapa conceitual é condensar os conceitos, contexto e influências teóricas do tema estudado para avançar na pesquisa. Nesse sentido, tal objeto não é um fim em si mesmo, mas, sim, uma tentativa de evidenciar conexões apresentadas na pesquisa ( Maxwell, 2013Maxwell, J. A. (2013). Qualitative Research Design. Thousand Oaks: Sage Publications. ; Ravitch & Riggan, 2017Ravitch, S. M., Riggan, M. (2017). Reason & rigor: How conceptual frameworks guide research. Thousand Oaks: Sage Publications. ).

Após esta introdução, este trabalho faz uma discussão a respeito da nova precarização do trabalho, buscando situá-la historicamente, enfatizando suas caraterísticas singulares. Na sequência, elabora uma apresentação teórica do mapa conceitual, evidenciando sua importância para o avanço da pesquisa, momento no qual é inserido o mapa conceitual da nova precarização do trabalho, as discussões e as considerações finais.

A “nova” precarização do trabalho ou a precarização “flexível”

A essência do sistema capitalista — a despeito de que em seu desenvolvimento histórico tenha sofrido transformações significativas — reside na apropriação do trabalho pelo capital, independentemente de quais formas aparentam ter a relação capital-trabalho ( Druck, 2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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).

De acordo com Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , a precarização é um processo resultante da luta de classes e da capacidade de resistência da classe trabalhadora, podendo tanto ser ampliado quanto reduzido por meio de embates contra o regime de exploração do trabalho. Por seu turno, Faria e Kremer (2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. defendem que “a precarização do trabalho é entendida como o processo que envolve a degradação das condições de trabalho e emprego” (p. 10). Para Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010) a precarização do trabalho é um conjunto de “processos de dominação que mesclam insegurança, incerteza, sujeição, competição e proliferação da desconfiança e do individualismo, além do sequestro do tempo e da subjetividade” (p. 31).

A precariedade do trabalho não é um fenômeno novo — consequência de alterações no mercado de trabalho nas últimas décadas —, mas é uma característica generalizada dos mercados de trabalho desde a primeira revolução industrial. Ou seja, é parte estrutural da relação capital/trabalho, que teve apenas um breve espaço de proteção no período de aproximadamente trinta anos após a Segunda Guerra Mundial nos países de economia avançada, coincidindo com o Estado de Bem-Estar Social3 3 . Esse período, marcado pelo pacto entre Estado e sindicatos empresariais e de trabalhadores, assim como pela combinação do Fordismo com o keynesianismo, ficou conhecido, conforme análise de Hobsbawn (2015) , como os anos dourados do capitalismo. Destacado por altas taxas de crescimento econômico, políticas sociais e pleno emprego, o chamado Estado de Bem-Estar Social foi um momento curto na história do capitalismo, circunscrito a um reduzido número de países desenvolvidos. Por esse motivo, é preciso considerar que há particularidades no processo de precarização do trabalho, tanto nos países que alcançaram níveis relativos de segurança como nos países em que a precariedade das relações de trabalho não é um fenômeno recente, mas uma característica estrutural ligada ao desenvolvimento desigual. Não obstante, em que pese as diferenças históricas e contextuais de cada país, é possível visualizar um conjunto de elementos relativos ao processo de precarização do trabalho que perpassa e penetra as diferentes particularidades, que sinaliza, portanto, os aspectos mais gerais e universais do processo. .

A precariedade é, portanto, resultado de uma condição socioestrutural que transforma a força de trabalho em mercadoria. Ela é imanente ao modo de produção capitalista e resultado da subsunção do trabalho ao capital. Por sua vez, a precarização é um processo da luta de classe e da correlação de forças entre capital e trabalho, localizado em uma determinada dimensão histórica (F. Martins & Lima, 2016Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. ; Mészáros, 2007Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. ; Pereira et al., 2017Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 ; Quinlan, 2012)Quinlan, M. (2012). The ‘pre-invention’ of precarious employment: the changing world of work in context. Economic and Labour Relations Review, 23(4), 3-24. doi:10.1177/103530461202300402
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.

Conforme A. Silva e Freitas (2016)Silva, A. L., Freitas, M. E. D. (2016). Para além dos critérios econômicos do trabalho de baixa renda no Brasil. Organizações & Sociedade, 23(76), 37-56. doi:10.1590/1984-9230762
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, a nova precarização está associada à reestruturação produtiva que se iniciou a partir dos anos 1970 possibilitada pela evolução tecnológica. Para Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , esse movimento fez com que adentrássemos uma nova era de precarização do trabalho, uma precarização estrutural gerada pelo neoliberalismo que busca aniquilar direitos sociais. Cabe destacar, no entanto, conforme argumenta Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, que a precarização do trabalho é um fenômeno ao mesmo tempo velho e novo, diferente e igual — que não permite conclusões ligeiras sobre algum tipo de ruptura —, calcado em um processo claro de metamorfose social em que há, na atualidade, uma hegemonia do setor financeiro que contempla todos os âmbitos da vida social, fornecendo, assim, conteúdo a um novo modo de trabalho dado pela insegurança, fragmentação e destituição do conteúdo social do trabalho.

De acordo com Mészáros (2007)Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. , a nova precarização do trabalho é dada pela desregulamentação e pela flexibilidade, em que esta é um mito que se autonomiza diante das pessoas e determina o comportamento dos sujeitos. Reforça Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. que “a flexibilização se expressa na diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força de trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural” (p. 41). Por sua vez, Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. considera a flexibilidade um eufemismo para trabalho precário. Também Antunes (2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ), Alves (2000)Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. e Harvey (1992Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna (17a ed.). São Paulo, SP: Loyola. , 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ) consideram a categoria flexibilidade como fundante e estruturante das novas formas de precarização do mundo do trabalho. Diante disso, torna-se evidente o motivo de Mészáros (2007)Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. chamar tal processo de “precarização flexível”.

Com efeito, argumentam Antunes (2009a)Antunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. e Faria e Kremer (2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. que o trabalho precário — instável, informal, terceirizados, subcontratados —, antes associado aos trabalhos realizados nas fronteiras do tecido social e que se dá por meio da degradação das condições de trabalho e emprego do trabalhador formal, tem se tornado a relação dominante dos demais trabalhadores inseridos nas diversas cadeias produtivas. De acordo com Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, entre os trabalhadores precarizados, desprovidos de direito e estabilidade, a alienação/estranhamento assume uma forma ainda mais intensificada e brutalizada, pautada pela perda da dimensão da humanidade, dada pela separação da unidade que é encontrada na sociedade do trabalho.

Nesse sentido, asseveram Pereira et al. (2017)Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 que vivemos na era da precarização, marcada pela profunda exploração do trabalhador, em que se busca romper a centralidade do trabalho provocando o esgarçamento dos laços sociais. Para Wolff (2014)Wolff, S. (2014). Desenvolvimento local, empreendedorismo e “governança” urbana: onde está o trabalho nesse contexto? Caderno Crh, 27(70), 131-150. doi:10.1590/S0103-49792014000100010 , as atuais políticas públicas dos Estados nacionais são instrumentalizadas para que a classe trabalhadora sustente a acumulação capitalista em nível global, reiterando o processo de precarização do trabalho. Por sua vez, Druck (2016)Druck, G. (2016). Unrestrained outsourcing in Brazil: more precarization and health risks for workers. Caderno de Saúde Pública, 32(6), 1-9. doi:10.1590/0102-311X00146315
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afirma que a nova precarização do trabalho é uma estratégia do capital para a dominação da classe trabalhadora.

Ademais, Mészáros (2007)Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. afirma que mantendo seu impulso inexorável de auto expansão, o capital cria um sistema de controle sociometabólico dinâmico e destrutivo, sob o disfarce de globalização, que elimina cruelmente a maior parte da humanidade do processo de trabalho. O mesmo autor, em outra obra, nos alerta da tentativa de um discurso que busca chamar o desemprego de “estrutural”, fazendo que isso não seja um “problema”, pois é algo “inevitável” — a mesma fatalidade advertida por Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. —, uma “consequência universal do benefício do avanço tecnológico” ( Mészáros, 2005Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. , p. 33). Por conseguinte, por ser natural , tal estrutura destrutiva e insustentável não permite a instituição de uma alternativa viável de outra ordem social reprodutiva. Assim, o discurso das vozes a serviço do capital busca naturalizar a estrutura reprodutiva existente com o argumento de que esta é gerida por dispositivos técnicos/econômicos neutros de suporte às formas flexíveis ( Mészáros, 2005Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. ).

Portanto, resumidamente, podemos afirmar que, embora a precarização esteja ligada à crise estrutural de acumulação do capital — movimento perene de decrescimento das suas taxas de reprodução —, há em curso um novo processo de precarização, fruto do novo arranjo do regime de acumulação capitalista e do esvaziamento dos Estados nacionais.

Diante do exposto, cabe o questionamento: o que há de novo na precarização flexível do trabalho? Quais os elementos, categorias, contexto e práticas sociais que lhe dão forma a ponto de permitir uma visualização condensada em uma imagem/quadro, fornecendo, dessa forma, uma representação geral do tema que possa contribuir para a compreensão da estrutura de suas relações subjacentes?

Abaixo, listamos suas principais características.

1. Marco histórico recente:

O período que compreende o fim da Segunda Guerra Mundial até a década de 1970 foi marcado por políticas keynesianas — participação do Estado na economia, políticas de pleno emprego, políticas sociais e de crescimento econômico, entre outras, principalmente nos países capitalistas centrais — coordenadas nacional ou internacionalmente. A crise da década de 1970 — combinação de desemprego em ascensão e inflação acelerada, oriundos da crise da acumulação capitalista que afetou o mundo todo — esvaziou tais políticas e os Estados nacionais perderam o protagonismo que os caracterizavam na relação Estado/sociedade/mercado. O modelo foi solapado pela globalização da economia, que colocou a todos, exceto os EUA, sob o domínio do mercado mundial . Nesse período houve grande apoio a tendências ultraliberais, culminando no prêmio Nobel para Friedrich Hayek em 1974 e Milton Friedman em 1976. O caminho da transformação do pensamento ultraliberal em doutrina política e econômica tem seu marco registrado entre os anos 1978 e 1980, como um ponto de ruptura revolucionário na história social e econômica do mundo, sob a batuta de Ronald Reagan e Margaret Thatcher ( Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Hobsbawm, 2015Hobsbawm, E. J. (2015). Era dos extremos (17a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. ).

Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. defende que o argumento de que o fim da União Soviética4 4 . A esse respeito, pondera Mészàros (2005) que: “a implosão do sistema soviético só pode ser inteligível como parte integrante dessa crise sistêmica. Pois a tentativa de solução soviética surgiu como uma forma de superar em seu próprio cenário uma grande crise capitalista, instituindo um modo de produção e troca pós-capitalista por meio da abolição da propriedade privada dos meios de produção. No entanto, a solução soviética não conseguiu erradicar o capital do sistema pós-capitalista de reprodução metabólica social. Assim, ele poderia permanecer operacional apenas até que a necessidade de ir além do sistema do capital como tal — e não simplesmente negar uma forma específica de capitalismo, um tanto retrógrada — aparecesse como um desafio fundamental na ordem global da época” (p. xviii). marcou o triunfo da economia de mercado está incorreto. Mesmo os países de economia desenvolvida rejeitavam a doutrina de mercados autorregulados, ou seja, a ideologia livre-mercadista de Reagan/Thatcher, e utilizavam políticas neodemocratas ou neotrabalhistas . De acordo com o autor, a interpretação mais convincente é a de que os países industrializados não podiam impor políticas livre-mercadistas aos países pobres durante a Guerra Fria, pois corriam o risco, caso essas políticas prejudicassem demais os países em desenvolvimento, destes serem cortejados pelo outro bloco. Com a queda do muro de Berlim, caiu também a alternativa aos países pobres, tornando possível aos países ricos impor aquelas doutrinas arriscadas com impunidade.

Ademais, para Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. , a construção do consentimento — ou do senso comum no sentido gramsciano — na aceitação dos valores neoliberais residiu amplamente, em muitos casos, no uso da força militar, no caso do Chile, ou financeira, como nas operações do FMI em países como Filipinas e Moçambique. Ainda conforme Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. , foram também invocados artifícios retóricos vagos que mascaravam estratégias políticas, a exemplo do uso da palavra liberdade , que tem a força de justificar qualquer ato. Em outros casos foram utilizados valores culturais e tradicionais, como a crença em deus ou a posição das mulheres na sociedade, além de temores: de comunistas, de estrangeiros, de imigrantes, ou de qualquer pessoa identificada como o outro .

De acordo com Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. , “na medida em que julga a troca de mercado uma ética em si capaz de servir de guia a toda ação humana, e que ele substitui todas as crenças éticas antes sustentadas, o neoliberalismo5 5 . Para Harvey (2014) , “o neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas políticas-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser bem mais promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas . . . as intervenções dos estados devem se manter em um nível mínimo” (p. 11-12). enfatiza a significação das relações contratuais de mercado” (p. 13). Com base nesse ideário, foram feitas uma série de idas e vindas em experimentos caóticos de neoliberalização6 6 . De acordo com Harvey (2014) , a primeira experiência de neoliberalização aconteceu após o golpe do ditador Augusto Pinochet no Chile, em 1973. O golpe contou com o apoio de corporações estadunidenses e da CIA, reprimindo movimentos sociais, desmontando formas de organização popular e liberando o mercado de trabalho de restrições institucionais ou regulatórias, como o poder sindical. Foi chamado um grupo de economistas formados na Universidade de Chicago, adeptos das doutrinas de Milton Friedman que ficaram conhecidos como Chicago Boys, para fazer os experimentos de desnacionalizações e desregulamentações diversas. , 7 7 . Mészáros (2005) nos oferece exemplos a esse respeito: “o papel do governo britânico na greve dos mineiros [de 1984] fornece um exemplo muito claro de como o estado pode intervir em favor do capital. Ao contrário das regras elementares de boas práticas de negócios elogiadas pelo ex-chefe da General Motors, o estado capitalista na Grã-Bretanha poderia planejar sua ação antitrabalhista na forma de um ‘acúmulo cuidadosamente controlado e coordenado de estoques excessivos’, com o propósito quase oculto de provocar os mineiros a uma greve que — dados os recursos totais do estado — eles não poderiam vencer. Além disso, as autoridades estaduais, com a plena cooperação do judiciário, intervieram ‘na disputa de todas as maneiras possíveis, privando os grevistas de suas reivindicações legítimas e o Sindicato Nacional dos Mineiros de todos os seus fundos. Ademais, grandes somas foram gastas pelo estado durante a disputa de um ano — estimada em cerca de cinco a seis bilhões de libras esterlinas [vinte anos atrás] — para derrotar a greve’” (p. liv). no mundo capitalista, que somente nos anos 1990 encontraram uma convergência com o surgimento de uma nova ortodoxia articulada conhecida como o Consenso de Washington .

Segundo Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. , o Consenso de Washington enfatiza que as intervenções do Estado são fonte de problema, e a solução é a liberalização total da economia. Contudo, Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. , ancorado em Polanyi (2012)Polanyi, K. (2012). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. , afirma que um mercado totalmente autorregulado é um mito: trata-se, apenas, de uma doutrina defendida por crentes de mercado, utilizando uma ideologia que distorce a natureza das transformações sociais. Na mesma linha, Bourdieu (1997)Bourdieu, P. (1997). Le champ économique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Économie et Économistes, 119(1), 48-66. ressalta que os membros da Escola de Chicago, principalmente Milton Friedman, envidaram esforços visando reabilitar o mercado para que este desempenhasse o papel de mito inteligente , identificando-o com liberdade e fazendo parecer que a liberdade econômica fosse a condição da liberdade política.

Assim, o neoliberalismo sustenta que o bem social é alcançado quando se maximizam o alcance e a frequência das transações, procurando enquadrar todas as ações humanas no domínio do mercado. Como bem pontuou Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. , o consenso de Washington defende a santidade dos contratos contra toda e qualquer insolvência, contudo, não tem escrúpulos em profanar algo mais sagrado, o contrato social . Como exemplo, o autor demonstra que o experimento social feito na Rússia, na abertura dos mercados, trouxe resultados desastrosos. Não só a bonança prometida não ocorreu, como a economia encolheu para quase a metade e a proporção de pobres no país aumentou de 2% para 50%. O que a abertura fez foi criar uma nova casta de oligarcas.

Conforme Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. , a rápida transformação imposta à sociedade destruiu antigos mecanismos sem que novos tenham sido projetados. Ocorreu algo parecido no liberalismo do século XIX. Algo que os defensores do Consenso de Washington, versão moderna da ortodoxia liberal, se esqueceram ou fingiram esquecer. No mesmo sentido, Pochmann (2009)Pochmann, M. (2009). What Brazil learned from labour flexibilization in the 1990s. International Labour Review, 148(3), 269-282. doi:10.21118/apgs.v1i3.1321
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reforça que as lições foram desaprendidas pelos formuladores de políticas públicas ao considerarem o mercado algo que paira acima da sociedade, doutrina máxima do discurso neoliberal.

Para Antunes (2009a)Antunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , a agenda do projeto neoliberal contempla a desregulamentação das relações de trabalho e a ampla flexibilização do mercado de trabalho, resultando na fragilização e perda de direitos sociais dos trabalhadores. Para A. Silva e Freitas (2016)Silva, A. L., Freitas, M. E. D. (2016). Para além dos critérios econômicos do trabalho de baixa renda no Brasil. Organizações & Sociedade, 23(76), 37-56. doi:10.1590/1984-9230762
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, houve redução do emprego regular em favor do trabalho flexível (parcial, temporário ou subcontratado), em todo o mundo. Contudo, em países subdesenvolvidos, essas mudanças foram mais violentas, pois esses países possuem menos proteções sociais. Nesse sentido, Pochmann (2009)Pochmann, M. (2009). What Brazil learned from labour flexibilization in the 1990s. International Labour Review, 148(3), 269-282. doi:10.21118/apgs.v1i3.1321
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demonstra evidências da conexão entre o crescimento da pobreza e do trabalho precário e desigualdade social, oriundas da resposta neoliberal que diminuiu o Estado do Bem-Estar Social.

Mészáros (2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. advoga que o capitalismo atual é caracterizado por um período de crise estrutural, não apenas conjuntural como nas fases anteriores, o que carrega implicações mais profundas para a nossa época e para o futuro. Com efeito, o neoliberalismo é o componente político constitutivo da lógica da nova precarização das relações de trabalho. É imposto como uma política de Estado que surge com o capitalismo global ( Pereira et al., 2017Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 ).

O programa neoliberal se caracteriza pela intensificação da integração econômica global, terceirização de parte da produção, novas tecnologias de trabalho e subcontratação para diminuição da remuneração dos trabalhadores (F. Martins & Lima, 2016Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. ). Para Wolf (2014)Wolff, S. (2014). Desenvolvimento local, empreendedorismo e “governança” urbana: onde está o trabalho nesse contexto? Caderno Crh, 27(70), 131-150. doi:10.1590/S0103-49792014000100010 e F. Martins e Lima (2016)Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. , as políticas neoliberais realizadas a partir dos anos 1990 mudaram o paradigma das relações de trabalho, fruto da intensa mobilidade do grande capital, utilizando força de trabalho de países periféricos, mais barata e dócil, para aumento das taxas de lucro.

Para Castel (1995)Castel, R. (1995). Las metamorfosis de la cuestión social: Una crónica del salariado. Buenos Aires: Paidós. , a nova dinâmica do capitalismo tem como elemento central a precarização do trabalho, ou o fim da sociedade salarial , em um processo que cria vulnerabilidade social e modifica as relações de trabalho. Na mesma linha, Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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argumenta que o padrão não é mais uma sociedade do pleno emprego, nem mesmo em países de capitalismo avançado com forte presença do Estado, e sim uma sociedade predominantemente de relação precarizada de trabalho e de desempregados. Por seu turno, Mészáros (2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. argumenta que, mesmo nos países mais ricos, o capital vem retirando sistematicamente as diversas concessões do passado por meio da ordem governante com a ajuda de legislações implacáveis e abertamente antitrabalhistas. Dessa forma, o atual estágio do capitalismo, além de não garantir o Estado de Bem-Estar Social para os países menos desenvolvidos, vem esgarçando o tecido social em escala global.

No período fordista, houve avanços trabalhistas e sociais que impuseram certos limites ao capital e é esse terreno que o projeto neoliberal busca recuperar para a grande burguesia. O enfraquecimento dos Estados é um projeto econômico e político de reestruturação da acumulação capitalista que almeja esvaziar a ameaça eleitoral da esquerda, pois retira do capital o ônus sobre questões sociais , transferindo-as para o terceiro setor, único espaço restante de direção hegemônica da sociedade civil ( Druck, 2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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; Montaño, 2003Montaño, C. (2003). Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo, SP: Cortez. ).

O conteúdo desse enfraquecimento pode ser mais bem visualizado no texto de Williamson (1993)Williamson, J. (1993). Democracy and the “Washington consensus”. World development, 21(8), 1329-1336. doi:10.1016/0305-750X(93)90046-C , membro do Instituto para Economia Internacional de Washington e um dos participantes do Consenso. Segundo o autor, o referido enfraquecimento é causado por fatores como: a disciplina fiscal; a liberalização de comércio com ênfase em eliminação de restrições às importações; a abertura para investimento estrangeiro direto; a privatização de empresas estatais; a desregulamentação; e a segurança dos direitos de propriedade.

Para Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, o projeto neoliberal ultrapassou todas as barreiras e impregnou todos os âmbitos da vida social. Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ressalta que o processo de neoliberalização envolveu muita destruição criativa em todas as esferas da sociedade, das antigas estruturas institucionais às divisões de trabalho, da promoção do bem-estar social, das atividades reprodutivas, das formas de ligação com a terra, do pensamento, dos hábitos do coração e da subjetividade humana.

O esvaziamento do Estado, ou seja, sua omissão na proteção social ao seu povo, em conjunto com a desregulamentação dos mercados formam um fio condutor que é indissociável, e articula um novo processo de precarização do trabalho que se materializa nas mais diversas formas (desemprego, desregulação, flexibilização, adoecimento, perda salarial, fragilidade dos sindicatos etc.).

Entendemos, pois, o neoliberalismo como a racionalidade/instituição que corresponde ao processo de acumulação do capital dentro do chamado capitalismo flexível, que invade todos os espaços da vida social, sendo constituído por um conjunto de teorias, de áreas diversas, que ora legitimam a relação precária do político frente ao econômico, ora prescrevem modelos — teóricos e/ou políticas — de ajustamento às necessidades de acumulação do capital. Em síntese, promove a disseminação político-ideológica, por um lado, e estrutural-econômica, por outro.

2. A reestruturação produtiva:

Categoria chave para o entendimento da atual forma de precarização das relações do trabalho, o programa neoliberal das relações produtivas, oriundo do esgotamento do padrão de acumulação fordista, prescrevia a busca de aumento da produtividade, a substituição da força de trabalho por meio de aplicação de capital fixo e a busca de força de trabalho barata e dócil em países subdesenvolvidos, além de novos mercados de consumo ( Wolff, 2014Wolff, S. (2014). Desenvolvimento local, empreendedorismo e “governança” urbana: onde está o trabalho nesse contexto? Caderno Crh, 27(70), 131-150. doi:10.1590/S0103-49792014000100010 ). Na esteira do enfraquecimento da linha fordista, sobreveio o regime de acumulação flexível que, a partir dos anos 1990, adquiriu braço político e iniciou um ataque feroz à classe trabalhadora mediante o afrouxamento e a desregulamentação das condições jurídicas que regiam o contrato de trabalho ( Alves, 2011Alves, G. (2011). Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo, SP: Boitempo. ; Colombi, 2016Colombi, B. L. P. (2016). A precarização do trabalho em foco: rebatimentos para os assistentes sociais do Judiciário. Serviço Social & Sociedade, 127, 574-586. doi:10.1590/0101-6628.086
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).

Diferentemente do antigo regime de acumulação fordista — em que tanto os produtos quanto os serviços de apoio eram realizados dentro da mesma fábrica — o modelo de desenvolvimento ulterior é apoiado de forma despótica sobre altas taxas de rotatividade, baixos salários e intensificação do ritmo de trabalho. As firmas flexíveis são caracterizadas por poucos cargos hierárquicos e generalizada terceirização8 8 . A terceirização é, paradoxalmente, um fenômeno antigo e novo — antigo, pois essa forma de organização do trabalho tem suas raízes na Revolução Industrial e remonta aos primórdios do capitalismo; e novo, porque tem seu marco histórico recente amparado e inspirado no processo de reestruturação produtiva da Toyota japonesa —, pois é apenas uma nova forma do conteúdo de fetichização de mercado, em que passa a ocorrer também a fetichização da flexibilização, invertendo a relação entre sujeito e objeto, e determinando o comportamento dos trabalhadores como uma força externa e naturalizada, buscando impedir que os sujeitos sejam capazes de reação e controle dos processos da comunidade ( Druck, 2011 ; Pereira et al., 2017 ). .

A reestruturação produtiva neoliberal criou maneiras de extração de mais-valia relativa e absoluta, criando processos para redução de custos trabalhistas promovidos por meio de uso de medidas — esvaziamento do Estado, desregulação — que instituem contratos flexíveis, inflando significativamente a informalidade, o desemprego e processos desonestos de subcontratação e terceirização. Assim, surgiu a nova era de flexibilidade própria da fase toyotizada, com seus traços de continuidade e descontinuidade em relação à forma taylorista-fordista ( Alves, 2000Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; A. Silva & Freitas, 2016Silva, A. L., Freitas, M. E. D. (2016). Para além dos critérios econômicos do trabalho de baixa renda no Brasil. Organizações & Sociedade, 23(76), 37-56. doi:10.1590/1984-9230762
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; Colombi, 2016Colombi, B. L. P. (2016). A precarização do trabalho em foco: rebatimentos para os assistentes sociais do Judiciário. Serviço Social & Sociedade, 127, 574-586. doi:10.1590/0101-6628.086
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; Pochmann, 2009Pochmann, M. (2009). What Brazil learned from labour flexibilization in the 1990s. International Labour Review, 148(3), 269-282. doi:10.21118/apgs.v1i3.1321
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; Quinlan, 2012Quinlan, M. (2012). The ‘pre-invention’ of precarious employment: the changing world of work in context. Economic and Labour Relations Review, 23(4), 3-24. doi:10.1177/103530461202300402
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; Standing, 2014Standing, G. (2014). O precariado e a luta de classes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 9-24. doi:10.4000/rccs.5521
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; Wolff, 2014)Wolff, S. (2014). Desenvolvimento local, empreendedorismo e “governança” urbana: onde está o trabalho nesse contexto? Caderno Crh, 27(70), 131-150. doi:10.1590/S0103-49792014000100010 . De acordo com Harvey (1992)Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna (17a ed.). São Paulo, SP: Loyola. , a “acumulação flexível é marcada por um confronto direto com a rigidez do Fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo” (p. 140). A esse respeito, Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. afirma que a tese de acumulação flexível desenvolvida por Harvey é uma forma própria de capitalismo que mantém três características essenciais desse modo de produção: (a) é voltado para o crescimento; (b) esse crescimento é apoiado na exploração do trabalho vivo; e (c) tem uma intrínseca dinâmica tecnológica e particular.

Para Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, a acumulação flexível é a maior marca do capitalismo contemporâneo. É o novo espírito do capitalismo que anima a hegemonia global do capital financeiro. Segundo Faria e Kremer (2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. , a acumulação flexível — que substitui a hegemonia de mais da metade do século XX do Fordismo, em declínio a partir dos anos 1970 — dá início a uma nova base técnica com o advento da microeletrônica e de novos arranjos de gestão do trabalho, promovendo modificações profundas no espaço da fábrica e criando um “novo arranjo societal que busca superar, na esfera jurídico/política, a rigidez do compromisso fordista” ( Faria & Kremer, 2004Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. , p. 2).

Ensinam Faria e Meneghetti (2007)Faria, J. H., Meneghetti, F. K. (2007). O sequestro da subjetividade e as novas formas de controle psicológico no trabalho. In J. H. Faria (Org.), Análise crítica das teorias e práticas organizacionais (pp. 48-66). São Paulo, SP: Atlas. que o lócus no qual ocorrem os processos de dominação direta ou indireta dos trabalhadores são as organizações. Neste espaço, o sujeito se torna instrumento do capital muitas vezes sem se dar conta disso. Nesse sentido, Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. nomeia as organizações inseridas no âmbito da reestruturação produtiva de empresa flexível. Trata-se da organização que “explora, de certa forma deliberadamente, uma situação de insegurança que ela contribui para reforçar” (p. 74), incluindo práticas como a desterritorialização e o descentramento da empresa, anteriormente ligada a um lugar ou Estado- nação e agora parte de um processo em rede dispersa entre lugares muito afastados.

A respeito das novas práticas de gestão, argumentam Alves (2000)Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. e Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. que se há uma superação do Toyotismo em relação ao Fordismo; essa superação é dialética, no sentido em que supera conservando alguns aspectos predominantes da gestão da produção capitalista. Logo, ele pertence à mesma lógica da racionalização do trabalho adotada pelo binômio Fordismo/Taylorismo. Contudo, o Toyotismo consegue também capturar — uma captura plena em desenvolvimento — e controlar o elemento subjetivo da produção capitalista, criando uma nova subsunção real do trabalho ao capital, expressa em uma subordinação formal-intelectual e espiritual do trabalho ao capital.

Dessa maneira, ainda conforme Alves (2000)Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. e Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , o Toyotismo demonstra descontinuidade, uma ruptura com seu antecessor. Enquanto o Fordismo utilizava da separação, repetição, procedimento e especialização do trabalhador, no Toyotismo ocorre a desespecialização, a não separação, a polivalência e o tempo partilhado e flexível, além de uma plurifuncionalidade de homens e máquinas.

De acordo com Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, a “força e o consentimento são os recursos que o capital se utiliza para viabilizar” (p. 43) seu contínuo grau de acumulação. Essa “força se materializa principalmente na imposição de condições de trabalho e de emprego precárias frente à permanente ameaça de desemprego estrutural criado pelo capitalismo” (p. 43). Afinal, “ter qualquer emprego é melhor do que não ter nenhum” ( Druck, 2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, p. 43). Por meio do exército industrial de reserva, o capital pode criar concorrência e divisão profundas entre os trabalhadores, garantindo a subordinação e submissão do trabalho ao capital, como forma de sobrevivência dos trabalhadores.

Dessa forma, segundo Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. e Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, é instaurado um regime político, por meio de uma cumplicidade ativa ou passiva dos agentes políticos. Esse regime estabelece um dogma econômico construído sob o disfarce de leis naturais inflexíveis e invioláveis, objetivando produzir um consenso para que os trabalhadores percebam e entendam as transformações no mundo do trabalho como inevitáveis.

É de fundamental importância para a compreensão da significação ontológica do envolvimento do trabalho sob a produção capitalista, de acordo com Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, entender o conceito de subsunção e seu desdobramento em real e formal. É com base em manipulações tecnocráticas, aludidas por Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , que o Toyotismo irá operar a transformação da subsunção formal da classe operária à subsunção real. Segundo Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, no Fordismo a subsunção da subjetividade operária à lógica do capital era meramente formal, reduzida aos processos produtivos — aos aspectos físicos maquinais — uma racionalidade inconclusa em que as variáveis psicológicas do comportamento operário não estavam totalmente incorporadas à racionalidade capitalista.

A partir do processo de produção intrafábrica “é instaurado um modo de controle que abarca toda a psique do trabalhador” absorvendo a “participação ativa de sua inteligência, fantasia e iniciativa de trabalho” ( Antunes & Alves, 2004Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, p. 346). O trabalhador, portanto, se insere de forma engajada nos processos produtivos, tendo sua subjetividade totalmente capturada, fazendo com que, no Toyotismo, tal captura atinja o estágio pleno de desenvolvimento: “um desenvolvimento real e não apenas formal” ( Antunes & Alves, 2004, pAntunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, p. 346), cujo conteúdo, no entanto, é dialético, não meramente passivo, condição esta que precisa ser continuamente afirmada.

Para Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. as técnicas de management participativo resultam na submissão racional — para além de quaisquer atribuições dos trabalhadores em seus postos de trabalho —, em alto grau de envolvimento do trabalhador e enfraquecem ou eliminam as solidariedades ou referências coletivas. Tais manipulações tecnocráticas, com o único fim de obter submissão e obediência, é objeto de atenção permanente — com massivo investimento em tempo, pesquisa e trabalho — para criar continuamente formas de gestão e técnicas de comando que alimentam incessantemente a “crença na hierarquia das competências escolarmente garantidas que funda a ordem e a disciplina na empresa privada e também, cada vez mais, na função pública” (pp. 84-85).

O capital busca, ao longo da história do capitalismo, estabelecer diferentes padrões de acumulação em resposta aos limites e resistência que os trabalhadores colocam a essa limitação. O capitalismo do século XXI é diferente do vigente no século anterior e a acumulação flexível é o traço mais característico desse novo padrão. No centro da acumulação flexível está a precarização do trabalho como uma estratégia de dominação que busca romper as barreiras impostas pelo modo fordista e pelas regulações do Estado de Bem-Estar Social. Para isso é necessário impor à força novas condições de trabalho, principalmente em países periféricos ( Druck, 2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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).

Para Standing (2014)Standing, G. (2014). O precariado e a luta de classes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 9-24. doi:10.4000/rccs.5521
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, esta é a primeira vez, em termos históricos, que o Estado retira sistematicamente direitos dos seus cidadãos, transformando os países em economias rentistas e promovendo políticas que sustentem tal forma de acumulação em benefício de uma ingurgitada plutocracia. Consequentemente, defende o autor que os trabalhadores devem lutar por um novo sistema de distribuição e avançar no direito a ter direito.

O advento do neoliberalismo engendrou transformações que geraram uma nova divisão internacional do trabalho, fazendo com que adentrássemos uma nova era, marcada pela ferocidade com que o capital global exige o desmonte de estruturas de legislação social de proteção ao trabalho e destrói os direitos sociais que foram duramente conquistados ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ).

Diante desse quadro, os efeitos das mudanças nas relações de trabalho resultaram em uma deterioração do conjunto das relações sociais, institucionalizando a precarização social por meio da generalização das formas flexíveis e do desmantelamento das redes de proteção social, impondo à coletividade um estado de normalização da regulação da desregulamentação — a regulação via mercado — em vários âmbitos da vida social.

3. A institucionalização da precarização social:

Discutimos anteriormente que no regime de acumulação flexível há um desemprego estrutural e precárias condições de trabalho que resultam em uma realidade adversa à classe trabalhadora ( Antunes & Alves, 2004Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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). O efeito dessas condições pode ser sentido em todo o conjunto das relações sociais. De igual modo, A. Martins e Honório (2014)Martins, A. A. V., Honório, L. C. (2014). Prazer e sofrimento docente em uma instituição de ensino superior privada em Minas Gerais. Organizações & Sociedade, 21(68), 835-851. doi:10.1590/S1984-92302014000100005
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frisam que a ordem burguesa do capital continua a cindir o homem, e as novas formas de organização aumentaram a precarização e a exploração, tornando a insegurança presença constante por toda a parte no mundo do trabalho.

Há atualmente uma hegemonia da lógica financeira que atinge todos “os âmbitos da vida social, dando um novo conteúdo aos modos de trabalho e de vida, sustentados na volatilidade, na efemeridade e na descartabilidade sem limites” ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , p. 153). Dessa forma, “o crescente processo de individualização do trabalho e a ruptura do tecido de solidariedade antes presentes entre os trabalhadores”, têm como consequência a quebra da “capacidade de acionamento das estratégias coletivas de defesa entre os trabalhadores que se encontram na base do aumento dos processos de adoecimento psíquico e de sua expressão mais contundente, o suicídio no local de trabalho” ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , p. 142).

Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. argumenta que há uma situação de insegurança permanente, generalizada e sem precedentes que inscreve a precariedade em um modo de dominação de tipo novo, que obriga os trabalhadores a aceitar a exploração por meio de uma gestão racional da insegurança. Essa gestão instaura, “sobretudo através da manipulação orquestrada do espaço da produção” (p. 75), a concorrência entre trabalhadores. Isso resulta em quebra de seus mecanismos de resistência, travestindo a forma de gestão da dominação “por mecanismos aparentemente naturais, que são por si mesmos sua própria justificação” (p. 75).

A nova precarização dada pelo regime de acumulação flexível tornou a insegurança, a fragmentação e a instabilidade o seu conteúdo hegemônico e central (F. Martins & Lima, 2016Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. ). As formas flexíveis aumentam a carga dos trabalhadores, diminuindo sua qualidade de vida. A intensificação é um processo que resulta em um maior dispêndio das capacidades do trabalhador com o objetivo de elevar os resultados do capital. Isso é fruto de uma estratégia do capital como resposta à luta dos trabalhadores para regulamentação do tempo de trabalho. ( Alves, 2011Alves, G. (2011). Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo, SP: Boitempo. ; A. Silva & Freitas, 2016Silva, A. L., Freitas, M. E. D. (2016). Para além dos critérios econômicos do trabalho de baixa renda no Brasil. Organizações & Sociedade, 23(76), 37-56. doi:10.1590/1984-9230762
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; Colombi, 2016Colombi, B. L. P. (2016). A precarização do trabalho em foco: rebatimentos para os assistentes sociais do Judiciário. Serviço Social & Sociedade, 127, 574-586. doi:10.1590/0101-6628.086
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; F. Martins & Lima, 2016)Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. .

De acordo com Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, está ocorrendo uma institucionalização da flexibilização e da precarização do trabalho, em um processo que é instalado econômica, social e politicamente, cujo aspecto central, que explica a estrutura capitalista hoje, é o grau ilimitado da mercantilização do trabalho e da vida. Standing (2014)Standing, G. (2014). O precariado e a luta de classes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 9-24. doi:10.4000/rccs.5521
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argumenta que a nova grande transformação do capital pretende tornar a instabilidade um hábito do mundo do trabalho, diferente do desejo anterior do capital de que o núcleo do proletariado estivesse habituado a uma vida estável e pertencente a uma certa estrutura empresarial.

No entanto, Colombi (2016)Colombi, B. L. P. (2016). A precarização do trabalho em foco: rebatimentos para os assistentes sociais do Judiciário. Serviço Social & Sociedade, 127, 574-586. doi:10.1590/0101-6628.086
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ressalta que a efemeridade, incerteza ou instabilidade do mundo do trabalho é comum a qualquer contexto histórico — é a normalidade dentro do sistema capitalista —, pois é necessário que haja uma população supérflua para que a classe trabalhadora seja explorada. Dessa forma, há forte correlação entre população supérflua e contratos flexíveis/trabalhadores terceirizados.

Nesse sentido, conforme Faria e Kremer (2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. , sob o regime de acumulação flexível os vínculos empregatícios foram fragilizados por um duplo movimento: (a) primeiramente, com o surgimento de novas modalidades de vínculos de trabalho com reduzidos direitos trabalhistas — como o trabalho em tempo parcial e o temporário — e o esgarçamento dos vínculos tradicionais decorrentes da intensificação do trabalho e da rotatividade da mão de obra, amparados por articulações nas esferas política e jurídica; (b) e depois, pela expansão do trabalho informal, no qual fica localizado o excedente de mão de obra. Dessa forma, há um contingente de trabalhadores sempre disponíveis para contratação como terceirizados, fora do espaço das empresas centrais, com vínculos empregatícios tênues em um quadro de deterioração geral da qualidade dos postos de trabalho, elevando o risco de acidentes e doenças ocupacionais.

Com efeito, a flexibilidade do capital e a globalização dos mercados amparadas por falta ou insuficiência de proteções, regulações, proteções e garantias a direitos socioeconômicos das pessoas contribuíram para o fenômeno da precarização do trabalho, inclusive em economias avançadas. Esses movimentos causaram insegurança e instabilidade em nível macro no mundo do trabalho devido: à falta de solidez de políticas de pleno emprego; à insegurança relacionada à fragilidade dos sindicatos — por exemplo, a inexistência em muitos países do direito à greve; à insegurança causada pela ausência de proteção contra acidentes de trabalho ou enfermidade; e à insuficiência de proteção contra condições insalubres no lugar de trabalho ( Braga, 2014Braga, R. (2014). Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: um olhar a partir da indústria do call center. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 25-52. doi:10.4000/rccs.5532
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; Valenzuela, 2015Valenzuela, H. C. (2015). Precariedad, Precariado y Precarización. Un comentario crítico desde América Latina a The Precariat: The New Dangerous Class de Guy Standing. Polis: Revista Latinoamericana, 14(40), 313-329. doi:10.4067/S0718-65682015000100015
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).

Ademais, as companhias que contratam empresas terceirizadas ficam em posição confortável e não assumem suas responsabilidades, já que essas recaem sobre as companhias terceirizadas. Pereira et al. (2017)Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 apontam que há relação entre terceirização e assédio moral: trabalhadores terceirizados, por sua vulnerabilidade, estão mais sujeitos a constrangimento devido ao fraco vínculo com o trabalho.

Em que pese a defesa de muitos que veem na transformação tecnológica um caminho para um mundo mais saudável, harmonioso e próspero, o que está acontecendo, segundo Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, é um processo histórico de erosão do solo social e um aprofundamento das contradições do capital.

Nesse sentido, apesar da fragmentação e heterogeneidade da classe trabalhadora do século XXI, defendem Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. e Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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que nada permite advogar a tese propugnada do fim do trabalho, ou seja, a ideia da perda da centralidade da categoria trabalho como elemento que estrutura a sociedade. Pelo contrário — malgrado o reconhecimento de que esse é um processo complexo e heterogêneo que, de fato, resulta em uma classe trabalhadora que não é idêntica à do século anterior —, as crises pelas quais o mundo tem passado mostram que o trabalho é o elemento principal que sustenta a base social, portanto, ele não perdeu ontologicamente seu sentido estruturante ( Antunes & Alves, 2004Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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; Antunes, 2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. .

Resumidamente, entendemos que a institucionalização da precarização social se materializa: no âmbito institucional-legal, por meio da desregulação e esvaziamento do campo político frente ao econômico, ou esvaziamento de leis gerais diante dos acordos/contratos particulares; no âmbito organizacional, por meio de novas rotinas e formas flexíveis — inseguras — de trabalho; e, finalmente, no âmbito subjetivo, por meio da subsunção real e do sequestro da subjetividade, inaugurando um novo modo de ser extremamente individualista (do empreendedor) ou, em síntese, um novo hábito de pensamento amplamente disseminado e aceito que está fazendo colapsar os fundamentos do edifício social, fragilizando relações solidárias da comunidade. A precarização social é, portanto, o corolário do paradigma neoliberal.

A pandemia da covid-19 exibiu com grande crueza o cenário de precarização social pelo qual passa boa parte do mundo — incluindo os chamados países ricos —, em um cenário em que a potência estadunidense sequer disfarçou atos de pirataria, o confisco de equipamentos de proteção contra a disseminação do vírus ( Coronavírus: EUA . . ., 2020Coronavírus: EUA são acusados de ‘pirataria’ e ‘desvio’ de equipamentos que iriam para Alemanha, França e Brasil (2020, April 4th). BBC News. Retrieved from https://bbc.in/3bjBzfQ
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). No Brasil foi ouvido um discurso altissonante — acompanhado de atos de sabotagem ao combate da pandemia pelo governo Jair Bolsonaro, conforme aponta o boletim do mapeamento de normas jurídicas de resposta à covid- 19 no país ( Cepedisa, 2021Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) (2021). A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da Covid- 19: Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil”. São Paulo, SP: Cepedisa-USP. ) — da suposta separação entre economia e sociedade, o cerne do paradigma neoliberal, deixando sem proteção a grande massa da população, principalmente a mais precarizada: os trabalhadores por conta própria, prestadores de serviço e entregadores de plataforma.

Mapa conceitual da nova precarização do trabalho

Um mapa conceitual é uma ferramenta de pesquisa que busca demonstrar por meio de um esquema visual o conjunto de conceitos que sustentam um objeto de estudo e suas relações explícitas e subjacentes. Eppler (2006)Eppler, M. J. (2006). A comparison between concept maps, mind maps, conceptual diagrams, and visual metaphors as complementary tools for knowledge construction and sharing. Information visualization, 5(3), 202-210. doi:10.1057/palgrave.ivs.9500131
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define o mapa como um tipo de diagrama top-down que mostra a relação entre conceitos, suas conexões e manifestações, diferenciando-o de outras ferramentas como mapas mentais, diagramas conceituais e metáforas visuais.

O objetivo final da elaboração de um mapa conceitual é avançar na construção de um framework conceitual. Para Tamene (2016)Tamene, E. H. (2016). Theorizing conceptual framework. Asian Journal of Educational Research, 4(2), 50-56. , o framework conceitual indica os pressupostos que fundamentam conceitualmente um tópico particular. De acordo com Maxwell (2013)Maxwell, J. A. (2013). Qualitative Research Design. Thousand Oaks: Sage Publications. , é uma concepção ou modelo do que há ou o que está ocorrendo no campo que se deseja estudar, uma estratégia de teorizar um fenômeno sob investigação, ou seja, uma base para o entendimento de padrões de interconexão entre eventos, ideias, conceitos, conhecimento, observações, interpretações e outros componentes da experiência.

Conforme observação da Figura 1 , podemos afirmar que o framework conceitual é a condensação de elementos analíticos dispersos, que podem incluir o problema de pesquisa, o método e questões básicas, objetivando o entendimento do fenômeno de forma ampla e holística, uma totalidade , permitindo, dessa forma, teorizar um fenômeno sob escrutínio. Segundo Jabareen (2009)Jabareen, J. (2009). Building a Conceptual Framework: Philosophy, Definitions, and Procedure. International Journal of Qualitative Methods, 8(4), 49-62. doi:10.1177/160940690900800406
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, a construção de um framework , ao invés de entregar a descrição de elementos concretos, oferece a possibilidade de interpretá-los dadas as informações coletadas no campo empírico e no campo teórico. Trata-se, portanto, de uma versão consolidada do entendimento de um fenômeno, contendo posicionamentos ontológico, epistemológico e metodológico claros, abordando contexto e questões fundantes do objeto estudado.

Figura 1
Representação esquemática do framework conceitual

Com efeito, a arquitetura de um framework é um processo robusto de condensação teórico-analítica, que a partir de elementos ordenados pode oferecer respostas para questões mais complexas, tais como: de que forma ocorre a passagem da subsunção formal à real? Como a disposição intelectual-afetiva da classe trabalhadora é incorporada às regras do jogo ? De que modo é efetuada a captura do saber do trabalhador? Como é naturalizado o desemprego? Considerando a flexibilidade como fator fundante da precarização flexível, há teorias científicas, no campo da administração e/ou economia, que legitimam as relações flexíveis, ou seja, que tenham a santidade do contrato como sua raison d´etre ? Ou dito de outra forma, é possível demonstrar que há uma afinidade eletiva entre o paradigma neoliberal — na dimensão normativa/institucional — e alguma escola de pensamento — no âmbito organizacional —, que tenha como cerne a gestão dos contratos terceirizados?

Face à complexidade da urdidura dessa teia de relações, é muito útil a elaboração de um mapa conceitual como meio para a construção do framework , tendo em vista que este não pode se originar exclusivamente da revisão de literatura e depende do debate, da interlocução com os pares, e do avanço da pesquisa por um meio, nesse caso o mapa conceitual, para agregar todos os elementos necessários para se consolidar como framework ( Maxwell, 2013Maxwell, J. A. (2013). Qualitative Research Design. Thousand Oaks: Sage Publications. ; Ravitch & Riggan, 2017Ravitch, S. M., Riggan, M. (2017). Reason & rigor: How conceptual frameworks guide research. Thousand Oaks: Sage Publications. ). A expressão visual dos elementos discutidos neste trabalho em um mapa conceitual pode auxiliar no desenvolvimento do framework , de forma a identificar conexões inesperadas, gaps ou contradições que nortearam a continuidade da pesquisa ( Ravitch & Riggan, 2017)Ravitch, S. M., Riggan, M. (2017). Reason & rigor: How conceptual frameworks guide research. Thousand Oaks: Sage Publications. .

O mapa conceitual é como um dispositivo visual sobre o que está sendo estudado ( Maxwell, 2013Maxwell, J. A. (2013). Qualitative Research Design. Thousand Oaks: Sage Publications. ). Para Ravitch e Riggan (2017)Ravitch, S. M., Riggan, M. (2017). Reason & rigor: How conceptual frameworks guide research. Thousand Oaks: Sage Publications. o objetivo do mapa conceitual é ser um meio útil para o avanço da pesquisa, advertindo que sempre deve ser considerado como uma ferramenta de crítica ao real e que nenhuma representação gráfica é capaz de expressar a complexidade da realidade.

Frente ao exposto e tendo como problema de pesquisa evidenciar quais são os elementos constitutivos da precarização do trabalho no contexto da guinada neoliberal, foi construído um mapa conceitual com base no referencial teórico utilizado, para orientação da pesquisa, como demonstrado na Figura 2 .

Figura 2
Mapa conceitual da nova precarização do trabalho

A Figura 2 não é capaz, por si só, de revelar a complexidade de entrelaçamentos do tema em tela. Tampouco é esse seu objetivo. Conforme ensinam Chevalier e Gheerbrant (2001)Chevalier, J., Gheerbrant, A. (2001). Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio. , o símbolo é algo que vai além do significado e que depende de certa predisposição na busca de sua interpretação. Por seu turno, de acordo com Langley (1999)Langley, A. (1999). Strategies for theorizing from process data. Academy of Management Review, 24(4), 691-710. doi: 10.2307/259349 , representações visuais têm o atrativo de permitir imagens simultâneas de diversas dimensões, sendo muito úteis para demonstrar precedência, processos paralelos e a passagem do tempo.

A escolha do modo retangular, tal qual uma planta — traçado ou desenho em projeção horizontal —, para representar a totalidade do mapa ocorreu de forma intuitiva e intencionou apresentar uma síntese em um modelo cartográfico , ou seja, uma representação plana de uma área, indicando não apenas origens e direções, mas também meios de deslocamento. Buscou-se, dessa forma, mostrar as partes como um todo integrado, indicando suas localizações.

No quadrante superior da Figura 2 estão relacionados os diversos eventos históricos ligados à nova precarização do trabalho. A linha pontilhada indica que a degradação das condições de trabalho é um processo contínuo e em andamento. Logo abaixo, no quadrante intermediário, representadas por círculos, estão as práticas sociais. Estas, segundo Fairclough (2000Fairclough, N. (2000). Discourse, social theory, and social research: The discourse of welfare reform. Journal of sociolinguistics, 4(2), 163-195. doi: 10.1111/1467-9481.00110 , 2003Fairclough, N. (2003). Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routledge. ), são possíveis sínteses de relações sociais, atividades, instrumentos, sujeitos, objetos, formas de consciência, valores, tempo-espaço, entre outros. Elas são organizadas em rede e são relações de poder e luta, sendo, portanto, dinâmicas. Por fim, no quadrante inferior do mapa, estão dispostas as categorias representadas por retângulos.

A Figura 2 apresenta uma cronologia dos eventos em diferentes codificações. Há uma seta que parte do quadrante do contexto em direção ao quadrante das práticas sociais, indicando que tais práticas possuem dimensão histórica, não constituindo, assim, relações atemporais. Esse conjunto de práticas sociais, da concretude das relações humanas, dada a sua força no momento histórico contemporâneo, alimentam a institucionalização — no sentido vebleniano, indicando certa cristalização/habituação — de uma estrutura de relações/representações, que chamamos aqui de categorias.

Ao mesmo tempo que tais categorias são resultantes das práticas sociais, funcionam também, em sentido oposto, como reforçadoras das práticas — tendo, portanto, um caráter estrutural e estruturante. As setas em sentido duplo indicam essa movimentação bidirecional.

De acordo com Creswell (2007)Creswell, J. W. (2007). Projeto de Pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto (2a ed.). Porto Alegre, RS: Artmed. , em estudos qualitativos orientados para a teoria, principalmente estudos com fins emancipatórios, pode-se utilizar de forma indutiva a literatura para construir seus resultados (temas ou categorias). Ainda conforme Creswell (2007)Creswell, J. W. (2007). Projeto de Pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto (2a ed.). Porto Alegre, RS: Artmed. , o pesquisador deve construir categorias esquemáticas para extrair sentidos do texto. Essa construção pode ser realizada por meio de agrupamento de tópicos que tenham sentidos similares — ainda que implicitamente.

Por seu turno, Faria (2017)Faria, J. H. (2017). Análise Crítica de Conteúdo: concepção, processo e método. Texto para discussão. Curitiba, PR: Eppeo. aduz que o ordenamento esquemático de análise deve ser feito por meio de filtragem pela mediação crítica do pensamento. Prossegue Faria (2017)Faria, J. H. (2017). Análise Crítica de Conteúdo: concepção, processo e método. Texto para discussão. Curitiba, PR: Eppeo. argumentando que as categorias têm “como propósito a explicação de uma determinada estrutura de relações e representações” (p. 12). Trata-se de uma leitura do concreto em que “este detém a primazia, mas não determina a significação que deve ser atribuída pela investigação científica” (p. 12). Para criá-las, o pesquisador pode “ou recorrer àquelas já disponíveis na literatura (e que correspondam à realidade investigada), ou criar categorias novas e específicas” (p. 12), ademais, “as Categorias de Análise também podem ser antecedidas da definição de Categorias Temáticas, as quais servem para organizar as aproximações teóricas com os temas abordados no estudo” (p. 12).

Assim, foram organizadas as categorias temáticas gerais do mapa conceitual, divididas em: contexto, práticas sociais e, finalmente, as categorias analíticas (estrutura de relações). Desse modo, em síntese, o mapa conceitual fornece elementos esquematizados, os quais foram organizados por meio de similaridade de sentidos extraídos dos textos consultados, mediados pelo esforço de reflexão crítica dos autores. O mapa culmina, portanto, na representação de relações de causalidade e interconexão entre os elementos que compõem a arquitetura da nova precarização do trabalho, constituindo-se como um passo intermediário fundamental para o exercício futuro de teorização desse fenômeno.

A seguir, são discutidos os elementos que constituem o mapa indicando seus principais pontos de origem.

Contexto

A partir do último quarto do século XX é possível notar um contexto de degradação das condições de trabalho. Mudanças nas relações sociais, institucionalizadas formalmente em alterações de regulamentações e leis, inauguraram um novo regime de acumulação calcado na globalização do capital e nos avanços tecnológicos que provocaram profundas alterações nas relações do trabalho, fruto de uma vontade política disfarçada de fatalismo.

Entre os eventos importantes de tal localização histórica estão: o advento do neoliberalismo, observado, entre outras, a partir das obras de Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. , Druck (2016)Druck, G. (2016). Unrestrained outsourcing in Brazil: more precarization and health risks for workers. Caderno de Saúde Pública, 32(6), 1-9. doi:10.1590/0102-311X00146315
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e Pereira et al. (2017)Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 ; a reestruturação produtiva do capital ( Alves, 2000Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Antunes, 2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; A. Silva & Freitas, 2016Silva, A. L., Freitas, M. E. D. (2016). Para além dos critérios econômicos do trabalho de baixa renda no Brasil. Organizações & Sociedade, 23(76), 37-56. doi:10.1590/1984-9230762
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; Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Pochmann, 2009)Pochmann, M. (2009). What Brazil learned from labour flexibilization in the 1990s. International Labour Review, 148(3), 269-282. doi:10.21118/apgs.v1i3.1321
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; o prêmio Nobel de economia para os ultraliberais Hayek e Friedman, bem como o início da era Reagan/Thatcher ( Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Hobsbawm, 2015)Hobsbawm, E. J. (2015). Era dos extremos (17a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. ; o colapso do sistema soviético ( Hobsbawm, 2015Hobsbawm, E. J. (2015). Era dos extremos (17a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. ; Mészáros, 2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. ; e, a globalização do capital e a hegemonia do sistema financeiro ( Alves, 2000Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Antunes, 2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; Druck, 2011, 20Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, 2016Druck, G. (2016). Unrestrained outsourcing in Brazil: more precarization and health risks for workers. Caderno de Saúde Pública, 32(6), 1-9. doi:10.1590/0102-311X00146315
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; Mészáros, 2007)Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. .

A nova precarização do trabalho tem sua localização histórica na reestruturação produtiva iniciada na década de 1970, na ascensão do neoliberalismo, na globalização da economia, na hegemonia do setor financeiro e na consolidação da dominância do discurso neoliberal, com a derrocada do bloco soviético. O discurso neoliberal foi institucionalizado, anos mais tarde, por meio do Consenso de Washington, que forneceu um receituário que se tornou a nova ortodoxia política/econômica articulada ( Bourdieu, 1997Bourdieu, P. (1997). Le champ économique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Économie et Économistes, 119(1), 48-66. ; Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Stiglitz, 2012Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. ). Além dos eventos supracitados, é possível observar na parte superior do mapa alguns dos principais acontecimentos que contextualizam a nova precarização do trabalho, entre eles, o início da era Reagan/Thatcher.

As práticas flexíveis

Na parte intermediária do mapa estão expostas as práticas sociais que engendram a nova precarização do trabalho, que denominamos de práticas flexíveis . E. Silva e Gonçalves (2017)Silva, E. R. D., Gonçalves, C. A. (2017). Possibilidades de incorporação da análise crítica do discurso de Norman Fairclough no estudo das organizações. Cadernos Ebape.Br, 15(1), 1-20. doi:10.1590/1679-395132088 entendem prática social como algo produzido ativamente pelas pessoas que a entendem com base em um senso comum compartilhado. Para Fairclough (2008)Fairclough, N. (2008). Discurso e mudança social. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. a prática social tem várias orientações: econômica, política, cultural e ideológica. Por seu turno, Fairclough e Melo (2012)Fairclough, N., Melo, I. F. (2012). Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha d’agua, 25(2), 307-329. doi:10.11606/issn.2236-4242.v25i2p307-329 explanam que práticas sociais são uma interconexão entre elementos econômicos, políticos, culturais, entre outros, da vida social, que reproduzem as estruturas, mas também podem transformá-las.

As práticas flexíveis surgiram com as mudanças encetadas na forma de produção que, por sua vez, deram origem a novos arranjos sociais, demandando mudanças profundas na forma de organização do trabalho e da vida social. Tais práticas procuram adaptar o trabalhador a um novo regime de trabalho ao mesmo tempo que buscam dissimular ou legitimar práticas predatórias da vida social.

Essas práticas são a manifestação da materialização do discurso estruturante. Entre elas podemos citar: o enfraquecimento dos sindicatos ( Braga, 2014Braga, R. (2014). Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: um olhar a partir da indústria do call center. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 25-52. doi:10.4000/rccs.5532
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; Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Mészáros, 2005Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. ); a descentralização e/ou desterritorialização das unidades produtivas ( Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; Faria & Meneguetti, 2007Faria, J. H., Meneghetti, F. K. (2007). O sequestro da subjetividade e as novas formas de controle psicológico no trabalho. In J. H. Faria (Org.), Análise crítica das teorias e práticas organizacionais (pp. 48-66). São Paulo, SP: Atlas. ); o trabalho parcial e/ou temporário (A. Silva & Freitas, 2016Silva, A. L., Freitas, M. E. D. (2016). Para além dos critérios econômicos do trabalho de baixa renda no Brasil. Organizações & Sociedade, 23(76), 37-56. doi:10.1590/1984-9230762
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; Faria & Kremer, 2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. ; a desespecialização e/ou polivalência do trabalhador ( Alves, 2000Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Antunes, 2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; a naturalização do desemprego — discurso estruturante ou expressão negada — ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Mészáros, 2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. ; o fatalismo econômico ( Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; Druck, 2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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; a santidade dos contratos ( Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Stiglitz, 2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. ; a intensificação do trabalho ( Alves, 2011Alves, G. (2011). Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo, SP: Boitempo. ; F. Martins & Lima, 2016Martins, F. R., Lima, J. C. (2016). As múltiplas faces do trabalho precário e o sindicalismo: a experiência brasileira. Trabajo y Sociedad, 27, 93-108. ; Faria & Kremer, 2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. ; a terceirização ampla e irrestrita ( Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Druck, 2011, 2016Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, 2016Druck, G. (2016). Unrestrained outsourcing in Brazil: more precarization and health risks for workers. Caderno de Saúde Pública, 32(6), 1-9. doi:10.1590/0102-311X00146315
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; Faria & Kremer, 2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. ; as manipulações tecnocráticas — ideário gerencialista para convencimento — ( Antunes & Alves, 2004Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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; Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; Faria & Meneghetti, 2007)Faria, J. H., Meneghetti, F. K. (2007). O sequestro da subjetividade e as novas formas de controle psicológico no trabalho. In J. H. Faria (Org.), Análise crítica das teorias e práticas organizacionais (pp. 48-66). São Paulo, SP: Atlas. ; a captura do savoir faire ( Alves 2000Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Antunes & Alves, 2004Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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; Antunes, 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Bourdieu, 1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; e principalmente, a desregulamentação das relações de trabalho e o esvaziamento dos Estados nacionais ( Antunes, 2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Harvey, 2014Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. ; Mészáros, 2007Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. ; Pochmann, 2009Pochmann, M. (2009). What Brazil learned from labour flexibilization in the 1990s. International Labour Review, 148(3), 269-282. doi:10.21118/apgs.v1i3.1321
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; Quinlan, 2012)Quinlan, M. (2012). The ‘pre-invention’ of precarious employment: the changing world of work in context. Economic and Labour Relations Review, 23(4), 3-24. doi:10.1177/103530461202300402
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.

Conforme pode ser visualizado no mapa, as práticas sociais abrangem as dimensões econômicas, políticas, culturais e discursivas/ideológicas das relações sociais, e são produzidas nos espaços institucionais e organizacionais. As práticas flexíveis têm como finalidade a adequação da produção no novo regime de acumulação e a obtenção de obediência da classe trabalhadora, e, por este último motivo, são objeto de constante atenção e investimento visando criar formas de gestão que alimentem a crença na hierarquia. São uma forma de manipular os espaços de convivência para criar concorrência entre os trabalhadores e tentar eliminar seus mecanismos de resistência, naturalizando as relações de exploração. Por conseguinte, em relação às práticas flexíveis que intensificam a situação estrutural de precariedade, é necessário contrapor práticas não apenas de resistência, mas, sobretudo, emancipatórias.

Categorias

Localizadas na parte inferior do mapa, as categorias representam relações estruturais. Oriunda da crise de acumulação do capital do Fordismo, a categoria capitalismo flexível tem como base a flexibilidade dos processos de trabalho e é uma forma própria de capitalismo — possuindo uma dinâmica relacional/estrutural particular — que instituiu uma nova hegemonia global com o advento de novas tecnologias e novos arranjos de gestão que buscavam superar as restrições das instituições políticas e jurídicas do pacto fordista. A elaboração dessas categorias foi feita, principalmente, a partir dos trabalhos de Alves (2011)Alves, G. (2011). Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo, SP: Boitempo. , Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , Druck (2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, 2016Druck, G. (2016). Unrestrained outsourcing in Brazil: more precarization and health risks for workers. Caderno de Saúde Pública, 32(6), 1-9. doi:10.1590/0102-311X00146315
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), Faria e Kremer (2004)Faria, J. H., Kremer, A. (2004). Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação. Revista Eletrônica de Administração, 10(5), 1-26. e Harvey (1992)Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna (17a ed.). São Paulo, SP: Loyola. .

A empresa flexível, a empresa administradora de contratos, é o corolário do Toyotismo. É o lócus da nova forma de arranjo da produção e dos controles dos processos produtivos, que promove de forma deliberada a situação de insegurança que ela cria e reforça, implantando práticas como transferências de plantas para países com menos proteções sociais, dispersão da organização em processos em rede, terceirização ampla dos processos produtivos controlados via contratos e regulação de direitos de propriedade, entre outras práticas. Mais sobre tal categoria pode ser observado nos escritos de Alves (2000)Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. , Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. e Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. .

A flexibilidade é a categoria central da nova precarização do trabalho. Trata-se de uma necessidade do capital de impor uma nova forma de regulação das relações do trabalho em que ocorre uma transferência da regulação do âmbito social para o âmbito privado. Dessa forma, é instituída a regulação flexível , a regulação via mercado, que promove condições para garantir direitos econômicos à classe hegemônica, os direitos de propriedade , por meio de esvaziamento de direitos outros, via afrouxamento das instituições de proteção social e da proteção jurídica/política ao trabalho. A esquematização dessa categoria foi elaborada, mormente, com base nos trabalhos de Alves (2000)Alves, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, SP: Boitempo. , Antunes (2009aAntunes, R. L. (2009a). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo. , 2018Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ), Druck (2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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, 2016Druck, G. (2016). Unrestrained outsourcing in Brazil: more precarization and health risks for workers. Caderno de Saúde Pública, 32(6), 1-9. doi:10.1590/0102-311X00146315
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), Harvey (1992)Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna (17a ed.). São Paulo, SP: Loyola. , Mészáros (2007)Mészáros, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo, SP: Boitempo. e Stiglitz (2012)Stiglitz, J. (2012). Introdução. In K. Polanyi A grande transformação: as origens de nossa época (pp. XI-XXV). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. .

A flexibilidade, expressão fetiche que busca eufemizar a precarização, se materializa por meio da movimentação/flexibilização do contingente de trabalhadores, do trabalho temporário, do trabalho em tempo parcial, da suspensão temporária de contrato, da terceirização, da falta de direito à greve, do desemprego etc.

Elemento fundante de qualquer processo de precarização, a precariedade estrutural do trabalho, calcada na divisão social do trabalho e na alienação do trabalhador dos processos decisórios, é expressa na subsunção do trabalho ao capital e é inerente ao sistema capitalista em qualquer uma de suas fases. Contudo, essa subsunção sofre um salto qualitativo com o Toyotismo, que opera uma passagem da subsunção formal do trabalho à uma subsunção real, na forma de subordinação intelectual e espiritual. Essa passagem ocorre por meio de violência física e simbólica, entre elas o desemprego e a perseguição a movimentos sociais, entre outras. A passagem da subsunção real à formal é, portanto, um dos elementos estruturantes da nova precarização do trabalho. O ordenamento dessa categoria se deu a partir das obras de Alves (2011)Alves, G. (2011). Trabalho e subjetividade: o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo, SP: Boitempo. , Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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e Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. .

Decorrente desses elementos centrais do neoliberalismo, a precarização social é resultado das práticas flexíveis. Tem como principal elemento a generalização das formas flexíveis para todos os âmbitos da vida social e é instituída por meio de mudanças nos âmbitos legais e organizacionais, além da constituição de uma nova subjetividade. Com o desmantelamento das proteções sociais, o solo social sofreu uma erosão que fragiliza as relações humanas e esvazia os laços de solidariedade, impondo a regulação da vida via mercado e inaugurando um novo modo de ser baseado no individualismo extremo. Identificamos essa categoria a partir das obras de Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. , Bourdieu (1998)Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , Braga (2014)Braga, R. (2014). Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: um olhar a partir da indústria do call center. Revista Crítica de Ciências Sociais, 103, 25-52. doi:10.4000/rccs.5532
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e Druck (2011)Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
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.

Elementos constitutivos da precarização flexível do trabalho

A precariedade do trabalho é elemento indissolúvel do modo de produção capitalista. Ela é resultante de uma condição sócio estrutural que transforma a força de trabalho em mercadoria. Trata-se de um fenômeno que remonta à revolução industrial e é uma característica generalizada da relação capital/trabalho. Nesse sentido, é importante distinguir precariedade, relação estrutural, de precarização, processo de luta e correlação de forças entre classes em certa dimensão histórica.

Durante certo período, entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início da década de 1970, houve um hiato de legislações de proteção ao trabalho, mormente nos países ricos/industrializados, que culminou em certa estabilidade do mundo do trabalho. Essa estabilidade é resultado de lutas da classe trabalhadora, mas, também, de relativa acomodação das classes enquanto o arranjo do chamado Estado de Bem-Estar Social permitia a expansão do capital. Tão logo uma crise profunda de acumulação capitalista se instalou, a crise da década de 1970, foi necessária uma reorganização produtiva que desencadeou um novo processo de precarização do trabalho, a precarização flexível .

O conteúdo dessa nova precarização do trabalho pode ser mais bem visualizado na figura de um mapa conceitual. Este é um dispositivo visual que apresenta elementos da teoria, além do andamento do fenômeno objeto de estudo. O mapa procura evidenciar contextos, conceitos e apontamentos teóricos do tema abordado. É possível visualizar no mapa conceitual os elementos da nova precarização do trabalho, o que pode contribuir para uma compreensão holística geral do fenômeno abordado.

Para Faria (2017)Faria, J. H. (2017). Análise Crítica de Conteúdo: concepção, processo e método. Texto para discussão. Curitiba, PR: Eppeo. , o agrupamento de posições — filtradas em elementos constitutivos, em uma forma organizada e categorizada — é um salto qualitativo de responsabilidade do pesquisador. Ressalta o autor que embora seja uma atividade de abstração, os elementos constitutivos devem ser definidos a partir de uma reflexão crítica, apropriados pelo pensamento como uma realidade organizada. Assim, esse agrupamento possibilita uma representação do real e de sua apropriação do real pensado; não sendo apenas um reflexo do objeto, mas uma apresentação analítica (teórico-conceitual) do fenômeno sob escrutínio.

Dessa forma, estão organizados no mapa os elementos constitutivos da precarização flexível do trabalho: os fatos históricos em uma linha do tempo; as práticas sociais utilizadas para a exploração da classe trabalhadora; e as categorias que demonstram estruturas de relações. Desse modo, o mapa fornece uma arquitetura visual que ajuda a esclarecer a sucessão de acontecimentos e seus respectivos contextos sócio-históricos contribuindo para a compreensão do surgimento da nova precarização do trabalho. Assim, ele nos oferece uma representação geral do fenômeno, constituindo uma ferramenta que expressa graficamente um certo vislumbre da intrincada teia de relações do objeto abordado. Notam-se também as conexões entre os elementos, o que não dá margem à possibilidade de interpretação de separação das estruturas de relações entre o mundo do trabalho e as relações sócio-históricas e políticas.

A respeito do fenômeno relativamente recente de precarização, Colombi (2016)Colombi, B. L. P. (2016). A precarização do trabalho em foco: rebatimentos para os assistentes sociais do Judiciário. Serviço Social & Sociedade, 127, 574-586. doi:10.1590/0101-6628.086
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adverte que discussões sobre esse tema não podem ser restritas ao aspecto formalista — na questão de direito a ter emprego —, mas devem contemplar o reconhecimento de que nunca houve estabilidade contratual do trabalho para a classe trabalhadora dentro do regime capitalista.

No entanto, não se pode negar a precarização como processo. Nesse sentido, partilhamos do entendimento de Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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e Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.: a negação do trabalho precário é uma tendência, mais discursiva do que prática, de retorno às políticas da era fordista. Trata-se de uma atitude idealista, pois não reflete a fragmentação da classe trabalhadora, com consequências que perpassam a realidade objetiva e as novas subjetividades adjacentes a esse processo.

Assim, a discussão sobre a inserção do trabalhador no mercado de trabalho e/ou a conquista de direitos deixam de fora o cerne principal: a própria questão do trabalho. À vista disso, todo e qualquer processo de precarização ocorre porque essa é a contradição básica do capitalismo: a exploração do trabalho pelo capital.

Por fim, cabe destacar, conforme defendem Antunes e Alves (2004)Antunes, R., Alves, G. (2004). As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação & Sociedade, 25(87), 335-351. doi:10.1590/S0101-73302004000200003
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, que o novo arranjo produtivo das formas flexíveis possui um calcanhar de Aquiles , pois está limitado a sua perspectiva política, principalmente se comparado ao arranjo fordista. Dessa forma, no arranjo flexível, a contradição entre irracionalidade societal e racionalidade intraempresa torna-se muito mais aguda. O trabalho é elemento vivo — embora subsumido ao capital — que está em permanente em conflito e medição de forças na relação capitalista. O trabalhador tem na vida cotidiana o campo de disputa entre a alienação do trabalho e sua desalienação.

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi propor um mapa conceitual da nova precarização do trabalho. A precarização flexível do trabalho está localizada historicamente no contexto da ascensão do neoliberalismo, da hegemonia do setor financeiro, da reestruturação produtiva e da globalização da economia. Ela está ligada às práticas sociais decorrentes de tais processos, as práticas flexíveis.

Engendradas na segunda metade do século XX, as práticas flexíveis transbordaram os muros da fábrica para se espalharem no tecido social. Podem ser visualizadas em manifestações diversas, sintetizadas na desregulamentação das relações de trabalho e no esvaziamento dos Estados nacionais, promovendo, assim, a regulação da desregulamentação — a regulação via mercado — em todas as dimensões da vida social. As práticas flexíveis visam a obtenção da submissão dos trabalhadores, criando concorrência, alimentando crenças em formas de gestão hierarquizadas e buscando destruir os mecanismos de resistência da classe trabalhadora. Para contrapor as práticas flexíveis que intensificam a precariedade, os trabalhadores devem organizar práticas emancipatórias e de resistência.

As categorias identificadas foram o capitalismo flexível, a empresa flexível, a flexibilidade — ou regulação flexível —, a passagem da subsunção formal à subsunção real e a precarização social, a expressão máxima do neoliberalismo, que promove a destruição das bases de solidariedade da comunidade. Categorias e práticas são elementos indissolúveis da sua historicidade e, portanto, não se pode permitir uma leitura que promova uma separação das relações entre mundo do trabalho e relações sociais, históricas e políticas.

Cabe ressaltar que o mapa não é um fim em si mesmo, não podendo sozinho expressar a complexidade da realidade, devendo ser entendido como uma ferramenta, um meio de apreensão e crítica do real-concreto. Por meio de uma representação visual das relações de causalidade dos elementos constitutivos da nova precarização do trabalho, o mapa conceitual contribui para uma apreensão abrangente do fenômeno em tela, explicitando conexões, fatos históricos e as principais práticas sociais do paradigma neoliberal. Ele fornece uma imagem-síntese que pode ser utilizada como roteiro para novas pesquisas e contribuir para a crítica dentro do campo dos estudos organizacionais.

Faz-se necessária uma ressalva importante a respeito do fenômeno da precarização do trabalho: a excepcionalidade da tese da erosão do Estado de Bem-Estar Social, indicando uma limitação dessa experiência aos países ricos. Tal forma de proteção social ampla nunca foi realidade nos países pobres. Contudo, em que pese a não particularidade de tal tese para a América Latina ou outras nações periféricas , há elementos-chave que contribuem para o entendimento do processo de precarização que se aprofunda ainda mais em tais países; pois, ainda que haja diferenças contextuais e históricas, existem elementos gerais — como a globalização, a flexibilização, desregulações, entre outros — que perpassam todo o mundo do trabalho e formam um processo comum.

A ideia de uma regulação via mercado desconfigura as relações humanas e deteriora a subjetividade dos seres que compõem o intrincado e delicado laço social. O trabalho é central na configuração do ser, e, portanto, o sujeito não pode ser alienado ou alijado dos processos decisórios, sob o risco de profunda violação do indivíduo. Por conseguinte, argumentamos que a explicitação, por quaisquer meios — incluindo o mapa conceitual —, das relações de exploração do trabalho constitui um elemento de contribuição às lutas emancipatórias.

Por meio do mapa apresentado, foi possível concluir que a nova precarização do trabalho, a precarização flexível, é estrutural e estruturante. Nesse sentido, compartilhamos com Mészáros (2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. o entendimento de que há um desemprego crônico e uma precariedade brutal que não podem ser transcendidos, pois são um limite absoluto do sistema de capital em todas as suas variáveis. Portanto, apenas a instituição de uma ordem social diferente — uma alternativa totalmente cooperativa, de forma não hierárquica de tomada de decisão no plano reprodutivo, cultural e político, coordenada de maneira abrangente sem desagregação de antagonismos irreconciliáveis — pode superar o desemprego globalizado que resulta em uma profunda desumanidade. Por conseguinte, vivemos um momento histórico em que há a necessidade de instituir urgentemente uma alternativa à ordem social estabelecida que passe necessariamente por alterações na organização do trabalho como forma de erradicar as terríveis desigualdades que nos assolam.

Há no modo de produção capitalista a necessidade de uma lógica de fragmentação da humanidade para a manutenção das relações de produção, uma contradição fundamental que se manifesta por meio da alienação mantendo a hegemonia do poder. Somente por meio da recuperação para si da atividade, da cooperação da classe que vive do trabalho e da retomada da consciência de si, do pensamento e da ação que mudanças substantivas podem ser operadas, assim erradicando a exploração e, consequentemente, a precarização/precariedade do trabalho.

Agradecimentos

Os autores agradecem às/aos revisoras/es pelos apontamentos e observações que foram de grande contribuição para a exposição final do texto.

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  • Villen, P. (2017). A face qualificada-especializada do trabalho imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno Crh, 30(79), 33-50. doi:10.1590/S0103-49792017000100003
    » https://doi.org/10.1590/S0103-49792017000100003
  • Williamson, J. (1993). Democracy and the “Washington consensus”. World development, 21(8), 1329-1336. doi:10.1016/0305-750X(93)90046-C
  • Wolff, S. (2014). Desenvolvimento local, empreendedorismo e “governança” urbana: onde está o trabalho nesse contexto? Caderno Crh, 27(70), 131-150. doi:10.1590/S0103-49792014000100010

Notas

  • 1
    . Neste trabalho, a expressão globalização se refere ao mesmo tempo: ao disfarce ideológico — mito justificador ( Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ) ou conto de fadas ( Mészáros, 2005Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. ) — legitimador do processo de precarização do trabalho e das relações sociais; e ao fenômeno concreto ligado à disseminação dos mercados financeiros por meio de redução de controles legais e aprimoramento dos meios tecnológicos.
  • 2
    . De acordo com Villen (2017)Villen, P. (2017). A face qualificada-especializada do trabalho imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno Crh, 30(79), 33-50. doi:10.1590/S0103-49792017000100003
    https://doi.org/10.1590/S0103-4979201700...
    , os movimentos migratórios revelam em escala global tendências de enfraquecimento de todo o mundo do trabalho, o que resultou em esgarçamento das relações sociais e contribuiu para o fenômeno da discriminação, em particular o racismo. Esse movimento migratório é de caráter estrutural, sistêmico e internacionalmente interligado no sistema capitalista globalizado . Por seu turno, argumenta Antunes (2018)Antunes, R. L. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. que a explosão dos trabalhadores imigrantes é a ponta do iceberg do processo de precarização do trabalho imposta pelo neoliberalismo. Tais trabalhadores recebem sempre os piores salários, os horários mais desconfortáveis e estão sujeitos a todo tipo de discriminação. Paradoxalmente, segundo o autor, tais trabalhadores são os que possuem mais fatores de transformações das sociedades por serem portadores coletivos de uma necessidade de emancipação social.
  • 3
    . Esse período, marcado pelo pacto entre Estado e sindicatos empresariais e de trabalhadores, assim como pela combinação do Fordismo com o keynesianismo, ficou conhecido, conforme análise de Hobsbawn (2015)Hobsbawm, E. J. (2015). Era dos extremos (17a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. , como os anos dourados do capitalismo. Destacado por altas taxas de crescimento econômico, políticas sociais e pleno emprego, o chamado Estado de Bem-Estar Social foi um momento curto na história do capitalismo, circunscrito a um reduzido número de países desenvolvidos. Por esse motivo, é preciso considerar que há particularidades no processo de precarização do trabalho, tanto nos países que alcançaram níveis relativos de segurança como nos países em que a precariedade das relações de trabalho não é um fenômeno recente, mas uma característica estrutural ligada ao desenvolvimento desigual. Não obstante, em que pese as diferenças históricas e contextuais de cada país, é possível visualizar um conjunto de elementos relativos ao processo de precarização do trabalho que perpassa e penetra as diferentes particularidades, que sinaliza, portanto, os aspectos mais gerais e universais do processo.
  • 4
    . A esse respeito, pondera Mészàros (2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. que: “a implosão do sistema soviético só pode ser inteligível como parte integrante dessa crise sistêmica. Pois a tentativa de solução soviética surgiu como uma forma de superar em seu próprio cenário uma grande crise capitalista, instituindo um modo de produção e troca pós-capitalista por meio da abolição da propriedade privada dos meios de produção. No entanto, a solução soviética não conseguiu erradicar o capital do sistema pós-capitalista de reprodução metabólica social. Assim, ele poderia permanecer operacional apenas até que a necessidade de ir além do sistema do capital como tal — e não simplesmente negar uma forma específica de capitalismo, um tanto retrógrada — aparecesse como um desafio fundamental na ordem global da época” (p. xviii).
  • 5
    . Para Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. , “o neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas políticas-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser bem mais promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas . . . as intervenções dos estados devem se manter em um nível mínimo” (p. 11-12).
  • 6
    . De acordo com Harvey (2014)Harvey, D. (2014). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, SP: Edições Loyola. , a primeira experiência de neoliberalização aconteceu após o golpe do ditador Augusto Pinochet no Chile, em 1973. O golpe contou com o apoio de corporações estadunidenses e da CIA, reprimindo movimentos sociais, desmontando formas de organização popular e liberando o mercado de trabalho de restrições institucionais ou regulatórias, como o poder sindical. Foi chamado um grupo de economistas formados na Universidade de Chicago, adeptos das doutrinas de Milton Friedman que ficaram conhecidos como Chicago Boys, para fazer os experimentos de desnacionalizações e desregulamentações diversas.
  • 7
    . Mészáros (2005)Mészáros, I. (2005). The power of ideology. London: Zed Books. nos oferece exemplos a esse respeito: “o papel do governo britânico na greve dos mineiros [de 1984] fornece um exemplo muito claro de como o estado pode intervir em favor do capital. Ao contrário das regras elementares de boas práticas de negócios elogiadas pelo ex-chefe da General Motors, o estado capitalista na Grã-Bretanha poderia planejar sua ação antitrabalhista na forma de um ‘acúmulo cuidadosamente controlado e coordenado de estoques excessivos’, com o propósito quase oculto de provocar os mineiros a uma greve que — dados os recursos totais do estado — eles não poderiam vencer. Além disso, as autoridades estaduais, com a plena cooperação do judiciário, intervieram ‘na disputa de todas as maneiras possíveis, privando os grevistas de suas reivindicações legítimas e o Sindicato Nacional dos Mineiros de todos os seus fundos. Ademais, grandes somas foram gastas pelo estado durante a disputa de um ano — estimada em cerca de cinco a seis bilhões de libras esterlinas [vinte anos atrás] — para derrotar a greve’” (p. liv).
  • 8
    . A terceirização é, paradoxalmente, um fenômeno antigo e novo — antigo, pois essa forma de organização do trabalho tem suas raízes na Revolução Industrial e remonta aos primórdios do capitalismo; e novo, porque tem seu marco histórico recente amparado e inspirado no processo de reestruturação produtiva da Toyota japonesa —, pois é apenas uma nova forma do conteúdo de fetichização de mercado, em que passa a ocorrer também a fetichização da flexibilização, invertendo a relação entre sujeito e objeto, e determinando o comportamento dos trabalhadores como uma força externa e naturalizada, buscando impedir que os sujeitos sejam capazes de reação e controle dos processos da comunidade ( Druck, 2011Druck, G. (2011). Trabalho, precarização e resistência. Cadernos CRH, 24(1), 37-57. doi:10.1590/S0103-49792011000400004
    https://doi.org/10.1590/S0103-4979201100...
    ; Pereira et al., 2017Pereira, M. E. R., Tassigny, M. M., Bizarria, F. P. (2017). Terceirização e precarização do trabalho na política pública de assistência social. Administração Pública e Gestão Social, 9(3), 171-183. doi: 10.21118/apgs.v1i3.5138 ).
  • Verificação de plágio
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  • Financiamento: Os autores não receberam apoio financeiro para a pesquisa, autoria ou publicação deste artigo.
Editora Associada: Cintia Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    29 Abr 2022
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