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Os candongueiros e a “desordem” urbana de Luanda: uma análise sobre a representação social dos transportes informais

Candongueiros and urban “disorder” in Luanda: an analysis of the social representation of informal transport

Resumo

A cidade de Luanda, capital de Angola, é caracterizada pela informalidade e precariedade das atividades e dos serviços que, em grande medida, dão a lógica da produção social do espaço urbano. Luanda tem como um dos principais meios de transporte coletivo os candongueiros, modalidade de transporte informal ou semi-informal responsável pelos deslocamentos e pela dinâmica quotidiana da cidade que é um dos elementos fundamentais no alargamento do tecido urbano/metropolitano. No entanto, devido às suas peculiaridades, discursos (des) qualificam esse tipo de transporte como desordenado ou desorganizado. Este trabalho analisa e discute a ideia de ordem, geralmente imposta pela lógica hegemônica contemporânea e global. Pretende-se apresentar os candongueiros como categoria de outro modo de produção urbana, representativo de seus habitus sociais. Espera-se contribuir para a compreensão sócio espacial de Luanda a partir do olhar das diferenças culturais e da representação social dos elementos da informalidade comuns à realidade das metrópoles contemporâneas dos países periféricos. Esses países, classificados como metrópoles precárias pela forma como são inseridos no sistema capitalista de produção e consumo globalizado, apresentam uma racionalidade sócio espacial paradoxal, objeto de estudo do planejamento territorial.

Palavras-chave:
Luanda; Candongueiros; Ordem/desordem; Planejamento urbano; Representação social

Abstract

Luanda city, the capital of Angola, is characterized by informality and precariousness of activities and services that, to a large extent, follow the logic of social production of urban space. Luanda has “candongueiros” as the main public transport mode. They consist in an informal or semi-informal means of transport responsible for the daily displacement and dynamics of the city, and represent one of the fundamental elements for the expansion of the urban/metropolitan mosaic. However, the peculiarities of this transport mode have led discourses to (dis)qualify it, labeling it as unordered or disorganized. The present study carried out an analysis and discussion of the idea of ​​order usually imposed by a contemporary and global hegemonic logic. The aim is to present the “candongueiros” as a social category from a different urban farming, representative of their social habitus. It is expected to contribute to the socio-spatial understanding of Luanda from the perspective of cultural differences and social representations of informality, which is so common in the reality of contemporary metropolises of peripheral countries. These countries, classified as precarious metropolises by the way they are inserted in the capitalist system of globalized production and consumption, present a paradoxical socio-spatial rationality, object of study of territorial planning.

Keywords:
Luanda; Candongueiros; Order/disorder; Urban planning; Social representations

Introdução

O processo de globalização que tem permeado o mundo desde o último quartel do século XX engendra, por meio de discursos, tentativas empíricas e simbólicas de construção de um espaço unipolar de dominação (Santos, 2000Santos, M. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record.). Constrói-se assim uma prisão dialética entre centro e periferia, oprimidos e livres, dominantes e dominados; representações sociais antagônicas cheias de contradições históricas (Bhabha, 1990Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart.).

Dadas as características estruturais do espaço urbano de Luanda, marcadas pela informalidade (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.) e pela lógica hegemônica global da ordem social urbana, estudiosos e agentes estruturadores do espaço tendem a classificar a capital angolana, bem como algumas realidades periféricas, como “desorganizadas”, “desestruturadas” ou “caóticas” (Castro, 2015Castro, J. C. (2015). Configuração sócio espacial como expressão de conflitos: expansão urbana de Luanda e o planejamento territorial de Angola (Dissertação de mestrado). Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos.). Discurso frequente, sobretudo quando se trata da questão da mobilidade e da estruturação do espaço.

Apesar de Luanda ter como pano de fundo da produção sócio espacial o fator guerra (Castro, 2015Castro, J. C. (2015). Configuração sócio espacial como expressão de conflitos: expansão urbana de Luanda e o planejamento territorial de Angola (Dissertação de mestrado). Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos.), sabe-se que, de acordo com Harvey (2006)Harvey, D. (2006). A produção capitalista do espaço (2. ed.). São Paulo: Anablume., esses espaços e atividades consideradas “desorganizadas e caóticas” são, em essência, produtos da lógica capitalista global de exploração dos territórios. Segundo Santos (2000)Santos, M. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record., o tipo de relações econômicas, sociais e espaciais dos países periféricos, como é o caso de Angola, é fruto das perversidades do capitalismo global.

Por outro lado, é preciso considerar que a organização sócio espacial desses territórios (periféricos) é dotada de uma lógica social própria, com suas mais diversas especificidades culturais, históricas, políticas e socioeconômicas, por vezes além do entendimento de qualquer racionalismo ou ideologia absoluta baseada em um conceito particular universal determinista (Bhabha, 1990Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart.).

Luanda está inserida na lista de cidades em vias de desenvolvimento com rápido crescimento populacional e urbano. De acordo com os resultados do Censo de 2014 realizado pelo INE (Instituto Nacional de Estatística),

[...] a população residente cresceu pelo menos doze vezes” desde a década de 1970 onde, estimou-se uma população de 561.145 habitantes, contra os 6. 945, 386 em 2014, sendo que 97,5 por cento desta população é considerada urbana (INE, 2014). No período de 2000 a 2013, o tecido urbano de Luanda teve uma taxa de crescimento acelerada, “passando de 106,40 por cento em 2000, para 374,54 por cento em 2013, expandindo desta maneira cerca de 268,14 por cento. (Castro, 2015Castro, J. C. (2015). Configuração sócio espacial como expressão de conflitos: expansão urbana de Luanda e o planejamento territorial de Angola (Dissertação de mestrado). Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos., p. 75).

Por outro lado, verifica-se que esse crescimento tem sido acompanhado por um intenso e complexo processo de informalidade dos serviços e atividades da estrutura socioeconômica e cultural, apesar de, ao mesmo tempo, ocorrer a elaboração de instrumentos de organização do território como o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 2013-2017, elaborado pelo Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial (Angola, 2012Angola. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial – MPDT. (2012). PND: Plano Nacional de desenvolvimento 2013-2017. Brasília. 234 p.) e o Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda (PDGML ) 2015-2030, elaborado pelo (IPGUL, 2015Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p.). Esses instrumentos tentam implementar novos processos na produção do espaço como a “requalificação urbana” (IPGUL, 2015Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p., p. 25), e/ou o “desenvolvimento nacional equalizado” (Angola, 2012Angola. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial – MPDT. (2012). PND: Plano Nacional de desenvolvimento 2013-2017. Brasília. 234 p., p. 42).

Ao analisar esses documentos dotados de qualidade e clareza teórica quanto aos objetivos, é perceptível uma estrutura de conceitos teórico/metodológicos semelhantes ou importados de modelos de sociedades desenvolvidas. Basta, para isto, conferir as disposições do PND 2013-2017 de Angola (2012Angola. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial – MPDT. (2012). PND: Plano Nacional de desenvolvimento 2013-2017. Brasília. 234 p.) em relação ao DATAR (Délégation à 1’ Aménagement du Territoire et à Action Régionale), da França, esse último criado em 1963 com o objetivo de estabelecer a relação entre o crescimento econômico e a dinâmica da ocupação do território (Jaccoud, 2001Jaccoud, L. (2001). Experiências Internacionais em Política Regional: o caso da França. Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas.).

Existe uma distância fundamental referente à contextualização histórico-espacial, econômica e sociocultural que tanto o MPDT (Angola, 2012Angola. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial – MPDT. (2012). PND: Plano Nacional de desenvolvimento 2013-2017. Brasília. 234 p.) quanto o IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p. não consideraram. Interpreta-se essa distância começando pelo que Bhabha (1990)Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart. chamou de o princípio da diferença cultural ou alteridade, fator essencial na organização do território. Para Jovchelovitch (1994)Jovchelovitch, S. (1994). Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais (p. 63-85). Petrópolis: Vozes., a alteridade é um elemento importante, pois indica as características específicas mais profundas das diferenças. É dentro desse raciocínio que os transportes informais se revelam como tipo de representação social peculiar.

Os planos da “nova ordem” trazem em seu discurso uma concepção de identidade “moderna” que, de alguma forma, não converge com as reais identidades dos sujeitos sociais das atuais relações sócio espaciais. A ocorrência desse processo, carregado do discurso do tão almejado desenvolvimento e do desejo de se tornar uma “[...] referência regional de cidade moderna” (IPGUL, 2015Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p., p. 6-10), está sendo marcada por uma lacuna na formação sócio histórica do espaço urbano e metropolitano.

Pode-se afirmar que as ações preconizadas no IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p. privilegiam a maximização do capital privado e imobiliário, ao mesmo tempo em que se convive com a ideia de “desordem” das infraestruturas físicas da cidade. O discurso é legitimado por meio de pilares que adjetivam os espaços, tais como “cidade habitável”, “nossa cidade bonita” e “cidade internacional” (IPGUL, 2015Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p., p. 29). Um oportuno “cardápio” anuncia a venda de uma urbanidade utópica, diferente daquela que é, atualmente uma metrópole precária e informal.

O fato é que, ao falar de desordem, é preciso atentar antes para as crises estruturais e históricas do sistema político e de governo, bem como para as especificidades socioculturais de Luanda. Essas particularidades, pode-se dizer, são respostas da distância entre o tão aclamado “[...] desenvolvimento socioeconômico equilibrado e justo” (Angola, 2012Angola. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial – MPDT. (2012). PND: Plano Nacional de desenvolvimento 2013-2017. Brasília. 234 p., p. 42) e a realidade presente da informalidade e precariedade da vida urbana.

As atividades e serviços informais em Luanda não apenas fazem parte da cultura socioeconômica, como são forças estruturantes da dinâmica social (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.); portanto, da produção do espaço urbano e regional da capital angolana, assim como de muitos países da África ao sul do Sahara.

Os fatos verificados in lócus corroboram com a abordagem de Lopes (2011)Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia. quando atesta que a diversidade das atividades informais na capital de Angola é vasta. Vendedores itinerantes de produtos diversos, desde alimentos até material de construção e serviços como a venda de água mais ou menos potável por caminhões-pipas (Cain, 2011Cain, A. (2011). Alto para os pobres baixo para os ricos: preço da água em Luanda. Jornal de Angola. Recuperado em 24 de abril de 2016, de http://www.dw.angonet.org/sites/default/files/online_lib_files/Director%20de%20DW%20Intervista%20%20sobre%20agua%20e%20justica%20%20NovoJornal%2019%20Agosto%202011.pdf
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), oferta de transporte e do setor financeiro costuram as relações espaciais e urbanas no atual processo de metropolização de Luanda. De acordo com a Development Workshop (2005Development Workshop. (2005). Terra: reforma sobre a terra urbana em Angola no período pós-guerra: pesquisa, advocacia e políticas de desenvolvimento. Luanda: Development Workshop., p. 60), “[…] os empregos formais são raros; a maioria dos pobres e vulneráveis dependem da economia informal”.

Assiste-se, além das atividades mencionadas, artifícios informais/ilegais no acesso à terra. Segundo Cain (2011)Cain, A. (2011). Alto para os pobres baixo para os ricos: preço da água em Luanda. Jornal de Angola. Recuperado em 24 de abril de 2016, de http://www.dw.angonet.org/sites/default/files/online_lib_files/Director%20de%20DW%20Intervista%20%20sobre%20agua%20e%20justica%20%20NovoJornal%2019%20Agosto%202011.pdf
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, cerca de 61,3% da aquisição de terras é informal. Por outro lado, esses artifícios fazem-se presentes também na prestação de serviços gerais de direito, inerentes a vida quotidiana da população, ligados à uma cultura de nepotismo e corrupção fortemente arraigada no funcionamento da estrutura das agências do Estado (Rocha, 2014Rocha, M. J. A. (2014). As perspectivas de crescimento económico de Angola até 2020 (Working Paper, No. 2, p. 2-30). Luanda: CEIC-UCAN.), o que torna ainda mais complexas as relações de trabalho e produção do espaço urbano. Assim, seria razoável afirmar que, de alguma forma, está na informalidade a maior parte dos serviços e produtos oferecidos na capital de Angola e que essa forma de trabalho criou a maioria das categorias sociais que compõem o cenário urbano de Luanda.

Este trabalho se propõe a analisar e discutir a atividade dos candongueiros1 1 Candongueiros ou kandongueiros são formas de expressão da gíria luandense originária de um dos dialetos falados em Luanda; o kimbundu. Definem o comércio e outras atividades clandestinas consideradas ilegais. Atualmente, identificam os agentes que operam nos transportes urbanos informais, por meio de minivans que, de acordo com Lopes (2011), são semioficiais. , categoria de transportes carregada de representações sociais de forte significado e simbologia, em Luanda. Resultado e impulsionadores da produção do espaço metropolitano, pode-se dizer que os candongueiros, apesar de existirem em Luanda com essa terminologia2 2 Verificou-se, in situ, que os próprios candongueiros (nesse caso o motorista e o cobrador), preferiam o termo “taxistas” para se referir a eles e a denominação táxi para o automóvel que usavam. , não são típicos apenas desse espaço e que estão presentes em vários países da África e do mundo.

Este estudo começa com a contextualização dos transportes informais de Luanda, baseada nos candongueiros, numa análise de sua simbologia enquanto elemento de representação social. Importa realçar que não se pretende, com essa abordagem, legitimar a precariedade do transporte urbano ou de qualquer outro serviço em nome da identidade social. O que se procura é trazer à discussão e reflexão o sentido de organização espacial sob outra lógica, representada por simbolismos peculiares aos agentes sociais que constituem, por sua vez, a sua identidade (Bhabha, 1990Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart.). Propõe-se, portanto, entender a presença da informalidade por outra lógica.

A pesquisa consiste de um estudo empírico, da vivência do autor no local de estudo, bem como de consultas documentais e bibliográficas. Recorreu-se ao ArqGis, ferramenta do SIG (Sistema de Informações Geográficas), para a elaboração, quantificação e qualificação de dados iconográficos. Procurou-se abordar o assunto dos transportes informais dialogando com a bibliografia específica, bem como com a literatura que trata da representação social, com destaque para autores como Sandra Jovchelovitch (1994)Jovchelovitch, S. (1994). Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais (p. 63-85). Petrópolis: Vozes., E. P. Thompson (1998)Thompson, E. P. (1998). Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras., Homi Bhabha (1990)Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart.. Por fim, nas considerações finais, realiza-se uma reflexão acerca do reconhecimento de “outra ordem”, fundamentada na representação social e na constatação de identidades locais que precisam ser consideradas no contexto do vasto mosaico das discussões globais de planejamento urbano e regional. Questiona-se a instauração de um modelo universal com roupagem de “moderno” que desconsidera elementos-chave que permitem a inclusão e o sentimento de pertencimento dos sujeitos da sociedade por meio de sua identidade cultural.

Contextualização dos transportes informais em Luanda

Localizada na região litorânea de Angola, Luanda foi, desde a época colonial, uma das províncias da lusofonia com maior atividade socioeconômica, usufruindo da vantagem de sua localização. Assim, não apenas consagrou-se capital do país como acabou por experimentar diversos conflitos civis bélicos e sócio espaciais (Castro, 2015Castro, J. C. (2015). Configuração sócio espacial como expressão de conflitos: expansão urbana de Luanda e o planejamento territorial de Angola (Dissertação de mestrado). Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos.).

Por se ter tornado, durante o período de guerra e pós-guerra, a cidade com maior estabilidade militar e econômica em relação às outras províncias do país, Luanda não só absorveu os problemas sociais resultantes desse processo como experimentou um rápido crescimento da sua população e, consequentemente, o alargamento do seu tecido urbano (Castro, 2015Castro, J. C. (2015). Configuração sócio espacial como expressão de conflitos: expansão urbana de Luanda e o planejamento territorial de Angola (Dissertação de mestrado). Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos.). Esse processo interferiu nas dinâmicas sócio espaciais e na conformação territorial, tornando Luanda não apenas uma metrópole, mas também inserida em uma região metropolitana (Figura 1).

Figura 1
- Localização e expansão metropolitana da província de Luanda

Nesse cenário, o sistema de circulação e transportes tem desempenhado um papel fundamental na polarização de Luanda e no crescimento das suas cidades e regiões circunvizinhas, caracterizadas como região metropolitana. Apesar de bastante deficiente e com certo grau de precariedade, a matriz rodoviária, os meios de locomoção utilizados nesse território, tem sido a base do crescimento e desenvolvimento das trocas sócio espaciais de Angola (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.).

Após o término da prolongada guerra civil, em 22 de fevereiro de 2002, tem se verificado um esforço por parte do governo para reconstruir as principais infraestruturas socioeconômicas bem como para reconstituição e fortalecimento das agências legais do Estado. Isso inspirou a elaboração de planos de desenvolvimento e diretores, a exemplo dos planos de ordenamento do território e desenvolvimento nacional como o PND 2013-2017 (Angola, 2012Angola. Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Territorial – MPDT. (2012). PND: Plano Nacional de desenvolvimento 2013-2017. Brasília. 234 p.) e, mais recentemente, o PDGML 2015-2030 (IPGUL, 2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p.. Teórica e documentalmente, os instrumentos para regulação da produção social do espaço estão postos. Mas, na prática, são as complexas tramas políticas e econômicas, as dinâmicas e “conflitos” socioculturais que dão a lógica da produção do espaço.

Apesar de suas particularidades, as práticas históricas de Angola podem ser comparadas à do contexto inglês do século XVIII. Thompson (1998)Thompson, E. P. (1998). Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras., ao estudar as mudanças de comportamento e habitus dos camponeses ingleses frente à nova realidade imposta pelas condições capitalistas, chamou-as de “práticas vivas”, decorrentes da acentuada cisão cultural entre as classes, imposta pelas relações campo-cidade.

Ao fazermos um paralelo entre os acontecimentos expostos por Thompson (1998)Thompson, E. P. (1998). Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras. e a realidade atual dos agentes informais, em particular a dos candongueiros de Luanda, percebe-se que os conflitos sócio espaciais são fruto dos choques causados pelos novos valores e padrões impostos na produção de uma metrópole de relações complexas. Complexidade derivada seja da divisão social do trabalho, seja das relações urbanas originadas quase sempre do discurso de uma nova ordem que, ao mesmo tempo que convive com o “caos”, não respeita o processo natural da sociedade dentro de suas especificidades.

Podemos afirmar que embora os candongueiros tenham surgido efetivamente a partir da década de 1980 (Domingos, 2012Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina.), eles são um espelho da lógica segregacionista que acompanhou a história do planejamento de Angola e, em particular, de Luanda, determinada pelo modelo colonialista português, cujo sistema de planejamento impediu a população nativa de participar e usufruir da “cidade legal” (Development Workshop, 2005Development Workshop. (2005). Terra: reforma sobre a terra urbana em Angola no período pós-guerra: pesquisa, advocacia e políticas de desenvolvimento. Luanda: Development Workshop.). Os angolanos tiveram de se adaptar a outras formas e modos de apropriação do território, caracterizados pela periferização, precariedade e exclusão. Apesar do novo momento que Angola independente e pacificada enfrenta, é notável a reprodução do pensamento excludente, tão arraigado na essência da política administrativa do território.

Não obstante os candongueiros se apresentarem como alternativa para a metrópole de Luanda face à incapacidade material e administrativa do setor dos transportes formais (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.), eles ainda representam, em grande medida, a cultura da classe mais desfavorecida do ponto de vista econômico e da informalidade, apesar de serem maioria nesse campo. A presença dos candongueiros tornou-se um costume dominante que rege o espaço da mobilidade metropolitana em Luanda. Assim, essa prática pode fazer parte do que Thompson (1998)Thompson, E. P. (1998). Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras. chamou de “costume”, práticas vivas que, no caso dos candongueiros de Luanda, foram adotadas pelos informais para fazer frente à realidade que vem se formando ao longo do tempo.

Num paralelo com as disposições de Thompson, nota-se que o autor apresenta o costume como práticas antigas que são constantemente repensadas, pois fazem parte de uma realidade. Explica o autor que, no caso dos camponeses ingleses, os costumes são a arena na qual agem no cotidiano. No contexto de Luanda, os candongueiros aparecem como símbolo histórico, cultural e social. Um modus operandis em torno do transporte derivado do habitus que se consagrou a partir da necessidade não suprida. Marcados pelos conflitos dialéticos entre formal-informal, semi-informal, problema ou solução, os candongueiros são, sem dúvida, uma das práticas vivas de Luanda.

A informalidade, como conceito e fator estruturante (comum aos países em desenvolvimento), é um assunto complexo de difícil abordagem. De acordo com Amaral (2005)Amaral, I. (2005). Importância do setor informal da economia urbana em países da África subsaariana. Finisterra, 40(79), 53-72. Recuperado em 24 de abril de 2016, de http://www.ceg.ul.pt/finisterra/numeros/2005-79/79_07.pdf
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, o estudo da informalidade depende muito das características endógenas, das condições e níveis socioeconômicos, culturais e políticos de cada região. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2006Organização Internacional do Trabalho – OIT. (2006). A OIT e a economia informal. Lisboa: OIT.), atividades informais são aquelas que operam geralmente em escala reduzida e com relações de trabalho baseadas no emprego ocasional, tais como parentesco, relações pessoais e sociais, mais do que com acordos contratuais com garantias. Por outro lado, Lopes (2004Lopes, C. M. (2004). Candongueiros, Kinguilas, Roboteiros e Zungueiros uma digressão pela economia informal de Luanda. In Anais do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais (pp. 1-18). Coimbra: CEA/ISCTE., p. 2) afirma que a “[...] economia informal é o conjunto de atividades e práticas econômicas legais realizadas por agentes econômicos total ou parcialmente ilegais”.

Existe um entendimento por trás da dualidade complexa que estabelece o que se considera formal e informal, vinculado a um elemento comum aos países “periféricos”, com o qual essas bipolarizações se debatem constantemente: a globalização (Amaral, 2005Amaral, I. (2005). Importância do setor informal da economia urbana em países da África subsaariana. Finisterra, 40(79), 53-72. Recuperado em 24 de abril de 2016, de http://www.ceg.ul.pt/finisterra/numeros/2005-79/79_07.pdf
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; Santos, 2000Santos, M. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record.). A informalidade, composta de vários níveis e sujeitos, é carregada de simbologia que constrói, por meio das representações, as realidades sociais. De acordo com Jovchelovitch (1994)Jovchelovitch, S. (1994). Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais (p. 63-85). Petrópolis: Vozes., essas relações não se centram no sujeito individual, mas nos fenômenos produzidos pelas construções particulares da realidade social.

No atual cenário é possível prever um conflito sócio espacial entre a Luanda moderna proposta pelo IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p., dos “transportes de última geração, da cidade bonita e habitável”, da “cidade internacional”, com a Luanda informal, real, dos candongueiros e musseques3 3 O termo musseques é o nome usualmente aplicado às zonas suburbanas, ocupadas pelas populações economicamente desfavorecidas. É aplicado ainda para formas de urbanização improvisada, precária e em permanente expansão, embora o termo tenha origem na geologia das terras arenosas e vermelhas da periferia de Luanda (Development Workshop, 2005). . O IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p. não prevê com clareza a possibilidade de um convívio favorável e inclusivo entre os candongueiros e os modos de transporte modernos.

Por outro lado, ao considerar a permanência dos candongueiros, dada a sua importância, conveniência e representatividade (Figuras 2 e 3), sob um sistema totalmente legalizado e formal, sem precisar alterar a sua identidade cultural e do habitus, seria possível, em algum momento, estruturar diálogos interclasses e intraclasses, uma vez que os candongueiros são o principal fator de acessibilidade e mobilidade entre a “cidade legal” e os musseques. O que permitiria, de alguma forma, um permanente equilíbrio e remodelamento da formação do habitus, dependendo do nível de diálogo dessas classes.

Figura 2
- Para-transit in Luanda – A atual política dos transportes urbanos de Luanda
Figura 3
- Representação dos candongueiros na região central de Luanda

A falta de compreensão das questões da realidade urbana tem levado a ideia de desordem. Tanto a iniciativa privada quanto o Estado recorrem a formas mais sofisticadas para solucionar o problema da mobilidade, sem considerar aspectos limiares da tradição sociocultural. Essas caracterizações da realidade urbana são pouco satisfatórias para as compreensões das novas modalidades sociais ali instaladas.

Historicamente, sabe-se que a mobilidade é fator crucial no desenvolvimento de qualquer aglomerado urbano (Castells, 2000Castells, M. (2000). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.). Para Villaça (2001Villaça, F. (2001). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel., p. 23), “[...] na melhor das hipóteses, mesmo não havendo infraestrutura, uma terra jamais poderá ser considerada urbana se não for acessível – por meio do deslocamento diário de pessoas”. Em qualquer lugar, as sociedades procuram formas diversas de se relacionarem a partir de deslocamentos constantes. As formas e modalidades da mobilidade diferem de lugar para lugar e cada um, à sua própria lógica, cumpre a finalidade a que esse nexo se propõe.

Existem em Luanda e nos países da África Subsaariana (Guiné-Bissau, Nigéria, Moçambique, Quênia, Senegal, Tanzânia, Congo Democrático e outros) diferentes modalidades de transportes não convencionais que, por não se incluírem na formalidade do transporte público, são consideradas “desorganizadas”, do ponto de vista da lógica, determinações e princípios da globalização e do sistema neoliberal. Determinação que tenta, a todo custo, apoiada no discurso da organização, requalificação, renovação e da ideia de empreendedorismo individual, formatar uma ordem social urbana, como único caminho aceitável para a urbanidade, mas longe de considerar seus sujeitos representativos, produtos de um processo de gentrificação (Bidou-Zachariasen, 2006Bidou-Zachariasen, C. (2006). De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume.).

No entanto, as cidades dos países em desenvolvimento continuam há décadas intensificando sua dinâmica de crescimento e expansão territorial caracterizados pela precariedade do espaço urbano (Davis, 2006Davis, M. (2006). Planeta favela. São Paulo: Boitempo.), impulsionadas pelo sistema de transportes informais. Ou seja; as principais funções urbanas são realizadas dentro da peculiaridade de cada lugar. Ainda segundo o autor, os maiores aglomerados urbanos e a intensificação dos processos de metropolização precária mundial são verificados nos países da África, Ásia e América Latina.

Apesar desse fato, não se pretende aqui legitimar a atual ordem imposta e sustentada com o argumento do cumprimento das funções urbanas pela via da informalidade do transporte, pois, de acordo com Davis (2006Davis, M. (2006). Planeta favela. São Paulo: Boitempo., p. 185), a precariedade da informalidade reflete a “[...] forma primitiva da exploração humana do terceiro mundo” que ganhou vida com a globalização pós-moderna.

Os países periféricos apresentam-se, por um lado, inseridos no sistema econômico global e, por outro, perpetuam a imagem de suas precariedades internas, típicas da lógica capitalista neoliberal (Amaral, 2005Amaral, I. (2005). Importância do setor informal da economia urbana em países da África subsaariana. Finisterra, 40(79), 53-72. Recuperado em 24 de abril de 2016, de http://www.ceg.ul.pt/finisterra/numeros/2005-79/79_07.pdf
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); neles, nesse caso, a ação do Estado como principal agente regulador e articulador do bem-estar social aparece extremamente reduzida. Não por que o Estado é mínimo, mas por que ele acaba, de alguma forma, se curvando às complexas tramas desse modelo de desenvolvimento, o que agrava ainda mais o aparecimento das desigualdades sociais e de atividades informais, bem como a contínua reprodução da instabilidade econômica e pobreza urbana de metrópoles superpopulosas e faveladas como Luanda.

Pela fragilidade política/institucional, estrutural e socioeconômica das sociedades dos países em desenvolvimento, a informalidade é transformada em uma circunstância conveniente, pois é dotada de invisibilidade, permeabilidade e capacidade para absorver os trabalhadores destituídos ou incapazes de serem absorvidos pelos serviços formais (Soto, 1987Soto, H. (1987). Economia subterrânea: uma análise da realidade Peruana. Rio de Janeiro: Globo.).

O excedente de mão de obra que tem se transformado no que Soto (1987)Soto, H. (1987). Economia subterrânea: uma análise da realidade Peruana. Rio de Janeiro: Globo. chamou de “empreendedores individuais” e Davis (2006)Davis, M. (2006). Planeta favela. São Paulo: Boitempo., de “empreendedores informais”, tem crescido de maneira surpreendente. Esse evento se torna cada vez mais crítico em várias cidades do mundo no atual contexto de crise global. Para Luanda, que se debate com problemas de ordem estrutural e dependência econômica, bem como de inação ou de fragilidade das políticas de Estado, essa crise revela-se no arauto da pobreza social e urbana. Realidade marcada pela “[...] esperança fanática do apelo dos pobres a uma terceira economia de subsistência urbana” (Davis, 2006Davis, M. (2006). Planeta favela. São Paulo: Boitempo., p. 183) traduzida, para o nosso caso, na presença dos candongueiros que produzem, à sua maneira, a própria ordem espacial, nem totalmente informal, muito menos formal.

Os transportes estão associados a um sistema viário que se associa a uma forma de uso e ocupação do solo; construindo uma “ordem” ou “desordem” do espaço urbano a partir da lógica que é própria desse sistema viário e da dinâmica urbana. No caso de Luanda, essa estrutura seria teoricamente suportada pela empresa de transportes públicos TCUL (Transporte Coletivo Urbano de Luanda) — uma vez que é essa empresa que recebe, de forma direta ou indireta, os incentivos e investimentos financeiros do Estado — a qual, em 2010, possuía uma frota de 350 ônibus (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.).

As empresas privadas de ônibus, nomeadamente os Transportes Urbanos Rodoviários de Angola (TURA), a Macon Transportes (MACON), a ANGOAUSTRAL e o Grupo SGO LDA (Domingos, 2012Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina.), somavam juntas cerca de “[...] 300 ônibus em maio de 2009” (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia., p. 42), agregadas a três empresas de táxis coletivos convencionais com taxímetro (Afritaxis, Rogerius, Alibolense) e milhares de moto táxis, com mais de 17 mil associados (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.).

Dentre essas empresas, a MACON (há mais tempo no mercado, atuando desde 2001) é a que desenvolve uma atividade mais diversificada, incluindo desde os táxis urbanos convencionais, que compreendiam uma média de 30 a 40, em 2009, como ônibus urbanos e interprovinciais, que totalizam 70 veículos em 2012 (Domingos, 2012Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina.). Porém, em relação aos candongueiros, sua presença na malha viária é quase que insignificante. Por outro lado, essas empresas acabam, de algum modo, por cooperar com a tarefa da ampliação da mobilidade e acessibilidade de pessoas e bens nos percursos municipais e interprovinciais. Sua atividade na malha viária urbana é escassa e amplamente superada pela dos candongueiros, que apresentam maior agilidade nas vias deficientes da cidade.

Estima-se que “[...] aproximadamente 70 por cento da população luandense utiliza os candongueiros como principal meio de transporte urbano” (Domingos, 2012Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina., p. 25), perfazendo uma renda de 15.000.00 Kwanza/dia em 2016 (cerca de USD 90,60 - BRL 307,36/dia) para seus proprietários. O custo da viagem por pessoa neste período era de 150.00 kz. Segundo Lopes (2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia., p. 53), “[...] em 2001, os candongueiros satisfaziam uma procura calculada em 480.000 utentes por dia, menos de 45 por cento da procura diária de transporte”. Ainda segundo o autor, em 2002, a frota das empresas de ônibus não era superior a 700 unidades, numa procura estimada de 2.310.000/dia (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.).

Em 2008, estimou-se em mais de 30 mil o número de veículos candongueiros, dos quais apenas 4 mil estariam licenciados, para uma população calculada em mais de 4 milhões de habitantes nesse período (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.). Na atual conjuntura, esses números apresentam-se tímidos e fora de realidade, dada a atual dinâmica metropolitana de Luanda e a dificuldade de registro completo dos candongueiros.

De acordo com Lopes (2011)Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia. e Domingos (2012)Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina., apesar de fazerem parte de uma estrutura institucional, os transportes são designados informais pelas características legais de trabalho e pelas relações socioeconômicas e culturais que mantêm no espaço urbano. Quanto às relações trabalhistas, Domingos (2012Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina., p. 33) apresenta que:

[...] o candongueiro (neste sentido específico nos referimos ao motorista – o contratado para exercer a função de candongueiro) não tem um verdadeiro horário fixo; b) a sua remuneração é feita à tarefa; c) se por algum motivo que não lhe seja imputável não realizar a sua prestação, não tem direito à remuneração; d) não existe verdadeira exclusividade; e) utiliza auxiliares; f) por regra não está sujeito à fiscalização nem ao exercício do poder disciplinar; g) suporta o risco da realização da sua prestação.

O autor dedica-se a analisar as relações de trabalho do ponto de vista legal e afirma que, quando existem, essas regulamentações são deficientes e pouco coerentes. Não existe praticamente nenhum benefício ou amparo legal e social para os atores desse serviço, a exemplo do seguro social, entre outros benefícios (Domingos, 2012Domingos, J. L. A. (2012). Candongueiro, problemática da contratação atípica na atividade de táxi em Angola. Coimbra: Almedina.).

Assim, como verificado in locus, as regras de trabalho são estabelecidas geralmente pelo proprietário do automóvel numa relação de confiança, baseada em algum tipo de parentesco ou amizade. Apesar de estabelecidas por instituições legais tais como a Associação dos Taxistas (ATL), Direção Nacional e Ministério dos Transportes de Luanda, Ministério das Finanças entre outras, as rotas são, na maioria das vezes, decisão dos próprios condutores, enquanto que os preços praticados são estipulados conjuntamente.

Os candongueiros estão sujeitos a algumas regras do Ministério dos Transportes e da Viação e Trânsito (Polícia de Trânsito), muito mais por causa da sua importância e representatividade socioeconômica do que por motivos de organização estrutural. O que é quase um contrassenso, uma vez que esses transportes operam com certo grau de informalidade. É o conveniente convívio dos dois processos socioeconômicos que produz uma terceira opção — o sistema semi-informal (Lopes, 2011Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia.), no qual a viatura é licenciada e aqueles que a operam continuam na invisibilidade.

Quanto à identidade simbólica dos candongueiros, não obstante as nuances do lugar, em geral fazem parte, de acordo com Jovchelovitch (1994)Jovchelovitch, S. (1994). Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais (p. 63-85). Petrópolis: Vozes., de uma construção simbólica coletiva, compartilhada pela sociedade, sendo uma importante síntese das representações sociais.

Em alguns países, esse tipo de transporte é mais comum do que se pode imaginar e aparece com nomenclaturas diferentes. Porém, pertencem à mesma categoria e desempenham, em sua própria lógica espacial, a mesma função. O Quadro 1 traz referências à designação dessas categorias em algumas cidades da África e no Rio de Janeiro, em diferentes períodos de sua história (Mamani, 2007Mamani, H. A. (2007). Crescimento do transporte informal e circuitos da economia urbana e regional: aplicação da teoria de Milton Santos na análise do fenômeno a partir dos anos 1990. Cadernos IPPUR, 21(1), 155-173.).

Quadro 1
- Designação dos minibus informais em alguns países da África e no Rio de Janeiro, Brasil

Em muitos casos, como no Quênia, por exemplo (Kapila et al., 1982Kapila, S., Manundu, M., & Lamba, D. (1982). The matatu mode of public transport in metropolitan Nairobi. Nairobi: Mazingira Institute.), esses transportes atingiram uma certa emancipação e migraram da informalidade para a formalidade; contudo, sem perder a sua identidade e a representação que exercem simbolicamente sobre a sociedade, o que permite, de certa forma, uma conexão equilibrada entre os sujeitos e os atores envolvidos na produção do espaço urbano.

No Rio de Janeiro e no Brasil, de modo geral, a atividade das minivans, que em algum tempo e cidades já pertenceram à categoria informal, é hoje classificada como “transporte alternativo”. Apesar de a maioria da população usar os ônibus como transporte principal, essas vans são elementos de apoio e equilíbrio e desempenham um papel operacional bem definido e representativo.

Candongueiros como representação social

O entendimento da representação social dos candongueiros como sujeitos intrínsecos ao espaço urbano precisa, além da compreensão teórica e metodológica, ser envolvido pelos princípios empíricos por meio do conhecimento da realidade, da vivência, das experiências práticas e dos sentimentos do lugar. Compreensão que deve levar em consideração ou a observação ou a experiência quotidiana das relações sócio espaciais com os diferentes atores envolvidos na produção material e subjetiva do espaço.

Segundo Moscovici (2009)Moscovici, S. (2009). Representações sociais: investigações em psicologia social (6. ed.) Petrópolis: Vozes., a produção de conhecimentos plurais constitui e reforça a identidade dos grupos; influi em suas práticas e reconstitui seu pensamento, ocasionando processos de mudança espacial levemente autônomos do sistema.

Uma das fontes que subsidiou a pesquisa empírica, além da busca de fundamentos por meio da presença no local de estudo, foi composta justamente pelas conversas informais mantidas com atores engajados com as atividades sociais diversas.

Os atores estrangeiros que não são originários ou naturais dessa região possuem, em geral, observações e olhares carregados de outras compreensões significativas que, certamente, seriam difíceis para aquele pertencente e totalmente imerso no lugar. Pois, na maioria das vezes, esses têm dificuldades de abstrair e ver com outros olhos a própria realidade, ou a dos sujeitos e elementos que os rodeiam.

Na busca de pressupostos para as compreensões das práticas representativas, foram curiosas as respostas obtidas a partir da visão de atores estrangeiros pertencentes a ONGs (Organizações Não Governamentais), tais como: “Angola é um país do futuro e sempre será” (informação verbal, maio de 2016). Em outro contexto se ouviu: “assim é a África. Aqui as coisas têm o próprio ritmo e jeito de funcionar... não se pode ter pressa. É preciso ter paciência...” (informação verbal, maio de 2016).

Por outro lado, é comum verificar-se em Angola discursos provenientes dos próprios citadinos luandenses a respeito da atual situação, tais como: “isso é Luanda”, “Aqui é assim e está bom assim mesmo...”, ou, ainda: “Isto está tudo mal!”, “Isso aqui já não muda!” (informação verbal, maio de 2016). Enfim, uma série de respostas e proposições que podem ser, de acordo com Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e de campo: o poder simbólico (pp. 59-73). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., objetivas ou subjetivas, na forma de classificar e elucidar-se para a tentativa da resolução de problemas instalados e emanados da reprodução social.

Dessa forma, também os agentes constroem a realidade social. E não poucas vezes sob “[...] relações de ideias e conflitos a respeito de suas visões construídas a partir de um certo ponto de vista que cada ator ocupa no espaço partilhado” (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e de campo: o poder simbólico (pp. 59-73). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 8). Em análise, verifica-se nesses discursos produzidos sob a óptica individual ou coletiva sentimentos que estão atrelados à assimilação ou não da ideia de ordem e desordem.

Existe um fascínio pela organização e modernização da cidade e, principalmente, do sistema de circulação e transportes de Luanda. Segundo Santos (2002)Santos, E. A. (2002). As paisagens do plano e os planos da paisagem: da paisagem no planejamento ao planejamento com a paisagem (Tese de doutorado). FAU-USP, São Paulo., o desejo de modernização combinada dos espaços propicia o desenho fácil da aparência superficial e contribui para o discurso ideologicamente apropriado e apresentado como imagem de progresso, de novo, de bonito, mesmo que dali a pouco se mostre cansado. Para Luanda há maior preocupação com a manutenção do status quo das estruturas do Estado do que com o verdadeiro restabelecimento do equilíbrio e das reformas estruturais do Estado-Nação (Rocha, 2014Rocha, M. J. A. (2014). As perspectivas de crescimento económico de Angola até 2020 (Working Paper, No. 2, p. 2-30). Luanda: CEIC-UCAN.).

Por outro lado, Santos (2002)Santos, E. A. (2002). As paisagens do plano e os planos da paisagem: da paisagem no planejamento ao planejamento com a paisagem (Tese de doutorado). FAU-USP, São Paulo. ressalta que o desenho dos espaços, presente nas propostas dos agentes do poder público, nem sempre consegue responder ao jogo de forças que se coloca na disputa pelas melhores vantagens relativas presentes no urbano e que, via de regra, findam pela exclusão dos menos favorecidos. Essa concepção é visível a partir das intenções do Plano Diretor de Luanda (IPGUL, 2015Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p.), que está sujeito às convicções dispostas pela iniciativa do capital privado, a qual prima pela importação de modelos, por meio da imitação das realidades desenvolvidas e modernas. Desconsideram-se assim, as especificidades e o fator habitus da “sociedade metropolitana de Luanda”.

De acordo com Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e de campo: o poder simbólico (pp. 59-73). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., o habitus é uma forma de disposição determinada pela prática de grupo ou classe. É a interiorização de estruturas objetivas de suas condições de classe ou de grupo social que, como já frisado, gera estratégias, respostas ou proposições objetivas ou subjetivas para a resolução de problemas oriundos da própria reprodução social (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). A gênese dos conceitos de habitus e de campo: o poder simbólico (pp. 59-73). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.). Ao abordarmos dessa maneira as discussões de Bourdieu a respeito de seu entendimento do habitus, é possível, então, compreender a ação, presença, evolução e relações sócio espaciais dos candongueiros na região metropolitana de Luanda.

O plano de mobilidade do IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p. apresenta uma ênfase legítima e coerente na justificativa da adoção de transportes de massa modernos e de alta velocidade, baseados não só na previsão demográfica que atesta que “[...] até 2030, Luanda terá uma população de 12,9 milhões de pessoas” (IPGUL, 2015Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p., p. 14), o que pressupõe a insustentabilidade e inoperância dos candongueiros diante de tal realidade. Daí a ânsia pela modernidade, contida nas propostas de renovação urbana, tão cara aos angolanos e aos governantes que veem nos planos, no empreendedorismo, na arquitetura e no urbanismo os instrumentos de concretização das mudanças desejadas, como bem se pode vislumbrar nas Figuras 4 e 5.

Figura 4
- Fundamentos dos transportes públicos propostos pelo IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p.
Figura 5
- Fundamentos dos transportes públicos propostos pelo IPGUL (2015)Instituto de Planejamento e Gestão Urbana de Luanda – IPGUL. (2015). PDGML: Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda 2015-2030. Luanda: IPGUL. 446 p.

Os modelos propostos, se aplicados, podem, por um lado, promover a coexistência de distintas instâncias de socialização das classes e novos valores de referências de identidade. Uma nova conformação espacial constituir-se-ia como resultado da estruturação de novos sujeitos sociais e, portanto, como tentativa do surgimento de um novo habitus alinhado às pressões modernas. Por outro lado, o mais provável, o habitus da “nova ordem”, por não se rever com o habitus da “outra ordem”, pode simplesmente constituir-se como objeto simbólico ou prático de mera imitação, não convergindo assim com os elementos e sujeitos de representação social de Luanda, o que poderá agravar ainda mais a segregação e as desigualdades sócio espaciais.

A esse comportamento meramente copista Bhabha (1990)Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart. chamou de “traduções nocivas”, pois é uma maneira de imitar ou traduzir o original que nunca se completa ou se conclui em si mesma. Entende-se, de acordo com Moscovici (2009)Moscovici, S. (2009). Representações sociais: investigações em psicologia social (6. ed.) Petrópolis: Vozes., que representação social é o processo pelo qual se estabelece a relação entre o mundo e as coisas. Logo, ao se importar modelos sem considerar o contexto concreto onde estão situadas as pessoas, grupos, expressões culturais e de objetos, se abdica da própria condição da realidade social a serviço dos modelos de enquadramento de realidades.

A intenção de requalificar não só é legítima como faz parte das dinâmicas das sociedades modernas e contemporâneas, sobretudo de Luanda, que sofreu a influência da guerra e cresce vertiginosamente. Por esse viés, alternativas de entendimento de determinadas realidades por outras ordens podem ser interessantes quando aplicadas adequadamente, observando-se o devido contexto e especificidades históricas do lugar.

Porém, cabem ainda algumas questões para entender os enquadramentos que estigmatizam categorias sociais inseridas na informalidade, tais como: a quê e a quem interessam as representações sociais que visam à ordem? A que custo o cotidiano urbano inclui e exclui as categorias sociais que o próprio espaço criou? Qual é o transporte que se quer no lugar dos candongueiros? Quem são de fato os agentes que estão por trás da “organização” da mobilidade? Que conceito de “modernidade” trará benefícios para a identidade sociocultural da sociedade que tem um jeito de ser, de se mover, de se relacionar, e específico nas suas próprias trocas sócio espaciais? Qual será o destino daqueles que não se adequarem a essa modernidade? Enfim, uma série de questões podem ser levantadas, no entanto, esses são apenas alguns lampejos reflexivos.

De volta às questões iniciais desta discussão, pode-se afirmar que a compreensão das diferenças culturais, sinalizadas por Bhabha (1990)Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart., precisa ser observada, quando se aborda importação de modelos. A ideia de Angola como “um país do futuro” e de “estar sempre no futuro” (informação verbal, maio de 2016), embora traga a noção de certo pessimismo, nos impõe, por outro lado, a reflexão de que algumas questões estão tão impregnadas de essência cultural que não podem apenas ser mudadas com a instalação de elementos urbanos físicos. Basta acompanhar a história de ocupação das cidades de Angola, inclusive Luanda, pela população nativa no pós-independência. O que se verificou, de acordo com Castro (2015)Castro, J. C. (2015). Configuração sócio espacial como expressão de conflitos: expansão urbana de Luanda e o planejamento territorial de Angola (Dissertação de mestrado). Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos. e Development Workshop (2005)Development Workshop. (2005). Terra: reforma sobre a terra urbana em Angola no período pós-guerra: pesquisa, advocacia e políticas de desenvolvimento. Luanda: Development Workshop., foi a favelização das infraestruturas urbanas. Ainda que se atribua esse fato à situação de guerra em que o país se encontrava, sabe-se que a guerra não foi o único fator da precarização urbana.

A frase “A África tem o seu próprio ritmo” (informação verbal, maio de 2016) corrobora com a primeira questão. Não obstante a presença de elementos da globalização e da pós-modernidade — que para esses territórios acabam sendo mais um fator de desestruturação do que de organização —, existe uma maneira como as coisas acontecem. Pois a alteridade (Bhabha, 1990Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart.) é um fator-chave na compreensão daquela que aqui preferimos chamar de “outra ordem”. Uma ordem baseada em distinta lógica de produção sócio espacial. Uma lógica própria, com seus elementos culturais, políticos, especificidades e identidades.

Assim, a palavra “desorganização” talvez não caiba para a análise da realidade luandense. Essa e outras terminologias a serviço do capital devem ser entendidas à luz das especificidades e particularidades do que Bhabha (1990)Bhabha, H. (1990). Terceiro espaço (pp. 19-42). Londres: Lawerence & Wishart. chamou de diferenças culturais. As terminologias classificatórias da pós-modernidade, cuja palavra de ordem sustenta a ideologia das bipolaridades, trazem em si formas de linguagem intrínsecas ao próprio processo de produção e representação social.

Na verdade, a questão da “desordem deveria ser analisada sob o ponto de vista da lógica do modelo político de gestão do território e das tramas socioeconômicas que inserem a informalidade como lógica do processo de exclusão urbana de parte significativa da população. O patrimonialismo e o nepotismo (Rocha, 2014Rocha, M. J. A. (2014). As perspectivas de crescimento económico de Angola até 2020 (Working Paper, No. 2, p. 2-30). Luanda: CEIC-UCAN.), junto à equivocada forma de entender as políticas públicas como ações e benefícios de segmentos privilegiados, é que devem ser mensurados como a grande desordem da gestão do espaço público.

Existe no sistema de circulação e de transportes dominado pelos candongueiros uma cultura intrínseca à própria simbologia coletiva, um diálogo não falado entre a sociedade e os candongueiros. Em Luanda, os candongueiros e a sociedade coexistem. Além da sua importância social e econômica, esses se constituíram, em meio à informalização das relações sociais, numa expressão do sentimento e da identidade cultural da cidade. Constituem o espaço espontâneo de debates politizados, mais ou menos livres, uma vez que a liberdade de expressão em Angola ainda é uma questão umbrática do discurso. E, pelo facto de os candongueiros não terem espaços fixos de paragem obrigatória nem horários regulamentados, e dada a intensa frequência e rotatividade de passageiros, eles possibilitam esses tipos de diálogo e debates curtos e quotidianos.

Os candongueiros fazem parte de uma grande matriz socioeconômica e política. A população serve-se desse tipo de transporte, suas cargas são por eles transportadas. É por eles que muitos chegam ao serviço, à escola, à reunião. É com e por causa deles que a cidade funciona. A representação social dos candongueiros é tão forte que ela acaba extrapolando os limites do discurso e do simbolismo para a vida prática e cotidiana.

Esse transporte “desorganizado” se constitui em fundamental, capaz de conectar a expressiva população presente nas periferias, bem como nas cidades circunvizinhas. A paisagem urbana é tomada pelas cores azul e branca dos candongueiros (herança da pintura dos transportes públicos da era colonial portuguesa) que, atualmente, “denunciam” a pobreza-riqueza sociocultural urbana (Figura 6) e impõem a todos uma reflexão acerca da “desordem” que a ordem gerou.

Figura 6
- (A) Orla marítima – a “baía de Luanda”; (B) Trânsito de candongueiros

De outro lado, a paisagem que se quer no plano da “ordem” está ligada a normas, regras e ao desejo de colocar cada coisa no “seu lugar”. Um lugar outro, com paisagem que a muitos exclui e a poucos permite o desrespeito consentido (Santos, 2002Santos, E. A. (2002). As paisagens do plano e os planos da paisagem: da paisagem no planejamento ao planejamento com a paisagem (Tese de doutorado). FAU-USP, São Paulo.).

Ao contrário da linda baía, na orla da marginal marítima da cidade baixa (Região Central – Figuras 6), cartão postal oficial que o poder político-econômico tenta passar ao mundo a respeito de Luanda, seria interessante colocar em memória a imagem do espaço de circulação representado pela avultada presença dos candongueiros. Essa é uma das principais imagens com a qual o forasteiro se depara ao desembarcar em Luanda (Figura 7).

Figura 7
- Presença dos candongueiros na cidade (paisagem urbana de Luanda)

A paisagem de Luanda apresenta-se promiscuída em sua arquitetura e em seu urbanismo descontínuo, em sua ordem, da qual a única continuidade vem dos candongueiros.

Considerações finais

De acordo com os estudos realizados, a informalidade das atividades e serviços dos países periféricos, em especial de Luanda, são por um lado produtos da lógica de exploração dos territórios pelo capitalismo global e, de outro, reflexos das especificidades histórico-culturais, políticas e socioeconômicas desses espaços. Compreende-se que as políticas e planos de desenvolvimento e reestruturação do território adotados pelo Estado não refletem, na prática, a resolução de problemas sócio espaciais básicos. E que, quando aplicados, privilegiam a maximização do capital privado de uma minoria em nome de uma modernização e de um desenvolvimento aquém das realidades socioculturais do país.

É preciso que se devolva à sociedade angolana o protagonismo de suas ações sócio espaciais ao invés de se impor uma constante condição de vitimização social por meio das pressões dos modelos modernos. Os candongueiros de Luanda fazem parte de uma construção de objetos representativos que conectam uma história social, dotada de uma cultura e significado emanados do habitus da informalidade. Essa afirmação não significa um culto à informalidade nem à precariedade. O que se pretende é chamar atenção para os perigos da pura e simples importação de modelos sem a devida contextualização e consideração dos sujeitos sociais representativos e culturais responsáveis pela produção sócio espacial.

Dentro de uma representação social na qual os candongueiros fazem parte, a ideia de desordem não cabe. Pois entende-se a existência dessa categoria no espaço urbano com uma outra racionalidade, outra ordem de mobilidade e de ser urbano; é dessa forma que se consegue qualificar os candongueiros ou os transportes informais dos países periféricos.

A ideia deste estudo não é prejudicar o entendimento dos esforços que o governo vem realizando na tentativa de melhorar a imagem da cidade e da vida urbana. Nossa intenção foi desconstruir a ideia hegemônica dos agentes do capital global e local, que usam o pretexto da “ordem” sem preocuparem-se com as particularidades culturais de cada lugar para engendrar seus anseios.

Enfatiza-se cientemente que a adoção dos candongueiros como principal transporte urbano metropolitano é inviável e insustentável para uma cidade como Luanda, que cresce vertiginosamente ao longo dos anos e aumenta, cada vez mais, a complexidade de suas relações sócio espaciais. Porém não se acredita que a simples extinção desse modo de transporte coopere para o fim da precariedade urbana. Ao contrário, nossa recomendação aponta justamente para uma conjugação de modos de transporte, num contexto em que os candongueiros sejam totalmente formalizados, permitindo dessa forma que haja um equilíbrio entre os transportes modernos da “ordem global” com aqueles da “outra ordem” local. Que os diferentes modos de transportes dialoguem em diferentes níveis com os candongueiros, em todas as dimensões urbanas, e sejam capazes de promover a acessibilidade.

Por fim, afirma-se que os candongueiros são a maior expressão de representação social de Luanda e que, de fato, sem a presença dessa categoria no atual processo de metropolização de Luanda a desordem se instaura.

Agradecimentos

CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

  • 1
    Candongueiros ou kandongueiros são formas de expressão da gíria luandense originária de um dos dialetos falados em Luanda; o kimbundu. Definem o comércio e outras atividades clandestinas consideradas ilegais. Atualmente, identificam os agentes que operam nos transportes urbanos informais, por meio de minivans que, de acordo com Lopes (2011)Lopes, C. M. (2011). Candongueiros e Kupapatas: acumulação, risco e sobrevivência na economia informal em Angola. Cascais: Principia., são semioficiais.
  • 2
    Verificou-se, in situ, que os próprios candongueiros (nesse caso o motorista e o cobrador), preferiam o termo “taxistas” para se referir a eles e a denominação táxi para o automóvel que usavam.
  • 3
    O termo musseques é o nome usualmente aplicado às zonas suburbanas, ocupadas pelas populações economicamente desfavorecidas. É aplicado ainda para formas de urbanização improvisada, precária e em permanente expansão, embora o termo tenha origem na geologia das terras arenosas e vermelhas da periferia de Luanda (Development Workshop, 2005Development Workshop. (2005). Terra: reforma sobre a terra urbana em Angola no período pós-guerra: pesquisa, advocacia e políticas de desenvolvimento. Luanda: Development Workshop.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2016
  • Aceito
    13 Dez 2016
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