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A sustentabilidade fiscal e a oferta de serviços públicos: uma análise dos municípios brasileiros de pequeno porte

Financial sustainability and the provision of public: an analysis of small brazilian municipalities

Resumo

Em 2019, o Governo Federal enviou ao Senado a proposta de Emenda à Constituição nº 188/2019, denominada PEC do Pacto Federativo. Entre outras medidas, a PEC propõe incluir um dispositivo que obriga os municípios de até 5 mil habitantes a comprovar sua “sustentabilidade financeira”, definida como ter pelo menos 10% da receita total proveniente de impostos municipais. Tendo como universo de análise os pequenos municípios brasileiros, considerados de baixa sustentabilidade financeira, segundo os critérios estabelecidos pela PEC 188/2019, este trabalho busca avaliar o nível de eficácia da prestação de serviços públicos municipais, de modo a avaliar a real necessidade que justifica essa proposta de emenda. Como contraponto à avaliação meramente demográfica e/ou tributária foram analisados três indicadores de cobertura da prestação de serviços básicos tipicamente municipais: assistência social, cobertura de saúde e frequência escolar; os quais foram agrupados em um índice síntese denominado Índice de Qualidade de Serviços (IQS). Os resultados mostraram que os indicadores de cobertura dos serviços públicos analisados dos municípios com até 5 mil habitantes possuem desempenho similar aos demais municípios brasileiros, em muitos casos superior à média nacional, diferentemente do suposto na proposta de emenda constitucional. Boa parte dos municípios de pequeno porte populacional (população residente inferior a 5 mil) e de baixa razão de sustentabilidade fiscal (RSF menor que 10%) apresenta melhor desempenho na prestação de serviços públicos. As evidências apresentadas, ainda que preliminares, permitem que se questione a validade do critério de autonomia proposto pela PEC, considerando que as supostas eficiência e eficácia da gestão pública municipal não são resultado exclusivo da suposta “sustentabilidade financeira”.

Palavras-chave:
PEC 188/2019; Sustentabilidade Financeira; Serviços Públicos Municipais; Emancipações Distritais; Municípios Brasileiros de Pequeno Porte

Abstract

In 2019, the Federal Government sent to the Senate the proposal for Amendment to the Constitution No. 188/2019, called PEC of the Federative Pact. Among other measures, the PEC proposes to include a device that obliges municipalities with up to five thousand inhabitants to prove their "financial sustainability", defined as having at least 10% of the revenue total from municipal taxes. This work seeks to assess the municipal level of effectiveness in providing public services and the real need that justifies this proposed amendment, having the small Brazilian municipalities considered of low financial sustainability according to the criteria established by PEC 188/2019 as the universe of analysis. In contrast to the purely demographic and/or tax assessment, three indicators of typically municipal services were analyzed: social assistance, health coverage and school attendance. The three indicators were indexed into groups with Service Quality Index (SQI) for each one. The results show that the public service indicators in municipalities with up to 5,000 inhabitants have similar or, in many cases, even higher performance than the Brazilian municipalities average. The evidence presented allows us to question the validity of the criterion proposed by the PEC, considering that the supposed efficiency and effectiveness in municipal public management is not an exclusive result of the supposed financial sustainability. In conclusion, it seems to be another form of political control manifestation over federative entities.

Keywords:
Proposal for Amendment to the Constitution 188/2019; Financial Sustainability; Municipal Public Services; District Emancipations

Introdução

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1990) restaurou o Estado Federal brasileiro após um longo período de regime militar, marcado por um presidencialismo autoritário que praticamente desfigurou o federalismo do país. A Carta Magna de 1988 estruturou uma forma de federalismo de equilíbrio ao conferir maior autonomia política e financeira aos estados federados, o que pressupõe uma repartição de competências administrativas, tributárias e legislativas (Torres, 2014Torres, M. L. (2014) A divisão da competência legislativa entre os entes federados. Conteúdo Jurídico [Artigo on-line]. Obtido em 31 julho 2017, de http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39639/a-divisao-da-competencia-legislativa-entre-os-entes-federados
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). Foi garantida, pela Constituição Federal de 1988, entre outros aspectos, a autonomia municipal, a eleição direta para prefeitos e vereadores e o poder de legislar sobre assuntos de interesse local, de elaborar a própria Lei Orgânica, de instituir e arrecadar impostos e taxas, de receber por transferência parte da receita de impostos dos estados e da União, de prestar serviços públicos, de criar distritos e de zelar pelo uso adequado do solo urbano, além de outras atribuições (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2011). Ainda de acordo com o IBGE (2011, p. 3), a Constituição “delegou aos estados federados a competência para legislar acerca dos requisitos mínimos necessários à criação de novos municípios. Essas leis, estabelecidas no legislativo estadual, em sua maioria complementares às constituições estaduais, determinam valores mínimos de referência, tais como: de população, que variam de 1.500 habitantes no Acre até 10 mil no Pará e em Pernambuco; de eleitores; e de renda, como os cinco milésimos de arrecadação tributária estadual exigidos por Tocantins, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul”.

De acordo com Tomio (2002Tomio, F. R. de L. (2002). Criação de municípios após a Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17(48), pp. 61-89. DOI: 10.1590/S0102-69092002000100006
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200200...
, p. 61), “a redefinição da competência política dos entes federativos notabilizou-se pela ampliação do escopo de atuação dos estados e municípios, que conquistaram a mais ampla autonomia política da história republicana”. Outra mudança institucional que favoreceu a de ampliação da autonomia política entre os entes da federação foi o novo arranjo tributário e fiscal, ocorrido por meio do processo de descentralização fiscal, iniciado já em meados dos anos de 1970.. A a nova Constituição, fruto do processo de democratização do país, consolidou a oferta de recursos fiscais e as competências tributárias de estados e municípios (Tomio, 2002), o que significou, dentre outros aspectos, que os constituintes atribuíram aos estados-membros o poder de legislarem sobre o tema das emancipações distritais, embutido no § 4º do Art. 18 da Constituição Federal de 1988. Essa brecha constitucional estimulou lideranças políticas distritais a uma forte corrida emancipacionista em diferentes estados da federação.

Para Siqueira (2003Siqueira, C. G. (2003) Emancipação municipal pós-Constituição de 1988: um estudo sobre o processo de criação dos novos municípios paulistas. Dissertação de Mestrado não publicada, Curso de pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.), dois fatores político-institucionais foram determinantes para impulsionar as emancipações no Brasil no final do século passado: 1) o novo status adquirido pelos municípios, com a garantia de transferência de recursos financeiros; e 2) uma legislação estadual permissiva, o que facilitou as emancipações distritais por meio de regras facilitadoras. Ainda de acordo com a autora, a combinação desses fatores foi fundamental para deflagrar o surto emancipacionista no país1 1 Estudo realizado com a população dos municípios criados após a Constituição de 1988 indicou que as principais razões para a criação de municípios eram: “o descaso da administração do município de origem (54,2% dos casos); a existência de uma forte atividade econômica local (23,6%); a grande extensão territorial do município de origem (20,8%); e o grande aumento da população local, apontado por 1,4% dos municípios emancipados” (Bremaeker, 1996, p. 4). ; só em 1989 foram criados 300 novos municípios. Esse boom emancipatório provocou uma reação política que levou o Congresso Nacional a editar a Emenda nº 15, de 1996, a qual estabeleceu novas exigências que deveriam constar na legislação federal, deixando de fora alguns distritos pleiteantes, como o Brejo do Amparo, atual distrito do município de Januária, em Minas Gerais. Conforme o texto da própria Emenda,

A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei (Emenda Constitucional n. 15, 1996).

Esse dispositivo legal teve sucesso em frear a corrida emancipatória no país. Contudo, o debate sobre a autonomia financeira e tributária dos municípios, especialmente no que diz respeito à política de responsabilidade fiscal, fez suceder uma série de propostas, algumas substancialmente restritivas. No findar do ano de 2019, o Governo Federal enviou ao Senado a Proposta de Emenda à Constituição nº 188/2019, denominada publicamente de PEC do Pacto Federativo, a qual, entre outras modificações, propõe o acréscimo do Art. 115 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, obrigando os municípios de até 5 mil habitantes a comprovar, até o dia 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira. Segundo o texto da PEC, a sustentabilidade financeira do município seria atestada mediante a comprovação de que o respectivo produto da arrecadação dos impostos municipais correspondesse a, no mínimo, dez por cento da sua receita corrente total. Caso não comprovasse a sua sustentabilidade financeira, o município seria incorporado, a partir de janeiro de 2025, a algum dos municípios limítrofes (Proposta de Emenda à Constituição nº 188, 2019).

A medida, planejada pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, desagradou profundamente os prefeitos dos pequenos municípios brasileiros, o que estimulou a reação do movimento “municipalista”, incluindo aquele encabeçado pela Confederação Nacional dos Municípios (Aroldi, 2019Aroldi, G. (2019, 6 de novembro). Nota sobre a proposta do governo federal de extinção de Municípios. Confederação Nacional de Municípios - CNM [Texto on-line]. Obtido em https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/nota-sobre-a-proposta-do-governo-federal-de-extincao-de-municipios
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), tendo reflexos importantes no cenário político nacional. Dado o suposto impacto que o corte do número de municípios brasileiros poderia causar à economia e ao tecido social destes municípios, a PEC nº 188/2019 tem sido comumente denominada de “PEC do Facão”. Para determinados setores políticos, a “PEC do Facão” é considerada o contra-ataque do Governo Federal - a arma utilizada para conter e reverter a corrida emancipacionista no Brasil e aumentar o poder político central. De fato, as emancipações distritais2 2 “Distrito é a subdivisão do município e autoridade administrativa, judicial, fiscal e policial, além de constituir cartório. Possui como sede uma área urbana, denominada vila, e uma área rural, intitulada ‘povoações isoladas’” (FJP, 2017). estavam represadas desde 1996, quando o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 15, a qual incluía, entre outras alterações, a exigência do estudo de viabilidade municipal, cuja regulamentação ficou dependente de lei complementar (Emenda Constitucional n. 15, 1996). Essa emenda foi inclusive objeto de uma tentativa de regulamentação pelo Congresso Nacional em 2013 (projeto de Lei Complementar 416/2008), que terminou com o veto da ex-presidente Dilma Rousseff (Nunes, 2017Nunes, M. A. (2017). Criação de municípios no Brasil: motivações, vantagens e desvantagens. Revista Espinhaço, Diamantina, 6(1), pp. 11-20. DOI: 10.5281/zenodo.3956594
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).

O cenário que hoje se descortina é completamente diferente daquele verificado no final do século passado. Em vez de vetar a criação de novos entes, o Governo Federal visivelmente quer reduzir o número de municípios com a finalidade exclusiva de conter despesas, sem a preocupação com o desempenho em termos de supostos benefícios sociais decorrentes das emancipações recentes, que permitiram a criação de municípios de pequeno porte e com baixo nível de arrecadação de receita própria.

Cabe, contudo, trazer à tona algumas questões que devem ser objeto de análise e reflexão mais profundas antes de qualquer medida de natureza mais invasiva e autoritária. Esses municípios pequenos, com baixo nível de arrecadação tributária própria (“insustentabilidade financeira”), também apresentam baixo nível de qualidade na prestação de serviços públicos de competência municipal? E, se isso for um fato, qual é a real proporção daqueles que foram emancipados recentemente (pós-Constituição de 1988)? Sobre este aspecto, alguns estudos já demonstraram ter havido melhorias sociais na maioria desses municípios recém-emancipados, tais como Klering (1998Klering, L. R. (1998). Experiências recentes em municípios brasileiros: os novos municípios e as conquistas da autonomia. Em Fachin & Chanlat (Organizadores). Governo municipal na América Latina: inovações e perplexidades (pp. 248-265). Porto Alegre: Editora da Universidade/Editora Sulina.), Magalhães (2007Magalhães, J. C. (2007). Emancipação político-administrativa de municípios no Brasil. Em Carvalho, A. X. Y., Albuquerque, C. W., Mota, J. A., & Piancastelli, M. (Organizadores). Dinâmica dos municípios (pp. 13-52). Brasília: IPEA.), Wanderley (2008Wanderley, C. B. (2008). Emancipações municipais mineiras ocorridas na década de 90: estimativa de seus efeitos sobre o bem-estar social. Em Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas - CEDEPLAR (Organizador). Anais do XIII Seminário Sobre Economia Mineira (pp. 1-25). Diamantina, MG: Cedeplar, UFMG.), Nunes & Garcia (2014Nunes, M. A., & Garcia, R. A. (2014). Emancipações distritais em Minas Gerais na década de 1990 e suas relações com o fluxo migratório das mesorregiões mineiras. Em Cedeplar - Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (Organizador). Anais do XVI Seminário Sobre a Economia Mineira, Diamantina (pp. 16-20). Diamantina, MG: UFMG/Cedeplar.) e Nunes, Lobo e Garcia (2020)3 3 Embora não seja objeto de análise deste artigo, o trabalho de Martins, Matos e Lobo (2020) demonstram o papel relevante da retenção de população dos pequenos municípios do Sudeste brasileiro. Nesta mesma obra, nota-se que, para esses autores, os municípios de pequeno porte são imponentes em relação ao comportamento demográfico regional. Tal fato expressa a relevância da interiorização da urbanização brasileira e indica novos comportamentos regionais. . Muitos municípios, por exemplo, realizaram obras de infraestrutura básica e passaram a ofertar serviços públicos até então ausentes ou precários. A propensão para se endividarem foi uma grande vantagem para os municípios recém-criados nas condições postas pela legislação anterior, uma vez que não havia necessidade de nenhum ressarcimento ao município que lhe deu origem (Nunes, 2017).

Como sugerido por Leal (1997Leal, V. N. (1997). Coronelismo, enxada e voto. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), as emancipações distritais podem representar uma nova forma de “coronelismo”. Vale recordar que muitas ações políticas tipicamente clientelistas, que foram utilizadas desde a República Velha, persistem como um “coronelismo”, caracterizando a evolução política do nosso povo (Leal, 1997). Apesar de o Estado brasileiro ter se fortalecido, ainda se verifica uma espécie de poder residual dos coronéis que se manifesta nas municipalidades onde as estruturas agrárias arcaicas sobrevivem. Todavia, conforme advertiu Bursztyn (2003Bursztyn, M. (2003). O poder dos donos, 20 anos depois... ou a incrível e triste história das populações desfavorecidas e suas elites desalmadas. Raízes, 22(01), pp. 73-79.) a despeito da perda de hegemonia política de alguns velhos coronéis, o clientelismo se regenerou por meio de novos pactos, quando uma tecno-burocracia, vinculada ao poder público, substituiu representantes históricos do latifúndio. O poder não está atrelado ao patrimônio, como no velho coronelismo, mas ao caráter de operadores de ações governamentais, o que resultava em um novo assistencialismo. Nas palavras desse mesmo autor: “estava aberto o campo para o surgimento de políticos que serviriam de base local ao fundamento da legitimidade do poder central e regional [...]” (Bursztyn, 2003, p. 75). Justamente essa elite local, que se mobilizou pelo clamor emancipacionista em várias regiões do país, utilizou-se da mesma retórica assistencialista dos velhos coronéis. Assim, as populações tenderiam a buscar formas de representação política mais modernas, testemunhas de que o espaço do coronelismo não é incompatível com arranjos econômicos modernos (Bursztyn, 2003).

O fato é que as ondas emancipacionistas das décadas de 1950, 1960 e 1990 ampliaram muito o número de pequenos municípios. De acordo com dados apurados por Magalhães (2007Magalhães, J. C. (2007). Emancipação político-administrativa de municípios no Brasil. Em Carvalho, A. X. Y., Albuquerque, C. W., Mota, J. A., & Piancastelli, M. (Organizadores). Dinâmica dos municípios (pp. 13-52). Brasília: IPEA.), em 1940, apenas 2% dos municípios brasileiros possuíam menos de 5 mil habitantes. Em 2000, esse número passou para 24,1%. Somente entre 1984 e 2000 foram instalados 1.405 novos municípios no Brasil, em sua grande maioria (94,5%) com menos de 20 mil habitantes.

Paralelamente à ampliação das competências municipais em um primeiro momento, logo após a Constituição de 1988, o volume de recursos disponíveis para os municípios também aumentou. Segundo dados organizados por Affonso (1996Affonso, R. (1996). Os municípios e os desafios da federação no Brasil. São Paulo em perspectiva, 10(3), pp. 3-10.), a participação dos municípios na receita disponível (incluindo as transferências) cresceu de 9%, em 1980, para 15%, em 1994, o que em valores totais é ainda mais elevado, considerando o contexto de ampliação da carga tributária em relação ao PIB durante esse período. Dados mais recentes, organizados e publicados por Afonso e Castro (2019Afonso, J. R. R., & Castro, K. P. (2019). Carga Tributaria Brasileña en perspectiva histórica: estadísticas revisadas. Revista de Administración Tributaria, (45), pp. 139-154.), mostram que a partir da década de 1990 se mantém a tendência de crescimento da participação da carga tributária no PIB, que passa de valores próximos a 27%, entre 1995 e 1998, para 33%, na média do período 2009-2017. Trata-se de um aumento justificado pela necessidade do ajuste fiscal na década de 1990 e da ampliação das políticas sociais já na primeira década do século XXI (Monteiro Neto, 2014Monteiro Neto, A. (2014). Governos Estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações do cenário atual. Em Monteiro Neto, A. (Organizador). Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações governativas em debate. Brasília: IPEA.). Nesse contexto de crescimento do bolo tributário, a participação dos municípios na carga tributária amplia para dois pontos percentuais, de 5%, entre 1995-1998, para 7%, entre 2009-2017. Como resultado, o aumento da participação dos municípios na receita disponível passa a ser ainda mais significativo, de 15%, nos anos de 1993 e 1994, para 20%, no período mais recente, 2014-2017. Entretanto, os dados da evolução da participação dos municípios na receita disponível não contam toda a história. O próprio descompasso entre a participação na arrecadação direta e o total da receita está na base dos conflitos federativos em torno da questão tributária no Brasil. As definições sobre quem taxa, quem gasta e como gasta deslocam as disputas federativas da tributação para o sistema de transferências fiscais (Arretche, 2005Arretche, M. (2005). Quem taxa e quem gasta: a barganha federativa na Federação brasileira. Rev. Sociol. Polít., (24), pp. 69-85. DOI: 10.1590/S0104-44782005000100006
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).

A evolução do conflito federativo em torno da questão tributária no período pós-88, refletida em emendas constitucionais apresentadas e aprovadas no período, foi resumida por Angela Moulin Simões Penalva Santos em quatro grandes momentos: o primeiro, entre 1989 e 1995, quando a autonomia prometida pela constituinte foi experimentada, com elevação das receitas, principalmente via transferências; o segundo, entre 1995-2002, quando se registrou a recuperação da participação da União na partilha da arrecadação via elevação dos tributos não partilháveis e ampliação das transferências voluntárias, ou pelos chamados recursos carimbados, negociados caso a caso, que reduzem a autonomia dos municípios na execução das receitas; o terceiro, período de 2003 a 2010, descrito pela autora como um momento de manutenção do fortalecimento institucional da União, com forte ampliação do investimento social, que passa a assumir o papel de coordenação federativa e mantém o controle sobre o desenho de programas com execução direta pelos municípios, mediante adesão “voluntária” e fundos vinculados; e, por fim, o quarto período, de 2011 a 2016, quando se destaca o impacto da crise econômica no comprometimento do gasto social.

O resultado desse percurso histórico foi a significativa perda de autonomia financeira dos municípios, com sucessivas mudanças constitucionais que levaram ao declínio das principais fontes de alocação livre (Santos & Nazaré, 2017Santos, A. M. S. P., & Nazareth, P. A. (2017). Crise fiscal e seus impactos nas relações interfederativas: o caso dos municípios fluminenses. Geo UERJ, (31), pp. 1-33. DOI: 10.12957/geouerj.2017.32055
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). Para as autoras, essas mudanças, orientadas por uma visão pessimista sobre a governabilidade e a insuficiência de escala dos municípios, levaram a uma grave crise de ordem estrutural, na qual a descentralização comprometeu a autonomia municipal, muito além de suas capacidades técnica e financeira, que se manifestam de forma desigual no território, considerando a elevada disparidade horizontal. Apenas alguns dos municípios com maior peso demográfico e econômico, que possuem uma forte base de arrecadação urbana e industrial, conseguiram de fato se beneficiar da condição de ente federativo, conseguindo ser protagonistas de políticas públicas. Na grande maioria dos pequenos municípios com menos de 50 mil habitantes e de base econômica rural, o FPM continuou sendo o principal componente das receitas, e a dependência das transferências não permitiu que grande parte desses casos fosse capaz de usufruir da autonomia prometida pela Constituição de 1988 (Santos, 2011; Santos & Nazareth, 2017). É nesse contexto de fragilidade da autonomia fiscal e financeira municipal que se insere a proposta da PEC 188/2019. Novamente, sob os argumentos de eficácia administrativa, propõe-se eliminar de vez a sonhada autonomia do terceiro e mais frágil ente federativo.

Desconsiderando a complexidade do debate e o caráter territorialmente desigual do desenvolvimento brasileiro, a PEC 188/2019 se ampara no argumento raso da necessidade de ajuste fiscal e redução do gasto público, propondo uma solução drástica: extinguir a autonomia constitucional desses entes federativos - tidos como “insustentáveis financeiramente”. Como era de se esperar, a proposta de extinção dos pequenos municípios, presente na PEC, foi muito mal recebida pelas entidades municipalistas. Em nota, a CNM apresentou uma série de argumentos contrários à proposta, sintetizando a posição defendida pelos municipalistas: observa que 82% dos municípios brasileiros, independentemente do seu porte populacional, não conseguem superar o limite de 10% de receitas próprias e lembra ainda o conceito de arrecadação própria utilizado na PEC, que desconsidera a inserção dos pequenos municípios no sistema tributário nacional. As transferências constitucionais, previstas pela Constituição Federal e provenientes de tributos arrecadados pela União e pelos estados, em parte incidente sobre atividades desenvolvidas no território do próprio município, inserem-se no conceito do Pacto Federativo e, de fato, pertencem aos municípios e à população local, pois, no contexto do Pacto Constitucional, são um instituto de redistribuição de recursos e redução das desigualdades regionais. Por esses motivos, a CNM entende que uma proposta de avaliação da eficiência dos municípios deve considerar a qualidade dos serviços públicos prestados (Aroldi, 2019Aroldi, G. (2019, 6 de novembro). Nota sobre a proposta do governo federal de extinção de Municípios. Confederação Nacional de Municípios - CNM [Texto on-line]. Obtido em https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/nota-sobre-a-proposta-do-governo-federal-de-extincao-de-municipios
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).

Afora as particularidades do conflito em torno do formato das transferências e da autonomia dos municípios na execução das receitas no contexto do modelo federativo brasileiro, convém reposicionar a questão em torno da necessidade da PEC 188/2019 segundo outro ponto de vista, menos focado na questão fiscal e mais interessado na efetividade das políticas públicas: os pequenos municípios são de fato ineficientes e/ou incompetentes no que se refere à prestação de serviços públicos, contribuindo para a ampliação desnecessária do gasto público?

É longa a discussão no Brasil sobre essa questão. Gasparini & Miranda (2006Gasparini, C. E., & Miranda, R. B. (2006). Transferências, equidade e eficiência municipal no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas (PPP), (36), pp. 311-349. Obtido em 7 abril, 2022, de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3986/10/PPP_n36_Transferencias.pdf
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), por exemplo, mostram que há um déficit de serviços públicos nos municípios com até 20 mil habitantes combinado com maiores ineficiências de gastos públicos. Entretanto, como alerta Magalhães (2007Magalhães, J. C. (2007). Emancipação político-administrativa de municípios no Brasil. Em Carvalho, A. X. Y., Albuquerque, C. W., Mota, J. A., & Piancastelli, M. (Organizadores). Dinâmica dos municípios (pp. 13-52). Brasília: IPEA.), a avaliação da eficácia administrativa dos pequenos municípios, inclusive no que se refere à prestação de serviços públicos, não é uma tarefa trivial. Muitas das metodologias utilizadas não incorporam importantes dimensões do processo, como a dimensão geográfica, que implicaria inserir nos modelos de análise a questão do custo diferenciado da prestação de serviços públicos essenciais em territórios de baixa densidade populacional. Além disso, também não são considerados os efeitos indiretos da transferência de recursos dos grandes municípios para os de pequeno porte, que contribuem para reduzir a migração em direção aos grandes centros urbanos e, consequentemente, os impactos sociais nas áreas de destino. Por outro lado, a simples responsabilização dos pequenos municípios pelos resultados negativos das políticas públicas executadas também não é tão simples. Como explicam Arretche, Vazquez e Gomes (2012Arretche, M., Vazquez, D., & Gomes, S. (2012). As relações verticais na federação: explorando o problema da descentralização e da autonomia. Em Arretche, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil (pp. 145-172). Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora FIOCRUZ.), a atribuição de execução de políticas, garantida na Constituição, não representa a autonomia necessária a essas mesmas atribuições, sendo os municípios brasileiros muito dependentes da regulação federal, o que fatalmente limita a autonomia decisória dos pequenos municípios. Portanto, parte do insucesso destes na implementação de políticas públicas pode ser atribuída aos governos estadual e federal, que, em muitos casos, são os responsáveis pelo desenho e direcionamento de recursos para os programas executados.

Considerando esse contexto, busca-se neste artigo identificar os municípios brasileiros que se enquadram nos critérios estabelecidos pela PEC 188/2019, além de avaliar a suposta eficiência/eficácia desses entes na prestação de serviços básicos nas áreas de assistência social, de atenção básica à saúde e da educação infantil, que são consideradas prerrogativas municipais, conforme a própria Constituição Federal. A pergunta que guia o estudo é: comparando-se o padrão nacional em relação a outros grupos de municípios no que se refere a tamanho de população e nível de arrecadação tributária própria, é melhor ou pior do que a qualidade na prestação dos serviços públicos de municipalidades de menor porte, com alto nível de dependência de repasses federais/estaduais, o que representa uma baixa Razão de Sustentabilidade Fiscal (RSF)? Para além da origem dos recursos, acredita-se que o mais relevante seja a conversão de receitas na forma de serviços públicos, cujo propósito é a melhoria nas condições de vida da população. Assim, busca-se fornecer evidências que ofereçam subsídios mais concretos para um debate mais qualificado sobre a temática municipalista brasileira e apresentar alternativas à simples lógica do “facão”, que no limite reza pela (re)incorporação de municípios aos seus vizinhos contíguos com o propósito aparentemente exclusivo de conter gastos públicos, via contenção de transferências de recursos.

Metodologia

A metodologia empregada nesta pesquisa pode ser dividida em três etapas sequenciais e complementares, conforme descrito a seguir.

1ª Etapa: identificação do grupo de municípios diretamente afetados pela PEC 188/2019, que incluem aqueles de pequeno porte demográfico, população inferior a 5 mil habitantes, e de baixa Razão de Sustentabilidade Fiscal (RSF), menor do que 10% de arrecadação própria (decorrente do ISS, IPTU e ITBI). Para o primeiro recorte foram utilizados os dados de estimativas populacionais do RIPSA/IBGE para 2015, disponibilizados pelo DATASUS. Os dados sobre as receitas municipais foram disponibilizados pelo Tesouro Nacional na plataforma do FINBRA/SICONFI. Para o cálculo da chamada RSF, considerou-se o somatório da participação da receita tributária própria (ISS, IPTU e ITBI) sobre a receita corrente total. Para as variáveis referentes às finanças municipais foram consideradas as médias para os anos de 2013 a 2015 como forma de amenizar o efeito decorrente dos valores ausentes e atípicos da base de dados originais, inclusive de receitas extraordinárias, aumentando assim a consistência geral dos dados. A seleção de filtro duplo (tamanho de população e RST) permitiu identificar no país um total de 1.211 municípios, como representado na Figura 1, suscetíveis à chamada “PEC do Facão”. Em sua maioria, esses municípios estão localizados nos estados do Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, com mais de 200 casos cada um. Também chama a atenção a alta frequência em São Paulo e Santa Catarina (ambos com mais de 100 municípios). Em termos regionais, o Sul do país é aquele com maior volume, com 416 casos - o que representa 34,35% dos municípios nessa condição. Já o Sudeste compreende 29,81% dos casos.

Figura 1
Municípios do Grupo A, de pequeno porte demográfico (população menor que 5 mil habitantes) e baixa Razão de Sustentabilidade Fiscal (inferior a 10%), Brasil, 2015.

2ª Etapa: proposição do Índice de Qualidade de Serviços Municipais (IQS), que inclui as dimensões assistência social, cobertura de saúde e frequência escolar. O IQS foi calculado com base em três indicadores de serviços públicos, utilizados para avaliar a eficiência dos municípios na execução de políticas públicas de sua atribuição, quais sejam: 1) Índice de Gestão Descentralizada do Sistema Único de Assistência Social - IGDSUAS; 2) Razão de frequência à pré-escola (0 a 4 anos); e 3) Cobertura populacional estimada pelas equipes de Atenção Básica à Saúde (descrita no Quadro 1). Considerando a disponibilidade de dados, esses indicadores abarcam as principais áreas sociais, alvo dos serviços públicos (assistência, educação e saúde), em programas cuja execução é de responsabilidade direta do município, como definido no texto constitucional. Para evitar a influência da atuação dos estados em políticas compartilhadas de saúde e educação, optou-se por considerar apenas a cobertura do programa de atenção básica à saúde e à educação infantil4 4 Para o cálculo da cobertura da pré-escola, considerou-se o somatório das matrículas nas redes pública e privada. . Nos demais níveis de atenção à saúde (média e alta complexidades), os pequenos municípios são dependentes da oferta de serviços em polos regionais, assim como a oferta do Ensino Fundamental é compartilhada com o estado, sendo o Ensino Médio exclusividade deste. O IQS foi obtido pela média simples dos três indicadores utilizados padronizados (convertidos na escala de 0 a 1). Quanto mais próximo a 1, melhor a qualidade do serviço prestado. Trata-se, portanto, de um indicador agregado que sintetiza a capacidade de os municípios analisados proverem serviços públicos de responsabilidade da gestão local.

Quadro 1
Relação de dimensões e indicadores utilizada para cálculo do IQSM

3ª Etapa: classificação e agrupamento dos municípios brasileiros, estabelecidos conforme tamanho de população e RSF. Além do grupo de municípios de pequeno porte populacional (população inferior a 5 mil) e de baixa RSF (menor do que 10%), que é o objeto central de análise deste trabalho - e aqui denominado de “Grupo A”-, também foram discriminados os seguintes agrupamentos municipais: “Grupo B” (população inferior a 5 mil, e RSF maior do que 10%), “Grupo C” (população superior a 5 mil, e RSF menor do que 10%) e “Grupo D” (população superior a 5 mil, e RSF maior do que 10%). A Figura 2 representa graficamente esses quatro grupos de municípios, cuja similaridade demográfica ocorre nos grupos B e D, e, na dimensão fiscal, nos grupos A e C.

Figura 2
Grupos de municípios conforme Razão de Sustentabilidade Fiscal (RSF) e tamanho de população residente, Brasil, 2015.

O estabelecimento desses agrupamentos permitiu, auxiliado pela análise das Figuras 3 e 4, a comparação do desempenho dos respectivos grupos para cada um dos indicadores utilizados, bem como no IQS, que representa a qualidade dos serviços públicos municipais de forma agregada. Nos cartogramas expostos nas Figuras 5 e 6, além de demonstrarem a distribuição espacial do desempenho em cada indicador e no IQS conforme os agrupamentos de municípios A, B C e D, também é possível a comparação dos serviços prestados nesses municípios com as medidas de tendência central, uma vez que as classes têm como parâmetro a média nacional. Para todos os cartogramas, o limite superior da primeira classe discrimina os municípios com valores de IAS, ICS, IFE e IQS menores do que a média para todos os municípios do país. Especificamente para o Grupo A, também foram representados, por meio das Figuras 7 e 8, os municípios instalados antes e depois da Constituição de 1988, com o propósito de avaliar se há discrepâncias entre o desempenho entre os mais antigos e aqueles recém-criados.

Resultados e discussões

Conforme análise da Figura 3, que representa os valores IAS, ICS e IFE, não há sensíveis diferenças entre os grupos de municípios quando comparados às médias referentes aos três indicadores utilizados. Na verdade, para a Cobertura de Saúde e Frequência Escolar, os valores de ICS e IFE do Grupo A, que incluem os municípios de pequeno porte e de baixa sustentabilidade tributária, são em geral maiores do que os demais grupos. Em relação ao índice de Assistência Social, os municípios do Grupo A têm desempenho pior apenas quando comparados àqueles maiores demograficamente, ainda que também sejam de baixa sustentabilidade tributária (Grupo C). A análise dos indicadores agregados corrobora esse quadro relativamente favorável dos municípios menores demograficamente, com menor valor de RST. O boxplot, exposto na Figura 4, que representa os valores do IQS, conforme agrupamentos de municípios, permite observar que o desempenho desse grupo na prestação de serviços públicos é superior aos demais grupos, ainda que sejam praticamente indistintos estatisticamente. Parece, portanto, avaliando esses padrões gerais de distribuição de frequência por agrupamentos, não haver uma relação direta entre o suposto grau de sustentabilidade tributária e a qualidade na prestação de serviços municipais.

Figura 3
Boxplots, Assistência Social (IAS), Cobertura de Saúde (ICS), Frequência Escolar (IFE) e Índice de Qualidade dos Serviços (IQS), conforme Grupos de municípios, Brasil, 2015.

Na verdade, observa-se uma grande variabilidade na qualidade de prestação desses serviços nos municípios de baixa RST, especialmente no que se refere aos indicadores de cobertura de saúde e frequência escolar (os desvios em relação à média são maiores, e os outliers mais frequentes). No caso específico da cobertura de saúde, nos municípios dos grupos A e B, que envolvem aqueles com população inferior a 5 mil habitantes, o valor modal de ICS é igual a 1, o que significa plena cobertura desse serviço público. Aqueles municípios maiores demograficamente, independentemente da RST, dados os desafios inerentes a atender plenamente uma população maior, com alto nível de desigualdade social e econômica, apresentam indicadores médios menos favoráveis de cobertura, com alta discrepância interna de valores. Além disso, municípios maiores costumam atender à população de municípios vizinhos, pois estes não são cobertos por determinadas especialidades médicas, sobrecarregando consequentemente os maiores.

Figura 4
Boxplot, Índice de Qualidade dos Serviços (IQS), conforme Grupos de municípios, Brasil, 2015.

Os cartogramas expostos na Figura 5 permitem observar que a elevada frequência de casos com indicadores de assistência social, cobertura de saúde e frequência escolar é superior à média nacional. Nos casos da assistência social e frequência escolar, eram 537 e 546 municípios, respectivamente, apresentando valores menores do que a média. No caso da cobertura de saúde, isso é ainda menos comum. Apenas 58 municípios tinham IFE inferior ao padrão do país (o que corresponde apenas a menos de 5% dos municípios do Grupo A). Cabe ainda destacar que essa condição relativamente favorável acomete municípios em todas as regiões do país, inclusive em regiões como o Nordeste e Centro-Oeste. No caso do Norte, esse quadro é mais frequente no estado de Tocantins. Os valores de IQS confirmam o desempenho favorável do Grupo A. Um total de 798 municípios, que representa 65,90% desse grupo, apresentaram IQS maior do que a média brasileira. Desses, 210 municípios apresentaram IQS superior a 0,78 (equivalente à média mais um desvio padrão), o que caracteriza uma condição altamente positiva (Figura 6).

Figura 5
Municípios do Grupo A, segundo desempenho nos índices de Assistência Social (IAS), Cobertura de Saúde (ICS) e Frequência Escolar (IFE), Brasil, 2015.

Figura 6
Municípios do Grupo A, segundo desempenho no Índice de Qualidade de Serviços (IQS), Brasil, 2015.

Como representado pela Figura 7, dos 1.211 municípios que integram o Grupo A, 622 foram criados após a Constituição de 1988 (o que corresponde a 51,36%), especialmente em três picos de emancipações: 1989, 1993 e 1997. A comparação entre o período de instalação dos municípios desse Grupo também não sugere diferenças relevantes na qualidade dos serviços públicos prestados. Os valores de IQS, quando comparados aos recém-criados (após 1988), são similares, tanto em média como na característica de distribuição. Na realidade, nota-se inclusive maior frequência de casos com maiores valores de IQS nos entes emancipados recentemente, ainda que a variabilidade seja relativamente alta nos dois grupos. Não há, portanto, comparados esses grupos, uma relação de encadeamento entre o tempo do processo emancipatório, que supostamente culminaria na criação de municípios de pequeno porte, baixa sustentabilidade fiscal baixa qualidade na prestação de serviços. A eficácia e a eficiência desses serviços, condicionadas aos arranjos políticos e às condições econômicas vigentes, parecem associadas às decisões da administração municipal, independentemente da origem das receitas, sejam elas tributárias ou não.

Figura 7
Ano de instalação dos municípios do Grupo A, Brasil - 1939 a 2005.

Figura 8
Distribuição de frequência dos municípios do Grupo A, de acordo com Índice de Qualidade de Serviços (IQS) e ano/período de instalação.

Considerações finais

Aqui, foi apresentada, ainda de forma exploratória e restrita a um recorte temporal específico, uma proposta metodológica que permite a análise e a avaliação da qualidade de prestação de serviços públicos dos pequenos municípios, para além exclusivamente do suposto critério de sustentabilidade fiscal, estabelecida no texto da PEC 188/2019. Buscou-se contrapor o discurso restrito do critério tributário, atrelado a uma suposta sustentabilidade fiscal, à análise de eficiência e eficácia na qualidade dos serviços públicos municipais. Mesmo que a proposta baseada em apenas três indicadores de serviços - assistência social, cobertura de saúde e frequência escolar, os quais são de competência constitucional dos municípios, conforme definido no Art. 30 -, os resultados apresentados fornecem indícios razoavelmente consistentes sobre a capacidade de gestão municipal de um amplo conjunto de municípios de pequeno porte, mesmo no que se refere a limites tributários decorrentes de baixa arrecadação fiscal.

Em geral, os resultados permitem observar que, entre os 1.211 municípios com até 5 mil habitantes, que não superam o limiar de 10% de participação da receita própria em 2015, boa parte apresentou desempenho similar ou superior à média nacional na prestação de serviços públicos. Se analisarmos apenas o comportamento do IQS, 798 municípios, o que representa mais de 65% do Grupo A, apresentaram valores maiores do que a média geral, o que sugere uma condição relativa não desfavorável. Parece, portanto, que a suposta não sustentabilidade fiscal não tem relação direta com valores mais baixos de IQS.

Os indicadores apresentados neste artigo demonstram a importância de se avaliar o desempenho dos pequenos municípios na prestação de serviços públicos para além da mera dependência das transferências governamentais via arrecadação tributária. Afora essa condição, pode-se ainda supor que o espraiamento dessas estruturas administrativas no território seja um importante elemento de promoção da democracia e de maior participação dos cidadãos nas decisões de políticas locais, rumo a uma maior eficiência e eficácia no uso dos recursos públicos e promoção do bem-estar social, que deve ser o fim a que os serviços públicos se destinam. Se o objetivo não for apenas reduzir gastos, via controle fiscal, mas sim aumentar a capacidade e efetividade do gasto público, a solução talvez não seja a extinção ou fusão de municípios, mas ampliar as capacidades e competências administrativas locais ou mesmo uma reforma tributária, de modo que uma gestão descentralizada dos recursos públicos possa promover mais benefícios sociais e ampliar a qualidade dos serviços públicos prestados.

Os argumentos a favor de uma suposta sustentabilidade fiscal como condição para manutenção da autonomia política/administrativa na conformação dos entes federativos não parecem caracterizar uma necessidade de gestão. Na prática, parecem sugerir uma proposta de contenção de gastos públicos e eficiência fiscal - uma alternativa de controle que envolve a preservação de um forte desequilíbrio de forças políticas. Com base em um discurso eminentemente liberal, centrado em uma suposta eficiência financeira, via controle fiscal, recai sobre a proposta de emenda uma suspeita aparentemente nada infundada: de uma recorrente busca por uma fatia cada vez maior do bolo tributário nacional, que é atualmente fortemente centrado de um único ente da federação: a União.

Não se deve negar, contudo, a necessidade de a prudência pautar o debate sobre as especificidades econômicas e sociais locais, regionais e nacionais, uma vez que cada um dos municípios do país, de dimensões continentais e com grandes desigualdades, apresenta sensíveis diferenças no seu aparato administrativo, nos recursos humanos disponíveis, nas bases financeira, material, de infraestrutura e de capacidade de gestão, que devem ser consideradas na busca pela suposta “sustentabilidade fiscal, tributária e financeira” que envolve o processo de criação de novos municípios. Em suma, estão colocadas para a comunidade científica e acadêmica, bem como para a esfera política, um grande desafio que não deve ser ignorado. No entanto, um remédio genérico e amargo, apresentado na forma de “facão”, sob o pretexto de responsabilidade tributária e sustentabilidade fiscal, não parece ter respaldo em evidências sobre as supostas eficiência e eficácia na qualidade de prestação de serviços públicos municipais. Esse argumento não parece se sustentar em uma análise mais acurada.

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  • Declaração de disponibilidade de dados

    O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado emhttps://doi.org/10.48331/scielodata.JLFZ2K
  • 1
    Estudo realizado com a população dos municípios criados após a Constituição de 1988 indicou que as principais razões para a criação de municípios eram: “o descaso da administração do município de origem (54,2% dos casos); a existência de uma forte atividade econômica local (23,6%); a grande extensão territorial do município de origem (20,8%); e o grande aumento da população local, apontado por 1,4% dos municípios emancipados” (Bremaeker, 1996, p. 4).
  • 2
    “Distrito é a subdivisão do município e autoridade administrativa, judicial, fiscal e policial, além de constituir cartório. Possui como sede uma área urbana, denominada vila, e uma área rural, intitulada ‘povoações isoladas’” (FJP, 2017).
  • 3
    Embora não seja objeto de análise deste artigo, o trabalho de Martins, Matos e Lobo (2020) demonstram o papel relevante da retenção de população dos pequenos municípios do Sudeste brasileiro. Nesta mesma obra, nota-se que, para esses autores, os municípios de pequeno porte são imponentes em relação ao comportamento demográfico regional. Tal fato expressa a relevância da interiorização da urbanização brasileira e indica novos comportamentos regionais.
  • 4
    Para o cálculo da cobertura da pré-escola, considerou-se o somatório das matrículas nas redes pública e privada.

Editado por

Editor responsável:

Paulo Nascimento Neto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2021
  • Aceito
    27 Out 2021
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