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Do Nada ao Tudo: políticas públicas e a educação especial brasileira

From Nothing to Everything: public policy and Brazilian special education

RESUMO

Este trabalho analisa o discurso de inclusão da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI, 2008) e os efeitos de sentido que produz em suas relações dialógicas. Trata-se de um estudo documental da legislação brasileira e de declarações das quais o Brasil é signatário, com base na filosofia bakhtiniana da linguagem. Discute como a nova política transforma os sentidos de práticas de instituições de educação especial em discriminatórias e produz o apagamento de diferenças humanas como mecanismo de garantia de direitos. Conclui-se sobre a necessidade de reflexão e avaliação das políticas públicas e de seus efeitos no âmbito da educação, repensando-a como instituição social contraditória.

Palavras-chave
Inclusão; Educação Especial; Política Pública; Discurso. Diferença

ABSTRACT

This paper analyzes the discourse of inclusion of the National Special Education in the Perspective of Inclusive Education (PNEEPEI, 2008) and the effects of meaning that produces in its dialogical relations. This is a documentary study of Brazilian legislation and statements of which Brazil is a signatory, based on Bakhtinian philosophy of language. Discusses how the new policy changes the meanings of practices in special education institutions and produces discriminatory erasing human differences as the guaranteed rights. It is concluded on the need for reflection and evaluation of public policies and their effects on education, rethinking it as contradictory social institution.

Keywords
Inclusion; Special Education; Public Policy; Discourse; Difference

Introdução

A palavra inclusão tem ocupado lugar de destaque e se difundido em diversas esferas da sociedade. O discurso da inclusão e os movimentos sociais que o alavancaram, provocaram (e têm provocado) grandes mudanças sociais. Compreender os sentidos dessas transformações sociais, assim como a longa história de movimentos de luta constante de grupos minoritários na busca pela garantia e defesa de seus direitos, constitui-se imprescindível para depreender as condições de produção desse discurso e o campo de tensão em que é enunciado.

Mudanças importantes e rápidas têm acontecido na legislação e nas políticas públicas, na estrutura do sistema educacional e nas práticas profissionais, acarretando diferentes formas de compreender a deficiência e a identidade dos alunos da educação especial. Os sentidos atribuídos à pessoa portadora de deficiência1 1 Ao abordar as formas de significação da deficiência e da identidade dos alunos da educação especial no Brasil, neste texto optou-se por eleger a terminologia portador de necessidades especiais como forma de designar os beneficiários das políticas de educação especial, não de modo a indicar posicionamento frente às formas de compreensão, mas sim de modo a referenciar diretamente à Constituição Federal brasileira, de 1988, em seu artigo 208 (documento base para a garantia de direitos no país). e às práticas a ela direcionadas modificaram-se ao longo da história, definindo modos de subjetivação e transformando identidades. A trajetória dessas transformações percorre caminhos que passam pelas práticas de extermínio (que não representavam problemas éticos ou morais); pelo respeito à vida e pela caridade cristã; pelas instituições asilares (entendidas como mecanismos de proteção aos deficientes e à sociedade); pelo movimento de desinstitucionalização e formação de um contínuo de serviços integrados; e pela perspectiva de igualdade de direitos e oportunidades, que defende a inexistência de barreiras e preconceitos (Mazzotta, 1982MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Fundamentos de Educação Especial. São Paulo: Pioneira, 1982.; Pessotti, 1984PESSOTI, Isaias. Deficiência Mental: da superstição à ciência. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.; Kassar, 1998KASSAR, Monica de Carvalho. Liberalismo, Neoliberalismo e Educação especial: algumas implicações. Cadernos CEDES, Campinas, v. 19, n. 46, p. 16-28, set. 1998. ; Aranha, 2001ARANHA, Maria Salete Fábio. Paradigmas da Relação da Sociedade com as Pessoas com Deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, ano 11, n. 21, p. 160-173, 2001. ; Jannuzzi, 2004JANNUZZI, Gilberta. A Educação do Deficiente no Brasil - dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados , 2004.; Mendes, 2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.).

A atual proposta de inclusão enfatiza a necessidade da desconstrução de preconceitos, reafirmando a luta pela garantia e igualdade de direitos e oportunidade a todos. Esse mesmo discurso passa a ter maior respaldo com a publicação da Política Nacional de Educação Inclusiva na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em vigor desde janeiro de 2008. A legislação, nacional e internacional, e as políticas públicas (medidas que põem em ação a legislação) são os guias centrais para o direcionamento de atividades educativas que vão desde a organização mais ampla (deveres e obrigações de cada unidade administrativa do Estado, orçamento etc.) a elementos filosóficos (quem é o aluno, o professor e seu papel, sentidos do processo de educação escolar) e metodológicos (como devem ser as práticas educacionais).

A partir da publicação dessa política determina-se que crianças e jovens “[...] com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação” (Brasil, 2008BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm . Acesso em: 20 ago. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
, p. 14) sejam inseridos nas escolas regulares, como forma de extinção de práticas discriminatórias e de barreiras que impeçam o exercício pleno da cidadania. Para isso, a nova política propõe mudanças no modelo de serviços em vigor no país desde 1994, instituído pela Política Nacional de Educação Especial. Ao propor inserir a todos no mesmo tipo de escola, depara-se com a realidade cotidiana das escolas públicas brasileiras, na qual professores mostram-se confusos e despreparados frente a várias dificuldades enfrentadas e sentidas também por alunos e familiares, como turmas superlotadas, escassez de recursos, redes de apoio desarticuladas ou inexistentes, dentre outros. Compõe-se, assim, um quadro que exige tratar as atuais transformações da educação com cuidado e atenção. Nesse contexto de transformações, a PNEEPEI ocupa lugar de destaque ao propor novas práticas que produzem efeitos sobre os modos de concepção da identidade de alunos da educação especial, o que nos leva a formular a seguinte questão: que sentidos são produzidos pelo discurso da nova política nas instituições educacionais brasileiras?

A fim de orientar a formulação teórica dessa questão, apresentamos elementos da filosofia bakhtiniana da linguagem que permitem analisar as relações dialógicas entre Estado, política e produção de subjetividade.

Subjetividade e Política como Enunciados do Estado

As práticas educacionais, para além de processo instrucional, implicam formação de subjetividade, a qual é constituída nas relações intersubjetivas, entremeada por valores construídos socialmente, sustentando expectativas, definindo modos de ser e agir (Pereira; Jobim; Souza, 1998PEREIRA, Rita Marisa Ribes; JOBIM E SOUZA, Solange. Infância, Conhecimento e Contemporaneidade. In: KRAMER, Sônia; LEITE, Maria Isabel. Infância e Produção Cultural. Campinas: Papirus, 1998. p. 26-39.). O processo escolar, ao qual todos têm o direito de participação, pode ser analisado enquanto subordinado a vozes sociais que se encontram em permanente dialogismo presentes em uma sociedade.

Subjetividade e identidade, por serem dialógicas, não se dão harmoniosamente. Ao contrário, refletem e refratam tensões e conflitos entre diferentes vozes sociais (Geraldi, 2007GERALDI, João Wanderley. A Diferença Identifica. A Desigualdade Deforma. Percursos Bakhtinianos de Construção Ética e Estética. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM E SOUZA, Solange; KRAMER, Sônia (Org.). Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-56.). Identidade e subjetividade, pensadas a partir do dialogismo, resultam da dádiva do olhar do outro, que dá-nos acabamento, sempre provisório, permitindo-nos olhar a nós mesmos com seus olhos (Geraldi, 2007GERALDI, João Wanderley. A Diferença Identifica. A Desigualdade Deforma. Percursos Bakhtinianos de Construção Ética e Estética. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM E SOUZA, Solange; KRAMER, Sônia (Org.). Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-56.). Em outras palavras, as constituições identitárias e subjetiva não são atos autônomos, mas sim constituídas pelo outro, que nos dá acabamento. Constituem-se, portanto, relações alteritárias, necessariamente com a presença do outro. Dessa forma, se a experiência escolar incide sobre os modos de subjetivação das pessoas que constituem essas instituições (alunos, professores e demais funcionários), as transformações que ocorrem nesse campo passam também a compor o universo que impacta nos modos de subjetivação dessas pessoas (Mancebo, 2006MANCEBO, Deisi. Autonomia Universitária: breve história e redefinições atuais. Advir (ASDUERJ), Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 19-23, 2006. ).

Varela (1994VARELA, Julia. O Estatuto do Saber Pedagógico. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O Sujeito da Educação - estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes , 1994. p. 87-96. ), ao analisar a constituição histórica da educação escolar ocidental, afirma os processos de produção de conhecimentos (a ciência e a pedagogia) também como mecanismos de poder, que produzem subjetividades, visando a otimizar rendimentos, conferindo identidades. A análise das práticas sociais em relação às diferenças humanas empreendida por Pan (2008PAN, Miriam Aparecida Graciano de Souza. O Direito à Diferença: uma reflexão sobre deficiência intelectual e educação inclusiva. Curitiba: Editora Ibepex, 2008.) demonstra que, além da evolução de conceitos científicos sobre a deficiência, alteram-se também a atitude das diferentes sociedades para com seus membros, resultando em novos modos de conceber a identidade dessas pessoas. A democratização da educação não se reflete apenas na democratização de conhecimentos produzidos pelo homem, mas sim de processos sociais que são também mecanismos produtores de subjetividade e de identidade.

As políticas do Estado sobre a educação, portanto, são também ações que incidem sobre os modos de subjetivação em uma sociedade, pois se constituem eixos orientadores no processo educacional. Mais do que comunicarem ou informarem, esses enunciados, ao regulamentarem a vida social, produzem como efeito sentidos de verdade ou falsidade, de correto ou errado, de justo ou injusto, de melhor ou pior - efeitos de sentido sobre práticas educacionais.

Políticas do Estado, a partir da ótica da filosofia da linguagem bakhtiniana, podem ser analisadas como enunciados, que respondem e que constituem determinados contextos. Os enunciados são espaços de encontro e confronto de diferentes índices sociais de valores - vozes sociais. Todo enunciado, “unidade real da comunicação verbal” (Bakhtin, 1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 295), constitui-se como uma forma de compreensão ativa, por responder a um enunciado anterior e por ser responsável por uma voz (situar-se estética e eticamente no campo semântico da vida social). São, portanto, ações discursivas e dialógicas, que formam um continuum, com base num já dito e numa compreensão responsiva, que sempre é ativa porque posicionada. O enunciado suscita respostas posicionadas no universo dialógico, não de forma pacífica, mas em tensão, evidenciando relações de poder nas quais as vozes sociais buscam imprimir ou manter significações, produzindo, como efeito de sentido, a Verdade, a monologia.

Os movimentos históricos de transformação cultural que direcionam modos específicos de subjetivação, de acordo com expectativas e ideais, ocorrem pela materialidade linguística, que veicula a tensão entre valores e suas relações de poder. Nesse sentido, os valores e orientações presentes em um enunciado (um documento, por exemplo), não estão encerrados em seus limites físicos, mas transpõem suas barreiras. A significação de um enunciado não está encerrada exclusivamente nele, mas remetem a outros enunciados, formadores do atual, numa cadeia responsiva que evidencia transformações, reflexos e refratamentos, em diferentes esferas da vida social, em diferentes momentos históricos.

As políticas, nesse sentido, constituem-se como enunciados do Estado, portanto posicionados, que respondem ativamente a enunciados e por vozes sociais, sustentando ou rechaçando valores. Assim, a movimentação/transformação social não tem origem no enunciado do Estado, mas é também composta por ele. Nesse sentido, a compreensão de um enunciado e do campo de tensão em que é proferido requer um olhar disperso sobre enunciados aos quais responde, extrapolando seus limites.

Tensões e Conflitos na Educação Especial - processos históricos

Estudos que abordam a história da educação especial (Aranha, 2001ARANHA, Maria Salete Fábio. Paradigmas da Relação da Sociedade com as Pessoas com Deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, ano 11, n. 21, p. 160-173, 2001. ; Jannuzzi, 2004JANNUZZI, Gilberta. A Educação do Deficiente no Brasil - dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados , 2004.) situam seu início no século XVI, com médicos e pedagogos que acreditavam nas possibilidades de educabilidade de indivíduos considerados até então ineducáveis. No mesmo século assiste à institucionalização dessas pessoas, justificada pelo argumento de que a pessoa diferente seria mais bem cuidada e protegida em ambiente separado.

Em estudo sobre a inclusão, Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.) afirma que a institucionalização de pessoas portadoras de deficiência, pelo afastamento que provocou no convívio social dessas pessoas e pela ineficiência e inadequação de serviços, passou a ser questionada a partir da década de 1960. No mesmo período, movimentos sociais pelos direitos humanos conscientizaram e sensibilizaram a sociedade sobre os prejuízos da segregação e da marginalização de indivíduos. Para Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.), um dos fatores cruciais para a transformação na filosofia relacionada à educação especial nesse período, além dos movimentos sociais, foi o contexto mundial da crise econômica do capitalismo de acumulação, em 1970, assim como descrito por Gentili (1995GENTILI, Pablo. Adeus à Escola Pública: a desordem neoliberal, a violência do mercado e o destino da educação das maiorias. In: GENTILI, Pablo (Org.). Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 228-252.) e Mancebo, Maués e Chaves (2006MANCEBO, Deisi; MAUÉS, Olgaíses; CHAVES, Vera Lucia Jacob. Crise e Reforma do Estado e da Universidade Brasileira: implicações para o trabalho docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 28, p. 37-53, jul./dez. 2006.). Os altos níveis de desemprego, o alto custo de vida e os elevados níveis de exclusão levaram a repensar instituições e suas práticas com base nos preceitos de liberdade e igualdade, fortemente influenciados pelo discurso econômico neoliberal que se alavancava. A desinstitucionalização apresentava-se também como uma alternativa frente aos elevados custos de manutenção das instituições asilares. A busca pela integração de pessoas portadoras de deficiência nos serviços regulares da sociedade passou então a ser defendida por interesses políticos, prestadores de serviços, pesquisadores, pais e pessoas com deficiência.

A desinstitucionalização de pessoas portadoras de deficiência, segundo Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.), tem seu início nesse contexto, nos Estados Unidos (EUA). Nesse país e na Inglaterra, também na década de 1960, o Modelo Social da Deficiência (Barros, 2005BARROS, Alessandra. Alunos com Deficiência nas Escolas Regulares: limites de um discurso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 119-133, dez. 2005., p. 120), que só se tornou possível graças aos Disability Studies de Barton e Oliver2 2 BARTON, Len; OLIVER, Mike. Disability Studies: Past, Present and Future. Leeds: The Disability Press, 1997. (1997, apud Barros, 2005BARROS, Alessandra. Alunos com Deficiência nas Escolas Regulares: limites de um discurso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 119-133, dez. 2005.), surge como nova forma de compreender a deficiência, localizada na sociedade, e não na pessoa. Dessa concepção, nos países nórdicos, tem gênese o movimento do mainstreaming, que tinha por bases: a preferência por serviços que apresentassem o mínimo possível de restrição; a oferta de serviços educacionais especiais e regulares coordenados; a promoção de situações escolares que favorecessem a convivência com grupos sociais equivalentes (Barros, 2005BARROS, Alessandra. Alunos com Deficiência nas Escolas Regulares: limites de um discurso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 119-133, dez. 2005.; Mendes, 2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.) - em suma, reintegrar a pessoa portadora de deficiência na sociedade. O foco, antes no aluno, passa ao sistema educacional, questionando suas ações e enfatizando possibilidades educacionais e de aprendizagem dos alunos, e não apenas seus limites. Desses questionamentos decorre o pressuposto de que toda pessoa teria o direito inalienável a experenciar um estilo de vida que seria comum, ou normal, em sua cultura. Funda-se o princípio na normalização (Aranha, 2001ARANHA, Maria Salete Fábio. Paradigmas da Relação da Sociedade com as Pessoas com Deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, ano 11, n. 21, p. 160-173, 2001. ) que, ao propor intervenções no meio, tinha como objetivo tornar a vida da pessoa portadora de deficiência o mais normal possível.

Segundo Mazzotta (1982MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Fundamentos de Educação Especial. São Paulo: Pioneira, 1982.), objetivando pôr em prática os pressupostos do mainstreaming e da normalização é criado o Sistema de Cascata como modelo de prestação de serviços para educação especial, propondo serviços escolares para atender a diferentes níveis ou tipos de deficiências, baseados nos graus de severidade da deficiência do aluno, em seu grau de dificuldade, mostrando-se flexível às suas necessidades. Segundo Mazzotta (1982MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Fundamentos de Educação Especial. São Paulo: Pioneira, 1982., p. 46), o sistema visava a favorecer a “[...] movimentação do aluno de um recurso para outro, de acordo com as mudanças ocorridas em suas condições”. Esse sistema tinha como objetivo, então, integrar a pessoa portadora de deficiência na sociedade por meio dos diversos serviços.

Embora os avanços proporcionados por esse modelo na educação especial, segundo estudo de Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.), a passagem de um serviço menos integrado ao mais integrado, por depender unicamente dos progressos da criança, raramente acontecia, abrindo margem a questionamentos e críticas a esse modelo. Esses questionamentos e críticas, assim como os realizados no momento em que surge a perspectiva da integração, emergem também num contexto de crise econômica, pois, segundo Laplane (2006LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Uma Análise das Condições para a Implementação de Políticas de Educação Inclusiva no Brasil e na Inglaterra. Educação e Sociedade, Campinas, v. 27, n. 96(Especial), p. 689-715, out. 2006.), o fim da década de 1980 assistiu ao aumento da distância social no interior das classes médias, queda na remuneração e massificação de algumas profissões - crescimento econômico acompanhado de concentração de renda (Santomé, 2003SANTOMÉ, Jurjo Torres. Educação em Tempos de Neoliberalismo. Porto Alegre: Artmed, 2003.). Como decorrência, na década seguinte, tem-se o aumento do desemprego e do subemprego, corte de gastos sociais e regressão dos direitos trabalhistas, provocando mobilidade social descendente. Como resposta a esse cenário de exclusão que se desenhava mundialmente, novamente foram postas em questionamento as instituições educacionais e seus ideais de liberdade e, principalmente, de igualdade. A resposta que começa a se desenhar nesse contexto rechaça os preceitos da integração, propondo a inclusão como a melhor forma de combate à exclusão.

O estudo de Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.) também aponta o surgimento do movimento pela inclusão escolar de crianças e jovens portadores de deficiência como originário nos EUA e que, por força de penetração da cultura desse país, ganhou a mídia e o mundo ao longo da década de 1990. Da literatura estadunidense a pesquisadora destaca dois posicionamentos, emergentes em fins da década de 1980: um que defendia a inclusão total (inserção de todos, independentemente de diferenças, na classe comum da escola próxima à sua residência e a eliminação total do modelo de prestação de serviços); e outro que defendia a educação inclusiva (que interpretava a inserção dos alunos na classe comum como o melhor a ser feito, embora admitindo a possibilidade e necessidade de serviços e suportes). A inclusão defende a democratização da escola, com a ausência de barreiras, tendo como pressupostos a igualdade na diversidade e o combate a práticas de discriminação, assegurando igualdade de direitos e oportunidades.

Essas três concepções, historicamente marcadas por tensões entre as vozes sociais que as enunciam, são denominadas por Aranha (2001ARANHA, Maria Salete Fábio. Paradigmas da Relação da Sociedade com as Pessoas com Deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, ano 11, n. 21, p. 160-173, 2001. ) de três paradigmas da educação especial. Na denominação atribuída pela pesquisadora, tem-se: o Paradigma da Institucionalização (caracterizado pela segregação em instituições totais e asilares); o Paradigma de Serviços (com instrumentos e serviços que buscavam garantir que a pessoa portadora de deficiência pudesse acessar todo e qualquer recurso da comunidade); e o Paradigma de Suporte (que caracteriza a educação inclusiva, com intervenções decisivas e incisivas tanto no processo de desenvolvimento do sujeito quanto no processo de reajuste da realidade social). Para Aranha (2001ARANHA, Maria Salete Fábio. Paradigmas da Relação da Sociedade com as Pessoas com Deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, ano 11, n. 21, p. 160-173, 2001. ), esses paradigmas marcam a relação da sociedade com as pessoas portadoras de deficiência, evidenciando transformações em seus pressupostos filosóficos e em suas práticas.

A análise histórica desses paradigmas, sustentados por vozes sociais em constante tensão, evidenciam condições de produção de enunciados que instituem como efeitos para a educação especial práticas, modelos e concepções que produzem modos identitários e de subjetivação. Esses mesmos discursos e tensões se fizeram presentes em âmbito nacional, direcionando práticas voltadas para a educação especial.

Práticas e Políticas para a Educação Especial no Brasil

Segundo estudo de Jannuzzi (2004JANNUZZI, Gilberta. A Educação do Deficiente no Brasil - dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados , 2004.), a educação especial no Brasil esteve vinculada historicamente a duas vertentes: médico-pedagógica e psicopedagógica, ambas sustentadas na concepção biológica da deficiência, pautadas em preceitos da ciência moderna, identificando normais e anormais. Essas vertentes se fizeram presentes entre 1930 a 1970, principalmente a partir de 1950, período no qual se originam movimentos comunitários dos quais culminaram a implantação de redes de escolas especiais privadas e/ou filantrópicas. Esses movimentos tiveram suas origens frente à escassez de serviços do Estado voltados à educação e tratamento de pessoas com deficiência. O Estado, ao conceber as políticas de educação, as projetou para os alunos aos quais era atribuída a identidade de normais, excluindo, nesse processo, os alunos identificados como anormais. Coube a movimentos sociais e comunitários organizarem-se com vistas a suprir a carência de serviços do Estado voltados à educação dessas pessoas.

Segundo Kassar (1998KASSAR, Monica de Carvalho. Liberalismo, Neoliberalismo e Educação especial: algumas implicações. Cadernos CEDES, Campinas, v. 19, n. 46, p. 16-28, set. 1998. ), a década de 1960 foi o período em que surgiram as primeiras preocupações do Estado brasileiro com a educação da pessoa portadora de deficiência, embora já existissem instituições privadas voltadas à educação especial (Instituto Pestalozzi, 1926, RS; Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE, 1954, RJ). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 4024/61 (a primeira vez que a legislação brasileira versa sobre a educação especial), publicada em 1961, representou, para Jannuzzi (2004JANNUZZI, Gilberta. A Educação do Deficiente no Brasil - dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados , 2004.), uma tentativa de realçar e de fazer alguma justiça aos movimentos e instituições até então preocupadas com esse segmento da população. Segundo Kassar (1998KASSAR, Monica de Carvalho. Liberalismo, Neoliberalismo e Educação especial: algumas implicações. Cadernos CEDES, Campinas, v. 19, n. 46, p. 16-28, set. 1998. ), a LDBN de 1961 regulamentava políticas e propostas educacionais para portadores de deficiência, organizando funções entre setores público e privado: ao primeiro cabia o atendimento de pessoas portadoras de deficiências leves e, ao segundo, aquelas com deficiências moderadas e severas.

Para Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.), as políticas voltadas às pessoas portadoras de deficiência no Brasil apresentam um caráter de atraso temporal quando comparadas aos pressupostos que circulavam no contexto mundial. Segundo a pesquisadora, as políticas brasileiras de integração, tiveram início quando já circulavam os ideais da inclusão.

Contemporaneamente, as políticas voltadas à educação inclusiva, adotadas pelo Estado brasileiro, para Mendes (2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.) e Barros (2005BARROS, Alessandra. Alunos com Deficiência nas Escolas Regulares: limites de um discurso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 119-133, dez. 2005.), têm centralizado sentidos e práticas em torno da perspectiva da inclusão total, pelas práticas de capacitação adotadas pela Secretaria de Educação Especial (SEESP), do Ministério da Educação. Caiado e Laplane (2009CAIADO, Kátia Regina Moreno; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Programa de Educação Inclusiva: direito à diversidade - uma análise a partir da visão de gestores de um município-pólo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 303-315, maio/ago. 2009.) argumentam que o Programa Educação Inclusiva, iniciado pela SEESP em 2003, com o objetivo de fomentar a política de construção de sistemas educacionais inclusivos, teve seus seminários organizados a partir de bibliografia que mostra contradições: é expressa de forma equivocada a ideia de que a escola regular deve ser o único lugar de atendimento educacional a todos os alunos; fomenta-se a necessidade de criar alternativas educacionais que deem conta da diversidade, mantendo a escola regular como espaço exclusivo para a inclusão; entre outras. No mesmo estudo, por depoimentos de gestores que participaram do programa, evidenciou-se o registro de tensões e conflitos teóricos, metodológicos e ideológicos presentes na concepção e implementação de políticas públicas, gerando preocupação com direitos e com a adoção de várias medidas e pressupostos, todos agrupados sob o rótulo inclusão.

Em estudo sobre as práticas educativas e políticas de inclusão no Brasil, Ferreira e Ferreira (2004FERREIRA, Maria Cecília Carareto; FERREIRA, Júlio Romero. Sobre a Inclusão, Políticas Públicas e Práticas Pedagógicas. In: GÓES, Maria Cecília Rafael de; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de (Org.). Políticas e Práticas de Educação Inclusiva. Campinas: Autores Associados, 2004. p. 20-48.) sinalizam para o risco da substituição de conceitos sem maiores reflexões. Para os pesquisadores, o esmaecimento da ideia de deficiência, substituída por necessidades educativas especiais, apresentado pelas políticas nacionais contemporâneas, podem resumir a deficiência, conceito com implicações subjetivas e alteritárias, a necessidades pedagógicas diferenciadas, dando centralidade a questões metodológicas. Argumentam também que a imposição legal como forma de construir uma nova educação desconsidera a participação de personagens sociais que a materializam nas práticas cotidianas. Segundo Pan (2008PAN, Miriam Aparecida Graciano de Souza. O Direito à Diferença: uma reflexão sobre deficiência intelectual e educação inclusiva. Curitiba: Editora Ibepex, 2008.), não se pode crer que a mudança de termos seja o suficiente para que o sentido da deficiência não ocupe o lugar que é negado à pessoa em nossa sociedade, presumindo que esse novo nome possa mudar práticas histórica e socialmente construídas.

Assim, questiona-se que efeitos de sentido têm sido instaurados na educação especial brasileira a partir da publicação da atual política e que novas identidades são conferidas a seus beneficiários em seu discurso? Como esses novos acabamentos estéticos vêm a transformar práticas e modos de subjetivação? Nesse sentido, este trabalho objetiva analisar que efeitos de sentido o discurso de inclusão da PNEEPEI produz em suas relações dialógicas com outros documentos legais.

Método

Realizou-se um estudo documental, conforme descrito por Gil (2002GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 2002.), de documentos legais nacionais e internacionais, integralmente ou em partes, que têm como foco ou que abordam a educação como direito fundamental e/ou a educação especial. Este estudo esteve focado sobre a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Especial (Brasil, 2008BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm . Acesso em: 20 ago. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), realizando-se um recorte temporal dos documentos a partir da Constituição Federal brasileira (CF, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm . Acesso em: 20 ago. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
). Os documentos analisados foram acessados pelos sítios virtuais oficiais dos governos federal3 3 Disponível em: <www.planalto.gov.br> e <www.portal.mec.gov.br>. e do Estado do Paraná4 4 Disponível em: <www.alep.pr.gov.br>. e da UNESCO5 5 Disponível em: <www.unesco.org/new/en/unesco/resources/online-materials/publications/unesdoc-database/>. , ou em versões impressas, publicados pela imprensa do Ministério da Educação. A partir da compreensão dos documentos como enunciados (como descrito na primeira seção do trabalho), partiu-se da PNEEPEI como principal documento analisado, direcionando-se o foco para seus possíveis interlocutores, de modo a analisar as relações dialógicas que estabelece com eles - a que vozes sociais respondem, como essas vozes ressoam nesses enunciados, de que forma a atual política responde e que efeitos de sentido produz sobre eles.

Ao empreender a análise sobre cada documento, este estudo centrou-se sobre as transformações nos sentidos atribuídos às práticas da educação especial e das identidades de seus beneficiários em diferentes tempos, constituindo eixos semânticos em torno dessas significações, evidenciando relações dialógicas e de poder entre os documentos - que vozes ecoam em cada enunciado e que relações de tensão instituem. Assim, o primeiro grande interlocutor da PNEEPEI (2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008.) foi a política antecessora - Política Nacional de Educação Especial (Brasil, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994.), que instituiu as práticas da educação especial no Brasil de 1994 a 2008. A partir desse primeiro diálogo com a política antecessora examinou-se outras teias dialógicas que a PNEEPEI constitui com outros documentos, agrupados em função de suas características:

- Documentos centrais na legislação brasileira pelo que instituem, estabelecem e dispõem e pela posição de poder que ocupam na regulação da sociedade brasileira: a Constituição da República Federativa do Brasil (1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm . Acesso em: 20 ago. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), que institui a formação do Estado democrático brasileiro; o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. 1990. Disponível em: Disponível em: http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/estatutocrianca.pdf . Acesso em: 20 set. 2008.
http://apache.camara.gov.br/portal/arqui...
), que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1996. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf . Acesso em: 23 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ld...
), que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

- Documentos internacionais referências no campo da educação especial e inclusiva, que refletem posicionamentos globais em relação à educação especial e ao atendimento às pessoas portadoras de deficiência: Declarações de Jomtien (1990UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0008/00...
) e Salamanca (1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
) e a Convenção Internacional Sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (2007BRASIL. Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. 2007a. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=424&Itemid . Acesso em: 15 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
).

- Documentos que refletem as tensões e repercussões da elaboração e da implementação da atual política nacional de educação especial: Ofícios circulares do Senado; Projeto de lei do Estado do Paraná.

Procedeu-se ao exame das relações dialógicas da PNEEPEI com os demais documentos, a partir da análise dos efeitos de sentidos que produz sobre enunciados anteriores, buscando evidenciar transformações de práticas e modelos institucionais a serem adotados na educação especial que ressignificam a identidade de seus beneficiários. Situou-se historicamente os textos legais, de modo a produzir memória social sobre a constituição de sentidos, evidenciando a forma como se constituem em suas relações dialógicas (Faraco, 2003FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.; Geraldi, 2007GERALDI, João Wanderley. A Diferença Identifica. A Desigualdade Deforma. Percursos Bakhtinianos de Construção Ética e Estética. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM E SOUZA, Solange; KRAMER, Sônia (Org.). Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-56.).

Percursos Legais da Educação Especial Brasileira - legislação e política

A Constituição Federal (CF) brasileira de 1988, ao instituir o estado democrático brasileiro, traz como premissa a garantia de liberdade, direitos e oportunidades iguais. A educação, segundo o texto da CF (1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm . Acesso em: 20 ago. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), deve ser garantida pelo Estado, sendo seu dever, da família e da sociedade. Ao tratar da educação especial, no artigo 208, inciso III, garante-se o “[...] atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm . Acesso em: 20 ago. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
, página online não-numerada), contrapondo-se ao que ficou historicamente constituído no Brasil - a educação especial acontecendo preferencialmente em instituições fora da rede regular de ensino. Dois anos após a promulgação da CF, entra em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90), que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Ao tratar da educação especial, o ECA reafirma a garantia de “igualdade de condições para o acesso e a permanência” (Brasil, 1990BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. 1990. Disponível em: Disponível em: http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/estatutocrianca.pdf . Acesso em: 20 set. 2008.
http://apache.camara.gov.br/portal/arqui...
, art. 53, p. 21) à criança e ao adolescente à educação, da mesma forma como garante o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (Brasil, 1990BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. 1990. Disponível em: Disponível em: http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/estatutocrianca.pdf . Acesso em: 20 set. 2008.
http://apache.camara.gov.br/portal/arqui...
, art. 54, p. 21), tal qual o texto constitucional.

No cenário global, compondo os grandes enunciados aos quais a legislação e políticas nacionais vem a responder, representando marcos para a instauração de um novo discurso a permear práticas educacionais também no Brasil, as Declarações de Jotmien e de Salamanca trazem consigo novas propostas para a educação com base na igualdade de direitos e oportunidades. Esses documentos representam também a assunção de um compromisso dos Estados signatários para o cumprimento de suas metas, intervindo em áreas da educação ainda não assumidas ou priorizadas. A Declaração Mundial de Jomtien sobre Educação para Todos (1990UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0008/00...
) afirma ser consenso dos países signatários à necessidade de concentrar esforços para atender as necessidades educacionais de inúmeras pessoas, pertencentes a grupos historicamente excluídos, privadas de educação escolar básica. Segundo o documento: a pobreza e a miséria são, em grande parte, geradas pela falta de conhecimento a respeito dos direitos e deveres de todos; e a falta de garantia do direito básico de acesso à educação e à informação constituem-se fontes de injustiça. Assim, a educação passa a ter papel central na possibilidade de reversão desses quadros. Grupos historicamente excluídos, portanto, “[...] não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais” (UNESCO, 1990UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0008/00...
, p. 4) e, nesse contexto, “[...] as necessidades básicas das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção especial”, sendo “[...] preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como parte integrante do sistema de ensino” (UNESCO, 1990UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0008/00...
, p. 4).

Respondendo à necessidade de garantia de acesso à educação, afirmada pela Declaração de Jomtien (1990UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0008/00...
), a Declaração de Salamanca (1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
), tida como o marco mundial mais importante na difusão da filosofia da educação inclusiva, resgata os princípios de democracia e afirma as escolas regulares com orientação inclusiva como os meios mais eficazes para o combate a práticas discriminatórias. A Declaração orienta os Estados signatários a adaptarem escolas como forma de se transpor as barreiras da discriminação, de modo a atender todas as “crianças e jovens com necessidades educativas especiais” (UNESCO, 1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
, p viii). A escola inclusiva surge como um “[...] consenso emergente de que crianças e jovens com necessidades educacionais especiais devam ser incluídas em arranjos educacionais feitos para a maioria das crianças” (UNESCO, 1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
, p. 3). A educação especial, para isso, deve assumir que

[...] as diferenças humanas são normais e que [...] a aprendizagem deve ser adaptada às necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança às assunções pré-concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem. Uma pedagogia centrada na criança é beneficial a todos os estudantes e, consequentemente, à sociedade como um todo (UNESCO, 1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
, p. 4).

O sistema educacional, para a Declaração, não deve se basear numa ideia de que “um tamanho serve para todos” (UNESCO, 1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
, p. 4). Deve reconhecer as diversas dificuldades de seus alunos e responder a elas, assegurando qualidade de educação a todos mediante transformações curriculares, organizacionais, em estratégias de ensino, uso de recursos e parcerias com a comunidade.

No mesmo ano em que é publicada a Declaração de Salamanca, é publicada no Brasil a Política Nacional e Educação Especial (PNEE), que se define como “um conjunto de objetivos destinados a garantir o atendimento educacional do aluno portador de necessidades especiais, cujo direito à igualdade de oportunidades nem sempre é respeitado” (Brasil, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994., p. 7). Segundo o documento, o trabalho com os alunos da educação especial não deve se basear na filantropia e na compaixão, as quais se opõem ao reconhecimento da igualdade de direitos e oportunidades. Segundo o documento, os alunos da educação especial são:

Genericamente chamados de portadores de necessidades educacionais especiais, classificam-se em: portadores de deficiência (mental, visual, auditiva, física, múltipla), portadores de condutas típicas (problemas de conduta) e portadores de altas habilidades (superdotados) (Brasil, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994., p. 13).

Como base filosófico-ideológica (Brasil, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994.), o documento se sustenta no modelo de serviços (sistema de cascata), mainstreaming e no modelo social da deficiência (a compreendendo como sendo da/na sociedade). A normalização proposta é direcionada ao ambiente, não à pessoa. Sua intenção é oferecer modos e condições de vida diária “o mais semelhante possível às formas e condições de vida do resto da sociedade” (Brasil, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994., p. 22). Afirma a necessidade de “[...] repensar a filosofia educacional, de modo a valorizar e respeitar às diferenças individuais e que implicam na individualização do atendimento” (Brasil, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994., p. 57). Define modalidades diferenciadas de atendimento educacional especializado: atendimento domiciliar; classe comum; classe especial; classe hospitalar; centro integrado de educação especial; ensino com professor itinerante; escola especial; sala de estimulação essencial (destinada a crianças de 0 a 3 anos); e sala de recursos. Assim, embora publicada no mesmo ano que a declaração de Salamanca (1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
), a PNEE apresenta-se sustentada numa perspectiva de integração, e não de inclusão.

Acompanhando a recente reelaboração legal do país, alavancada pela CF (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (n° 9.394/96), “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”, apresenta como objetivo da educação o “[...] pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1996. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf . Acesso em: 23 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ld...
, p. 1). Seu título V, do capítulo V, é destinado às bases da educação especial no país, apresentada como “[...] modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais” (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1996. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf . Acesso em: 23 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ld...
, p. 21). Segundo a LDBN, o atendimento ao aluno da educação especial na escola regular será feito,

[...] em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regularem serviços ou escolas especializadas, quando não for possível sua integração nas classes comuns de ensino (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 1996. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf . Acesso em: 23 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ld...
, p. 21).

A movimentação mundial na luta pelos direitos das pessoas com deficiência passa a ter novo enfoque a partir de 2007. Em 30 de março de 2007, o presidente Luís Inácio Lula da Silva assina a Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento que tem como propósito “[...] promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” para as pessoas com deficiência, promovendo o “respeito pela sua inerente dignidade” (Brasil, 2007aBRASIL. Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. 2007a. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=424&Itemid . Acesso em: 15 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
, p. 17), cabendo aos Estados tomarem medidas que assegurem a não discriminação para com/aos deficientes. Discriminação entendida como

[...] qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável (Brasil, 2007aBRASIL. Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. 2007a. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=424&Itemid . Acesso em: 15 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
, p. 17).

Quanto à educação, “[...] deverão assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida” (Brasil, 2007aBRASIL. Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. 2007a. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=424&Itemid . Acesso em: 15 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
, p. 28). Precisam garantir “adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais” (p. 28) e que essas pessoas recebam o apoio necessário com vistas a facilitar sua efetiva inclusão com medidas individualizadas que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social.

Em 06 de junho de 2007 é publicada em DOU a Portaria n° 555/2007, que institui um grupo de trabalho (GT) “para rever e sistematizar a Política Nacional de Educação Especial”. Num prazo de 120 dias, a contar da data de publicação da portaria, o GT deveria apresentar o texto da nova Política Nacional de Educação Especial (Brasil, 2007bBRASIL. Ministério da Educação. Portaria n° 555/2007. Diário Oficial da União, Brasília, 06 jun. 2007. Seção 2, p. 9. 2007b, p. 9). Expirado o prazo é publicada outra Portaria, n° 948/2007, em 09 de outubro, prorrogando o prazo para a entrega do documento para mais 90 dias. É também disponibilizada a versão preliminar da política na internet “considerando a necessidade de sistematizar e consolidar as contribuições” (Brasil, 2007cBRASIL. Ministério da Educação. Portaria n° 948/2007. Diário Oficial da União , Brasília, 09 out. 2007. Seção 2, p. 10. 2007c, p. 10), dando como prazo para essas contribuições até 20 de outubro do mesmo ano (um total de 14 dias).

A versão preliminar da política instaurou tensões, pois sua concepção de inclusão orientava os sistemas educacionais a “Não criar novas escolas especiais e transformar as escolas existentes em centros de atendimento educacional especializado para o atendimento, a produção de materiais acessíveis e a formação docente” (Brasil, 2007dBRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Versão Preliminar). Brasília: MEC/SEED, 2007d. Disponível em: Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/informacao-e-comunicacao/informativos-pfdc/edicoes-2007/docs-outubro/Anexo%20Inf%2080%20Verso%20Preliminar%20-%20Politica%20Nacional%20de%20Educao%20Especial.pdf . Acesso em: 20 ago. 2010.
http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/informacao-e-...
, p. 19). A repercussão das vozes dos movimentos sociais de grupos historicamente organizados e de instituições privadas e/ou filantrópicas pôde ser registrada no Senado Federal em ofícios circulares (Senado FederalSENADO FEDERAL. Ofício Circular N° 11/07 - CASDEF, Brasília, 08 ago. 2007., Of. n° 11/07 CASDEF; Senado Federal, Of. Circ. CWB/n°028/2007 - datados de outubro e novembro de 2007, respectivamente) que argumentavam a necessidade de rever vários pontos da proposta da nova política. Fazendo ouvir a voz desses grupos, os ofícios circulares do senado enfatizavam a necessidade do reconhecimento das escolas especiais como escolas de educação básica de fato, ao invés de serem eliminadas. Assim, exigiam “a correção do grande erro cometido”, pois a “medida [de fechamento e transformação de instituições] prejudica milhares de pessoas” (Senado FederalSENADO FEDERAL. Ofício Circular CWB/n°028/2007, Curitiba, 29 nov. 2007., Of. Cir. CWB/n° 028/2007).

Em janeiro de 2008 é publicada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). A PNEEPEI apresenta-se como “[...] um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga a igualdade e diferença como valores indissociáveis” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 5), diferenciando-se da política de 1994 que se definia como um conjunto de objetivos. Segundo o documento, a distinção entre alunos, em função de suas características individuais, caracteriza-se como mecanismo de exclusão, propondo que diagnósticos baseados em características mentais, físicas, culturais e linguísticas sejam contextualizados, não se esgotando em categorizações. As definições dos diversos tipos de deficiência e suas subclassificações, como na política de 1994, dão lugar a uma definição diferenciada. São alunos da educação especial: “aqueles que têm impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que em interação com diversas barreiras podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 15).

A prática escolar em instituições separadas do ensino regular, para a PNEEPEI, baseia-se em práticas que enfatizam a deficiência, constituindo-se como práticas e instituições discriminatórias (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 5). O documento faz uma retomada histórica da educação especial brasileira, mas apenas a partir de documentos legais, sem fazer referências a movimentos sociais que se ocuparam desse campo, deixado em segundo plano pelo Estado.

A PNEEPEI, com vistas a incluir o novo aluno na educação regular, propõe atividades diferenciadas nas escolas, não substitutivas ao ensino regular, mas como complemento ou suplemento, com vistas à autonomia e independência na vida social. O documento também apresenta como resultados, respondendo aos compromissos assumidos junto a organismos internacionais, um panorama do crescimento das matrículas em instituições regulares em comparação com as escolas especiais e das matrículas em escolas públicas em comparação com as escolas privadas. Segundo os dados apresentados, as matrículas de alunos com necessidades especiais em escolas comuns (inclusão) tiveram um crescimento de 640%, entre 1998 e 2006.

No estado do Paraná, a proposta de inclusão da PNEEPEI produziu como efeito a reação de movimentos de grupos de beneficiários na busca de assegurarem a garantia de continuidade de existência e do trabalho de instituições de educação especial no estado. Como impacto, foi encaminhado, em 13 de março de 2010, à Assembléia Legislativa do estado, pelo então governador, Roberto Requião, o Projeto de Lei nº 126/10 que, em tramitação no legislativo do estado, visa a criar o Programa de Apoio às Instituições Filantrópicas que oferecem exclusivamente educação básica na modalidade de educação especial em escolas ou centros de atendimento educacional especializado. O projeto tem como objetivos “[...] assegurar aos educandos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento, com alta especificidade do Estado do Paraná, a educação em nível de educação básica, em consonância com a política nacional da SEED” (Poder Executivo do Estado do Paraná, 2010PODER EXECUTIVO DO ESTADO DO PARANÁ. Projeto de Lei nº 126/2010 , de 13 mar. 2010. Estabelece a criação do Programa de Apoio às Instituições Filantrópicas que oferecem exclusivamente Educação Básica na Modalidade de Educação Especial em Escolas ou Centros de Atendimento Educacional Especializado. Disponível em: Disponível em: http://www.alep.pr.gov.br/atividade-parlamentar/pesquisa-legislativa . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://www.alep.pr.gov.br/atividade-parl...
, p. 01).

Para o combate à discriminação e como forma de garantia de direitos fundamentais, a nova política propõe a inclusão de todos na escola regular, buscando ressignificar a identidade dos alunos da educação especial. Central na discussão de práticas voltadas à educação especial, a PNEEPEI (2008) e seu discurso não têm se apresentado como consenso sobre o que seja o melhor às pessoas portadoras de deficiência em nossa sociedade, produzindo respostas e ecos de vozes que passam a ser significadas como origens de práticas discriminatórias. Como efeito dessas relações dialógicas entre os documentos são produzidos e reproduzidos sentidos que fazem calar ou serem ouvidas determinadas vozes sociais. A esses diálogos e silêncios é que está direcionada a discussão que segue.

Emaranhando-se na Teia Discursiva

O Estado brasileiro assume, ainda na década de 1990, compromisso na luta pela democratização do acesso ao ensino, ao assinar a Declaração Mundial de Educação para Todos, que enfatiza que grupos minoritários “[...] não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportunidades educacionais” (UNESCO, 1990UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0008/00...
, p. 4). Discriminação que, pela Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, significa “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição, baseada em deficiência” (Brasil, 2007aBRASIL. Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. 2007a. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=424&Itemid . Acesso em: 15 set. 2008.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
, p. 17). Da mesma forma, a PNEEPEI reafirma o movimento mundial pela inclusão como “[...] uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 5), significando a discriminação como efeito de práticas históricas nas quais “[...] por muito tempo perdurou o entendimento de que a educação especial organizada de forma paralela à educação comum seria a mais apropriada” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 14), o que “[...] exerceu impacto duradouro na história da educação especial, resultando em práticas que enfatizavam os aspectos relacionados à deficiência, em contraposição à dimensão pedagógica” (Brasil, 2008, p. 14). A atual política, nesse contexto, constitui-se como uma resposta, no sentido definido por Bakhtin (1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.), do Estado brasileiro aos documentos internacionais. Ao assumir o compromisso firmado pela democratização do ensino, contrapõe-se à política anterior (PNEE, 1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994.).

Do ponto de vista da igualdade de oportunidades de acesso à educação, podemos avaliar importantes avanços nas lutas e conquistas por melhores condições de vida dessa parcela da população. No entanto, o argumento utilizado para análise dos processos de discriminação direciona seus efeitos de forma concentrada nos serviços educacionais oferecidos fora da escola comum, responsabilizando-os pelas práticas discriminatórias em relação às pessoas portadoras de deficiência. O processo brasileiro de escolarização tem as marcas da seleção, separação e classificação. A escola brasileira, historicamente construída para os normais, teve como efeito a organização da educação especial, feita pela sociedade civil, em instituições especializadas que eram destinadas à educação dos anormais. Ao argumentar sobre a necessidade (inegável) de combater processos discriminatórios, a PNEEPEI se contrapõe às práticas educacionais separadas, desconsiderando a constituição histórica dessas instituições e a organização social que as alavancou no vácuo deixado pelo Estado brasileiro na constituição da educação para os normais. A origem dos processos de exclusão das pessoas portadoras de deficiência remontam, portanto, à constituição da escola para os normais, que as excluiu dos bancos escolares. A exclusão histórica a que estão submetidas essas pessoas refere-se a um projeto de sociedade, e não exclusivamente às práticas de educação especial.

A nova política, ao criticar os modelos teóricos de classificação de deficiências pela afirmação de que o público alvo “[...] não se esgota na mera categorização e especificações atribuídas a um quadro de deficiência, transtornos, distúrbios e aptidões” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 15), reafirma o discurso da Declaração de Salamanca de que “as diferenças humanas são normais” (UNESCO, 1994UNESCO. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Brasília: UNESCO, Salamanca, Espanha,1994. Disponível em: Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf . Acesso em: 31 ago. 2010.
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00...
, p. 4). Dilui, assim, a divisão discursiva normal/anormal nas práticas educativas, sem, contudo, apresentar a concepção de normalidade em que se afirma. Sob o efeito do discurso de democratização do acesso ao ensino produz, em seu reverso, a responsabilização do modelo de serviços da PNEE (1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994.) pela produção do preconceito social e por situações de exclusão. Essas práticas são significadas como barreiras que não permitem a existência do “[...] direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 5). A PNEE (1994BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994.), assim como as práticas que orienta, são significadas como sustentadas em uma perspectiva discriminatória.

Como efeito desses sentidos atribuídos a práticas da educação especial desenvolvidas em paralelo ao ensino comum, conclui-se que o melhor seria o fechamento ou a redefinição dessas instituições, além da assunção da educação pelo Estado. Na contramão do reconhecimento da importância histórica e social das instituições de educação especial no combate à exclusão, a PNEEPEI a demoniza, responsabilizando-a pela exclusão das pessoas portadoras de deficiência/necessidades especiais. Surge nesse cenário a dúvida se a pessoa portadora de deficiência deve ou não permanecer em escolas especiais. Ao sinalizar para a obrigatoriedade da educação dessas pessoas em apenas um tipo de escola, a PNEEPEI afirma o atual modelo de inclusão assumido pelo Estado Brasileiro - a inclusão total (Caiado; Laplane, 2009CAIADO, Kátia Regina Moreno; LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Programa de Educação Inclusiva: direito à diversidade - uma análise a partir da visão de gestores de um município-pólo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 303-315, maio/ago. 2009.; Mendes, 2006MENDES, Enicéia G. A Radicalização do Debate sobre Inclusão Escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33. 387-405, dez. 2006.). No mesmo processo de instauração da dúvida, respondida pela PNEEPEI com a inclusão total, evidencia-se o silêncio como efeito produzido pela política. Ao propor essa solução para a educação especial no Brasil, a política faz calar a voz de seus beneficiários quanto a melhor prática educacional a atender seus objetivos, vozes que ecoam nos ofícios circulares do senado e no projeto de lei no estado do Paraná, instaurando novas tensões frente à inclusão de todos na mesma escola.

Como ressonância dos processos de significação das escolas especiais como sustentadoras de práticas discriminatórias, conclui-se que é dever do Estado assumir a responsabilidade pela educação especial, historicamente sob auspício, quase exclusivamente, de instituições privadas e filantrópicas. Os dados apresentados pela PNEEPEI indicam o crescimento das matrículas de alunos com necessidades especiais no ensino comum público, reafirmando o compromisso do Estado com convenções e declarações internacionais, embora não faça menção ao tipo de atendimento realizado nas escolas públicas e/ou privadas. Ao propor a educação inclusiva na rede regular de ensino, o Estado responde também aos altos custos exigidos pelos sistemas de educação especial e escolas especiais, assumindo uma responsabilidade a baixo custo, garantindo o compromisso constitucional firmado em 1988, pela preferência à rede regular de ensino. A essa ressonância discursiva é que reage o projeto de lei paranaense que objetiva assegurar apoio às instituições filantrópicas de educação especial.

Embora a centralidade legal e o lugar de poder da PNEEPEI, não há o encerramento em significações finais ou últimas - mantém-se o conflito de valores das práticas discursivas. As respostas suscitadas pela versão preliminar da PNEEPEI constituem-se como respostas de grupos sociais, representadas pelos ofícios circulares do Senado Federal, que defendem outra forma de inclusão, com a manutenção de uma estrutura de serviços. Às sinalizações de transformações na educação empreendidas pela PNEEPEI, no estado do Paraná, a sociedade se organiza, mobilizando o governo estadual, na luta pela manutenção das escolas especiais, estas, porém, passando por uma total reconfiguração em termos pedagógicos e políticos. Capítulos que se desenham no atual momento histórico da educação brasileira.

A atual política busca a ressignificação dos sentidos atribuídos à deficiência, a garantia de direitos e o combate ao preconceito, desestabilizando sentidos anteriores e proporcionando uma reflexão ética na busca pela melhoria de condições dessa parcela da população. Ao conjugar “igualdade e diferença como valores indissociáveis” (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED, 2008., p. 5), e ao afirmar a normalidade na diferença, a política tem tratado a questão da identidade com seu apagamento, e não com sua afirmação. Se a igualdade de oportunidade deve ser assegurada pelo direito à diferença, essa diferença deve ser reconhecida, e não apagada. A luta pelos direitos iguais de grupos minoritários, historicamente excluídos, ganha um contorno próprio quando esses afirmam suas identidades pela sua diferença. A identidade, entendida pelo seu traço alteritário, possibilita a existência de diferentes nos espaços de convívio público. A identidade se afirma, portanto, não pelo sentido de ser o mesmo, de ser igual, de ser normal, mas de ter sua diferença reconhecida. Quando esse reconhecimento do traço que diferencia é negado, o resultado pode ser a indiferença. A luta desses grupos pelo reconhecimento de seus direitos, se tratado de modo a atenuar, minimizar ou docilizar suas diferenças e suas necessidades, pode resultar em práticas indiferentes, ou seja, contrárias às suas necessidades. O jogo de palavras parece ganhar aqui seu principal efeito: a indiferenciação de quem sejam os alunos com necessidades especiais pode desobrigar o Estado de apresentar avanços em relação à parcela mais comprometida dessa população. Refletir a respeito da manutenção da diferença para práticas não-indiferentes, nesse sentido, pode assegurar uma direção ética para os profissionais da educação e da saúde que trabalham na área.

A diferença deve ser tomada como traço que identifica, que diferencia, e não que desiguala (Geraldi, 2007GERALDI, João Wanderley. A Diferença Identifica. A Desigualdade Deforma. Percursos Bakhtinianos de Construção Ética e Estética. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM E SOUZA, Solange; KRAMER, Sônia (Org.). Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-56.). A redução da deficiência à normalidade pode trazer o risco da perda de direitos, e não sua consecução. Na busca de igualdade de direitos, crianças e jovens podem passar burocraticamente pela escola, vivenciando situações de exclusão diárias (pois, embora os documentos legais, os sentidos sociais não são apagados), a marcá-los subjetivamente como incapazes, desajustados, impróprios. Podem tornar-se, portanto, em nome de uma forma de inclusão, vítimas de mecanismos perversos de exclusão, excluídos pela inclusão (Veiga-Neto, 2005VEIGA-NETO, Alfredo. Quando a Inclusão pode ser uma Forma de Exclusão. In: MACHADO, Adriana Marcondes et al. (Org.). Educação Inclusiva: direitos humanos na escola. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 51-70.). (Re)pensar significados legais e as formas de condução da educação nacional levam diretamente a (re)significar discursos presentes nas instituições escolares e os sentidos fixadores de identidades e de modos de subjetivação que veiculam-se por suas práticas.

Considerações Finais

As práticas educacionais fazem parte do diálogo social. Pensar a educação e suas transformações requerem um olhar disperso sobre as práticas e valores socialmente construídos e em tensão - a escola como instituição situada na teia discursiva. Da mesma forma, identidade e subjetividade são também, assim como a instituição educacional, construídas sócio-historicamente, tecidas em meio aos fios discursivos da prática social, não sendo processos autônomos, mas sim alteritários.

Assim, a partir da publicação da nova política nacional de educação especial que veio a transformar práticas educacionais e modelos instituídos desde 1994, este trabalho teve por objetivo analisar a proposta de inclusão desse novo documento que passou a reger a educação especial no país. Importante passo no reconhecimento do direito de pessoas de grupos historicamente excluídos, a nova política transporta o foco dos processos de normalização da educação especial para os direitos humanos, da caracterização social da deficiência, para os processos sociais de exclusão. Ao fazer isso, porém, instaura efeitos de sentido sobre práticas anteriores como fontes de práticas discriminatórias. Pôde-se perceber na política dois pontos de silêncio, não-ditos que evidenciam a presença de seus interlocutores - vozes que são suprimidas em nome de uma verdade exclusiva. Mais especificamente, podemos identificar esses dois não-ditos: como ausência de diálogo com os beneficiários das políticas; e também como ausência de diálogo da política com o sistema educacional como um todo. Quanto ao segundo, ao propor a inclusão total na rede regular de ensino, não dialoga com esse sistema - caracteriza-se como uma política para a educação especial, e não para a educação como um todo, embora sua proposta de um modelo único de educação para todos.

Políticas não apenas transformam práticas, mas produzem modos de subjetivação, delineando identidades coletivas e individuais. Ao combater processos discriminatórios, é preciso estar atento aos significados atribuídos à diferença e aos efeitos de sentido que essa significação produz. A luta pela garantia de direitos e o combate à exclusão precisam, portanto, se pautar no reconhecimento e respeito da/à diferença, e não em seu apagamento.

A história da educação especial evidencia suas transformações. De práticas de extermínio, que tornavam nada os portadores de deficiências, passamos ao tudo, proposto pelas atuais concepções radicalizadas de inclusão. Porém, esse tudo, a partir da significação das diferenças como normais, pode constituir-se como nada pelo apagamento de diferenças, que identificam e caracterizam as pessoas.

A inclusão escolar brasileira necessita, no atual contexto, de reflexões e avaliações sobre os posicionamentos adotados em documentos legais e seus efeitos nas práticas cotidianas com vistas à garantia de uma melhor qualidade educacional a todos. Tensionar o discurso da inclusão objetiva opô-lo a outros enunciados, para que não se corra o risco de se preservar apenas a retórica, a afirmação ingênua de que estamos no início de um novo processo. A discussão e avaliação dos efeitos da implementação de novas políticas, que reconhecem os direitos de grupos historicamente excluídos, constitui um importante passo para enfrentamento de práticas excludentes, possibilitando (re)pensar a educação enquanto instituição social contraditória, a quem são suscitadas respostas às demandas pela transformação social, assim como (re)avaliar a constituição de práticas e o lugar de tudo ou nada que podem legar ao público a que se destinam.

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Notas

  • 1
    Ao abordar as formas de significação da deficiência e da identidade dos alunos da educação especial no Brasil, neste texto optou-se por eleger a terminologia portador de necessidades especiais como forma de designar os beneficiários das políticas de educação especial, não de modo a indicar posicionamento frente às formas de compreensão, mas sim de modo a referenciar diretamente à Constituição Federal brasileira, de 1988, em seu artigo 208 (documento base para a garantia de direitos no país).
  • 2
    BARTON, Len; OLIVER, Mike. Disability Studies: Past, Present and Future. Leeds: The Disability Press, 1997.
  • 3
    Disponível em: <www.planalto.gov.br> e <www.portal.mec.gov.br>.
  • 4
    Disponível em: <www.alep.pr.gov.br>.
  • 5
    Disponível em: <www.unesco.org/new/en/unesco/resources/online-materials/publications/unesdoc-database/>.

Notas

  • *
    Jardel Pelissari Machado é psicólogo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Licenciado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Aluno do programa de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia da UFPR.
  • **
    Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan é psicóloga e fonoaudióloga (PUCPR - 1980, 1985) Especialista em Educação Especial (PUCPR). Mestre e Doutora em Letras (UFPR - 1995, 2003). Atualmente é professora visitante da Universidade do Texas, onde realiza seu pós-doutorado, e professora adjunta da Universidade Federal do Paraná (Departamento de Psicologia) e coordenadora do Núcleo de Psicologia, Educação e Trabalho - NUPET.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2012

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2010
  • Aceito
    01 Jan 2011
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