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Modelo de avaliação do nível de sustentabilidade urbana: proposta para as cidades brasileiras

Assessment model of urban sustainability level: proposal to brazilian cities

Resumo

Os indicadores de sustentabilidade permitem captar características do ambiente urbano e revelar a (in)sustentabilidade urbana, gerando informações que dão suporte às políticas públicas e ao processo de desenvolvimento. A partir dessa constatação, o objetivo do artigo é propor um modelo para análise da sustentabilidade urbana, construído a partir das matrizes de Acselrad (2009). Tal proposta é dividida em: uma abordagem conceitual, marco ordenador para avaliação da sustentabilidade do espaço urbano, no sentido de unificar o entendimento sobre a sustentabilidade pelos diversos públicos interessados; e uma abordagem operacional, que define as matrizes, as dimensões e os temas para análise da sustentabilidade, com seus respectivos critérios de análises, indicadores e parâmetros de operacionalização, que permitem o monitoramento da sustentabilidade das cidades, servindo como instrumento para orientação das políticas públicas urbanas. Em termos metodológicos, trata-se de um ensaio teórico baseado na literatura sobre sustentabilidade urbana, especialmente acerca das matrizes discursivas. A importância do trabalho refere-se ao fato de o modelo permitir a análise da sustentabilidade urbana, dadas as especificidades da problemática das cidades brasileiras. Em termos de contribuição, é importante por gerar subsídios para análises mais consistentes desses problemas e, por meio de indicadores urbanos e de critérios de análises, possibilitar uma orientação para o processo de desenvolvimento urbano e de monitoramento da sustentabilidade das cidades, oferecendo suporte às políticas públicas.

Palavras-chave:
Sustentabilidade; Indicadores urbanos; Políticas públicas

Abstract

Sustainability indicators allow to capture urban environment features and reveal the urban (in)sustainability, generating information that support urban public policies and the development process. Based on this evidence, the paper aims to propose a model for urban sustainability analysis, built from matrices of Ascelrad (2009). This proposal is divided into a conceptual approach, originator mark for assessing the urban space sustainability in order to consolidate the its by various stakeholders and an operational approach defining matrices, the dimensions and the themes for sustainability analysis, with their analysis criteria, indicators and operational parameters, which allow to monitor the cities sustainability, serving as a tool for guidance of urban public policies. Methodologically, this is a theoretical essay based on the literature on urban sustainability, especially urban sustainability discursive matrices. This model allows the analysis of urban sustainability given the specificities of the Brazilian urban issues; and contributes to generate subsidies for more consistent analyzes of urban problems, which through urban indicators and criteria analysis, allow a guidance to the urban development process and cities sustainability monitoring, offering support to public policies.

Keywords:
Sustainability; Urban indicators; Public policy

Introdução

É consenso na literatura que o meio urbano, entendido como o espaço que agrega o meio natural e o ambiente construído, apresenta uma dinâmica de organização relacionada à evolução da sociedade e às relações de poder estabelecidas ao longo de sua história.

Considerando que o urbano é a forma de ocupação do espaço por uma população aglomerada, resultante de uma forte concentração e da alta densidade (Castells, 2000Castells, M. (2000). A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra.), o meio urbano é um grande propulsor de impactos, pois reúne diversas atividades produtivas e de comercialização, sistema de transportes com tráfego de veículos, maior concentração de população, maior consumo e produção de resíduos etc., que exercem pressão sobre os recursos naturais. Mendonça (2001)Mendonça, F. (2001). Abordagem interdisciplinar da problemática ambiental urbano-metropolitana: esboço metodológico da experiência do doutorado em MA&D* da UFPR sobre a RMC – Região Metropolitana de Curitiba. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 3, 79-95.ratifica essa ideia ao enfatizar que fatores como industrialização, produção, circulação e consumo de mercadorias, bem como a concentração populacional nas cidades, promoveram a explosão urbana e introduziram, paulatinamente, a degradação dos ambientes urbanos.

Diante disso, percebe-se que a compreensão do fenômeno urbano envolve percepções e interpretações que, somadas a um conjunto de interesses distintos presentes no espaço urbanizado, geram toda a complexidade que envolve o contexto urbano e estabelece as bases para o processo de desenvolvimento sustentável das cidades. Acselrad (2009)Acselrad, H. (2009). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas (2. ed.). Rio de Janeiro: Lamparina., ao investigar os diversos discursos da sustentabilidade, destaca a existência de várias articulações lógicas entre a reprodução das estruturas urbanas e a sua base especificamente material e, assim, encontra representações distintas da cidade capazes de legitimar e dar durabilidade à integridade do urbano. São elas: 1) A representação técnico-material da cidade, mediante associação entre a transição da sustentabilidade e a reprodução adaptativa das estruturas urbanas para ajustamento das bases técnicas das cidades; 2) A representação da cidade como espaço da qualidade de vida, expressa por meio de componentes não mercantis das áreas urbanas, especialmente as implicações sanitárias das práticas urbanas; 3) A representação da cidade como espaço de legitimação das políticas urbanas, por meio das quais a materialidade das cidades é politicamente construída.

Em busca de responder adequadamente ao fenômeno da sustentabilidade, Acselrad (1999Acselrad, H. (1999). Discursos da sustentabilidade urbana. Revista de Estudos Urbanos e Regionais - ANPUR, 1(1), 79-90., p. 81) esclarece que prevalecem as expressões interrogativas, nas quais a sustentabilidade é vista como algo em evolução, enfatizando que “[...] é sustentável hoje aquele conjunto de práticas portadoras da sustentabilidade no futuro”. Nessa perspectiva, Braga (2006)Braga, T. M. (2006). Sustentabilidade e condições de vida em áreas urbanas: medidas e determinantes em regiões metropolitanas brasileiras. Revista Eure, 32(96), 47-71. destaca que a sustentabilidade urbana não apresenta definição acabada, sendo fundamental compreender seu papel no estabelecimento de uma “verdade” para torná-la mais operacional e mensurável, mediante a criação de indicadores que permitem captar as características do ambiente urbano investigado e revelar a (in)sustentabilidade urbana. Assim, os aspectos conceituais da sustentabilidade e a problemática urbana representam o ponto de partida para a identificação e para a criação de indicadores de sustentabilidade urbana, cujos sistemas constituem instrumentos que permitem avaliar os processos de desenvolvimento e sustentabilidade das cidades. Para atender a propósitos distintos, diversos sistemas de sustentabilidade urbana já foram construídos, com destaque para o Sistema de Índices de Sustentabilidade Urbana (SISU), o Índice de Qualidade de Vida Urbana dos Municípios Brasileiros (IQVU-BR), o Sistema Nacional de Informações das Cidades (SNIC), o Sistema Integrado de Gestão do Ambiente Urbano (SIGAU), entre outros.

No entanto, os estudos sobre o desenvolvimento do espaço urbano precisam ser viabilizados por mecanismos capazes de prever os impactos e dar novos cursos de ação que ofereçam opções sustentáveis, por meio de evidências que revelem, pelo monitoramento dos indicadores e das políticas públicas, tendências ou perspectivas futuras (Martins & Cândido, 2013Martins, M. F., & Cândido, G. A. (2013). Análise da sustentabilidade urbana no contexto das cidades: proposição de critérios e indicadores. In Anais do XXXVII EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD.), mediante a definição de critérios de análise e de parâmetros de comparação.

Nesse sentido, o presente artigo propõe um modelo para análise da sustentabilidade urbana, a partir das matrizes de Acselrad (2009)Acselrad, H. (2009). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas (2. ed.). Rio de Janeiro: Lamparina., e constitui um ensaio teórico baseado em uma revisão de literatura sobre a temática sustentabilidade urbana, indicadores e sistemas de indicadores urbanos, especialmente acerca das matrizes discursivas. Ressalta-se que o modelo parte das concepções teóricas a partir da leitura das matrizes da sustentabilidade urbana e estabelece uma relação com a realidade prática, por meio dos indicadores urbanos, para gerar informações que permitem uma orientação para as políticas públicas e para o processo de desenvolvimento urbano das cidades. Assim, sua relevância está em disponibilizar um modelo de monitoramento da sustentabilidade abrangente à problemática urbana brasileira, sendo flexível para atender às condições urbanas locais e dar suporte ao processo de desenvolvimento das cidades.

O presente artigo apresenta, além desta parte introdutória, questões teóricas relativas ao espaço urbano e à sustentabilidade urbana, seguido do modelo proposto de sustentabilidade das cidades, no qual foram inseridos um conjunto de indicadores que adequam a realidade das cidades brasileiras às matrizes da sustentabilidade urbana, e, por fim, as considerações finais do estudo e as referências utilizadas.

O espaço urbano e as questões da sustentabilidade

Levando-se em consideração que a cidade é uma construção humana antiga, cuja concepção genérica pode ser expressa pela aglomeração de pessoas, de equipamentos, de edificações e pelo dinamismo das atividades de um determinado local, para compreendê-la torna-se necessário partir das mais completas estruturas e funções urbanas atuais e conhecidas para os seus componentes originários, por mais remotos que se apresentem no tempo, no espaço e na cultura (Mumford, 2008Mumford, L. (2008). A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas (5. ed.). São Paulo: Martins Fontes.). Assim, para entender a ordem urbana que se apresenta hoje, é preciso mergulhar mais profundamente na história da cidade, entendendo suas peculiaridades, vulnerabilidades e potencialidades, para estimular a expansão urbana de forma ordenada. Na visão de Castells (2000)Castells, M. (2000). A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra., as contradições urbanas devem ser tratadas mediante uma transformação das fontes estruturais dos processos de urbanização.

As cidades, em geral, quando surgem e crescem de forma desordenada ou com formas de planejamento ineficiente, não conseguem atender à demanda da população urbana em relação à infraestrutura e aos serviços urbanos, tornando-se o berço de diversos problemas sociais, ambientais, econômicos, políticos etc. De acordo com Moreno (2002)Moreno, J. (2002). O futuro das cidades. São Paulo: Senac São Paulo., nas primeiras décadas do século XX, apenas 10% da população vivia nas cidades. A partir de então, esse crescimento deu-se de forma exponencial, caracterizado pela expansão das estradas de ferro, pelo aparecimento do automóvel, pelo transporte urbano, pelas novas redes de serviços urbanos e pelos arranha-céus, elementos esses que foram os maiores responsáveis pela dinâmica da expansão urbana.

É possível observar que, desde as pequenas cidades da Antiguidade até as megalópoles, nas quais há significativa concentração da população urbana, houve grandes transformações na sociedade e no estilo de vida. Na medida em que se percebe o crescimento exponencial da pobreza, há, no entanto, a crescente incapacidade dos governos em planejar, financiar e administrar suas cidades, aumentando os males sociais e as patologias urbanas, tais como violência, epidemias, entre outras. Dessa forma, um dos maiores obstáculos enfrentados pela sociedade diz respeito à crescente dificuldade em adequar as necessidades ao inevitável crescimento urbano (Canepa, 2007Canepa, C. (2007). Cidades sustentáveis: o município como lócus da sustentabilidade. São Paulo: RCS.).

Uma justificativa para existência das cidades consiste na facilidade do acesso a um conjunto de produtos, serviços e infraestrutura necessários à vida e à satisfação de uma população, constituindo-se em espaços que reúnem uma diversidade de pessoas e suas ilimitadas necessidades de sobrevivência, as quais exercem pressão no crescimento urbano. Essas necessidades estão relacionadas, principalmente, às atividades de produção e de consumo da sociedade, cujas consequências são externalidades positivas ou negativas que favorecerão o processo de desenvolvimento da cidade. Silva & Travassos (2008)Silva, L. S., & Travassos, L. (2008). Problemas ambientais urbanos: desafios para a elaboração de políticas públicas integradas. Cadernos Metrópole, 19, 27-47.compartilham dessa ideia e enfatizam que as mudanças nos padrões produtivos e nas dinâmicas populacionais modificam a natureza desses impactos e as condições socioambientais das aglomerações urbanas.

Em virtude de um modelo obsoleto e irracional da ocupação do espaço, quase todas as sociedades enfrentam a desanimadora perspectiva de uma infindável crise urbana, especialmente nas grandes aglomerações urbanas, nas quais a acumulação das riquezas e a má distribuição dos benefícios sociais têm aumentado os conflitos e as contradições, além de provocarem a rápida e intensa industrialização. Assim, a concentração da população nas áreas urbanas tem transformado as cidades em lugar oposto à sua proposta, que é de ser um lugar para se viver bem (Rattner, 2009Rattner, H. (2009). Prefácio. In H. Acselrad. A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas (2. ed.). Rio de Janeiro: Lamparina.). Diante disso, vale ressaltar a percepção de Rogers (2008)Rogers, R. (2008). Cidades para um pequeno planeta. Barcelona: Editorial Gustavo Gili., quando coloca que as cidades cresceram e transformaram-se em estrutura tão complexas e difíceis de administrar que raramente são lembradas como um espaço para satisfação das necessidades humanas e sociais da população.

Assim, a cidade pode ser descrita como um espaço em que se colhem os frutos das rápidas transformações das últimas décadas. Devido a fenômenos como a exaustão da economia industrial, a globalização, a diversidade cultural, a transformação da composição familiar e os avanços tecnológicos, tem-se a emergência por modos de vida que gerem novas formas de aglomeração urbana, o que configura um significativo desafio (Moreno, 2002Moreno, J. (2002). O futuro das cidades. São Paulo: Senac São Paulo.). Nesses termos, para reorganização do espaço urbano, exige-se cada vez mais o planejamento desses espaços para atender ao propósito de ser um lugar para viver bem, pois, de acordo com Rogers (2008Rogers, R. (2008). Cidades para um pequeno planeta. Barcelona: Editorial Gustavo Gili., p. 7), “[...] a capacidade das cidades está sendo solicitada até o limite, sua expansão se dá em tal índice que os padrões tradicionais de acomodação do crescimento urbano tornaram-se obsoletos”.

Entretanto, é necessário ressaltar que as cidades não nascem grandes; elas se formam e constroem sua identidade a partir de um conjunto de aspectos que se fundem para formar um ambiente de complexas relações, podendo ser gerenciadas para respeitar as limitações impostas pela natureza em termos de capacidade de resiliência, bem como limitações relacionadas aos aspectos sociais, econômicos, institucionais etc., formados para criar as condições para o funcionamento das cidades. Metzger (1994)Metzger, P. (1994). Contribution à une problématique de l’environnement urbain. Cahiers des Sciences Humaines, 30(4), 596-598. afirma que as percepções da natureza da cidade em seus elementos biológicos, físicos e naturais, dos riscos naturais físico-químicos, biológicos, climáticos, tecnológicos e de segurança em relação à saúde da população, e da gestão democrática dos serviços urbanos, em função da existência de políticas públicas, constituem formas de compreensão da problemática desses espaços.

Bremer (2004)Bremer, U. F. (2004). Por nossas cidades sustentáveis. In Anais do V CNP/LXI SOEAA. Brasília: CONFEA. postula que a reordenação do espaço urbano, com base em princípios básicos sustentados no direito à cidadania, na administração democrática das cidades e na função social destas e da propriedade, assim como a adoção de mecanismos que incluam, no mínimo, a manutenção dos atuais estoques de recursos para as gerações futuras, emerge como uma alternativa factível, mas que depende do empenho do Poder Público e da participação da sociedade civil.

Diante da diversidade de percepções em torno das questões urbanas e da sustentabilidade, Acselrad (2009)Acselrad, H. (2009). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas (2. ed.). Rio de Janeiro: Lamparina. investiga os discursos sobre sustentabilidade urbana, destacando a existência de várias articulações lógicas, denominadas matrizes discursivas da sustentabilidade urbana: a primeira matriz consiste na representação técnico-material das cidades, a partir dos modelos de racionalidade ecoenergética e de metabolismo urbano. No primeiro modelo, a cidade é vista a partir de um vetor de consumo de espaço, energia e matérias-primas e de um vetor de produção de rejeitos, considerando-se a distribuição das populações e as suas atividades no espaço urbano. Essas pressões técnicas das práticas urbanas apontam para a necessidade da adoção de tecnologias poupadoras de espaço, matéria e energia, voltadas para a reciclagem de materiais, bem como para a constituição de uma base social de apoio a projetos de mudança técnica urbana. Assim, será sustentável a cidade que,

[...] para uma mesma oferta de serviços, minimiza o consumo de energia fóssil e de outros recursos materiais, explorando ao máximo os fluxos locais e satisfazendo o critério de conservação de estoques e de redução do volume de rejeitos (Acselrad, 1999Acselrad, H. (1999). Discursos da sustentabilidade urbana. Revista de Estudos Urbanos e Regionais - ANPUR, 1(1), 79-90., p. 82).

O ajustamento técnico-material das bases da cidade pode ocorrer por meio do modelo de metabolismo urbano, ou seja, pelo ajustamento dos fluxos e dos estoques de matéria e de energia para reprodução ecossistêmica das cidades, mediante os movimentos interativos de circulação, troca e transformação de recursos, baseados na capacidade adaptativa (resiliência) dos ecossistemas urbanos em superarem as condições de vulnerabilidades diante dos choques externos. Nesse caso, a insustentabilidade seria expressa pela “[...] incapacidade de reprodução adaptativa das estruturas urbanas diante de rupturas nas condições materiais requeridas para tal reprodução” (Acselrad, 1999Acselrad, H. (1999). Discursos da sustentabilidade urbana. Revista de Estudos Urbanos e Regionais - ANPUR, 1(1), 79-90., p. 84). Assim, a cidade sustentável seria aquela que apresenta a capacidade adaptativa para ajustar seus fluxos materiais e de energias ante as pressões técnicas urbanas.

A segunda matriz discursiva consiste na cidade como espaço de “qualidade de vida”, caracterizada por componentes não mercantis da existência cotidiana e cidadã da população urbana, especialmente em relação às questões sanitárias das práticas urbanas, envolvendo o modelo de pureza, cidadania e patrimônio. Nesse sentido, é possível pensar na qualidade de vida a partir do ponto de vista de Left (2000)Left, H. (2000). Saber ambiental (2. ed.). Petrópolis: Vozes., que estabelece uma relação entre a qualidade de vida e a qualidade do ambiente, mediante a conservação do potencial produtivo dos ecossistemas e a valorização e a preservação dos recursos naturais, estando relacionada também às formas de identidade, cooperação, participação, solidariedade e realização, visando à promoção dos direitos e da cidadania para uma vida sadia e produtiva.

Assim, a cidade é avaliada a partir: do modelo de pureza, como forma de questionar as bases técnicas (tecnologias e atividade de produção e de consumo) do urbano, que, por sua artificialidade, poderiam impregnar a população com substâncias nocivas e tóxicas; do modelo de cidadania, visando à realização de pactos para dar sentido à duração das cidades; do modelo de patrimônio, referente aos aspectos materiais e imaterais (caráter, identidades, valores e heranças), construídos ao longo da história da cidade, que fazem durar a existência simbólica dos patrimônios natural e construído, expressos pelos aspectos históricos, culturais e ambientais que permitem fortalecer as raízes e as origens do seu povo, bem como conservar as identidades locais.

É nesse contexto que surge a terceira matriz discursiva de Acselrad (2009)Acselrad, H. (2009). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas (2. ed.). Rio de Janeiro: Lamparina., na qual a cidade é vista como espaço de legitimação das políticas urbanas, por meio das quais a materialidade das cidades é politicamente construída e as modalidades de sua reprodução são consideradas dependentes das condições que legitimam seus pressupostos políticos. Essa matriz pode ser expressa pelo modelo de eficiência mediante a gestão dos recursos públicos e pela equidade evidenciada na disposição em democratizar o acesso aos serviços urbanos, demonstrando a capacidade das políticas urbanas na adaptação da oferta de serviços urbanos à quantidade e à qualidade das demandas da sociedade, para promover o equilíbrio entre a oferta e a demanda. Nesse caso, a insustentabilidade seria “[...] a incapacidade das políticas urbanas adaptarem a oferta de serviços urbanos à quantidade e qualidade das demandas sociais” (Acselrad, 1999Acselrad, H. (1999). Discursos da sustentabilidade urbana. Revista de Estudos Urbanos e Regionais - ANPUR, 1(1), 79-90., p. 85).

As matrizes discursivas da sustentabilidade urbana, portanto, abordam de forma conceitual a questão da sustentabilidade do espaço urbano, no intuito de dar um sentido durável à cidade que surge, cresce e se transforma com a evolução da sociedade, mediante as relações estabelecidas entre o homem e o meio ambiente, para construir um espaço urbano com melhores condições ao longo de sua existência e do processo de desenvolvimento. No entanto, os sistemas de indicadores constituem o caminho para mostrar a realidade urbana e apontar as diretrizes para a definição e a implementação de políticas públicas que resultem em áreas urbanas com condições mais adequadas para o desenvolvimento das cidades em bases mais sustentáveis.

Nesse sentido, o presente estudo direciona seus esforços para construir um modelo conceitual e operacional para análise da sustentabilidade de cidades, tomando como subsídio teórico as matrizes discursivas da sustentabilidade urbana de Acselrad (2009)Acselrad, H. (2009). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas (2. ed.). Rio de Janeiro: Lamparina.. O modelo proposto compõe-se de matrizes, dimensões e temas, com os respectivos critérios para análise da sustentabilidade, seguido da incorporação dos indicadores para compor um sistema de sustentabilidade que permite avaliar os processos de desenvolvimento, evidenciados pelo nível de sustentabilidade urbana.

Modelo para análise da sustentabilidade urbana

A análise da sustentabilidade urbana parte das três principais vertentes (matrizes), nas quais a sustentabilidade é discutida teoricamente. Assim, foi estabelecido o seguinte critério para analisá-la: uma cidade será mais sustentável, quanto melhor for sua a continuidade material dos fluxos e dos estoques de recursos, a qualidade de vida, a legitimação e a reprodução das políticas públicas urbanas. No caso específico do modelo proposto, cada indicador, dentro de cada uma das matrizes e temas, é avaliado positiva ou negativamente, ou seja: no primeiro caso (relação positiva), quanto maior o indicador, melhor sua contribuição para a sustentabilidade; ou quanto menor, pior sua contribuição; no segundo caso (relação negativa), quanto maior for o indicador, pior será sua contribuição para a sustentabilidade; ou quanto menor o indicador, melhor para a sustentabilidade.

Em relação à matriz 1, uma cidade em sua representação técnico-material, tem-se o seguinte critério de análise: uma cidade terá melhor continuidade material de estoques e de fluxos de recursos e rejeitos, quanto mais adequadas forem suas práticas em busca da racionalidade ecoenergética e de seu metabolismo urbano, que são as dimensões dessa matriz.

A dimensão 1, racionalidade ecoenergética, é avaliada a partir do seguinte critério: uma cidade apresentará racionalidade ecoenergética quando, para uma mesma oferta de serviços, conseguir minimizar o consumo de energia e de outros recursos materiais, explorando ao máximo os fluxos locais e conservando o estoque e a redução de rejeitos. Os temas desta dimensão encontram-se no Quadro 1, com a descrição, o critério de análise, os respectivos indicadores (I) e a definição do tipo de relação com a sustentabilidade (+ e -).

Quadro 1
- Temas, critérios e indicadores da dimensão racionalidade ecoenergética

A operacionalização desses indicadores possibilita gerar informações sobre os aspectos da pressão exercida pelo espaço urbano e sobre suas atividades em relação aos recursos naturais.

A dimensão 2, metabolismo urbano, complementa a análise da matriz 1, tendo como critério de análise: uma cidade terá melhor metabolismo urbano quando seus ecossistemas urbanos apresentarem capacidade adaptativa para superar as condições de vulnerabilidade diante das ameaças externas, mantendo o equilíbrio entre a utilização dos recursos e a geração de rejeitos. Os temas desta dimensão estão definidos no Quadro 2.

Quadro 2
- Temas, critérios e indicadores da dimensão metabolismo urbano

A mensuração desses temas e dos indicadores gera informações sobre a capacidade de a cidade reagir às mudanças em seus processos de desenvolvimento, apontando caminhos para o equilíbrio dos fluxos de recursos e dos rejeitos provocados pelas atividades humanas.

A matriz 2, a cidade como espaço de qualidade de vida, tem como critério de análise: uma cidade terá qualidade de vida quando promover o acesso às condições saudáveis de existência, de cidadania e de identidade do espaço local. As dimensões analisadas são: pureza, cidadania e patrimônio.

A dimensão 3, pureza, utiliza o seguinte critério de análise: uma cidade apresentará as condições saudáveis de existência, quanto mais conhecer as consequências das práticas e tecnologias urbanas e, assim, questionar e reduzir as implicações sanitárias dessas práticas. Os temas da dimensão pureza estão dispostos no Quadro 3.

Quadro 3
- Temas, critérios e indicadores da dimensão pureza

Os temas e os indicadores de pureza geram informações sobre as condições ambientais para uma vida com qualidade, com menos contaminação das áreas urbanas e implicações sanitárias. Essas condições devem ser resguardadas pelos direitos coletivos, conforme abordados na próxima dimensão.

A dimensão 4, cidadania, tem como critério: uma cidade melhor assegurará o direito à cidadania, quanto melhor promover o diálogo, a negociação e a realização de pactos que resultem na institucionalização para representação da coletividade. Os temas desta dimensão estão no Quadro 4.

Quadro 4
- Temas, critérios e indicadores da dimensão cidadania

As informações geradas pela dimensão cidadania mostram a capacidade que a cidade tem em estabelecer pactos e espaços para negociação que favoreçam e garantam os direitos dos cidadãos em relação à qualidade de vida. Para complementar as informações referentes à qualidade de vida, na sequência, a dimensão patrimônio permite explorar aspectos que fazem parte da história da cidade e que constituem elementos relevantes para uma qualidade de vida.

A dimensão 5, patrimônio, tem o seguinte critério de análise: uma cidade melhor preservará o patrimônio local, quanto melhor conservar seus aspectos históricos, culturais e ambientais que fizeram e fazem parte de sua história ao longo de sua existência. Os temas desta dimensão estão apresentados no Quadro 5.

Quadro 5
- Temas, critérios e indicadores da dimensão patrimônio

As informações geradas pelos indicadores de patrimônio evidenciam aspectos presentes na evolução da cidade, os quais se constituem relevantes para a qualidade de vida da população, no sentido de conservar as raízes e a história construída e de não permitir que o processo de desenvolvimento se apague. Complementando a análise da sustentabilidade urbana, a matriz 3 evidencia as questões da legitimação e da continuidade das políticas públicas como forma de dar duração à cidade.

A matriz 3, a cidade como espaço de legitimação das políticas urbanas, tem como critério de análise: uma cidade melhor reproduzirá a legitimidade das políticas urbanas no tempo, quanto mais eficientes forem as formas de promover a gestão dos recursos públicos urbanos para adequação das ofertas de serviços urbanos às demandas sociais, garantindo a distribuição equitativa dos serviços à população. As dimensões são: eficiência e equidade.

A dimensão 6, eficiência, utiliza o seguinte critério de análise: uma cidade terá melhor eficiência na gestão dos recursos públicos, quanto mais adequadas forem as formas de promoção da capacidade política e institucional de intervenção local para atender às prioridades locais. Os temas estão expostos no Quadro 6.

Quadro 6
- Temas, critérios e indicadores da dimensão eficiência

Para complementar essas informações, a dimensão equidade fornece aspectos da distribuição adequada dos serviços à população.

A dimensão 7, equidade, tem como critério: uma cidade terá mais equidade na distribuição dos serviços à população, quanto melhores forem as condições habitacionais, educacionais, socioeconômicas, de segurança pública e o acesso aos serviços de transportes e de saúde. Os temas desta dimensão estão no Quadro 7.

Quadro 7
- Temas, critérios e indicadores da dimensão equidade

Esses indicadores complementam a análise da sustentabilidade, mediante informações sobre o acesso da população aos serviços públicos.

Diante do exposto, pode-se afirmar que o modelo apresentado é composto por um conjunto de indicadores que produz uma significativa quantidade de informações sobre a problemática urbana, apontando caminhos para a elaboração, implementação e ajuste das políticas públicas urbanas, no sentido de buscar uma adequação para atender às prioridades da cidade e, assim, melhorar o desempenho da sustentabilidade urbana. Vale salientar que a escolha final desses indicadores deve considerar as características da localidade como forma de adequá-los à problemática urbana local.

Considerações finais

Para análise da sustentabilidade, é necessário entender que o espaço urbano surge como uma extensão do espaço natural, de tal modo que as limitações da capacidade de resiliência da própria natureza imponham as barreiras da sustentabilidade urbana, o que requer uma percepção ampla do processo de análise da sustentabilidade urbana para captar as sutilezas dos processos naturais e urbanos, a partir de formas sistêmicas de análises.

O artigo propõe um modelo para análise da sustentabilidade que é abrangente à problemática das cidades brasileiras, uma vez que utiliza como suporte teórico conceitual as três principais vertentes da sustentabilidade urbana, representados pelas matrizes (a cidade em seus aspectos técnico-materiais, a cidade como espaço de qualidade de vida e a cidade como espaço de legitimação das políticas públicas). O modelo conceitual foi utilizado como base para a definição dos critérios de sustentabilidade, que serviram de pilares para a seleção dos indicadores adequados à análise da sustentabilidade urbana, possibilitando reduzir a subjetividade da sustentabilidade e os diversos desafios decorrentes, para resultar em uma classificação coerente do nível de sustentabilidade das cidades ao longo dos anos.

No entanto, não foi possível encontrar todos os indicadores para compor o modelo nos sistemas de indicadores já existentes, sendo necessário propor e calcular novos indicadores que fossem adequados aos propósitos da investigação. Assim, o modelo permite ampliar e diversificar os indicadores utilizados nos sistemas de indicadores e de análises da sustentabilidade urbana, contribuindo para melhor retratar e absorver a problemática urbana atual.

Conclui-se que o modelo permite analisar a sustentabilidade de cidades, além de possibilitar construir padrões de comparação ao longo dos anos que favoreçam o monitoramento da sustentabilidade e a geração de informações relevantes para o processo de elaboração e de implementação de políticas públicas, as quais permitirão incorporar um processo de desenvolvimento embasado em princípios sustentáveis para dotar a cidade de condições favoráveis ao processo de desenvolvimento sustentável. Assim, a pesquisa contribui para os estudos da sustentabilidade urbana, uma vez que consegue trabalhar em uma vertente teórica a partir da leitura das matrizes da sustentabilidade urbana, buscando uma relação com a realidade prática por meio dos indicadores urbanos, de modo a permitir uma orientação para o processo de desenvolvimento urbano das cidades.

Sugere-se que o modelo seja aplicado em diferentes cidades brasileiras para confirmar sua aplicabilidade em diferentes realidades. Além disso, a partir dessa listagem inicial de indicadores, deve-se incorporar a participação local para seleção e para ponderação dos indicadores urbanos que melhor retratem as vulnerabilidades e as prioridades locais. Recomenda-se também a incorporação de técnicas estatísticas para seleção dos indicadores mais adequados para compor cada tema e para definir a relação positiva e negativa para a sustentabilidade. A partir dessas preocupações, o modelo permite analisar a sustentabilidade e os reflexos das decisões políticas, favorecendo a adoção de políticas urbanas de acordo com os pontos de insustentabilidade do espaço urbano, de tal modo que o monitoramento permita a continuidade das políticas e a incorporação de um processo de planejamento para a construção de cidades sustentáveis.

Referências

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Publication Dates

  • Publication in this collection
    18 Sept 2015
  • Date of issue
    Sep-Dec 2015

History

  • Received
    02 Feb 2015
  • Accepted
    07 Apr 2015
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