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Os Limites Educacionais do Capital

RESUMO

A partir da perspectiva do Materialismo Histórico, nosso objetivo neste artigo é construir uma crítica do que denominamos três dimensões básicas dos limites educacionais engendrados pela ordem sociometabólica do Capital, articulando a discussão desses limites ao potencial transformador e revolucionário da Educação. Partimos da concepção de que a contradição fundante da educação no Capital é apresentar-se como sistema de reprodução do quadro de valores e práticas do sistema ao mesmo tempo em que se constitui como via de contestação dessa mesma estrutura ideológica. Indicamos, em conclusão, que os limites da educação devem ser concebidos como parte do complexo quadro ideológico de referência do capital, e não apenas como elementos isolados.

Palavra-chave
Educação; Capitalismo; Marxismo

ABSTRACT

Drawing on a Materialist perspective, in this paper we aim to build a critique of what we call three basic dimensions of the educational limits engendered by the sociometabolic order of the Capital, articulating the discussion of these limits to the transformative and revolutionary potential of Education. We set out from the principle that the founding contradiction of education in capitalism is to present itself as a system of reproduction of capitalism’s framework of values and practices while it constitutes itself as a way of contesting this same ideological structure. In conclusion, we indicate that the limits of education must be conceived as part of the Capital’s complex ideological framework of reference, and not just as isolated elements.

Keywords
Education; Capitalism; Marxism

Introdução

O momento dramático vivido de incessante desqualificação de nossos professores, nossas pesquisas, nossos alunos, nossos amigos e companheiros de trabalho, cujo objetivo é o desmantelamento de nossas instituições educacionais públicas e gratuitas, nos chama à ação coletiva. O escamoteamento da educação, a precarização da formação dos professores e o apego demasiado a uma prática reprodutora de senso comum clamam por reflexões teóricas críticas que não se satisfaçam no raso. A máxima tão conhecida de Marx e Engels continua fundamental, Trabalhadores do mundo, uni-vos.

A partir da base epistemológica do materialismo histórico, propomo-nos neste artigo a apresentar uma análise do que denominamos de três dimensões básicas dos limites educacionais do Capital, articulando a discussão desses limites ao potencial transformador e revolucionário da Educação. Buscamos também tecer relações entre essas três dimensões e os trabalhos apresentados na seção temática Capitalismo, Estado e Educação - os limites do Capital, organizado por nós para a revista Educação & Realidade.

Educação e os Limites do Capital

A contradição fundante da educação no Capital, tanto formal quanto informal, é apresentar-se como sistema de reprodução de valores, práticas, símbolos, signos e significados ao mesmo tempo em que se constitui como via de contestação dessa mesma estrutura ideológica (Williams, 2011WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.; 2015). Os limites educacionais podem ser organizados, entre outras, em três dimensões básicas, quais sejam, 1) a reprodução ideológica de sujeitos cujos movimentos individuais reproduzam cotidianamente o sistema de práticas e valores dessa estrutura e por meio dos quais garantam sua ilusória sensação de pertencimento a ela; 2) a função dos intelectuais na construção, manutenção e adequação dessa estrutura sociometabólica nos níveis econômico, político e ideológico; e 3) a preparação de quadros de trabalhadores aptos a atender às necessidades de mão de obra do sistema (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. ).

A primeira dimensão do que concebemos como limites educacionais do capital diz respeito à reprodução de sujeitos cujos objetivos individuais estejam de acordo com as normas, práticas, valores e significados de uma cultura hegemônica e dominante (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. ). Por meio das agências de transmissão e reprodução ideológica da cultura dominante, o sistema de valores do Capital é reproduzido, absorvido e vivido cotidianamente, dentre outras formas, pela via do ‘senso comum’ (Williams, 2011WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.). A esse respeito, Mészáros (2004, p. 481)MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução: Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. argumenta que “[os] sistemas ideológicos sofisticados expressam à sua maneira as mesmas condições de reificação prática que o ‘senso comum’ encontra à mão e ativamente confirma por si mesmo todos os dias”.

A ideologia dominante é “[...] sustentada pela evidência prática das estruturas materiais estabelecidas, em cujo interior as pessoas têm de reproduzir as condições materiais e culturais de sua existência e sentir-se à vontade como um peixe dentro d’água” (Mészáros, 2004MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução: Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 482). É interessante observarmos o sentido um tanto tautológico da expressão “sentir-se como um peixe dentro d’água”. Ela representa a profunda naturalização social e cultural de um sistema de práticas e valores que mesmo reprodutor de contradições das mais variadas mantém-se como força dominante incontestável de controle.

O sentido de um sistema incontestável somente é possível porque perpassa pela vivência dessas práticas, valores e significados dominantes em circulação sociocultural como sentidos individuais que são diluídos na vida cotidiana. Williams (2011, p. 54)WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. argumenta que se “[...] o que então aprendemos fosse apenas uma ideologia imposta, ou se fossem apenas os significados e práticas isoláveis da classe dominante [...] impostos às outras classes ou membros da sociedade [...] isso seria algo muito mais fácil de ser derrubado”. Isto é, não apenas o sistema de práticas, valores e significados da classe dominante é reproduzido socialmente, ele é apropriado por outras classes como seu próprio sistema de práticas, valores e significados.

O conceito de uma ‘circulação sociocultural de ideias’, ou reprodução ideológica, representa a máxima marxista de que “[a]s ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual [geistige] dominante” (Marx; Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 47, grifo dos autores). O conceito de [geistige] em português também poderia ser traduzido por ‘intelectual’, indicando que o poder de dominação da classe burguesa é material ao mesmo tempo em que é intelectual. Isto é, a manutenção e reprodução da dominação material depende dialeticamente de sua reprodução intelectual:

Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; e na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época

(Marx; Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 47).

A tradução em português tradicionalmente adotada [geistige/espiritual] oferece a possibilidade de uma análise da profundidade das raízes ideológicas que sustentam a estrutura do Capital. Ideologia, na perspectiva do materialismo histórico, ultrapassa os limites de uma “falsa consciência”, ela é uma “[...] situação real em um determinado tipo de sociedade” (Mészáros, 2008MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 8). Williams (2011, p. 53, grifo nosso)WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. enfatiza o poder ideológico das práticas, símbolos, signos e significados hegemonicamente estabelecidos como não apenas “[...] mera opinião ou manipulação [da consciência]”, mas como “[...] um sentido de realidade para a maioria das pessoas em uma sociedade, um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida além da qual se torna muito difícil para maioria dos membros da sociedade mover-se, e que abrange muitas áreas de suas vidas”.

É no ‘sentido absoluto de uma realidade vivida’ que a expressão de uma ‘dominação espiritual’ pode ser compreendida, ou seja, todo o conjunto de sentidos atribuídos por um indivíduo (ou grupo de indivíduos) à sua realidade perpassa pela ordem intelectual do Capital, que está profundamente enraizada em sua consciência. Consciência que é construída nas vivências reais e concretas da vida social (Marx; Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.). Especificamente, “[...] os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina consciência” (Marx; Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 94). Nessa direção, a ideologia é “[...] uma consciência prática inescapável” (Mészáros, 2008MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 9).

Maria Ciavatta (2021, p. 16)GARCIA, Rosalba Maria Cardoso; MICHELS, Maria Helena. Educação e Inclusão: equidade e aprendizagem como estratégias do capital. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/bkyxVHz9FYPCwRQj8KnJCsb/?lang=pt. Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.scielo.br/j/edreal/a/bkyxVHz...
, em Teoria e Educação nos Limites do Capital, argumenta que:

As teorias, a prática, as experiências e as relações com os outros nos ajudam a entender o mundo em que vivemos. E este, de modo hegemônico no planeta, no século XXI, é o modo capitalista de produção, o sistema capital. As normas, valores, comportamentos e conhecimentos fazem parte dos processos educativos e são parte do mundo em que produzimos nossas vidas.

As instituições de educação tanto formais quanto informais, como agências de transmissão de uma cultura dominante, exercem uma função de formação social e reificação do quadro ideológico de referência do capital. É por meio do complexo sistema educacional que indivíduos particulares “[...] adotam as perspectivas globais da sociedade de mercadorias como se fossem os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. , p. 266). Ao adotarem o sistema de valores e práticas dominantes como seus, indivíduos particulares e grupos de indivíduos trabalham como agentes de manutenção da ordem e da reprodução ontológica do capital. Portanto, “[...] o complexo sistema educacional da sociedade também é responsável por produzir e reproduzir o quadro de referência dos valores, dentro do qual os indivíduos particulares definem seus próprios objetivos e fins específicos” sem que neguem “[...] as potencialidades do sistema de produção predominante” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. , p. 265).

Michael Wayne e Vinícius Neves de Cabral (2021)WAYNE, Michael; CABRAL, Vinícius Neves de. Capitalismo, Classe e Meritocracia: um estudo transnacional entre o Reino Unido e o Brasil. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/QfPgJhMxBvKPg7YgnMvJwGs/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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, em Capitalismo, Classe e Meritocracia: um estudo transnacional entre o Reino Unido e o Brasil, apresentam uma análise da meritocracia como um dos pilares de sustentação desse quadro de referência de valores e práticas do sistema do Capital. Os autores argumentam que:

A meritocracia é uma ideologia que reforça as desigualdades econômicas, sociais e históricas, ao mesmo tempo em que oferece a promessa de uma saída para essas desigualdades. Ela individualiza os problemas estruturais, atribui responsabilidade de resultados aos indivíduos e torna essas estruturas invisíveis à crítica popular e às reformas políticas

(Wayne; Cabral, 2021WAYNE, Michael; CABRAL, Vinícius Neves de. Capitalismo, Classe e Meritocracia: um estudo transnacional entre o Reino Unido e o Brasil. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/QfPgJhMxBvKPg7YgnMvJwGs/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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, p. 2).

A ideologia da meritocracia reitera as desigualdades sociais impostas àqueles que não compõem, de fato, a classe dominante, ao mesmo tempo em que a justifica como natural e individual, escamoteando a própria desigualdade e preservando o sistema que a engendra.

Amalgamada a este sistema, a educação reproduz tais condições ao possibilitar e direcionar o acesso de indivíduos a uma formação circunscrita aos limites de suas classes. Ainda que limitada, tal formação, contraditoriamente, permite algumas rupturas e desvios de rotas que são incorporados ao sistema de práticas e valores para que haja, uma vez mais, justificativas e reiteração da ordem social vigente.

A tensão desencadeada por esse processo pode, por um lado, impulsionar o movimento contrário daqueles assolados pela desigualdade da estrutura e, por outro e com maior força, reificar a adequação do sistema com vistas à sua conservação.

Mais uma vez, o sistema de práticas e valores se sustenta em significações que deturpam a compreensão da realidade. Destaca-se, aqui, o ocultamento da estrutura de classes como constitutiva das condições de vida dos sujeitos.

Em As relações de classe, raça e gênero na constituição da deficiência intelectual, José Geraldo Silveira Bueno e Natália Gomes dos Santos (2021)BUENO, José Geraldo Silveira; SANTOS, Natália Gomes dos. As Relações de Classe, Raça e Gênero na Constituição da Deficiência Intelectual. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/9ncJsnMBx8VYvRxrwcGd4hs/?lang=pt. Acesso em: 12 dez. 2021.
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analisam o quanto o apagamento da categoria classe social deturpa a compreensão daquilo que sustenta e intensifica os limites e a precariedade de vida impostos a determinados grupos de sujeitos. Ao cotejarem estatísticas públicas sobre classe, raça, gênero e deficiência, explicitam o quanto a estrutura do capital se vale do enaltecimento de características individuais dos sujeitos, ainda que marcadas socialmente como condição de desvio, para ocultar a base da desigualdade do sistema capitalista. Para tanto, evidenciam “[…] a necessidade de se superar o modo abstrato de se considerar a deficiência como o fator preponderante na determinação das condições de vida do sujeito, independentemente de suas condições de classe, raça e gênero”, analisando “[...] as reais condições de vida por meio de dados que expõe a macroestrutura político-social envolvida” (Bueno; Santos, 2021BUENO, José Geraldo Silveira; SANTOS, Natália Gomes dos. As Relações de Classe, Raça e Gênero na Constituição da Deficiência Intelectual. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/9ncJsnMBx8VYvRxrwcGd4hs/?lang=pt. Acesso em: 12 dez. 2021.
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, p. 18).

A segunda dimensão desses limites diz respeito à formação daqueles que possam orientar ideologicamente, politicamente e economicamente as práticas de reprodução exitosa da ordem sociometabólica do sistema. Esse grupo de ‘eleitos’ (Williams, 2007WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução: Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.) do capital são socialmente reconhecidos como ‘intelectuais’. Eles integram uma categoria de indivíduos cuja responsabilidade, por meio do exercício do poder intelectual, é garantir a manutenção da ordem sociometabólica do capital e corrigir possíveis microfissuras da estrutura do sistema. O conceito não deve ser limitado a compreender os intelectuais apenas como escritores, professores, acadêmicos e cientistas, mas devem abarcar toda categoria de pensadores que de alguma forma exercem influência sobre os sistemas de circulação ideológica.

É por meio dos sistemas de circulação ideológica – que incluem, mas não estão limitados aos meios de comunicação, às produções socioculturais e acadêmico-científicas, ao sistema educacional formal e informal e, de certa forma, à própria política institucionalizada – que os intelectuais do capital exercem seu poder de formação e reprodução ideológica. Essa “[...] reprodução bem-sucedida das condições de dominação não pode ocorrer sem a intervenção ativa dos fatores ideológicos poderosos, do lado da manutenção da ordem vigente” (Mészáros, 2008MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 7). Entende-se como “reprodução bem-sucedida” o poder de cooptação de indivíduos que se apropriem dessa estrutura material e ideológica como única via possível de organização social, como discutimos acima.

Em contraste com outros que se dediquem à algum tipo de trabalho de “esforço mental”, os intelectuais do Capital são “[...] produtores diretos na esfera da ideologia e da cultura [...]” (Williams, 2007WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução: Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 237). Os intelectuais desempenham, portanto, um papel fundamental de influência e direção da produção e circulação sociocultural de ideias fundantes da estrutura do capital, dos processos de cooptação e/ou supressão ideológica de movimentos revolucionários e dos processos de correção política das microfissuras econômicas e ideológicas que possam ameaçar a reprodução ontológica do Capital.

A construção social e formação do que chamamos de ‘intelectual’ dá-se por duas vias: I) a formação de grupos da classe dominante para conscientemente criarem meios de reprodução ideológica (Marx; Engels, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.) e II) pela cooptação dos membros da classe trabalhadora alçados ao nível de uma elite acadêmico-intelectual. Observa-se que nesse sentido, o conceito de ‘elite’ adota um sentido da “[...] associação etimológica entre elite e eleitos” (Williams, 2007WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução: Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 152). Ela evoca justamente uma imagem de “os eleitos da classe trabalhadora”, cooptados para servirem aos ideais do Capital e da real elite econômica dominante.

Em nível global, a atuação dos intelectuais na reprodução da estrutura econômica do Capital também perpassa pela ação de agências e organismos que imponham sutil e violentamente o controle político, ideológico e econômico das práticas educacionais. A esse respeito, em Educação e Inclusão: equidade e aprendizagem como estratégias do capital, Rosalba Maria Cardoso Garcia e Maria Helena Michels (2021, p. 2)GARCIA, Rosalba Maria Cardoso; MICHELS, Maria Helena. Educação e Inclusão: equidade e aprendizagem como estratégias do capital. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/bkyxVHz9FYPCwRQj8KnJCsb/?lang=pt. Acesso em: 10 dez. 2021.
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apontam que:

A educação, portanto, ganha centralidade nos discursos dos organismos internacionais como o Banco Mundial, além da UNESCO, que já assumia o papel de orientar as políticas setoriais nos países periféricos. [...] A partir dos anos 1990, tais orientações relacionam o desenvolvimento à educação orientada pelo e para o mercado.

Ancorados em um discurso ilusoriamente humanizado, os organismos internacionais, como agências educacionais de orientação, supervisão e controle ideológico-intelectual, visam a elaboração e proposição do exercício do poder e da manutenção da ordem social por meio de políticas que superficialmente combatam as patologias estruturais do capital. Entretanto, esse “[...] não [é] um combate às raízes dos processos sociais contraditórios geradores de pobreza e desigualdade, já que são formas instituídas pelo Estado burguês para administrar os riscos sociais da pobreza e a canalização de investimentos sociais em torno de públicos-alvo” (Garcia; Michels, 2021GARCIA, Rosalba Maria Cardoso; MICHELS, Maria Helena. Educação e Inclusão: equidade e aprendizagem como estratégias do capital. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/bkyxVHz9FYPCwRQj8KnJCsb/?lang=pt. Acesso em: 10 dez. 2021.
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, p. 2).

Ao mesmo tempo, as práticas educacionais se constituem como espaço possível de crítica à estrutura do capital e de formação dos possíveis intelectuais que se distanciem da reprodução ideológica dominante (Williams, 2011WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.; Mészáros, 2008MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008.; 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. ). Chomsky (2017)CHOMSKY, Noam. Quem manda no mundo? 3. ed. Tradução: Renato Marques. São Paulo: Planeta, 2017. categoriza a classe dos intelectuais em dois grandes grupos: conformistas e dissidentes. Para além daqueles que assumidamente e claramente se posicionam em um dos polos, de um lado os representantes intelectuais da burguesia e de outro os intelectuais da revolução, parece haver um desdobramento dessas duas categorias de intelectuais. No lado dos conformistas, uma que está encoberta pela enganosa pretensão de neutralidade e, no lado dos dissidentes, uma categoria de intelectual alternativo.

O postulado mitológico da neutralidade ideológica, na realidade, esconde o posicionamento em favor da reprodução do quadro de valores do capital, assim como “[...] nenhum software pode ser considerado ‘neutro’ (ou indiferente) aos propósitos para os quais foi inventado” (Mészáros, 2011MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução: Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 865). Tal postulado constitui-se como exercício de poder que ao negar a crítica e manter-se em uma posição de pseudoneutralidade ideológica reproduz o complexo sistema de dominação e controle do capital. É a aceitação da dominação pela possibilidade de usufruir das migalhas do privilégio.

Em contraposição, é fundamental considerarmos “[...] as fontes daquilo que não é corporativo; [as] práticas experiências, significados e valores que não são parte da cultura dominante efetiva” (Williams, 2011WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 55). Assim, duas categorias distintas de ‘intelectual dissidente’ são evocadas para análise: o intelectual alternativo e o intelectual opositor. Williams (2011, p. 55) indica que “[há] claramente algo que podemos chamar alternativo à cultura dominante, e há outra coisa que podemos chamar de opositora em seu verdadeiro sentido”.

A partir dessa distinção, poderíamos considerar o intelectual alternativo como a possibilidade máxima da crítica dentro dos limites ideológicos do sistema do capital. É a crítica leviana das microfissuras da estrutura sem a real crítica das práticas e valores que sustentam a estrutura como um todo. É a dose homeopática de crítica dos sintomas sem que sejam tratadas as causas das patologias engendradas pelas contradições da ordem sociometabólica do sistema. Este é o segundo limite educacional do capital.

Sua contradição está no potencial das práticas educacionais de formar quadros de intelectuais que se coloquem como opositores à ordem sociometabólica do capital e ao seu sistema de práticas, valores, signos, símbolos e significados.

Dave Hill (2021, p. 15)HILL, Dave. Neo-Fascismo, Capitalismo e Educadores Marxistas. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/4YcLY95WRvSy4g4bpmq4zvn/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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argumenta em Neo-Fascismo, Capitalismo e Educadores Marxistas que:

O papel dos intelectuais orgânicos públicos marxistas é crucial. Intelectuais públicos marxistas – como o político representante sindical ou o organizador sindical, o membro de um partido ou grupo socialista/ marxista, o professor, o formador de professores, o trabalhador jovem – intelectualizam as questões sociais, políticas, culturais e econômicas.

Ao indicar o ‘papel dos intelectuais no processo de intelectualizar as questões sociais, políticas, culturais e econômicas’, o autor lança luz sob a responsabilidade social, histórica, política e educacional dos intelectuais que de fato se coloquem como opositores da estrutura do capital. Para além do exposto, “[...] um dever do professor Marxista Revolucionário é ser ativista, [a partir do] reconhecimento de que a organização política, o desenvolvimento de programas e a intervenção são necessários. O que é preciso é uma revolução para substituir, para nos livrarmos do sistema econômico capitalista” (Hill, 2021HILL, Dave. Neo-Fascismo, Capitalismo e Educadores Marxistas. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/4YcLY95WRvSy4g4bpmq4zvn/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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, p. 15).

Ainda na questão da responsabilidade social, histórica, política e educacional dos intelectuais, Chomsky (2017, p. 68)CHOMSKY, Noam. Quem manda no mundo? 3. ed. Tradução: Renato Marques. São Paulo: Planeta, 2017. conclui que “[...] os intelectuais são geralmente privilegiados; o privilégio enseja oportunidades, e a oportunidade confere reponsabilidades. Um indivíduo tem, então, escolhas”.

As responsabilidades estão atreladas justamente aos princípios de adoção ou rejeição do quadro de valores e práticas do Capital. A escolha por adotá-lo e reproduzi-lo engloba todas as esferas do Capital, desde seus princípios econômico-filosóficos até seus violentos e inescrupulosos processos de controle, domínio e destruição.

Sobre a estrutura do sistema educacional formal e informal recai, portanto, a responsabilidade social e histórica de constituição de indivíduos que adotem e reproduzam, no geral e nos detalhes, o quadro de valores e práticas do sistema e a preparação e formação dos intelectuais da classe dominante que serão responsáveis pela circulação sociocultural das ideias e reprodução do sistema de valores do capital.

Especificamente, Mészáros (2016, p. 277)MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. indica que:

[...] a crise da educação formal dos dias atuais nada mais é do que a ‘ponta do iceberg’. Porque o sistema educacional formal da sociedade não pode funcionar sem percalços a menos que esteja de acordo com a estrutura educacional abrangente – isto é o sistema específico da ‘interiorização’ efetiva – da sociedade dada. Assim, a crise das instituições educacionais é indicativa da totalidade dos processos dos quais a educação formal constitui uma parte integrante.

Chamamos a atenção para a importância de considerarmos na análise macroestrutural da educação os sistemas formal e informal. Tanto para Williams (2011)WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. quanto para Mészáros (2016)MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. a educação formal representa, portanto, apenas parte do complexo sistema educacional da sociedade.

Entre as funções ideológicas do sistema formal está a preparação de quadros de trabalhadores aptos a atender às necessidades de mão de obra do sistema para continuação da produção (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. ). Isto é, ele não apenas funciona como mecanismo de interiorização do sistema de valores, mas forma trabalhadores que se submetam “[...] às relações de produção alienadas” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016. , p. 277).

Alguns elementos são fundamentais para que o movimento educacional formal continue funcionando para a formação de sujeitos passivos às relações de produção do sistema capitalista. Entre tantos outros que poderiam ser elencados, abordaremos dois: 1) a atomização e hierarquização da classe trabalhadora e 2) o sucateamento da educação para a classe trabalhadora.

A análise marxista concebe a relação entre capital e trabalho como a contradição fundante da estrutura capitalista (Harvey, 2016HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2016.). Portanto, para a manutenção das relações de dominação, diante do potencial revolucionário da classe trabalhadora (Marx; Engels, 2008MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008.), é fundamental que esta seja alienada, atomizada, hierarquizada e que não se reconheça enquanto tal (Marx, 2010MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução, apresentação e notas: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.; Harvey, 2016HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2016.; Mészáros, 1987MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. Tradução: Mário Duayer. 2. ed. São Paulo: Ensaio, 1987.).

Como argumenta Mészáros (1987, p. 26)MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. Tradução: Mário Duayer. 2. ed. São Paulo: Ensaio, 1987.:

No decurso do desenvolvimento humano, a função do controle social foi alienada do corpo social e transferida para o capital, que adquiriu assim o poder de aglutinar os indivíduos num padrão hierárquico estrutural e funcional, segundo o critério de maior ou menor participação no controle da produção e da distribuição

(Mészáros, 1987MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. Tradução: Mário Duayer. 2. ed. São Paulo: Ensaio, 1987., p. 26).

O ‘poder de aglutinar os indivíduos num padrão hierárquico’ depende de um processo de divisão técnica e social do trabalho e, concomitantemente, uma divisão econômica, cultural e social da classe trabalhadora e, posteriormente, sua hierarquização.

Em relação ao primeiro processo, Harvey (2016, p. 215)HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2016. elucida que

[por] divisão técnica [entende-se] uma tarefa isolada dentro de uma série complexa de operações que, a princípio, qualquer pessoa pode executar, como vigiar uma máquina ou esfregar o chão; por divisão social, [entende-se] uma tarefa especializada que apenas uma pessoa com treinamento ou posição social adequados pode executar, como o exercício da medicina, o desenvolvimento de softwares ou o atendimento a clientes em um restaurante cinco estrelas.

Muito mais do que a divisão técnica, a divisão social pressupõe processos de formação educacional para o exercício daquela atividade. A divisão social do trabalho, viabilizada pelo treinamento especializado de mão de obra para atender às necessidades produtivas do sistema, atomiza a classe trabalhadora e a aglutina em grupos, “[...] segundo o critério de maior ou menor participação no controle da produção e da distribuição” (Mészáros, 1987MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. Tradução: Mário Duayer. 2. ed. São Paulo: Ensaio, 1987., p. 26).

Os movimentos ideológicos do capital de alienação, atomização, aglutinação e hierarquização dos membros da classe trabalhadora desencadeiam um processo de fragmentação da própria classe. Essa fragmentação fica clara ao nos depararmos com as contradições do conceito de uma suposta ‘classe média’ dentro das relações de produção do capitalismo. Não vamos nos deter aqui a tratar do complexo emaranhado epistemológico que o conceito evoca, mas gostaríamos apenas de apontar para alguns papéis desempenhados pela educação formal nesse processo.

A educação formal desempenha, portanto, uma função de formadora dos quadros de trabalhadores do capital, principalmente no que diz respeito à divisão social do trabalho. A hierarquização da classe trabalhadora cria uma falsa sensação de pertencimento a outra classe, uma suposta ‘classe média’ que estaria posicionada entre a classe dominante e a classe trabalhadora. Entretanto, é fundamental considerarmos que o conceito de ‘médio’ é estar é entre uma classe alta e uma classe baixa, dado que o contrário de ‘classe trabalhadora’ é ser detentor de meios de produção (Williams, 2013WILLIAMS, Raymond. The long revolution. Cardigan: Parthian, 2013.) e não apenas estar em uma pífia vantagem econômica em relação às classes mais baixas. Como argumenta Deirdre O’Neill (2021, p. 12)O’NEILL, Deirdre. Mais a Temer do que Esperar: educação radical e classe trabalhadora. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/cQHrVDQ3HvTJXZ3MnXYXM5k/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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, em Mais a Temer do Esperar: educação radical e classe trabalhadora, “[são] as classes médias que determinam a dinâmica dialética do capitalismo contemporâneo. Presos às demandas patológicas, conflitantes e contraditórias do capitalismo, os profissionais e administradores desta classe desejam o burguês (pelo que eles possuem) e temem o proletariado (por seu potencial)”.

Isso quer dizer, de várias formas, que o sistema educacional formal está organizado dentro dos limites ideológicos das classes sociais, como considerado por Wayne e Cabral (2021)WAYNE, Michael; CABRAL, Vinícius Neves de. Capitalismo, Classe e Meritocracia: um estudo transnacional entre o Reino Unido e o Brasil. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/QfPgJhMxBvKPg7YgnMvJwGs/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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. Existe um sistema educacional meritocrático que reproduz as condições de classe social por meios da estrutura ideológica de suas práticas, valores, símbolos e signos. Essa reprodução engloba o sucateamento da educação para a classe trabalhadora.

Na educação brasileira, Chauí (2014, p. 97)CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 3 v. lança luz sobre esse processo em uma análise do período da ditadura militar-burguesa (1964-1985):

[...] durante a ditadura, a classe dominante, sob o pretexto do combate à subversão, mas realmente para servir aos interesses de uma de suas parcelas (os proprietários de escolas privadas), praticamente destruiu a escola pública de primeiro e segundo graus. Por que pôde fazê-lo? Porque, neste país, educação é considerada privilégio, e não um direito do cidadão. Como o fez? Cassando seus melhores professores, abolindo a Escola Normal na formação dos professores do primeiro grau, inventando a licenciatura curta, alterando as grades curriculares, inventando os cursos profissionalizantes irreais, estabelecendo uma política do livro baseada no descartável e nos testes de múltipla escolha e, evidentemente, retirando recursos para manutenção e ampliação das escolas e, sobretudo, aviltando de maneira escandalosa o salário dos professores

(Chauí, 2014CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 3 v., p. 97).

Em concordância com os apontamentos de Chauí (2014)CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 3 v., Kamille Vaz (2021, p. 13)VAZ, Kamille. Professor Sem Ensino: projeto de escola e professor para educação especial (1996-2016). Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/rfyVSQ3STPtxtcpnzGt8jWv/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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em Professor Sem Ensino: projeto de escola e professor para educação especial (1996-2016) traz a discussão para o campo específico do projeto de precarização da formação dos professores. A autora denuncia a “[...] estratégia de adaptação do trabalhador para as exigências do mercado de trabalho”. Com políticas neoliberais disfarçadas de projetos de transformação social:

[...] essas premissas do discurso de caráter positivo, a ideia de profissionalização docente ganha força entre a própria categoria. Assim, justificaram-se as políticas de formação docente, formas de contratação e remuneração para torná-los profissionais da educação, estimulados e qualificados, mas na lógica produtivista do fazer mais com menos.

O objetivo do escamoteamento da escola pública brasileira é claro: para que a escola se reduzisse “[...] à tarefa de alfabetizar e treinar mão de obra barata para o mercado de trabalho” (Chauí, 2014CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 3 v., p. 98). Estamos atualmente diante de um processo de continuação e intensificação desse processo de desmonte, desqualificação e ataque às instituições educacionais, como pode ser observado nas análises de Ciavatta (2021), Hill (2021)HILL, Dave. Neo-Fascismo, Capitalismo e Educadores Marxistas. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/4YcLY95WRvSy4g4bpmq4zvn/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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e Vaz (2021)VAZ, Kamille. Professor Sem Ensino: projeto de escola e professor para educação especial (1996-2016). Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/rfyVSQ3STPtxtcpnzGt8jWv/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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.

É um movimento ideológico de uma “[...] prática consciente da educação de baixo nível e da mistificação ideológica dos trabalhadores, exercida em nome do interesse de seu capital nacional, [erguendo] obstáculos enormes para o desenvolvimento da consciência internacional do trabalho” (Mészáros, 2011MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução: Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 188). Isto é, por meio do desmonte da educação pública e da ideológica estruturação da educação dentro dos limites de suas classes é que o sistema impinge em cada indivíduo seu sistema de valores e de controle social e ideológico dos trabalhadores e reproduz o consenso entre a classe da revolução.

É nessa direção que O’Neill argumenta que:

O preconceito de classe ocorre em todos os níveis de educação; ele garante que a classe trabalhadora receba não uma educação adequada ao seu propósito, mas uma educação com o propósito de situá-la dentro do sistema de estratificação hierárquica, sobre o qual o neoliberalismo é construído e por meio do qual aqueles com poder e riqueza utilizam a educação como forma de transmissão desse poder e riqueza

(O’Neill, 2021O’NEILL, Deirdre. Mais a Temer do que Esperar: educação radical e classe trabalhadora. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/cQHrVDQ3HvTJXZ3MnXYXM5k/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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, p. 4).

Esse é o terceiro e último limite educacional do capital.

Por outro lado, ele se desdobra em uma contradição fundante do sistema educacional: seu potencial transformador e revolucionário. Como explicitamos acima, ao mesmo tempo que reproduz as inescrupulosas condições de classe do sistema do Capital, a educação – formal e informal – incorpora a possibilidade de se constituir como espaço da crítica, da contestação e da oposição. Para O’Neill (2021, p. 8)O’NEILL, Deirdre. Mais a Temer do que Esperar: educação radical e classe trabalhadora. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/cQHrVDQ3HvTJXZ3MnXYXM5k/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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:

[...] qualquer educação política radical preocupada com a relação entre classe e educação no momento presente deve colocar como sua principal reivindicação a ideia de que uma educação política radical deve necessariamente ocorrer fora das instituições e práticas avaliativas da escolarização formal.

De qualquer forma, a inquestionável constatação de O’Neill não deve servir como justificativa para isentar a educação formal de sua responsabilidade como instituição que deve promover a crítica e à oposição ao sistema ideológico, econômico e cultural do capital. Dado que:

O desenvolvimento de uma pedagogia teórica e prática, politicamente comprometida e radical exigirá tempo e um planejamento cuidadoso. Para começar, a questão não é tanto criar um mundo transformado, mas nos orientar na direção de que um mundo transformado se torne uma possibilidade (O’Neill, 2021O’NEILL, Deirdre. Mais a Temer do que Esperar: educação radical e classe trabalhadora. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 3, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/cQHrVDQ3HvTJXZ3MnXYXM5k/?lang=pt. Acesso em: 06 dez. 2021.
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, p.16).

O processo de construção da projeção da possibilidade de um mundo transformado precisa encontrar respaldo dentro dos espaços de resistência e oposição das instituições formais de educação. É reconhecer a educação não pode ser “[...] um treinamento para um emprego, para se formar cidadãos úteis (ou seja, que se adaptem a este sistema)” (Williams, 2015WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Tradução: Nair Fonseca, João Alexandre Peschanski. São Paulo: Editora Unesp, 2015., p. 22).

Considerações Finais

Diante do exposto, é significativo retomar um elemento fundamental que compõe toda a estrutura da crítica tecida neste artigo, o de “[...] que os limites do capital vêm acompanhados por uma concepção que procura extrair lucro até mesmo [das] questões vitais para a existência humana” (Mészáros, 1987MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. Tradução: Mário Duayer. 2. ed. São Paulo: Ensaio, 1987., p. 31). Isto é o equivalente a dizer que em primeira e em última instância, toda a estrutura do capital está voltada para um objetivo: a produção e acúmulo de riqueza em um polo e a concomitante reprodução da miséria em outro (Marx, 2013MARX, Karl. O capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.).

É na apresentação de uma crítica solta, pífia e infundada mascarada de transformadora que as “[...] as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais” (Mészáros, 2011MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução: Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 818) têm sido tratadas como problemas isolados, quando deveriam ser trabalhadas “[...] em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis” (Mészáros, 2011MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução: Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 818).

Para Mészáros (2008, p. 12)MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008., apesar da crítica, “[...] o problema permanece o mesmo, isto é, como resolver ‘através da luta’ o conflito fundamental relativo ao interesse estrutural de controle do metabolismo social como todo [...]”, dado que a proposta do materialismo histórico, não somente como arcabouço teórico-metodológico, mas como ideologia prática opositora, é o rompimento total com toda e qualquer sociedade de classes e não apenas o rompimento com uma para estabelecimento de outra.

Referências

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Editado por

Editora-responsável: Carla Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    13 Dez 2021
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