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Prática Avaliativa de Matemática: um dispositivo pedagógico de subjetivação

Evaluative Practice of Mathematics: a pedagogical device for subjectification

Resumo:

O texto divulga alguns resultados de uma pesquisa de mestrado já concluída, discute e problematiza a avaliação como ferramenta pedagógica que se exercita na sala de aula para a subjetivação de uma professora de Matemática e seus alunos, questionando enunciados sobre práticas avaliativas que são silenciados e podem ter implicações na produção de subjetividades. Aproxima-se das teorizações de Michel Foucault sobre a constituição de sujeitos em um movimento de análise que situou a avaliação em um lugar-outro do discurso pedagógico, inscrevendo-a como uma prática de diferenciação e uma ferramenta pedagógica para tornar visíveis os que aprendem e os que não aprendem na escola, e para a formação de um sujeito avaliador.

Palavras-chave:
Avaliação; Análise do Discurso; Práticas de Diferenciação

Abstract:

The text discloses some results of an already finished Master's degree research which discusses and problematizes evaluation as a pedagogical tool that is exercised in the classroom to subjectify a Mathematics teacher and her students. It questions enunciates on evaluation practices that are silenced and can have implications in the production of subjectivities. It approaches Michel Foucault's theorization on the constitution of subjects in an analysis movement that has placed the evaluation into a place-other in the pedagogical discourse, considering the evaluation as a differentiation practice, as well as a pedagogical tool in order to make both visible - those who learn and those who do not learn in school, as well as for the education of an evaluator subject.

Keywords:
Evaluation; Discourse Analysis; Differentiation Practices

Movimentos em Composições

Ao construirmos nossas metodologias traçamos, nós mesmos/as, nossa trajetória de pesquisa buscando inspiração em diferentes textos, autores/as, linguagens, materiais, artefatos. Estabelecemos nossos objetos, construímos nossas interrogações, definimos nossos procedimentos, articulamos teorias e conceitos. Inventamos modos de pesquisar a partir do nosso objeto de estudo e do problema de pesquisa que formulamos. Como estamos, permanentemente, 'à espreita' de uma inspiração, aceitamos experimentar, fazer bricolagens e transformar o recebido (Paraíso, 2012PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de Pesquisas Pós-críticas em Educação e Currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-Críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. P. 23-45., p. 32-33).

No Grupo de Pesquisa Currículo e Educação Matemática - GPCEM2 2 O GPCEM (www.gpcem.com.br) é cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), certificado pela UFMS e coordenado pelo Prof. Marcio Antonio da Silva. , somos todos convidados a traçar caminhos de pesquisa em composições. Paraíso (2012PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de Pesquisas Pós-críticas em Educação e Currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-Críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. P. 23-45.) expressa que este é um modo de pensar e fazer pesquisa, longe de certezas metodológicas, buscando por atitudes que possam nos ajudar em nossas interrogações - sempre próximas de uma realidade pontual da escola, do currículo, da Matemática e de um contexto cultural da escola que conhecemos.

O confuso trabalho de iniciar uma pesquisa sem um caminho delimitado, sem as certezas dos traçados antes mesmo de caminhar, nos pareceu um tentador gosto pela liberdade. No entanto, há algo de incerto na liberdade, algo que incomoda, desloca e angustia, permanentemente: falta um aprender o exercício da liberdade.

Mas é certo também que, do esboço inicial do que viria a ser um caminho metodológico, restou uma certeza: de que a construção de uma trajetória de pesquisa estruturada e definida antecipadamente não seria possível. "A inexistência de uma tal orientação (e, principalmente, acreditar que ela nada me valeria) permitiu-me um inusitado espaço de liberdade" (Bujes, 2007BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Descaminhos. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2007. P. 13-34., p. 31), assim como a certeza do enfrentamento de desafios na busca por escolhas de nossos procedimentos e artefatos de pesquisa, articularmos metodologias em composições, porém não em sua totalidade.

Assim, a construção de um caminho de pesquisa se deu em composições de ferramentas teórico-metodológicas que possibilitaram um modo singular de produzir e constituir pesquisa na contemporaneidade, articulando metodologias de pesquisas pós-modernas, entrevistas narrativas, teóricos da avaliação e análise do discurso, buscando por uma interlocução na perspectiva de análise foucaultiana aplicada ao tema que envolve relações entre avaliação como prática pedagógica, alunos e professores de Matemática em um estudo que buscou descrever e analisar práticas avaliativas de uma professora de Matemática e destacar possíveis implicações decorrentes dessas práticas na constituição dos sujeitos envolvidos: professora e alunos. Neste texto discutimos e problematizamos parte de um movimento de análise (com algumas adaptações) da pesquisa de mestrado já concluída (Souza, 2015SOUZA, Deise Maria Xavier de Barros. Narrativas de uma Professora de Matemática: uma construção de significados sobre avaliação. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Programa de Mestrado em Educação Matemática, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2015.).

As entrevistas foram um procedimento utilizado para a construção de processos narrativos em busca de vestígios de enunciações que induzem e governam práticas avaliativas de professores de Matemática. Além disso, buscou-se que pudessem contribuir para a construção de novos sentidos e significados para a avaliação escolar, para a constituição de uma professora que avalia na escola, de seus alunos e de uma pesquisadora que se intenciona nesses movimentos, como também de histórias compartilhadas dessa vida.

Para Bolívar (2002BOLÍVAR, Antônio Botía. "¿De nobis ipsis silemus?": Epistemología de lainvestigación biográfico-narrativa eneducación. Revista Electrónica de Investigación Educativa, Ensenada, México, v. 4, n. 1, p. 41-62, 2002., p. 43),

[...] a narrativa não só expressa importantes dimensões da experiência vivida, mas, mais radicalmente, mede a própria experiência em si e configura a construção social da realidade. Além disso, uma abordagem narrativa prioriza a natureza dialógica, relacional e comunitária, onde a subjetividade é uma construção social, intersubjetivamente moldada pelo discurso comunicativo. O jogo de subjetividades, em um processo dialógico, se converte em um modo privilegiado de construir conhecimento3 3 "La narrativa no sólo expresa importantes dimensiones de la experiencia vivida, sino que, más radicalmente, media la propia experiencia y configura la construcción social de la realidad. Además, un enfoque narrativo prioriza un yo dialógico, su naturaleza relacional y comunitaria, donde la subjetividad es una construcción social, intersubjetivamente conformada por el discurso comunicativo. El juego de subjetividades, en un proceso dialógico, se convierte en un modo privilegiado de construir conocimiento" (Bolívar, 2002, p. 43). .

O uso de entrevistas narrativas no estudo constitui um modo de também indicar uma possível posição dos sujeitos envolvidos na pesquisa como sujeitos inseridos na ordem de um discurso avaliativo, não sendo, portanto, sujeitos de um discurso da avaliação, mas sendo subjugados "[...] pelo controle ou dependência, e presos à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento" (Foucault, 1995FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault. Uma Trajetória Filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. P. 231-249., p. 7) e também, do mesmo modo, de olhar para alguns elementos sociais e culturais que os caracterizam como sujeitos de uma prática avaliativa na escola. Uma possibilidade para construir conhecimento a partir das narrativas da professora Ana4 4 Ana é um nome fictício escolhido para a divulgação das narrativas construídas na pesquisa, após a professora participante do estudo ter solicitado que sua identidade fosse preservada, pelo fato de atuar em uma escola da rede particular de ensino de Campo Grande, MS. envolvida em suas vivências com a construção de uma realidade, ainda que pontual sobre práticas pedagógicas avaliativas movimentadas na escola.

As entrevistas narrativas foram gravadas em vídeo, transcritas, textualizadas e apresentadas à professora para, a partir desse ponto, serem descritas e analisadas. São histórias narradas por Ana, que possui mais de vinte anos como professora de Matemática no ensino fundamental e médio em escolas da rede pública e particular - "[...] comecei a trabalhar em 1994 só na escola pública, em 1995 eu ainda trabalhava na escola pública e entrei para a escola particular" [Professora Ana, 20 set. 2013].

Escolas públicas e particulares como instituições que regem o discurso avaliativo e afirmam: "[...] que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém" (Foucault, 1996FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996., p. 7). Isto significa dizer que somos capturados por uma trama discursiva que nos induz e produz, que não somos nós, mas as instituições que estão na ordem do discurso avaliação de que narra uma professora de Matemática e que são movimentadas na escola por professores de Matemática e por uma pesquisadora em uma tarefa que consiste em tratar os discursos sobre a avaliação e as enunciações de uma professora de Matemática, "como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam" (Foucault, 2013aFOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2013a., p. 60), o que implica dizer que negamos toda e qualquer correlação direta entre estudos e discursos sobre a avaliação na sala de aula e as narrativas construídas pela professora Ana.

Nesse caminho, descrever e analisar histórias narradas pela professora Ana sobre práticas avaliativas é um movimento que interroga: quais outros enunciados sobre práticas avaliativas são silenciados e podem ter implicações na produção de subjetividades? Quando a professora constrói narrativamente uma prática avaliativa, põe em modos de suspeição dispositivos que regem nossas ações, que silenciam outras ações possíveis e que talvez nunca possam ser despertos de um sono profundo.

A Avaliação como Dispositivo Pedagógico

A problematização nas teorizações de Michel Foucault movimentada neste texto foi orientada pela questão: gostaria que você falasse um pouco das avaliações na escola. Olhando para a escola pública e para a escola particular, por que é importante a avaliação na sua prática pedagógica? Uma questão que talvez pudesse indicar: por quais caminhos anda uma prática avaliativa de Matemática, senão pelos caminhos discursivos da Educação?

Assim, nosso interesse na avaliação movimentada na sala de aula por uma professora de Matemática e seus alunos, centra-se na ideia de que a avaliação pode funcionar como um dispositivo pedagógico5 5 Cf. Foucault (1979, p. 138). - uma composição de elementos discursivos, decisões regulamentares e instituições - que toma a avaliação do discurso da Educação e a faz funcionar como uma rede na qual se estabelece relações entre esses elementos para a constituição dos sujeitos envolvidos - uma professora de Matemática e seus alunos. O que para Foucault (1979FOUCAULT, Michel. O Dispositivo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução técnica: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 138-141., p. 138) funcionaria "[...] como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade", um jogo que altera posições de centralidade de poder que pouco a pouco, pela ação da escola, de uma professora de Matemática, de alunos, de pais e de toda a sociedade torna-se um dispositivo de controle da prática escolar.

Haverá outras ressonâncias desse controle? Para além da vida escolar?

Foucault (1979FOUCAULT, Michel. O Dispositivo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução técnica: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 138-141.) nos ensina que sim. O dispositivo pedagógico da avaliação na escola carrega uma função de objetivo estratégico, à medida que, em determinado momento, a avaliação passa a ser considerada como um instrumento eficaz de verificação da aprendizagem curricular, extraindo do espaço social da sala de aula a diferença que nos constitui. Os efeitos dessa prática têm natureza estratégica na formação de sujeitos sociais, implicando na

[...] manipulação das relações de força, de uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc... O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. E isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles (Foucault, 1979FOUCAULT, Michel. O Dispositivo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução técnica: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 138-141., p. 139).

Uma prática avaliativa pode, nesse contexto, ser inserida como um dispositivo pedagógico movimentado em relações de poder muito específicas. Daí a importância de interrogar sobre a força de um dispositivo pedagógico da avaliação nessas relações, não em uma direção negativa, mas como um dispositivo produtor de uma realidade sobre a avaliação na sala de aula e seus efeitos de produção. Como nos alerta Foucault (2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução: Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. P. 164-185.b, p. 185), "o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade", sobre a avaliação de conhecimentos matemáticos na escola, sobre os alunos e a professora.

Como objeto de destaque de uma prática pedagógica, a avaliação pode indicar, ainda, um dispositivo pedagógico de subjetivação dos sujeitos envolvidos no espaço da sala de aula.

Larrosa (2011LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. P. 35-86.) afirma que, nos estudos de Foucault, a constituição de ser o que se é ocorre por um processo de subjetivação do sujeito, daí o enlace entre subjetividade e exercícios de poder. A subjetivação de uma professora iniciante se dá, nesse contexto, quando um determinado domínio material de práticas avaliativas "é focalizado como objeto de atenção" (Larrosa, 2011, p. 55) na escola e induz a formação de uma professora de Matemática enquanto sujeito avaliador, mas também quando a professora movimenta práticas apreendidas com seus alunos no cotidiano da sala de aula:

[...] a gente é cobrada o tempo todo por meio de um processo avaliativo. Depende também do que a escola quer... da linha da escola e da sua credibilidade dentro da escola. Então é por isso que eu tento equilibrar, se eles foram mal na prova - Vou fazer um simulado, uma lista... Sempre tiro um exercício da lista e coloco na prova. Deixo que eles percebam isso, não falo nada. - Professora ainda bem que eu fiz aquela lista, tinha questão daquela lista na prova. No primeiro ano os alunos são mais imaturos, no segundo ano eles fazem naturalmente. - Olha um exercício da lista! [Professora Ana, 25 out. 2013].

A subjetivação é um movimento que põe em prática relações de poder muito específicas. Para Foucault (2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução: Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. P. 164-185.b, p. 30), "[...] não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder", estabelecendo, assim, uma relação hifenizada entre saber e poder, no interior da qual os sujeitos são aprisionados, capturados e induzidos, não para uma submissão passiva, mas como produtores de um saber avaliação.

Como um dispositivo pedagógico de subjetivação, uma prática avaliativa ensina o que é a avaliação, o que é ser sujeito avaliador e a importância que tem esse dispositivo para a formação dos alunos. Como se articulam? Quais seriam as relações de saber-poder que podem ocorrer em uma prática avaliativa na vida de crianças na escola? Podem alcançar as crianças na vida fora da escola? Em que medida também alcança uma professora de Matemática em sua formação docente? Questionamentos que movimentam nossas problematizações neste texto.

Avaliação: uma máquina de ver na sala de aula

No espaço da sala de aula, nas relações entre professora e seus alunos, a avaliação vai se constituindo como parte de um processo social mais amplo. O que é classificado como certo ou como errado em um determinado contexto faz parte de um capital cultural6 6 Cf. Silva (2000, p. 24), "[...] refere-se à posse de bens, capacidades e títulos culturais que, por homologia com o capital propriamente dito, isto é, o capital econômico, adquirem um valor social, proporcionando vantagens sociais aos seus possuidores. O termo está identificado com a teorização do sociólogo francês Pierre Bourdieu. O capital cultural pode se apresentar de forma objetivada (objetos culturais como obras de arte, livros, discos); institucionalizada (títulos, certificados e diplomas); ou incorporada (disposições e capacidades culturais internalizadas)". histórico e ideologicamente condicionado aos anseios de uma professora de Matemática, de seus alunos e da escola, a partir de uma leitura do que a sociedade espera de instituições educacionais.

Mas as instituições movimentam discursos diferentes em um contexto específico e pontual - as instituições educacionais veem os seus sujeitos:

[...] depois que passa o simulado a matéria vai continuando, porque eu não posso parar, se eu parar vai atrasar o conteúdo. Vou deixar de dar outros conteúdos. Na escola particular não funciona assim. Na escola pública você faz o que quer. Penso que é melhor o aluno aprender. Aprender a pensar aquele conteúdo e depois seguir com outros conteúdos. Na escola pública, se você continuar com o conteúdo o aluno não 'dá conta' sozinho, não sei o que acontece, eles sempre esquecem o que você já ensinou [Professora Ana, 25 out. 2013].

De um lado, alunos de escolas particulares que convivem com um discurso interno da competência7 7 Perrenoud (2002, p. 122) propõe "[...] consideramos competência segundo três características: tomada de decisão, mobilização e recursos e saber agir, enquanto construção, coordenação e articulação de esquemas de ação ou de pensamento". , de melhores alunos, mais capazes, que estudam mais e, por isso, estão mais bem preparados e, por outro lado, alunos de escolas populares que não conseguem acompanhar o conteúdo (sozinhos) e precisam de ajuda, pois sempre esquecem o que lhes foi ensinado. Mas a professora é a mesma nas diferentes realidades sociais e movimenta o mesmo enunciado de uma prática avaliativa: uma ferramenta de controle do conhecimento matemático que o aluno deve informar.

Um movimento autorizado e induzido por uma rede de significações para a condução do trabalho pedagógico na escola e para a construção de um campo de significação em torno dessa prática por alunos, por pais, por professores e pela sociedade, um discurso autorizado pela racionalidade neoliberal que constitui/produz/induz o discurso da competência, da seleção e classificação. Silva (2014SILVA, Marcio Antonio da. Currículo como Currere, como Complexidade, como Cosmologia, como Conversa e como Comunidade: contribuições teóricas pós-modernas para a reflexão sobre currículos de matemática no ensino médio. Bolema. Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 28, p. 516-535, 2014., p. 520), sobre a perspectiva moderna de currículo dominada por regulações educativas8 8 Cf. Silva (2014, p. 520). da racionalidade neoliberal, critica

[...] a necessidade de se instituir orientações curriculares que, embora não sejam construídas com o objetivo de estabelecer regras categóricas, são interpretadas como tal. Também se valoriza muito a importância dos diferentes materiais que apresentam o currículo, como livros didáticos, materiais manipuláveis, recursos digitais, entre outros. Por fim, a avaliação, principalmente as feitas em larga escala, medem a eficácia de execução do projeto, sem levar em conta as especificidades dos participantes protagonistas: os estudantes.

Uma multiplicidade de elementos discursivos que afetam a constituição de um sujeito avaliador, uma ação que modifica e transforma sua formação na escola, que o submete e por isso, aceita e toma como natural e necessário treinar e avaliar os alunos desta forma (Veiga-Neto, 2011VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.). Assim, as avaliações como dispositivos de controle do conhecimento daquilo que foi apropriado pelos alunos são uma forma que a professora encontra para planejar e reestruturar caminhos de ensinar e aprender no cotidiano escolar, isto porque deve publicar seus resultados, espelhados pelos resultados de seus alunos, desconsiderando processos avaliativos que valorizam as especificidades dos alunos, suas diferenças e contextos sociais locais.

Nesse caminho nos aproximamos de Larrosa (2011LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. P. 35-86.) que, em uma leitura de Foucault, insere a escola como uma máquina de ver, como uma forma de tornar possível a constituição de dispositivos eficazes para ver o que os alunos sabem. No caso da escola, é possível citar, além da própria escola, a avaliação como um dispositivo que torna visível aquele que uma máquina de ver pode capturar.

Uma prática que faz com que as escolas precisem "tornar eficazes os processos que realizam" (Larrosa, 2011LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. P. 35-86., p. 60), como o ensinar, o classificar e o selecionar, com garantias de que esses dispositivos traduzam a realidade de uma seleção no caso de escolas particulares e a possibilidade desejada por uma professora de Matemática em treinar mais seus alunos em instituições populares.

É no contexto específico das narrativas da professora Ana que se faz possível um apontamento9 9 Como um ato de tomar notas, registrar e refletir. de condições de produção que uma máquina de ver a avaliação na escola produz e induz. A captura de marcas enunciativas de um discurso que movimenta uma prática avaliativa da professora como indicativo do uso exclusivo de instrumentos como provas, testes, simulados e listas de exercícios, como recursos avaliativos da aprendizagem de alunos na sala de aula, se faz presente nas enunciações da professora Ana:

[...] para você entender a minha posição, de todos os professores eu acho, se a prova é importante... Bem... vamos a sua pergunta [risos]. Fazer prova é importante? Sim, em minha opinião sim. Primeiro porque a escola me cobra a parte quantitativa, é nota. Segundo porque eu gosto de dar vários testes, os alunos preferem, porque não acumula conteúdo entendeu? [Professora Ana, 25 out. 2013].

Para Wanderer e Knijnik (2014WANDERER, Fernanda; KNIJNIK, Gelsa. Processos Avaliativos e/na Educação Matemática: um estudo sobre o Programa Escola Ativa. Revista Educação, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, p. 92-100, 2014., p. 95), "[...] procedimentos que integram a avaliação da apropriação de conhecimentos - por meio de provas e trabalhos - com mecanismos de vigilância sobre as atitudes e o modo de ser dos alunos" são instrumentos utilizados para ver não só o que os alunos sabem, mas como agem, uma forma de regular aprendizagens e corpos.

Esses instrumentos são "[...] fundamentais às estratégias de avaliação e intervenção compreendidas sob a forma de poder" (Silva, 2006SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currículo como Fetiche: a poética do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 46) que se exercitam e são institucionalizados na escola, um saber-poder que subjuga e toma seus sujeitos: professora e alunos. Assim, uma professora de Matemática prefere lançar mão de muitos testes, uma forma de fracionar10 10 Professora Ana, 25 out. 2013. o conteúdo para facilitar o trabalho de treinamento de alunos para a exposição de bons resultados, pois "ao avaliar, também é avaliada" (Esteban, 2008ESTEBAN, Maria Teresa. Ser Professora: avaliar e ser avaliada. In: ESTEBAN, Maria Teresa (Org.). Escola, Currículo e Avaliação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008. P. 13-37. (série cultura, memória e currículo; v. 5)., p. 21).

Os alunos sabem o que a máquina de ver quer ver e, por esta razão, preferem vários testes como, também, uma forma de não acumular o conteúdo e, assim, sentem-se mais estimulados por uma condição maior em atingir boas notas porque, normalmente, eles fazem a prova bem11 11 Professora Ana, 25 out. 2013. . Esses instrumentos de controle paliativo de resultados têm o papel de garantir sem falhas o

[...] quadriculamento cada vez mais detalhado dos comportamentos individuais. As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento. Nessas máquinas de observar, como subdividir os olhares, como estabelecer entre eles escalas, comunicações? Como fazer para que, de sua multiplicidade calculada, resulte um poder homogêneo e contínuo? (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução: Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. P. 164-185.b, p. 167).

A avaliação pode ser compreendida como uma maquinaria do poder social da escola que inserimos nas teorizações de Foucault como um instrumento possível para enquadrar não só comportamentos, mas para dar à escola o controle, o registro e a organização de estratégias de produção de mais instrumentos (testes, provas, simulados, etc.). Com isso, a escola pode obter uma multiplicidade local, homogênea e contínua de melhores alunos, mas que, ao mesmo tempo, seja principalmente diferenciada de outras instituições. Espera-se, pois, estar entre as melhores, ou ainda, mais pontualmente, liderando o ranking das melhores escolas do Brasil. Até porque, "quem se lembra do segundo lugar? A sociedade é assim. É da cultura, os primeiros que interessam" [Professora Ana, 25 out. 2013].

Uma apropriação pela professora Ana de um discurso institucionalizado para a produção de melhores alunos à sociedade da competência. Se os resultados não são satisfatórios, professora e escola ficam inconformadas, pois os resultados são estendidos a toda a comunidade escolar: "é muito importante para a escola, para os alunos, os pais, até professor fica bem..." [Professora Ana, 25 out. 2013].

A máquina de ver capta também falhas de uma professora de Matemática, que refaz provas e testes; que treina incansavelmente seus alunos; que não precisam resolver as questões, só mostrar o que é cobrado como resultado de um treinamento, uma prática que

[...] vai dar trabalho entendeu? Se em cada teste o professor ganhasse um valor todo mundo ia dar um monte de testes. Como não ganha, depende da nossa responsabilidade, depende da sua visão, do que você espera dos alunos. Acho que é muita responsabilidade você ser um professor [Professora Ana, 25 out. 2013].

Depende daquilo que se espera de alunos na escola: bons resultados.

O entendimento da escola do que seja avaliar é constituído como uma orientação central para todos. Um discurso que se intenciona único, como

[...] um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução: Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. P. 164-185.b, p. 167).

Assim, a professora organiza sua prática avaliativa voltada para o treinamento de alunos na escola. Isto porque sabe que sua prática "depende também do que a escola quer... da linha da escola" [Professora Ana, 25 out. 2013].

Todos os mecanismos que uma professora pode movimentar para que uma prática avaliativa possa medir o que sabem seus alunos é pensado e planejado. Nesse contexto é que inserimos como mecanismos de controle, listas com questões da prova - como um modo de convencimento para que os alunos façam as tarefas propostas e nas situações em que a professora tabula questões entre acertos e erros - "Eu tabulo todas as questões para saber de onde eu tirei a questão, quantos acertaram, erraram..." [Professora Ana, 25 out. 2013].

Práticas avaliativas são constituídas em um regime de verdade voltado para uma vigilância dos resultados e das circunstâncias do processo para que as notas não sejam comprometidas. Quando todos os envolvidos nesse processo avaliativo (alunos, pais, professores e direção) limitam-se a esses mecanismos de vigilância é que escola e sociedade produzem estruturas de objetivação de alunos no espaço da sala de aula.

Por meio da objetivação, a escola transforma as crianças e os jovens em objetos que podem ser ordenados e classificados por medidas quantitativas, classificando-as como umas que valem mais do que outras. Nesse contexto, a avaliação na sala de aula é como uma "cerimônia dessa objetivação" (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução: Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. P. 164-185.b, p. 179) - efeito e instrumento para a objetivação das crianças, mas também de um aprender ser sujeito avaliador pela professora:

[...] não gosto que mandam avaliar um conceito. Eu posso avaliar tarefa, vou contar quantas tarefas o aluno fez e quantas ele não fez, faço um cálculo e isso vai ser um número exato. Então, em todas as escolas que eu trabalhei e trabalho até hoje, no final das contas sai uma coisa chamada boletim. Tudo vai somar números! [Professora Ana, 25 set. 2013].

Na medida em que os alunos são objetivados, o processo de quantificação torna-se mais claro e objetivo. As enunciações de uma professora de Matemática em um contexto específico de uma prática avaliativa da sala de aula movimentam uma formação discursiva que pode ser de muitos outros professores - a subjetividade nas relações do aprender e ensinar na sala de aula é esquecida em detrimento da quantificação de alunos em que provas são "uma consequência desse trabalho" [Professora Ana, 25 set. 2013].

Tomar provas como o fim de um processo de ensinar e aprender na escola é tão assustador quanto ver crianças serem transformadas em objetos pelo olhar daqueles que deveriam buscar outros modos para uma formação de um pensamento crítico a uma participação no meio social; do mesmo modo, saber que professores vivenciam processos de formação na escola que objetivam desenvolver esse pensamento: "no início foi muito difícil, para pegar o jeito dessas manobras, do que a escola queria diferente do que a gente pensa" [Professora Ana, 25 set. 2013].

Na vivência com essas formações discursivas na escola, durante sua formação, a professora Ana assume uma determinada posição para ser sujeito dessas práticas. É assim que pode afirmar:

[...] quando você trabalha e sabe que a escola exige uma quantidade de notas azuis, você acaba fazendo uma prova coerente com aquilo que estão pedindo, não é assim? A vida inteira eu trabalhei com provas, se os alunos iam mal, eu já dizia - Calma, eles vão fazer outra prova. Eu nunca tive preguiça de dar outra prova [Professora Ana, 25 set. 2013].

Essas enunciações podem indicar marcas aparentes de influências de um discurso da avaliação institucionalizadas por políticas públicas para a constituição de um sujeito pedagógico que não pode ser analisado, segundo Veiga-Neto (2011), a partir do próprio sujeito, mas sim das muitas camadas de relações de poder que o cercam e o envolvem, constituindo-o.

Para Larrosa (2011LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. P. 35-86., p. 61), a escola, ao movimentar enunciados envolvendo professores, alunos e pais em um processo avaliativo, pode, no momento em que consegue convencer aquele que será o sujeito do olhar como o objeto visível, capturar e transformar os sujeitos. "Esse dispositivo tão inócuo estabelece ao mesmo tempo o que é a criança enquanto objeto visível, quais são as coisas que são vistas e classificadas e o que é a professora enquanto observadora, como ela vê as crianças, o que ela deve olhar", prevalecendo o sentido da visão sobre todas as coisas da escola, da aprendizagem de alunos e da capacidade de ensinar-treinar da professora.

Mas a professora aprende a olhar e classificar as crianças com um olhar específico, não outro - aquele que vê objetos que devem ser selecionados, ordenados e classificados:

[...] com o tempo eu fui aprendendo a fazer prova...é... fazer avaliação. Quando eu falo em avaliação eu penso em prova, porque a gente tem que dar nota! Essa nota tem que aparecer no papel. Foi por isso que lá no início da minha carreira eu comecei a ver que se eu desse só uma prova, duas... Depois eu não ia ter como reverter aquele resultado, a nota do aluno. O aluno fica muito desestimulado, isso afeta di-re-ta-men-te12 12 A separação da sílaba na escrita é uma forma de aproximação com a fala da professora ao pronunciar a palavra 'diretamente'. a vida escolar do aluno. O professor pode, simplesmente, fazer com que o aluno desista. Em uma escola pública, desista de estudar, já em uma escola particular, você tira o aluno daquela escola com uma avaliação. Isso tudo dependendo de como você avalia... O que eu quero dizer é de como são suas provas [Professora Ana, 25 set. 2013].

Assim, a prática avaliativa que uma professora movimenta na sala de aula é uma máquina de ver os alunos. O que não sabem? O que ainda precisam saber para se tornarem o que a escola e a sociedade intencionam que sejam? O que lhes falta? São sempre medidas, selecionadas por um processo de coleta de informações por meio de provas, testes e simulados - de um currículo tomado como ideal que é desse tempo.

Uma prática avaliativa na sala de aula, quando inserida nessa lógica de controle, ensina professores e alunos a se subjetivarem na ordem do discurso da avaliação imposto e os induz a compreender a disciplinaridade como central,

[...] na qual a escola, como instituição fechada e episódica na nossa vida, teve e ainda tem um papel fundamental - está se passando para uma subjetivação aberta e continuada - na qual o que mais conta são os fluxos permanentes que, espalhando-se por todas as práticas e instâncias sociais, nos ativam, nos fazem participar e nos mantêm sempre sob controle (Veiga-Neto, 2011, p. 114).

Assim, os sujeitos inseridos na ordem desse discurso-avaliação naturalizam uma prática que controla, classifica, seleciona e que é apresentada como válida no contexto social da sala de aula, daquilo que os alunos intencionam para suas vidas, um convencimento constituído a partir dos jogos de seleção e classificação de universidades e das posições sociais daqueles com melhores rendimentos escolares - uma seleção para além da escola, isto porque "o simulado é estilo ENEM, entendeu? Como eu já sabia, já tinha visto no ano anterior, eu treinei..." [Professora Ana, 25 out. 2013].

Provas, testes e simulados são meio e instrumentos de controle dessas intenções, expõem alunos e a professora, "estabelecem sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados" (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução: Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. P. 164-185.b, p. 177) e, assim, ganham uma posição valorizada no meio escolar. O destaque desses instrumentos em uma prática avaliativa pode comprometer, significativamente, a formação e o desenvolvimento de crianças na escola, uma vez que selecionados os melhores, também são selecionados aqueles que foram excluídos do processo de aprender e de uma vida social, com melhores oportunidades. Uma prática movimentada para alimentar processos de exclusão na escola com implicações para a vida depois da escola.

Nesse caminho, as máquinas de ver criadas para observar os alunos, a professora e os discursos sociais que movimentam o contexto escolar apagam a subjetividade dos processos avaliativos na sala de aula.

Alguns Tensionamentos

O discurso da Educação tem movimentado enunciados de uma prática avaliativa como instrumento que permite conhecer e refletir sobre o que alunos sabem de um currículo matemático que lhes foi ensinado, sobre outros caminhos para a aprendizagem e como instrumento para uma organização do trabalho de ensinar e aprender na sala de aula. Mas os processos de construção narrativa organizados na pesquisa, como as questões não diretivas e as conversas negociadas de releitura das entrevistas textualizadas com a professora Ana indicaram práticas avaliativas em outros caminhos discursivos.

O modo como nos transformamos no caminho descritivo de enunciações narradas na pesquisa, de uma ideia ingênua de práticas avaliativas que movimentamos na escola para interrogações de um saber-poder da avaliação tornou possível uma aproximação com a ideia de prática avaliativa como uma máquina de ver que capta os que sabem e os que não sabem e se é possível ensiná-los (ou treiná-los) a movimentar discursivamente e de maneira natural esses enunciados, inserindo a avaliação na sala de aula como uma ferramenta utilizada para a captura e registro daqueles que aprendem e daqueles que não aprendem no espaço da sala de aula, como também das capacidades de treinamento de uma professora de Matemática para esse exercício de seleção e classificação.

A máquina de ver seleciona crianças que poderão seguir adiante, mas também aquelas que irão desaparecer socialmente. Um discurso institucionalizado por uma escola que se firma cada vez mais como uma instituição que cria oportunidades, o lugar em que todos são tratados como iguais em suas diferenças para a construção de caminhos de inclusão social.

Uma prática avaliativa nesse espaço reafirma-se, fortemente, como uma prática de significação - movimenta ações para o convencimento do papel social da escola na formação de crianças e de um sujeito avaliador. Assim, os espaços de ações de aprender e ensinar podem ser tomados por práticas de avaliar, anulando possibilidades de inclusão daqueles que não conseguem acompanhar o processo.

Uma luta contra as relações exercidas pelo micropoder da avaliação na sala de aula não pode ser empreendida como meio de obter uma nova forma de controle, de inversão de poderes ou papeis entre alunos de escolas públicas e particulares, nem mesmo pela negação de instituições escolares ou, ainda, uma nova forma de constituí-las, pois produziriam novas formas de exclusão. Não há outra forma de luta senão pelos efeitos induzidos pela avaliação na sala de aula, pelas marcas de exclusão na formação que a escola impõe a alunos e professores no espaço escolar, como também pelos seus efeitos que induz e produz na formação para a vida em sociedade - uma prática que não cessa um movimento de classificação.

Não se trata de imaginar que só será possível empreender uma forma mais democrática de avaliar aprendizagens de alunos no espaço escolar se relações de poder da avaliação da aprendizagem forem suspensas da sala de aula. Renunciar à ideia de que um saber da avaliação de aprendizagens poderá ser movimentado de forma mais democrática, fora dos limites de relações de poder, é dizer que exercícios de poder também produzem saber, que sustentam uma estreita relação de dependência entre si - uma forte relação de produção entre saber-poder.

Daí a importância de estudos que problematizam práticas pedagógicas movimentadas na escola, buscando por uma interlocução com o pensamento de Michel Foucault: funcionam como um movimento de luta pela imposição de saberes pedagógicos que podem articular e constituir práticas para avaliar conhecimentos que objetivam alunos e professores, tomando a Matemática como o instrumento-saber para essa objetivação.

Um movimento de luta longe da apatia e do conformismo indicativo entre palavras e coisas do campo da Educação, um movimento que busca por uma ética nas escolhas a fazer: o que podem as práticas pedagógicas avaliativas na sala de aula? O que intencionam de nós professores de Matemática? Por que nos fazem simples instrumentos para a objetivação, classificação e seleção para a manutenção do espaço social? A oportunidade é para todos?

Referências

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  • ESTEBAN, Maria Teresa. Ser Professora: avaliar e ser avaliada. In: ESTEBAN, Maria Teresa (Org.). Escola, Currículo e Avaliação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008. P. 13-37. (série cultura, memória e currículo; v. 5).
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  • PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de Pesquisas Pós-críticas em Educação e Currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-Críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. P. 23-45.
  • PERRENOUD, Philippe. As Competências para Ensinar no Século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
  • SILVA, Marcio Antonio da. Currículo como Currere, como Complexidade, como Cosmologia, como Conversa e como Comunidade: contribuições teóricas pós-modernas para a reflexão sobre currículos de matemática no ensino médio. Bolema. Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 28, p. 516-535, 2014.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currículo como Fetiche: a poética do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria Cultural e Educação - um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica , 2000.
  • SOUZA, Deise Maria Xavier de Barros. Narrativas de uma Professora de Matemática: uma construção de significados sobre avaliação. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Programa de Mestrado em Educação Matemática, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2015.
  • VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  • WANDERER, Fernanda; KNIJNIK, Gelsa. Processos Avaliativos e/na Educação Matemática: um estudo sobre o Programa Escola Ativa. Revista Educação, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, p. 92-100, 2014.
  • 1
    Este texto é uma versão ampliada do trabalho submetido ao VI Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática (VI SIPEM) realizado no período de 15 a 19 de novembro de 2015.
  • 2
    O GPCEM (www.gpcem.com.br) é cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), certificado pela UFMS e coordenado pelo Prof. Marcio Antonio da Silva.
  • 3
    "La narrativa no sólo expresa importantes dimensiones de la experiencia vivida, sino que, más radicalmente, media la propia experiencia y configura la construcción social de la realidad. Además, un enfoque narrativo prioriza un yo dialógico, su naturaleza relacional y comunitaria, donde la subjetividad es una construcción social, intersubjetivamente conformada por el discurso comunicativo. El juego de subjetividades, en un proceso dialógico, se convierte en un modo privilegiado de construir conocimiento" (Bolívar, 2002, p. 43).
  • 4
    Ana é um nome fictício escolhido para a divulgação das narrativas construídas na pesquisa, após a professora participante do estudo ter solicitado que sua identidade fosse preservada, pelo fato de atuar em uma escola da rede particular de ensino de Campo Grande, MS.
  • 5
    Cf. Foucault (1979FOUCAULT, Michel. O Dispositivo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização e tradução técnica: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 138-141., p. 138).
  • 6
    Cf. Silva (2000SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria Cultural e Educação - um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica , 2000., p. 24), "[...] refere-se à posse de bens, capacidades e títulos culturais que, por homologia com o capital propriamente dito, isto é, o capital econômico, adquirem um valor social, proporcionando vantagens sociais aos seus possuidores. O termo está identificado com a teorização do sociólogo francês Pierre Bourdieu. O capital cultural pode se apresentar de forma objetivada (objetos culturais como obras de arte, livros, discos); institucionalizada (títulos, certificados e diplomas); ou incorporada (disposições e capacidades culturais internalizadas)".
  • 7
    Perrenoud (2002PERRENOUD, Philippe. As Competências para Ensinar no Século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002. , p. 122) propõe "[...] consideramos competência segundo três características: tomada de decisão, mobilização e recursos e saber agir, enquanto construção, coordenação e articulação de esquemas de ação ou de pensamento".
  • 8
    Cf. Silva (2014SILVA, Marcio Antonio da. Currículo como Currere, como Complexidade, como Cosmologia, como Conversa e como Comunidade: contribuições teóricas pós-modernas para a reflexão sobre currículos de matemática no ensino médio. Bolema. Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 28, p. 516-535, 2014., p. 520).
  • 9
    Como um ato de tomar notas, registrar e refletir.
  • 10
    Professora Ana, 25 out. 2013.
  • 11
    Professora Ana, 25 out. 2013.
  • 12
    A separação da sílaba na escrita é uma forma de aproximação com a fala da professora ao pronunciar a palavra 'diretamente'.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2017
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2015
  • Aceito
    13 Jan 2016
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