Introdução
O planejamento governamental brasileiro ganhou novo impulso com a Constituição Federal de 1988. Isso porque, desde a década de 1970, a temática vinha sendo questionada em associação ao desgaste do modelo de Estado que o produziu: interventor na economia e centralizado na administração. Em consonância com o processo internacional de reformas do Estado, permeado por perspectivas que valorizavam a descentralização e a inovação, o planejamento passou por uma revisão.
No caso brasileiro, a Constituição catalisou o debate sobre a temática, descentralizando a responsabilidade pelo planejamento, na forma do Plano Plurianual (PPA) e planos setoriais, para as três esferas federativas. Com isso, direcionou a atenção para as capacidades de execução do planejamento nos diferentes níveis de governo, com destaque para os municípios, que foram elevados à categoria de entes federados responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas. Com efeito, a partir dessa mudança, os municípios viram-se comprometidos por lei a produzir as peças de planejamento e, mais do que isso, a dar eficácia às ações ali deliberadas.
Entretanto, em virtude da trajetória pretérita de centralização do planejamento no governo federal, afirma-se que os municípios careceriam de capacidades para desempenhar as atividades relacionadas ao planejamento, seja por conta da inexperiência, seja pelos baixos recursos (burocráticos/financeiros) disponíveis (Rezende, 2011; Papi & Demarco, 2018). Isso, com a ausência de normas complementares, teria contribuído para que a elaboração dos PPAs só fosse efetivamente difundida com a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, 12 anos após a Constituição (Giacomoni, 2004; Azevedo & Aquino, 2016).
Nesse cenário, o propósito deste artigo é analisar os PPAs dos municípios da região metropolitana de Porto Alegre (RMPA) para explorar e produzir informações acerca das capacidades estatais voltadas à produção do planejamento desses entes federados, em especial de sua capacidade administrativa. Partindo da premissa que a capacidade estatal tange à competência para realizar objetivos (Skocpol, 1985), o plano do governo organiza esses objetivos num quadro de ação, indicando e explicitando os recursos, os instrumentos e as relações com os agentes envolvidos. Nessa construção, os PPAs, em sua condição de produtos das burocracias estatais, expressariam a capacidade administrativa instalada nos governos. Coerente com isso, tomaremos como foco da investigação os aspectos formais dos PPAs municipais, isto é, aqueles exigidos normativamente.
Com este trabalho, esperamos contribuir para as áreas de estudos sobre planejamento governamental e capacidades estatais, dois campos até então postos em searas distintas. Por um lado, são poucos os estudos sobre o planejamento em âmbito municipal, pois o foco historicamente tem recaído sobre o governo central (Cardoso, 2011; Paulo, 2014; Papi & Demarco, 2018). Por outro, as análises sobre capacidades estatais nos municípios brasileiros têm valorizado a dimensão burocrática (Sátyro et al., 2016; Marenco et al., 2017; Marenco, 2017) e a fiscal (Grin et al., 2018), deixando espaço para o estudo dos produtos gerados por esse esforço.
O artigo está formado por quatro partes, além da introdução e da conclusão. Na primeira, abordamos a literatura sobre capacidades estatais, destacando como a categoria se ajusta à análise sobre os municípios brasileiros. Em seguida, discutimos o papel dos municípios na federação brasileira, bem como em relação ao planejamento governamental. Na terceira, explicitamos os procedimentos metodológicos. Na quarta, apresentamos e analisamos os resultados obtidos no estudo.
Capacidades estatais nos municípios brasileiros
Em linha com Theda Skocpol (1985), entendemos que os Estados são organizações que reivindicam controle sobre territórios e pessoas e, nesse sentido, podem formular e executar objetivos de forma autônoma em relação aos interesses de classes ou grupos sociais. Contudo, a realização desses objetivos depende de determinadas capacidades, especialmente em contextos de enfrentamento com grupos sociais poderosos ou de crises socioeconômicas. Sobre isso, Souza (2017) salienta: para alcançar os objetivos, não basta a vontade dos agentes políticos, são necessárias capacidades estatais.
As diferentes capacidades estatais, relevantes para a consecução dos objetivos, são tratadas atualmente em termos de dimensões. Em seu reconhecido trabalho, Cingolani (2013) sistematizou sete dimensões comumente acionadas: administrativa e/ou de implementação, coercitiva e/ou militar, fiscal, legal, política, relacional e/ou de cobertura territorial e transformativa e/ou industrializante. O Tabela100 apresenta as dimensões e suas definições.
Quadro 1 - Dimensões da capacidade estatal
Dimensão | Definição |
---|---|
Administrativa | Capacidade de implementação impessoal das políticas por meio da existência de uma burocracia do tipo weberiano |
Coercitiva | Capacidade de monopolizar a administração do poder coercitivo |
Fiscal | Capacidade de extrair recursos da sociedade, em geral pela arrecadação de tributos |
Legal | Manutenção de um sistema legal estável capaz de garantir a confiança em torno de acordos e a execução dos contratos |
Política | Capacidade dos políticos eleitos de encaminhar e executar suas agendas |
Relacional | Capacidade de engajamento socioeconômico do Estado ou o quanto a sociedade é permeada pelo Estado |
Transformativa | Capacidade de intervir no sistema produtivo, estruturando a economia |
Fonte: elaboração própria a partir de Cingolani (2013).
Cingolani (2013) destaca que a dimensão administrativa ou de implementação é a mais referenciada na literatura. Seus fundamentos estariam na tradição weberiana1, assim como na relação entre a modernização estatal e a existência de uma burocracia profissional e insulada. Em geral, as dimensões coercitiva e fiscal são apresentadas como pré-requisitos da administrativa.
Cabe mencionar, também, as classificações elaboradas por pesquisadores brasileiros, como a de Souza (2017), que operacionaliza o conceito de capacidade estatal por meio de quatro grandes grupos de componentes, quais sejam: o político, relacionado às “regras do jogo” que conformam os comportamentos político, social e econômico dos atores; o legal, referente às regras jurídicas que regulam o comportamento dos atores e das instituições; o organizacional/administrativo, ligado à eficiência na provisão de bens e serviços; o de políticas públicas, concernindo à construção de capacidade burocrática e à profissionalização das burocracias. Por sua vez, Pires & Gomide (2016) propõem o uso de duas dimensões: a técnico-administrativa, que trata da existência de uma burocracia profissional dotada dos recursos necessários à condução coordenada das ações governamentais; a político-relacional, que diz respeito à capacidade de articular os processos necessários por meio da construção de consensos mínimos e coalizões de suporte às políticas públicas desenvolvidas.
Aproximando-nos de nosso objeto, uma série de estudos recentes analisou as capacidades estatais dos municípios brasileiros. Entre eles, destacamos os trabalhos de Grin et al. (2018), Marenco et al. (2017), Marenco (2017) e Sátyro et al. (2016).
Grin et al. (2018) analisaram, por meio de um modelo de regressão multivariada, o impacto de diferentes indicadores de capacidade administrativa, técnica, institucional e política sobre o desempenho fiscal dos municípios estudados. Com isso, verificaram impactos significantes e positivos sobre as receitas próprias dos municípios e suas despesas correntes, provenientes das variáveis de natureza política (instâncias de controle e participação social, como conselhos de políticas e participação dos municípios em consórcios) e das relacionadas à magnitude e ao preparo técnico do funcionalismo municipal.
Já Marenco et al. (2017) e Marenco (2017) trabalharam com a dimensão administrativa, enfocando a burocracia. Eles adotaram a categoria “estatutários com formação superior” como proxy de profissionalização da burocracia. Em Marenco et al. (2017), foi encontrado um incremento na arrecadação de impostos patrimoniais urbanos em municípios com maior proporção de profissionais com tal qualificação. O estudo de Marenco (2017), que utiliza dados dos 5,5 mil municípios brasileiros, identifica a existência de distribuição assimétrica desses profissionais pelos municípios. Ademais, verificou-se que maior concentração de profissionais aumenta as chances de implementação de uma série de legislações regulatórias sobre o espaço urbano. Para o autor, é provável que o insulamento gerado pela autonomia e estabilidade das carreiras dessas burocracias seja capaz de ampliar a capacidade para alterar a distribuição prévia de recursos não estatais por meio de políticas e/ou legislações regulatórias do espaço urbano.
Nessa mesma linha, o estudo de Sátyro et al. (2016) buscou entender se há relação entre a capacidade de implementação das políticas de assistência social e o tipo de vínculo profissional dos burocratas que as implementam. Analisando dados de todos os municípios brasileiros, os autores não constataram relação entre (a) a capacidade de implementação e gestão da política nem (b) o tipo de vínculo dos profissionais e a existência de uma burocracia estável e profissionalizada. Para eles, a implementação e a gestão da política estariam mais diretamente relacionadas às demandas por proteção social (Sátyro et al., 2016).
Para nossos fins, abordaremos a dimensão administrativa da capacidade estatal da seguinte forma. Cingolani (2013), Souza (2017) e Pires & Gomide (2016) salientam que tal dimensão está relacionada à capacidade de implementação de objetivos, à eficiência na provisão de bens e serviços e à condução coordenada de ações. A consecução desses esforços seria dependente da qualidade da burocracia. Nessa ideia, os planos dos governos corresponderiam a passos na direção da operacionalização dos objetivos, dos bens e serviços e das ações. Nesse sentido, tais planos, enquanto produtos produzidos pelas burocracias, expressariam suas características. Assim, utilizaremos os PPAs como proxy das capacidades administrativas instaladas nos municípios.
O município na federação e as capacidades de planejamento
O Brasil adotou o modelo federativo de organização do poder territorial com a Proclamação da República, ainda em 1891. Contudo, a história brasileira apresenta tendência à concentração de autoridade e recursos no governo central, em regra dotado de mais capacidade para a execução de projetos de desenvolvimento nacional (Papi et al., 2019). Mesmo no período da República Velha, quando ocorreu mais descentralização de poderes, a capacidade burocrática dos estados para o planejamento era incipiente (Cardoso, 2011). Somente a partir de meados dos anos de 1950, os estados da federação passaram a ter órgãos, setores ou departamentos voltados ao planejamento.
Na esfera federal, em contrapartida, a primeira estrutura central de planejamento da administração pública brasileira surgiu ainda em 1937, quando foi criado o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), responsável pela elaboração do primeiro plano quinquenal do país. A criação do Dasp tem caráter simbólico no que tange à construção de capacidades de planejamento estatal. Por um lado, foi central para a modernização estatal brasileira. Por outro, aprofundou as diferenças qualitativas entre burocracias federais e regionais, visto que não foi capaz de gerar um efeito modernizante nas estruturas burocráticas locais (Abrúcio et al., 2010). Deste modo, apesar do restabelecimento dos poderes locais entre 1946 e 1964, até a redemocratização o federalismo brasileiro foi marcado pela centralidade do papel ordenador do governo federal (Cardoso, 2011).
Além de instituir um modelo federativo trino, a Constituição Federal de 1988 também ofereceu os fundamentos do intenso processo de descentralização de políticas públicas que se seguiu. Tais mudanças tiveram um impacto notável na dinâmica municipal, em razão da assunção de uma ampla gama de competências no que tange à condução das políticas de saúde, educação, assistência social, cultura e saneamento básico, até então sob responsabilidade do governo central. De forma concomitante, os municípios foram incumbidos da função de produzir peças orçamentárias e de planejamento, como o Planejamento Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Plano Diretor, previstos no Artigo 165 da Constituição Federal (Brasil, 2004) e no Decreto no 2.829, de 29 de outubro de 1998 (Brasil, 1998).
O PPA é o instrumento que oficializa os programas do governo eleito. Nele são apontadas as diretrizes, os objetivos e as metas das políticas públicas para um período de quatro anos. O projeto do PPA deve ser encaminhado pelo Executivo ao Legislativo até 31 de agosto do primeiro ano de cada governo, entrando em vigor no ano seguinte e, desse modo, vigente até o final do primeiro ano do governo sucessor. Assim, os chefes do Executivo assumem o mandato executando o PPA da gestão passada, objetivando acomodar os efeitos administrativos das mudanças democráticas de governo. Outros dois documentos acompanham o PPA na sua atribuição de executar o planejamento governamental: a Lei Orçamentária Anual (LOA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Desse modo, o ordenamento jurídico aliou a ideia de planejamento de políticas com a previsão orçamentária correspondente.
Em termos de prática, a literatura alega que o PPA vem sendo elaborado e tratado como uma formalidade de baixa eficácia, cuja motivação principal seria a exigência constitucional. Nesse sentido, teria pouca utilidade em termos de implementação de políticas, igualmente não funcionaria como um orientador das táticas estatais em âmbitos nacional, estadual e municipal (Cardoso, 2011; Santos, 2001; Paulo, 2014).
De fato, há quem afirme que ele não foi concebido para desempenhar esse papel, e na administração federal ainda há uma considerável resistência a sua efetiva incorporação. Como reflexo, sua tramitação no Congresso Nacional também não mobiliza parlamentares, que se limitam à discussão de itens reproduzidos no orçamento anual. Nesse contexto, o PPA é comumente definido como um documento burocrático e de pouca utilidade. (Paulo, 2014, p. 171).
Para Rezende (2011), o predomínio da compreensão do planejamento como peça relacionada ao período autoritário contribuiu para relegá-lo ao terreno do planejamento orçamentário durante o período que seguiu a redemocratização. Ademais, apesar de a Constituição de 1988 institucionalizar o PPA como peça de planejamento, foi somente a partir da Lei Complementar nº 101/2000 que ficou estabelecido o entendimento de que a construção do PPA era obrigatória tanto para os estados quanto para os municípios.
As limitações em termos de capacidades estatais também contribuiriam para as dificuldades em termos de elaboração e de execução dos PPAs. Tais restrições relacionar-se-iam com algumas questões. Além das consequências da trajetória histórica brasileira de concentração do planejamento no governo central, cabe ressaltar fatores relacionados às precariedades técnico-administrativas e financeiras dos municípios brasileiros, em especial daqueles de pequeno porte, sobretudo no tocante a recursos de capital para investimentos (Papi & Demarco, 2018).
Com relação à dimensão administrativa, recebe relevo a questão da profissionalização da burocracia. Como mostrado por Marenco et al. (2017), Marenco (2017) e Grin et al. (2018), a existência de uma burocracia profissional – com recrutamento meritocrático, estabilidade de carreira e com maiores níveis de escolaridade – impacta positivamente tanto a capacidade de formulação e implementação de políticas públicas quanto o desempenho fiscal dos municípios. Não obstante, Marenco & Strohschoen (2018) mostraram mais probabilidade de encontrarmos cargos de confiança de menor escolaridade e servidores não concursados e com ensino fundamental ou médio nos municípios de pequeno porte. Atualmente, 44% dos municípios brasileiros possuem até 10 mil habitantes, 68% com até 20 mil habitantes (IBGE, 2016), como mostra o Quadro 2.
Quadro 2 - Número de municípios brasileiros e porte populacional
Porte populacional | Quantidade de municípios | % |
---|---|---|
Até 5.000 | 1.237 | 22,21 |
De 5.001 a 10.000 | 1.214 | 21,80 |
De 10.001 a 20.000 | 1.377 | 24,72 |
De 20.001 a 50.000 | 1.087 | 19,52 |
De 50.001 a 100.000 | 353 | 6,34 |
De 100.001 a 500.000 | 261 | 4,69 |
Mais de 500.000 | 41 | 0,74 |
Total | 5.570 | 100 |
Fonte: IBGE (2016).
Outro fator que precisa ser considerado quando olhamos para os municípios brasileiros se relaciona à extrema dependência financeira de grande parte deles das transferências constitucionais da União. De acordo com a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN, 2018), três décadas após a promulgação da Constituição Federal, o quadro financeiro dos municípios é de desequilíbrio no que tange ao volume de receitas e à geração de arrecadação própria: em 2016, 81,7% dos municípios não geraram sequer 20% de suas receitas.
Além disso, o estudo aponta que quanto menor é o município, maior é a dependência das transferências federais, sobretudo do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). A média de geração de arrecadação própria de municípios de até 20 mil habitantes é de apenas 9,7%, segundo o estudo. Nesse sentido, aponta-se que a capacidade arrecadatória continuou muito restrita à União, tornando estados e municípios altamente dependentes de repasses constitucionais para o desenvolvimento das políticas públicas (Arretche, 2012).
Com efeito, os municípios encontram limitações na construção de capacidades técnicas e administrativas, o que, em tese, deixa consequências na qualidade do planejamento e da gestão das políticas públicas (Marinho & Jorge, 2015; Azevedo & Aquino, 2016). Portanto, se, por um lado, possuem status de entes federados e a incumbência de desenvolver instrumentos de planejamento a fim de orientar a implementação das políticas públicas em seus territórios, por outro, são altamente heterogêneos e desiguais, conquanto dispõem de limitadas capacidades estatais.
Procedimentos metodológicos
Neste trabalho, propomos investigar as capacidades de planejamento dos municípios utilizando como proxy os aspectos formais dos PPAs. Escolhemos como lócus de pesquisa os 34 municípios que formam a RMPA2. Isso porque tal recorte nos oferece um conjunto de municípios com distintas características sociodemográficas.
O Quadro 3 mostra que os municípios da RMPA têm diferentes portes populacionais: nove (27%) são grandes, acima de 100 mil habitantes; sete (21%) são de médio porte, entre 50 e 100 mil habitantes; 18 (52%) são de pequeno porte, menos de 50 mil habitantes (IBGE, 2016). Além disso, por estarem inseridos numa dinâmica metropolitana, há uma grande circulação de pessoas entre os municípios diariamente que se deslocam para trabalhar, estudar e buscar entretenimento. Então, mesmo de pequeno porte, os municípios metropolitanos têm à disposição produtos e serviços oriundos dos municípios polo. Ao mesmo tempo, possuem boas condições de renda, de longevidade e de educação: 80% possuem IDHM alto (de 0,700 a 0,799); 20%, médio (de 0,600 a 0,699) (PNUD, 2016). Esse dado é relevante, visto que a região possui um elevado índice de desenvolvimento humano – o que indica boas condições de vida, de renda e de acesso à educação - e um conjunto grande de municípios de pequeno e médio portes. Sobre esse último aspecto, cabe relembrar: a literatura aponta que municípios de pequeno porte possuem mais precariedades técnica, financeira e operacional para o desenvolvimento das políticas públicas (Arretche, 2012; FIRJAN, 2018; Grin et al., 2018).
Quadro 3 - Municípios que compõem a região metropolitana de Porto Alegre, segundo a população
Município | População | % sobre a região | % sobre o estado | IDHM |
---|---|---|---|---|
Alvorada (RS) | 209.213 | 4,85 | 1,85 | 0,699 |
Araricá (RS) | 5.622 | 0,13 | 0,05 | 0,679 |
Arroio dos Ratos (RS) | 14.123 | 0,33 | 0,12 | 0,698 |
Cachoeirinha (RS) | 129.307 | 2,99 | 1,14 | 0,757 |
Campo Bom (RS) | 66.156 | 1,53 | 0,58 | 0,745 |
Canoas (RS) | 344.957 | 7,99 | 3,04 | 0,750 |
Capela de Santana (RS) | 11.810 | 0,27 | 0,1 | 0,661 |
Charqueadas (RS) | 40.301 | 0,93 | 0,36 | 0,747 |
Dois Irmãos (RS) | 32.205 | 0,75 | 0,28 | 0,743 |
Eldorado do Sul (RS) | 40.643 | 0,94 | 0,36 | 0,717 |
Estância Velha (RS) | 49.345 | 1,14 | 0,44 | 0,757 |
Esteio (RS) | 83.121 | 1,93 | 0,73 | 0,754 |
Glorinha (RS) | 7.988 | 0,19 | 0,07 | 0,714 |
Gravataí (RS) | 279.398 | 6,47 | 2,47 | 0,736 |
Guaíba (RS) | 98.043 | 2,27 | 0,87 | 0,730 |
Igrejinha (RS) | 36.450 | 0,84 | 0,32 | 0,721 |
Ivoti (RS) | 23.880 | 0,55 | 0,21 | 0,784 |
Montenegro (RS) | 64.788 | 1,5 | 0,57 | 0,755 |
Nova Hartz (RS) | 21.317 | 0,49 | 0,19 | 0,689 |
Nova Santa Rita (RS) | 28.670 | 0,66 | 0,25 | 0,718 |
Novo Hamburgo (RS) | 246.452 | 5,71 | 2,18 | 0,747 |
Parobé (RS) | 57.660 | 1,34 | 0,51 | 0,704 |
Portão (RS) | 36.510 | 0,85 | 0,32 | 0,713 |
Porto Alegre (RS) | 1.479.101 | 34,26 | 13,06 | 0,805 |
Rolante (RS) | 21.199 | 0,49 | 0,19 | 0,688 |
Santo Antônio da Patrulha (RS) | 42.648 | 0,99 | 0,38 | 0,717 |
São Jerônimo (RS) | 24.078 | 0,56 | 0,21 | 0,696 |
São Leopoldo (RS) | 234.947 | 5,44 | 2,07 | 0,739 |
São Sebastião do Caí (RS) | 25.467 | 0,59 | 0,22 | 0,739 |
Sapiranga (RS) | 81.198 | 1,88 | 0,72 | 0,711 |
Sapucaia do Sul (RS) | 140.311 | 3,25 | 1,24 | 0,726 |
Taquara (RS) | 57.292 | 1,33 | 0,51 | 0,727 |
Triunfo (RS) | 29.207 | 0,68 | 0,26 | 0,733 |
Viamão (RS) | 254.101 | 5,89 | 2,24 | 0,717 |
Total da Região | 4.317.508 | 100 | 38,11 | |
Rio Grande do Sul | 11.329.605 |
Fonte: elaboração própria com base nos dados fornecidos pelo IBGE (2016) e PNUD, IPEA, FJP (PNUD, 2016). IDHM: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal. O IDHM considera as três dimensões do IDH Global: longevidade, educação e renda, integrando o contexto brasileiro e a disponibilidade de indicadores nacionais (PNUD, sd).
Em termos de delineamento do estudo, empreendemos uma pesquisa exploratória e descritiva, uma vez que se pretende produzir conhecimento sobre um fenômeno ainda pouco estudado, bem como expor características dos PPAs de forma que possamos entender melhor as capacidades estatais nos municípios. Nesse caminho, operacionalizamos uma pesquisa documental e realizamos análise de conteúdo (Bardin, 2004). As categorias analíticas derivaram das normatizações que orientam a estrutura dos planos, o que trataremos no tópico seguinte.
Os dados coletados correspondem aos PPAs 2018-2021 dos municípios da RMPA. Buscamos os planos nas páginas da internet das prefeituras, das câmaras municipais e dos portais de transparência, quando existentes. Encontramos tais documentos disponíveis em 25 municípios. Aqueles que não os tornaram acessíveis no momento da coleta dos dados (janeiro e fevereiro de 2019) foram: Araricá, Arroio dos Ratos, Capela de Santana, Charqueadas, Eldorado do Sul, Gravataí, Nova Santa Rita, Sapucaia do Sul e Taquara.
Cabe salientar que os governos que assumiram as prefeituras em janeiro de 2017 deveriam elaborar o respectivo PPA até o final desse ano, conforme prevê a Constituição. Assim, a coleta de dados se deu mais de um ano após o prazo para o envio e a aprovação do documento pelas casas legislativas municipais.
Resultados e discussão
A elaboração do Plano Plurianual nos municípios justifica-se em resposta à determinação constante no artigo 165 da Constituição de 1988 (Rezende, 2010; Marinho & Jorge, 2015). Dele são extraídos os elementos formais básicos que deveriam compor o plano, quais sejam: diretrizes, objetivos e metas para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. A despeito de toda a controvérsia envolvida no esclarecimento e na normatização do conteúdo dos PPAs (Santos, 2001; Giacomoni, 2004; Procopiuck et al., 2007; De Toni, 2016), a prática mostra que os municípios vêm utilizando os pontos elencados na Constituição para ordenar a apresentação dos planos.
Ainda no campo da normatização, a Portaria nº42, de 1999, do Ministério do Orçamento e Gestão criou as categorias programas, projetos e atividades para a apresentação das políticas, bem como agregou mais um item àquelas iniciais: determinou que os programas deveriam ser mensurados por meio de indicadores. Também definiu a estrutura de decomposição a ser seguida, qual seja: programas → projetos → atividades.
Outro elemento que merece ser citado é o diagnóstico municipal. Embora não conste exigência em regramento formal, o diagnóstico é uma etapa clássica e fundamental do processo de planejamento. Sua função consiste em explicitar a situação atual, delimitando, demográfica e territorialmente, os problemas considerados mais relevantes; subsidiando, assim, a elaboração dos objetivos. Tamanha importância desse elemento é perceptível nos manuais de elaboração de PPAs municipais que não deixam de inserir essa atividade entre as etapas sugeridas (Vainer et al., 2001; CNM, 2013; Rio Grande do Sul, 2017).
A partir dessa base, temos os elementos formais que deveriam modelar os PPAs, os quais funcionarão como ordenadores de nossa descrição e análise dos dados. Organizamos este tópico em torno dos elementos que chamaremos de essenciais: diagnóstico, diretrizes, objetivos, metas e indicadores. Além desses, identificamos outros itens nos documentos analisados, os quais denominamos elementos de suporte e de esclarecimento. Antes de adentrarmos na análise dos elementos, torna-se necessário expor algumas características gerais dos PPAs estudados.
Apontamentos iniciais à análise
Como exposto anteriormente, examinamos os PPAs 2018-2021 de 25 municípios da RMPA. Inicialmente, cabe frisar que esses documentos não são de fácil localização. Em geral, são disponibilizados nas páginas de internet das prefeituras e em apenas três municípios os encontramos nas páginas das câmaras municipais. Dentro dessas páginas, o pesquisador necessita averiguar diversos links até conseguir ser direcionado ao documento. Além disso, em nenhum dos 25 casos o PPA aparecia na página inicial, indicando baixo interesse em sua publicidade.
Tal ideia é reforçada quando acessamos o conteúdo dos planos. Comecemos pela forma como o documento é ofertado ao cidadão. Dos 25 PPAs estudados, 14 eram formados por um único documento; nove, por três a oito arquivos; e dois, por mais de 20 arquivos: um com 25 e outro com 47 componentes. A existência de mais de um arquivo já é, por si só, um obstáculo ao manuseio desse tipo de documento, bem como um afastamento do conhecimento em planejamento que recomenda a produção de uma peça documental. Contudo, a dificuldade pode ser ampliada se as partes não estiverem devidamente nomeadas nem ordenadas sequencialmente, o que é a realidade encontrada nos 11 casos em foco. Observe um dos casos extremos: a prefeitura de Viamão disponibilizou o PPA em 25 arquivos, todos em formato excel, nomeados da seguinte forma: 00_ppa08, 01_ppa15, 02_ppa01, 03_anexo_ii, 11_ppa10 [...] 56_receita_e_despesa_mensal. Outro embaraço refere-se justamente à utilização de diferentes formatos de arquivos: excel, jpeg, pdf e word. Ilustrativamente, o município de Portão ofertava seu plano em 47 arquivos: 42 em jpeg, 4 em excel e 1 em pdf, os quais estavam nomeados com sequências numéricas ininteligíveis.
Além dessa questão, merece menção a estrutura de apresentação dos planos. Dentre os 14 planos fornecidos em um único arquivo, encontramos três tipos de layout. O mais comum, utilizado em nove PPAs, é o que inicia com a lei de aprovação do PPA seguida de uma sucessão de tabelas e quadros que apresentavam as despesas, as receitas e os programas. Em segundo lugar, três PPAs, das cidades de Canoas, Porto Alegre e Triunfo, continham textos introdutórios, seja integrado na lei, caso de Triunfo, seja de forma independente, no caso dos demais. A introdução do PPA de Canoas trazia informações sobre a elaboração do plano e os programas; a de Triunfo, de forma bastante resumida, apresentava o PPA enfatizando a aderências às normas e ao Plano de Governo; a de Porto Alegre, mais completa, um diagnóstico municipal. Por fim, dos 14 PPAs apresentados em uma peça documental, dois estavam formados por uma lista de tabelas e quadros, sem uma ligação explícita entre si e qualquer explicação inicial.
Esse ponto desvela outra ausência: nenhum dos 25 planos analisados informava a origem ou a duração dos programas que os compunham, não sendo possível saber se eram novos ou se já estavam em andamento, assim como nada indicava sobre sua eficiência, eficácia ou efetividade. Em outras palavras, esses PPAs não logravam comunicar a relevância das iniciativas para as quais propunham dirigir os recursos públicos. Isso é especialmente preocupante considerando as determinações da Lei de Responsabilidade Fiscal: não há que se falar em priorização de ações com vistas ao equilíbrio fiscal num contexto de ausência de fundamentação pública para estas. Nesse sentido, de forma geral, os planos demonstraram baixo grau de inteligibilidade. Com isso em mente, seguimos para a análise dos elementos específicos que compunham os planos estudados.
Elementos essenciais: diagnóstico, diretrizes, objetivos, metas e indicadores
Iniciemos pelo diagnóstico municipal. Somente o PPA de Porto Alegre (2017) continha uma descrição e análise da realidade local; nos demais, não havia nenhuma menção a um estudo desse tipo. Isso pode indicar que prevalece uma dinâmica incremental de reprodução das políticas públicas, assim como uma carência de qualificação dos processos de formulação e de desenho.
As diretrizes, por sua vez, eram anunciadas em sete PPAs. Sua variedade pôde ser enquadrada em duas linhas: voltadas ao bem-estar social, englobando qualidade de vida, desenvolvimento, inclusão etc. e relacionadas à gestão governamental, incluindo transparência, participação, eficiência, qualificação de políticas públicas etc.
Ao longo da análise dos dados, chamou a atenção o fato de que três desses PPAs exibiam uma redação idêntica das diretrizes:
Art. 3º: O PPA tem como diretrizes:
I - valorização do cidadão-usuário como motivo de qualquer ação governamental;
II - participação da sociedade na escolha de prioridades, acompanhamento e avaliação dos resultados;
III - forte ênfase nas ações que envolvem o desenvolvimento humano;
IV - a excelência na gestão (Santo Antônio da Patrulha, 2017, p. 1).
Art. 3º. O PPA 2018-2012 terá como diretrizes:
I - valorização do cidadão-usuário como motivo de qualquer ação governamental;
II - participação da sociedade na escolha de prioridades, acompanhamento e avaliação dos resultados;
III - forte ênfase nas ações que envolvem o desenvolvimento humano;
IV - a excelência na gestão (São Sebastião do Caí, 2017, p. 1).
Art. 3º: O PPA tem como diretrizes:
I - valorização do cidadão usuário como motivo de qualquer ação governamental;
II - participação da sociedade na escolha de prioridades, acompanhamento e avaliação dos resultados;
III - forte ênfase nas ações que envolvem o desenvolvimento humano;
IV - a excelência na gestão (Sapiranga, 2017, p. 2).
Tal semelhança pode indicar que os municípios recorreram a serviços externos para a elaboração do plano, o que não é incomum (Marinho & Jorge, 2015). Contudo, nos casos destacados, parece que há uma utilização padronizada e artificial das diretrizes, tornando-as inócuas. Tal fato reforça as afirmações de que o PPA teria um papel de pouca relevância em termos de planejamento (Pares & Valle, 2006; Cardoso & Santos, 2018).
Dos elementos fundamentais, os objetivos foram os mais frequentemente encontrados. Dentre os 25 planos analisados, 22 possuíam objetivos. Em relação à sua forma, cabem algumas observações. Os objetivos comumente aparecem de forma bastante genérica. Por exemplo: “Objetivo do governo: 01 - cuidar de todos” (Cachoeirinha, 2017, p. 54), ou, ainda: “Objetivo: Atender a demanda local” (Novo Hamburgo, 2017, p. 3). Ademais, não raro nos deparamos com objetivos indecifráveis: “Objetivo de governo: 02 – Fomentar o pertencimento” (Cachoeirinha, 2017, p. 67); ou: “Transferência do estado convênio PRADEM” (São Jerônimo, 2017, p. 116). Também se identificaram objetivos lacônicos: “Objetivo: Necessidade de estar preparado para possíveis imprevistos que possam atingir a população” (Alvorada, 2017, p. 40).
De forma a operacionalizar os objetivos, as metas oferecer-lhes-iam uma dimensão quantitativa e temporal. Elas apareceram em 20 planos, com destaque para as metas financeiras. Todavia, em dois casos o que foi denominado “meta” não tinha os requisitos correspondentes. No PPA do município de Guaíba, a redação das metas se assemelhava à dos objetivos e não havia dimensão temporal nem quantitativa ilustrativamente: “Manter pagamento de encargos sociais dos servidores municipais”; ou: “Analisar a viabilidade de aquisição de equipamentos para digitalização de documentos do arquivo geral” (Guaíba, 2017, p. 2). Por sua vez, as metas do plano de Sapiranga não exibiam a dimensão quantitativa.
Por fim, os indicadores figuraram no rol de elementos menos utilizados, ao lado do diagnóstico e das diretrizes. Apenas nove municípios os arrolaram nos PPAs; desses, seis elencavam indicadores para todos os programas, sinalizando, com essa ausência, o quão limitados são os mecanismos de monitoramento e avaliação dos PPAs municipais (CEGOV, 2015).
O Quadro 4 sistematiza os dados apresentados e os dados por município estão no Anexo A. Como se vê, o único município que elaborou um PPA com todos os elementos e na forma de um plano foi Porto Alegre. Nos demais, a presença de alguns elementos ficou comprometida pela falta de clareza, organização, apresentação e acessibilidade dos planos.
Quadro 4 - Elementos essenciais nos PPAs analisados (n=25)3
Elementos | Quantidade de PPAs |
---|---|
Diagnóstico | 01 |
Diretrizes | 07 |
Objetivos | 22 |
Metas | 20 |
Indicadores | 09 |
Fonte: elaboração própria.
Diante do exposto, percebeu-se que, a despeito do elevado IDH, os municípios da RMPA apresentam precários PPAs. Ainda, o porte populacional, em nossa amostra, não demonstrou relação com a qualidade dos planos. A exceção, como se viu, foi o caso de Porto Alegre. Essa constatação conduz à tese de que há carência generalizada de capacidades técnicas de planejamentos nos municípios estudados, independentemente de seu porte populacional ou nível de desenvolvimento.
Elementos de suporte e de esclarecimento: descrição dos programas/atividades e público-alvo
Ao longo da análise dos PPAs, verificamos que alguns municípios se preocuparam em oferecer outros componentes para dar clareza e robustez aos elementos essenciais. Encontramos dois tipos: descrições dos programas e delimitação do público-alvo. Não são elementos comumente utilizados, mas foram acionados em cinco e quatro planos, respectivamente. Todavia, merecem menção dada a precariedade geral das estruturas encontradas.
A descrição dos programas e/ou ações fornece mais clareza acerca da iniciativa, para além da apresentação dos objetivos e metas. O PPA de Porto Alegre, por exemplo, anunciava uma justificativa para cada programa; e para as ações, descrição e finalidade:
Programa: 171- Educação Nota 10
Justificativa: Atendimento da meta de cobertura da Educação Infantil estabelecida pelo Plano Nacional de Educação, de melhoria da qualidade no Sistema de Ensino Municipal e de qualificação da gestão da educação no Município de Porto Alegre.
[...]
Ação: 3019- Acesso à Educação Básica
Descrição: Prospecção, fomentação, gerenciamento e monitoramento de ações transversais com órgãos públicos, sociedade civil organizada, comunidade escolar e organismos nacionais e internacionais, que garantam o acesso e a permanência dos alunos na educação básica, por meio de parcerias e convênios firmados a partir do novo marco regulatório.
Finalidade: Ampliar e qualificar o atendimento da educação básica (Porto Alegre, 2017, p. 39-40).
Uma versão “menos amigável” encontramos no PPA de Cachoeirinha, o qual está fracionado em quatro arquivos: dois no formato word e dois em formato pdf. Os programas eram apresentados em quadros, nos quais, por vezes, os textos ficavam longos em relação ao espaço, dificultando a leitura. Neste caso, somente as ações receberam descrição. Ilustrativamente, uma das ações do Programa de Geração de Trabalho e Renda é descrita da seguinte forma: “Aquisição de máquinas, equipamentos, materiais permanentes e de consumo e demais necessários às atividades” (Cachoeirinha, 2017, p. 63).
Da mesma forma, no PPA de Campo Bom, as ações eram descritas de forma sucinta e redundante, por exemplo: na ação Iluminação em Prédios Públicos: “Melhorar a segurança pública com conservação do sistema de iluminação dos prédios próprios. Despesas com material de consumo, outras despesas correntes e com investimentos” (Campo Bom, 2017, p. 10).
Mesmo internamente a cada um desses PPAs, percebeu-se que não havia padronização das descrições. A título de exemplo: no PPA de São Jerônimo, algumas descrições de ações são cópias fiéis do objetivo do programa. No plano de Canoas, encontramos desde descrições que se assemelhavam a objetivos vagos: “Planejar, coordenar e executar as políticas de atendimento à comunidade” (Canoas, 2017, p. 154) até explicações com maior grau de coerência:
Esta ação consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. (Canoas, 2017, p. 156).
Em relação ao público-alvo, também havia falta de especificidade. No PPA de Esteio, os campos estavam preenchidos com a expressão “população em geral” ou “secretarias municipais”. Já nos planos de Rolante e Igrejinha, não havia tal definição para todos os programas e muitos também eram: “população da cidade de Rolante” ou “Município de Rolante”. O PPA de Porto Alegre mostrava diferentes públicos para cada programa, no entanto também recorreu ao recorte “população em geral” com frequência. Os dados demonstram que a delimitação de públicos/beneficiários para as políticas é tarefa ainda incipiente.
Considerações finais
Este estudo partiu da ideia de que a capacidade do Estado para concretizar objetivos, aceitos como socialmente relevantes, depende da qualidade de sua burocracia. Essa, no intuito de realizar tal tarefa, mobiliza recursos e relações para implementar ações cujo propósito é atender aos objetivos estipulados. Um primeiro movimento na direção desse esforço é a produção de planos como o PPA que recebeu destaque nesse estudo por ser o principal instrumento de planejamento dos entes federados e por ser uma exigência constitucional. Se o PPA é produto dos processos realizados pelas organizações burocráticas estatais, sua forma e conteúdo expressariam as capacidades instaladas, especialmente a administrativa. Sendo assim, tal documento permitiria uma aproximação analítica dessa dimensão da capacidade estatal.
Para analisar tais documentos, tomamos como critério os elementos essenciais que deveriam compô-los, conforme determinado em regras formais. Com isso, poderíamos avaliar a capacidade administrativa com base naquilo que é de competência obrigatória e recorrente do corpo burocrático. Os componentes obrigatórios investigados foram: diretrizes, objetivos, metas e indicadores, ao que acrescemos o diagnóstico territorial, tendo em vista sua centralidade no processo de planejamento.
Analisando os PPAs de 25 municípios da RMPA, encontramos um quadro crítico no que tange às capacidades administrativas locais. Verificou-se que apenas um dos municípios, Porto Alegre, ofereceu à sociedade um plano composto de todos os elementos obrigatórios. De forma geral, enquanto os objetivos e as metas foram os componentes mais presentes, indicadores, diretrizes e diagnóstico pouco foram acionados.
Essa constatação parece intrigante porque, processual e idealmente, objetivos e metas são elementos de operacionalização das diretrizes. Em outras palavras, as diretrizes são orientações gerais cuja consecução é o próprio objetivo do processo de planejamento. Assim, na ausência das diretrizes, o que estaria guiando os programas? No caso da escassez de indicadores, como é possível acompanhá-los e avaliá-los?
Dessa maneira, temos uma lacuna tanto no fundamento dos programas quanto na possibilidade de avaliação. Tal situação configura, do ponto de vista do desenho dos planos, um elevado grau de inconsistência, bem como limitações em termos de transparência, essas, ainda, reforçadas pela carência dos indicadores, que, por sua vez, indicam fragilidades em termos de gestão, já que sugerem negligência da tarefa de avaliação dos esforços, incentivando a utilização predatória dos recursos públicos.
Soma-se a isso a prática de mimetização de PPAs, percebida em três municípios, apontando e reproduzindo a precariedade discutida. Por fim, o fato de alguns municípios não garantirem acesso fácil aos documentos em suas páginas eletrônicas, demonstrando falta de transparência.
Com tudo isso, entende-se que as debilidades desses documentos refletem a baixa qualidade das burocracias instaladas, no que concerne à área de planejamento municipal. A qualidade dos planos permite corroborar as evidências encontradas na literatura: de que os PPAs exibem baixa eficácia. Ainda, averiguou-se que o tamanho do município não influenciou tal estado de coisas, ou seja, a qualidade dos planos dos municípios de médio porte populacional não se diferenciou daquela dos municípios de menor porte.
No que concerne ao debate sobre capacidades estatais e planejamento, pode-se concluir que ainda são incipientes os mecanismos e as tecnologias de planejamento nos entes subnacionais. Conforme apontado por Cardoso (2011), ao longo da história brasileira, a atividade de planejamento governamental ficou restrita à União e, a partir da Constituição, os municípios brasileiros passaram a ser responsáveis pela execução de suas respectivas peças de planejamento. Contudo, os entes municipais demonstraram baixas capacidades mesmo para cumprir com as exigências normativas mínimas. Tais achados incentivam futuras pesquisas, seja para replicar e testar a metodologia, seja para agregar evidências.