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Contribuições do Desenho Universal para Aprendizagem à Educação a Distância

Resumo:

Práticas sensíveis e acolhedoras à variação humana são necessárias na educação. Neste estudo objetivou-se identificar se cursistas reconhecem a contribuição dos recursos disponibilizados e organizados a partir do framework do Desenho Universal para Aprendizagem em seus processos de participação com agência, permanência e engajamento em um curso de educação a distância. A perspectiva teórico-metodológica pautou-se nos Disability Studies e os dados foram coletados a partir de três técnicas: Diários Pessoais, Mapeamento Comportamental e Vestígios Ambientais, com posterior análise de conteúdo. Os resultados apontaram que, quando um curso é planejado com base no framework do DUA, muitas das necessidades dos estudantes com deficiência são contempladas e as barreiras restantes são comuns à maioria dos aprendizes.

Palavras-chave:
Educação a Distância; Desenho Universal para Aprendizagem; Deficiência

Abstract:

Sensitive and welcoming human variation practices are necessary in education. This study was designed to identify if students in the course recognize the contribution of the resources made available and organized through the Universal Design for Learning framework in their agency participation, permanence and engagement processes in a distance education course. The theoretical-methodological perspective was based on the Disability Studies and the data was collected from three techniques: Personal Diaries, Behavioral Mapping and Environmental Traces, with subsequent content analysis. The results showed that when a course plan is based on the DUA framework, many of the needs of students with disabilities are covered and the remaining barriers are common to most of the learners.

Keywords:
Distance Education; Universal Design for Learning; Disability

Introdução

Muito há para se falar quando o assunto é deficiência, educação inclusiva ou acessibilidade. No ensino superior isso também se evidencia, principalmente ao se tratar da acessibilidade ao conhecimento em cursos de graduação, pós-graduação e formação continuada. Usualmente, quando se aborda a questão da acessibilidade nos contextos educacionais, seja no âmbito da pesquisa ou da construção de práticas profissionais, há predominância de um foco voltado à busca de estratégias para que estudantes com deficiência tenham o seu direito de acesso ao conhecimento ampliado. Entretanto, pesquisadores, a exemplo de Böck, Gesser e Nuernberg (2018BÖCK, Geisa; GESSER, Marivete; NUERNBERG, Adriano. Desenho Universal para a Aprendizagem: a produção científica no período de 2011 a 2016. Revista Brasileira de Educação Especial, Bauru, n. 1, v. 24, p. 143-160, jan./mar. 2018. Doi: <https://doi.org/10.1590/S1413-65382418000100011>.
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), têm apontado a necessidade de ampliar, no contexto do ensino superior, práticas inclusivas para todos os estudantes, com escolhas éticas, cuidadosas e intencionais por parte dos docentes, que valorizem a diversidade de características de todos os aprendizes e rompam com o binarismo normalidade/deficiência.

Na modalidade de educação a distância, torna-se relevante refletir sobre os caminhos para a implementação de uma prática sensível ao acolhimento da variabilidade de perfis de aprendizagem dos estudantes. No estudo sobre expectativas que cursistas de Educação a Distância (EaD) possuem sobre a acessibilidade, Böck, Gesser e Nuernberg (2019BÖCK, Geisa; GESSER, Marivete; NUERNBERG, Adriano. O Desenho Universal para Aprendizagem no Acolhimento das Expectativas de Participantes de Cursos de Educação a Distância. Revista Educação Especial, 2019. Doi: <https://doi.org/10.5902/1984686X34504>.
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) identificaram que o framework do Desenho Universal para Aprendizagem (DUA) contemplou as falas dos participantes, revelando ser adequado para a aplicabilidade no planejamento e na oferta de cursos que se pretendem acessíveis, considerando, a priori, a existência de pessoas com diferentes características para participação e permanência nos cursos a distância.

Existem diferenças consideráveis entre cursos propostos com acessibilidade para os estudantes com deficiência e aqueles organizados partindo do framework do DUA. Edyburn (2010EDYBURN, Dave. Would You Recognize Universal Design for Learning if You Saw it? ten propositions for new directions for the second decade of UDL. Learning Disability Quarterly, v. 33, n. 1, p. 33-41, 2010.) sugere que a distinção principal reside na concepção inicial dos projetos dos cursos. Em cursos com acessibilidade para o estudante com deficiência, o recurso a ser implementado é proposto tendo por base quase que exclusivamente a lesão, ou seja, a marca biológica no sujeito, por exemplo, a oferta da audiodescrição ocorre mediante a matrícula/inscrição de uma pessoa cega no curso, os áudios são pensados para uso desse público, entre outras situações. Em cursos perspectivados a partir do DUA, os recursos, as estratégias, as metodologias e as avaliações são elaboradas visando ampliar o acesso para todos. Ou seja, os áudios utilizados são para aqueles que querem acessar as informações e aprender ouvindo e, dessa maneira, dá-se uma oferta ampla de recursos e materiais, os quais possibilitam que os estudantes realizem escolhas no percurso da aprendizagem, fortalecendo a característica proativa da EaD. Nesse sentido, qualquer estudante pode significar aquele recurso proposto como sendo para seu uso e se sentir contemplado no seu modo de aprender.

No intuito de potencializar a participação e agência dos estudantes nos diferentes espaços de aprendizagem, as diretrizes do DUA alargam o espectro da acessibilidade para além do comumente centrismo na lesão. De acordo com Rose et al. (2006ROSE, David; HARBOUR, Wendy; JOHNSTON, Catherine Sam; DALEY, Samantha; ABARBANELL, Linda. Universal Design for Learning in Postsecondary Education: reflections on principles and their application. Journal of Postsecondary Education and Disability, v. 19, n. 2, p. 135-151, 2006.), o DUA incorpora uma pedagogia acessível em três considerações específicas e centrais do ensino/aprendizagem: o modo como os estudantes reconhecem e representam as informações (princípio da representação); o modo como eles expressam e atuam com o que sabem (princípio da ação e expressão); e os meios para se engajarem na aprendizagem (princípio do engajamento). Para tanto, é relevante se atentar às três redes neurais em que são apoiados os princípios, sendo elas: as redes de reconhecimento (reunir e categorizar o que se vê, se ouve e se lê); redes estratégicas (organizar e expressar ideias); e redes afetivas (ligam a experiência de aprendizagem a um fundo emocional, determinando o envolvimento e a motivação). Com base nessas redes e princípios, os currículos, atividades e metodologias são projetados atendendo as diferenças individuais dos estudantes no processo de se relacionar com o conhecimento, para além do diagnóstico.

Embora haja quase trinta anos de pesquisas sobre o DUA em diferentes países, os registros de estudos sendo realizados por pesquisadores brasileiros é bastante recente. Zerbato (2018ZERBATO, Ana Paula. Desenho Universal para Aprendizagem na Perspectiva da Inclusão Escolar: potencialidades e limites de uma formação colaborativa. 2018. 298 f. Tese (Doutorado em Educação Especial) - Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018. ), preocupada em “[...] como ensinar os professores a planejar o ensino pensando na estratégia do DUA”, focou os estudos no desenvolvimento e na avaliação de um programa de formação de professores em DUA e apresenta uma revisão identificando algumas publicações que surgem timidamente no Brasil, sendo a primeira em 2013. Evidenciou-se, no estudo da referida pesquisadora, a ausência de pesquisas experimentais aplicadas no campo da educação a distância. Muito do que se viu foram estudos que se utilizam do DUA exclusivamente como base teórica.

Outro pesquisador e teórico da área, Edyburn, publicou em 2010EDYBURN, Dave. Would You Recognize Universal Design for Learning if You Saw it? ten propositions for new directions for the second decade of UDL. Learning Disability Quarterly, v. 33, n. 1, p. 33-41, 2010. uma revisão em uma conceituada revista internacional do campo da deficiência com um título bastante provocativo - Would you Recognize Universal Design For Learning if You Saw it? Ten Propositions for New Directions for the Second Decade of UDL. (Você reconheceria o Desenho Universal para Aprendizagem se você o visse? Dez proposições para novas direções na segunda década do DUA). No artigo, o autor diz que precisamos entender o que significa implementar o DUA, “[...] precisamos entender como medir os resultados do DUA. E, finalmente, precisamos renovar nosso compromisso de oportunizar equidade a todos os alunos no caso dos esforços com o DUA fiquem aquém” (Edyburn, 2010, p. 40.). Tal publicação ampliou o interesse na temática e suscitou outras questões para investigação.

Neste estudo, partiu-se da premissa de que é preciso fortalecer estudos e práticas voltadas à efetivação do DUA nos contextos de aprendizagem na realidade brasileira, com um recorte para a educação a distância. Para tanto, a pesquisa foi realizada com o objetivo de identificar se cursistas reconhecem a presença e a contribuição dos recursos disponibilizados e organizados a partir do framework do Desenho Universal da Aprendizagem em seus processos de participação com agência, permanência e engajamento em um curso de educação a distância do qual foram partícipes. Diferentes indagações permearam o estudo, tais como: quais expressões desse framework seriam identificadas como recursos para acessibilidade ao conhecimento? Ou ainda, haveria uma compreensão do uso dos facilitadores como algo comum a todos? A acessibilidade proposta no curso seria percebida como algo para ampliar a participação e engajamento de todos os partícipes no curso?

Os constructos do DUA coadunam com os princípios e propósitos do campo dos Disability Studies in Education (DSE), apresentado por David J. Connor na página da American Educational Research Association em 2008CONNOR, David; GABEL, Susan; GALLAGHER, Deborah; MORTON, Missy. Disability Studies and Inclusive Education - implications for theory, research, and practice. International Journal of Inclusive Education, v. 12, n. 5-6, p. 441-457, 2008.. Em uma aproximação com esse campo, pautou-se na compreensão da deficiência a partir do modelo social da segunda geração (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O Que É Deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007.), com a contribuição das teóricas feministas, as quais rejeitam os modelos pautados no déficit, na falta ou como algo a ser corrigido, mas defendem a ideia de ser a deficiência uma experiência humana, singular e relacional com os contextos sociais (Gomes; Lopes; Gesser; Toneli, 2019GOMES, Ruthie Bonan; LOPES, Paula Helena; GESSER, Marivete; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Novos Diálogos dos Estudos Feministas da Deficiência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis v. 27, n. 1, p. 1-14, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n148155>.
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; Gesser; Nuernberg, 2017GESSER, Marivete; NUERNBERG, Adriano Henrique. A Participação dos Estudantes com Deficiência Física e Visual no Ensino Superior: apontamentos e contribuições das teorias feministas da deficiência. Educar em Revista [online], v. 3, p. 151-166, 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0104-4060.52925>.
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). A perspectiva feminista também destaca a necessidade de uma ética do cuidado no plano público e a remoção de barreiras para garantia da participação. Ademais, respeitou-se as vozes das pessoas que experienciam a deficiência no planejamento da pesquisa e buscou-se a promoção da justiça social no contexto da aprendizagem a partir de oportunidades inclusivas (Connor; Gabel; Gallagher; Morton, 2008).

É relevante evidenciar a concepção de deficiência que permeou e sustentou as escolhas ao longo do estudo, pois “[...] longe de ser irrelevante, a forma como perspectivamos a deficiência é essencial na forma como definimos os problemas e delineamos as soluções” (Martins et al., 2017MARTINS, Bruno Sena; FONTES, Fernando; HESPANHA, Pedro; BERG, Aleksandra. Investigação Emancipatória da Deficiência em Portugal: desafios e reflexões. In: MORAES, Marcia et al. (Org.). Deficiência em Questão: para uma crise da normalidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2017. P. 51-76., p. 54). Com o DSE há um compromisso de adoção de práticas e compreensões pautadas nos princípios da educação inclusiva. Ademais, o campo dos Disability Studies aponta que a deficiência não deve ser considerada uma fatalidade ou uma tragédia que acomete apenas um grupo específico e também não pode ser entendida apenas como uma diferença. “Boas sociedades permitem as pessoas a lidar com esta situação, removendo barreiras, fornecendo suporte e compreendendo a deficiência como parte da variação humana, ao invés de uma anormalidade a ser descartada” (Shakespeare, 2017SHAKESPEARE, Tom. Disability: the basics. London: Routledge, 2017., p. 22).

Visando contrapor práticas de pesquisa normocêntricas1 1 A absoluta centralidade constitutiva do conceito de norma enquanto princípio regulador de discursos e práticas é produtor das práticas normocêntricas. A naturalização desse padrão normativo de corpo e de funcionamento potencializa o capacitismo. e capacitistas2 2 Fiona K. Campbell (2001) define o capacitismo como uma rede de crenças em que a pessoa com deficiência, ou todos aqueles que fogem à norma, são considerados um estado diminuído do ser humano. O mais importante, aqui, é compreendermos que o capacitismo é estrutural e estruturante, porquanto todos nós de alguma maneira o praticamos, em maior ou menor escala, sendo importante reconhecê-lo e combatê-lo. , que excluem e desconsideram os diferentes modos de participar, buscou-se, neste estudo, desde o planejamento, a partir da escolha das técnicas de coleta de dados, de análise, dos recursos e das abordagens teóricas, realizar um exercício ético, emancipatório e pautado no framework do DUA. Acreditamos que, para reconhecer o DUA, é preciso mudar as concepções sobre acessibilidade, romper com o mito da normalidade e do sujeito independente, reconhecer as suas próprias vulnerabilidades e compreender a aprendizagem como um processo singular que pode ocorrer por meio da utilização de diferentes sentidos.

Metodologia

Essa pesquisa foi inspirada na perspectiva da Investigação Emancipatória, na qual se estabelece o rompimento com a dualidade sujeito/objeto. Neste sentido, Barnes (2003BARNES, Colin. What a Difference a Decade Makes: reflections on doing ‘emancipatory’ disability research. Disability & Society, v. 18, n. 1, p. 3-17, 2003.) sugere o compromisso político do investigador com o sujeito investigado e, para além disso, que estas pesquisas se dissociem do modelo positivista que regula, aprisiona, silencia e marginaliza as pessoas com deficiência. A investigação emancipatória, articulada com a afirmação do modelo social da deficiência, significa “[...] um reconhecimento por parte da academia dos termos em que a produção científica tem sido cúmplice - por ação ou omissão - com quadros sociais opressores das pessoas com deficiência” (Martins; Fontes; Hespanha; Berg, 2012MARTINS, Bruno Sena; FONTES, Fernando; HESPANHA, Pedro; BERG, Aleksandra. A Emancipação dos Estudos da Deficiência. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 98, p. 45-64, 2012., p. 56). Essas situações opressoras nos contextos de pesquisa podem ser facilmente reconhecidas, seja por meio da utilização de instrumentos de investigação, os quais, por vezes, são construídos e pautados em uma lógica normocêntrica que exclui determinados públicos de uma participação com agência, ou ainda, por meio dos retornos de resultados pouco acessíveis na sua divulgação para o público investigado.

A pesquisa qualitativa online (Flick, 2009FLICK, Uwe. Introdução à Pesquisa Qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2009.) revelou-se adequada, pois corresponde ao contexto no qual a pesquisa foi realizada. A investigação ocorreu no curso de formação continuada em Estudos sobre Deficiência, ofertado na modalidade a distância, na plataforma Moodle, pelo Núcleo de Estudos Sobre Deficiência da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. O curso foi planejado tendo como base as diretrizes e princípios do DUA, tanto na estrutura do ambiente virtual de aprendizagem quanto nas estratégias, recursos e atividades ofertadas. Os recursos textuais apresentaram equivalência auditiva, os vídeos possuíam audiodescrição, legenda e LIBRAS, e todas as atividades foram disponibilizadas com diferentes mídias (podcast, LIBRAS e legenda) sempre acompanhado de equivalência textual.

A composição do grupo se deu por conveniência intencional. Os partícipes do curso deveriam contemplar alguns critérios: ser estudantes do ensino superior e/ou profissionais que atuam na área da deficiência (com ou sem deficiência) e terem acesso à internet. Todos os cursistas receberam o convite para participar da pesquisa por escrito, áudio e LIBRAS3 3 Nesse estudo, como um princípio ético, a identidade dos partícipes foi preservada, seus nomes foram alterados por nomes de pessoas que, a partir da experiência da deficiência, fizeram parte da história com deficiência (in memoriam). Nomear os partícipes da pesquisa referendando essas pessoas é uma das maneiras de homenagear e reconhecer a importância de suas histórias de vida para o fortalecimento de práticas mais inclusivas e menos normativas em nossa sociedade. .

Nessa edição do curso foram ofertadas 100 vagas, as inscrições aconteceram pelo sistema virtual da própria universidade e foram preenchidas nos primeiros dias, ficando uma lista de espera de mais de trezentas pessoas. Dos 100 inscritos no curso, 40 partícipes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido confirmando a disponibilidade de participação na pesquisa, entretanto, somente 24 finalizaram as etapas propostas, sendo 22 mulheres e 2 homens. Dentre eles, 18 declararam ser profissionais que atuam em diferentes áreas e 5 são estudantes (2 da pós-graduação e 3 da graduação). Uma partícipe não se apresentou.

Para coleta dos dados, utilizou-se uma triangulação de estratégias, a primeira técnica consistiu no registro em um Diário Pessoal pelo sujeito da pesquisa em resposta a uma solicitação do pesquisador. Optou-se por essa técnica na intenção de que eles tivessem respeitados os seus tempos e modos para participação. Para tanto, os registros poderiam ser realizados utilizando escrita, gravação de voz ou de LIBRAS, além de possibilitar a inclusão de imagens, vídeos etc. Dentre as vantagens dessa técnica, destaca-se que ela “[...] oferece possibilidade de um registro da experiência vivida pelo indivíduo enquanto ela transcorre, sem a presença de integrantes da equipe de pesquisa, e com pouca ou nenhuma influência (indireta) dos pesquisadores” (Pinheiro, 2008PINHEIRO, José; GÜNTHER, Hartmut (Org.). Métodos de Pesquisa nos Estudos Pessoa-Ambiente. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008., p. 287). Ao longo da abertura de cada tópico do curso, uma questão reflexiva era disparada no espaço da pesquisa para conduzir a reflexão dos cursistas e o registro para uma posterior análise. Todas as postagens dos diários pessoais e dos fóruns foram transpostas para o software AtlasTi 8.0 para análise e categorização.

A segunda técnica permitiu analisar os Vestígios Ambientais deixados pelos cursistas no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). A escolha dessa técnica deu-se pois muitas das relações das pessoas com seus ambientes passam despercebidas por elas mesmas. Além disso, técnicas baseadas em autorrelatos “[...] costumam sofrer influência do que elas acham que deveriam ser ou fazer, do que gostariam de ser ou fazer, ou, ainda, de quem elas pensam ter sido ou do que pensam ter feito” (Pinheiro, 2008PINHEIRO, José; GÜNTHER, Hartmut (Org.). Métodos de Pesquisa nos Estudos Pessoa-Ambiente. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008., p. 75). De acordo com Pinheiro (2008), existem duas categorias a serem observadas com a técnica de vestígios ambientais, sendo elas a deposição (ou acumulação) - no caso da EaD seriam os trabalhos e atividades postadas, assim como os comentários realizados nos fóruns e a categoria de erosão, na qual considera-se tudo aquilo que o cursista retira do Ambiente Virtual de Aprendizagem, a exemplo dos downloads de textos, vídeos etc.

Aliado a essas duas técnicas, utilizou-se ainda o Mapeamento Comportamental, uma técnica de observação indireta, pois permite a compreensão sobre o uso dos espaços pelas pessoas, fornece pistas do motivo pelo qual certos locais são mais ocupados e outros evitados, uma realidade que também está presente em ambientes virtuais. Compreender os espaços que os sujeitos utilizam em um curso de EaD nos traz indicações para ampliar a participação e minimizar a evasão.

Para análise das informações, optou-se em trabalhar com categorias a priori, sendo elas os princípios do DUA: Representação, Ação e Expressão e Engajamento. As questões disparadoras para escrita no diário pessoal tiveram uma organização a partir dessas categorias para conduzir a reflexão e posterior registro. A definição pelo uso dos princípios do DUA enquanto categorias de análise tem o intuito de possibilitar uma maior generalização desse estudo e ainda a ampliação do diálogo com pesquisadores que se dedicam a essa temática nos cenários nacional e internacional.

Resultados e Discussão

Os resultados surgiram a partir do tratamento dos dados obtidos com o uso da triangulação de técnicas de coleta. Com a análise de vestígios ambientais evidenciou-se que a erosão, ou seja, a retirada de elementos da plataforma virtual, foi muito maior do que a deposição. Muitos cursistas utilizaram-se desse espaço para coletar informações, realizar downloads dos textos e assistir aos vídeos, mas ficaram quase que anônimos no espaço, não postando atividades nem comentários nos fóruns, evidenciando que cursos no modelo MOOC (Massive Open Online Course) seriam mais interessantes para esse perfil de público.

De modo geral, os cursistas perceberam a intenção proativa dessa proposta elaborada com apoio no framework do DUA e reconheceram que as suas necessidades foram contempladas desde o início do curso, com a antecipação de possíveis situações de desvantagens, remoção de barreiras e implementação de facilitadores. Essa autonomia relacional, proporcionada a partir de escolhas intencionais da equipe pedagógica do curso, as quais foram pautadas no DUA, despertou alguns significados e sentimentos por parte dos cursistas. Assim, foram localizados nos registros referentes aos diários pessoais, expressões tais como respeito, privilégio, liberdade, tranquilidade, facilidade, acolhimento, realização e sentir-se à vontade na definição desse reconhecimento, conforme o depoimento de Wilma Pearl Mankiller4 4 Ressalta-se que os nomes dos participantes da pesquisa foram preservados e substituídos pelos de personalidades da história que tiveram a experiência da deficiência ao longo de suas vidas. : “Tenho achado o curso bastante acessível, respeitando as possíveis diferenças com certeza existentes, entre os membros do grupo [...] me senti plenamente contemplada. Sendo assim, só tenho a agradecer pela oportunidade que me foi oferecida”5 5 Este relato, assim como os próximos relatados apresentados neste artigo, foi coletado em Diário Pessoal fornecido pelos participantes da pesquisa. .

Outra situação que se mostrou relevante foi a constatação de que todos os princípios do DUA se interligam. Os elementos do curso foram avaliados sob diferentes perspectivas, com distintos enquadramentos e, por vezes, abarcando os três princípios, a exemplo dos vídeos, leituras, atividades, fóruns, entre outros, que ora apresentam registros de fala sobre o acesso à informação, rede de reconhecimento, e ora como esses recursos potencializavam o engajamento. Para tanto, os resultados indicaram que é desaconselhável realizar pesquisas que não considerem a totalidade do framework do DUA.

Uma importante observação presente nos registros trata da diferença de vivenciar ao longo do processo de formação aquilo que em outros cursos é apenas falado. Isso ressalta a relevância do investimento em estudos de aplicabilidade imediata do DUA para que se modifiquem realidades na formação inicial e continuada. O depoimento de Bertha Galeron de Calonne é representativo dessa premissa:Sei que a temática do projeto é essa e se pararmos para pensar nisso, é possível dizer que de fato, se fosse diferente soaria incoerente, porém isso nos serve como um exemplo, pois é de fato possível e fundamental que não só o espaço de aprendizagem presencial ou virtual, mas todas as plataformas digitais e redes sociais, todos os serviços deveriam dar livre acesso a todas as pessoas.

Como pode ser identificado no depoimento acima, há necessidade de que os cursos ofertados sobre a temática da deficiência sejam acessíveis, não apenas para que as pessoas com diferentes variações funcionais tenham possibilidade de participação com equidade de condições nos diferentes âmbitos, mas, além disso, para que a aprendizagem sobre a temática em questão possa ser vivenciada em ambientes virtuais acessíveis.

Os relatos e registros evidenciaram o reconhecimento dos partícipes de que o curso foi pautado em uma perspectiva relacionada à ética do cuidado, à interdependência e à representatividade, categorias imprescindíveis para os feminist disability studies. Eva Kittay sugere que a ética do cuidado pressupõe a dependência como uma característica central da vida humana e que a interdependência, em vez da independência deva ser o objetivo a ser alcançado (Kittay, 2005, p. 453).

É preciso considerar que as pessoas participam de diferentes maneiras dos espaços sociais, de acordo com suas formas de estar no mundo e, para tanto, não se faz possível um formato único de disponibilização do conhecimento na EaD, o qual determina e encerra os sujeitos num único modo de participar. Localizou-se, para além da categoria do cuidado, expressões sobre a interdependência e a representatividade nas falas dos partícipes. Para tanto, vale ressaltar algumas dessas falas: Helen Adams Keller - “Afirmo que é o primeiro curso que faço que me possibilita tantos meios de acesso a um mesmo material e que permite-me aprender da maneira que considero a mais adequada”; Christy Brown - “[...] o curso está suprindo minhas necessidades de formas de receber as informações e abre possibilidades para que me expresse da forma que me é mais fácil”.

Portanto, conforme os depoimentos apresentados, o curso de EaD elaborado com base no DUA possibilitou que os diferentes modos de acessar o conhecimento e expressá-lo fossem contemplados. A seguir, com base na análise das informações, serão apresentadas as discussões organizadas e agrupadas pelos princípios da Representação, Ação e Expressão e Engajamento.

Categoria 1 - Princípio da Representação - Rede de Reconhecimento

As pessoas acessam as informações a partir do uso de diferentes canais sensoriais. As preferências no uso desses sentidos dependem de diversos fatores, entre eles estão as habilidades individuais. Por exemplo, uma pessoa cega provavelmente optará por acessar as informações pelo canal tátil ou auditivo. Para além das situações de lesão, as pessoas fazem escolhas de acordo com os sentidos habitualmente explorados, embora a nossa sociedade continue perpetuando o centrismo visual (Martins, 2013MARTINS, Bruno Sena. Pesquisa Acadêmica e Deficiência Visual: resistências situadas, saberes partilhados. Revista Benjamin Constant, v. 19, edição especial, p. 55-66, 2013.), pois a maior parte das informações, recursos educacionais e publicitários, é ofertada para acesso via canal visual. Entretanto, na EaD é preciso disponibilizar recursos que permitam aos estudantes utilizarem diferentes sentidos para consolidar a aprendizagem e, de acordo com os pesquisadores do CAST (2011CAST. Desenho Universal para Orientações de Aprendizagem versão 2.0. Wakefield, MA, 2011.), a transferência de aprendizagem ocorre quando múltiplas maneiras de representações são utilizadas, porque permite que cada pessoa faça conexões entre os conceitos por meio da escolha dos recursos que mais atendem às suas necessidades.

Pautado no conhecimento produzido pelo DUA, o planejamento inicial do curso de EaD, no qual foi realizada a pesquisa, utilizou diferentes alternativas para a apresentação das informações. Esse item teve destaque nas falas dos cursistas que reconheceram as diferentes mídias para acessar as informações. Na análise de vestígios, foi possível perceber que os cursistas acessaram as mídias nos diferentes formatos apresentados para obter a mesma informação, entre eles os recursos textuais, os vídeos que contemplavam as temáticas do curso e/ou podcast (ambos com áudio, legenda e LIBRAS). Entretanto, a leitura é elencada como recurso principal e os demais recursos aparecem como complementares, seja para uma familiarização inicial com as temáticas ou como uso posterior para complementar o entendimento das leituras.

Os sujeitos da pesquisa indicaram terem aprendido a utilizar os diferentes sentidos ao longo da vida, a exemplo de concentrarem-se com retorno de voz dos audiolivros ou adaptarem-se à audição e ao tato após perda visual. Isso demonstra a possível modificabilidade de interesses a partir da aprendizagem de novas habilidades e a importância de possibilitar acesso aos diferentes recursos de aprendizagem. Essa variabilidade de interesse por diferentes mídias não deriva apenas de situações acerca da experiência de deficiência, mas por conta do cotidiano e da rotina das pessoas, como por exemplo, acessar os áudios do curso ou leituras nos transportes coletivos ao longo do trajeto para o trabalho.

Os ícones utilizados no AVA possuíam texto alternativo à imagem de referência, assim como retorno de voz. Esses elementos foram identificados como auxiliares para o trânsito nesse ambiente e contribuíram para estabelecer uma identidade para cada recurso e espaço. No entanto, um dos cursistas expressou que o excesso de ícones atrapalhou um pouco a busca de informações.

A disponibilização das orientações semanais e das atividades do curso com podcasts e vídeos (retorno de voz, legendas e LIBRAS) foram apontados como uma ação cuidadosa e respeitosa por parte da equipe diante da diversidade dos aprendizes. Outra organização percebida pelos cursistas foi a diversidade de artigos e textos para uma mesma temática, de modo que pudessem escolher as leituras para realizar a elaboração conceitual. A disponibilização de materiais nos quais diferentes autores abordaram a mesma temática possibilitou aos cursistas acessarem aquela linguagem e tipo de escrita, garantindo uma melhor compreensão de acordo com cada perfil, conforme demonstra a fala de Ruth Benedict:

Vale destacar que quando posso acessar vários textos que abordam o mesmo assunto, consigo aprender melhor. Em alguns momentos, um autor pode não ser tão claro na exposição de um conceito, mas o outro autor, abordando o mesmo conceito, pode ter uma maneira de expor que me faça compreender melhor. Não sei se foi intencional da equipe do Curso, mas disponibilizar mais de um texto com o mesmo assunto de diferentes autores contribui para a aprendizagem. Eu, particularmente, gosto de textos escritos.

Nos registros dos partícipes foram detectadas distintas expressões positivas sobre as orientações para processar informações, sugerindo que a liberação processual dos módulos do curso auxiliou a seleção e categorização das informações. O uso de perguntas reflexivas realizado pela equipe pedagógica nos fóruns foi reconhecido como uma estratégia facilitadora da identificação das ideias principais e conexões entre as temáticas, sendo interessante para direcionar as leituras e acessar pontos essenciais de cada uma delas. Além disso, os partícipes relataram que poder controlar o horário para acesso ao curso, o tempo de permanência na plataforma, poder ler e reler os textos quantas vezes fosse necessário, assim como assistir vídeos no tempo desejado, foram elementos significativos no que se refere à rede de reconhecimento, conforme apontado por Wilma Pearl Mankiller:

Não sei, se por conta da baixa visão ou por causa do meu déficit de atenção, a apresentação através dos textos impressos, me ajudou a absorver melhor os conteúdos, pois posso ler e reler os mesmos, quantas vezes achar necessário, isso facilita bastante a minha compreensão.

Nesse quesito de manipulação dos materiais, um aspecto que aparece na maior parte dos registros refere-se à disponibilização dos recursos em formatos que pudessem ser alterados pelos próprios cursistas. Isso foi considerado um diferencial importante, desde a possibilidade de ampliar imagens na tela do computador, alterar o tamanho da letra, o formato do arquivo, o contraste, utilizar software leitor de tela, assim como imprimir e fazer marcações, além de determinar o tempo e a velocidade da leitura para processar a informação adquirida.

Os exemplos oferecidos sobre como realizar atividades, ou exemplos de aplicabilidade de conceitos, foram indicados pelos cursistas como relevantes para a compreensão. Nesse sentido, o próprio curso de extensão, com sua organização a partir do DUA, tornou-se um exemplo necessário para que, por meio da vivência, os cursistas tivessem a oportunidade de se apropriarem de algumas possibilidades de práticas inclusivas.

As atividades do curso também foram avaliadas positivamente no sentido de conectar os conteúdos apreendidos com a prática, incorporando novas ideias em situações familiares, como também possibilitaram um tempo para a reflexão dessa temática para aplicar determinados conhecimentos no cotidiano. Alguns partícipes da pesquisa são da área da Educação, exercendo a docência nos distintos níveis e modalidades de ensino, e registraram a possibilidade de transferência de estratégias vivenciadas no curso para as práticas com seus estudantes. Nesse sentido, Anita Catarina Malfatti relatou que “[...] a metodologia utilizada no curso está bem interessante, contribuindo também para (re)pensar a minha prática pedagógica, ou seja, propor para os meus alunos estratégias e recursos que atendam as especificidades (e diferenças) de todos os educandos”.

Portanto, os dados obtidos demonstraram que oportunizar múltiplas maneiras de acessar a informação torna-se imprescindível para que os demais princípios e diretrizes do DUA sejam alcançados. Desde o planejamento inicial, nas escolhas docentes, poderão ser definidas as experiências a serem vivenciadas na EaD. É no reconhecimento da aprendizagem enquanto um processo interdependente, e na oferta de conteúdos de maneira que todos sejam representados nos modos de acessá-los, que nas práticas docentes se efetivará uma política da diferença, a qual fortalece a participação com agência. É no reconhecimento da diferença como uma realidade presente em qualquer espaço da aprendizagem que se fortalecem práticas acolhedoras para todas as pessoas.

Categoria 2 - Princípio da Ação e Expressão - Rede Estratégica

Os modos pelos quais os estudantes expressam o que sabem são muito distintos e, assim como a habilidade para captar as informações pode ser apreendida e modificada ao longo da vida, a habilidade para se expressar também é construída a partir das experiências de cada um. Para que todos sejam contemplados nas suas características para demonstrar ou compartilhar suas aprendizagens, é importante fornecer opções para que possam realizar escolhas. A padronização exigida em diferentes situações do ensino é excludente, sendo que não basta fornecer recursos acessíveis se não for permitida uma escolha individual coerente com os desejos e habilidades das pessoas. Pode-se exemplificar citando a possibilidade de os cursistas escolherem entre realizar as atividades por meio da gravação de áudios, LIBRAS ou na modalidade escrita em português. Esse princípio é fomentador da participação e agência do estudante, uma vez que, para que muitas pessoas possam participar, torna-se relevante proporcionar a equidade de oportunidades, a qual deve estar atrelada ao direito de escolha considerando as características de cada um.

De modo geral, os partícipes da pesquisa localizaram e reconheceram essa diferenciação do curso de proporcionar alternativas para a ação e expressão. Dentre as tecnologias de apoio disponibilizadas no curso encontravam-se leitores de tela, gravadores de voz, gravador de tela do computador, software de comunicação alternativa, entre outros. Entretanto, nenhum desses recursos foi utilizado pelos cursistas no desenvolvimento das atividades do curso. Embora alguns sugerissem que possuíam maior habilidade de expressão pela fala, os trabalhos entregues foram, em sua grande maioria, realizados de maneira escrita, textual, com exceção de uma cursista que realizou as atividades com gravações de áudio por considerar esse um facilitador para a sua rotina diária de atividades. Duas cursistas apresentam a reflexão de que a habilidade de expressão e comunicação é apreendida, ou seja, a escrita melhora quando se é praticada, assim como a fala. Isso leva à reflexão sobre o porquê de os cursistas optarem massivamente por realizar as devolutivas das atividades por meio da escrita. Será essa uma das habilidades mais exploradas ao longo da vida escolar? Ou foi pelo fato de o acesso ser mais universal? Ou ainda, essa escolha tem uma relação com o não domínio da tecnologia? Tais questões poderiam ser exploradas de maneira mais aprofundada em um outro estudo.

Outra constatação foi em relação à agência, ou à realização de escolhas para participação ao longo do processo. As atividades possibilitavam distintas realizações, a exemplo do terceiro módulo, quando foi solicitada a execução de uma entrevista que poderia ser gravada em áudio, filmada, ou realizada por escrito. Nos diários pessoais, localizaram-se registros que abordavam a grande dificuldade de realizar essas escolhas autônomas no curso. Isso possivelmente tem relação com outras experiências de formação em que essas opções de devolutiva pelo estudante não foram apresentadas.

Uma das indicações nas diretrizes do DUA é de fornecer múltiplas mídias para comunicação. Dessa maneira, para além dos recursos disponibilizados pelo Moodle (mensagem, fóruns, murais de recados), um canal de comunicação por e-mail foi estabelecido desde a divulgação inicial do curso. Esse pôde ser utilizado tanto para as questões relativas às demandas de acesso, dúvidas administrativas ou pedagógicas, como para as demandas que surgiram com a participação na pesquisa. Esse e-mail foi o primeiro canal de diálogo com todos, e, com exceção de um partícipe que teve dificuldades em localizar um canal de comunicação com a equipe, todos os demais avaliaram como tendo suas necessidades supridas nesse quesito.

A organização do curso foi avaliada sobre diferentes perspectivas. Nesse momento, destaca-se a relação dessa organização no AVA e o apoio na planificação de estratégias de desenvolvimento, pois para que um cursista possua agência no seu percurso de aprendizagem, com possibilidades de realizar escolhas mais assertivas para se expressar, é preciso ofertar apoios, tais como: espaços e tempo para reflexão, mediações com diferentes sujeitos e suas distintas perspectivas reflexivas, assim como checklist de atividades a serem desenvolvidas, entre outros. O fato de existir um fórum de conteúdos paralelo ao desenvolvimento da atividade, no qual a professora inseria uma pergunta reflexiva sobre a temática, foi identificado como um facilitador para relacionar os conteúdos estudados na execução da atividade solicitada no módulo. Além disso, a organização dos conteúdos do curso em tópicos específicos, a disponibilização de várias mídias para a realização das atividades, as orientações e a maneira como elas estavam apresentadas, foram reconhecidas como facilitadores para que os cursistas se tornassem estratégicos na devolutiva. Assim, Wilma Pearl Mankiller apontou que “[...] todas as tarefas foram acessíveis, seja no formato em que estavam, seja na forma explicativa em que as orientações se encontravam, não deixando margem a dúvidas”.

O momento da ambientação foi percebido por alguns cursistas como sendo o apoio necessário para a sequência das atividades no curso. Eles destacam que isso possibilitou a experimentação de um espaço com menos informações, mas em uma estrutura que permitiu a eles se familiarizarem com os ícones, a disposição dos recursos e os tipos de mídias disponíveis, o que facilitou ao adentrar nos módulos de conteúdos posteriormente. A partícipe Anne Sullivan avaliou isso como um dos facilitadores necessários à participação, pois se apropriar do sistema e ambiente da EaD é um ponto essencial para participação.

Os feedbacks foram considerados essenciais para monitorar o progresso ao longo do curso, tanto das aprendizagens adquiridas quanto das etapas vencidas, e a ausência deles foi considerado uma barreira. Em uma proposta de Aprendizagem Colaborativa em Rede, os feedbacks podem ser inferidos pela equipe pedagógica e pelos colegas. A maioria dos participantes do estudo identificou as devolutivas da equipe pedagógica como uma estratégia que organiza o pensamento, além de dar segurança ao sanar dúvidas para o seguimento nas atividades, conforme apontou Helen Adams Keller, “A flexibilidade em relação ao modo de expressar-me e de aquisição do conhecimento, sem dúvida, também foi o diferencial, bem como os rápidos retornos que fui obtendo mediante as questões com as quais ia deparando-me no decorrer do caminho”.

Os cronogramas foram citados como recursos de acessibilidade e alguns participantes indicaram a necessidade de que eles fossem mais detalhados para auxiliar no estabelecimento de metas adequadas. Nesse curso, pelo respeito aos diferentes tempos de cada pessoa, foi disponibilizado um calendário com a previsão de abertura de cada tópico e de data inicial para postagens dos trabalhos. No entanto, os tópicos não se encerravam com a abertura dos novos, no intuito de acomodar as necessidades daqueles que estivessem com tempo reduzido para participação ou que necessitassem de maior tempo de acomodação para sistematizar as atividades. Entretanto, essa facilitação se tornou uma barreira para alguns sujeitos que precisavam de um prazo de término das atividades, fóruns e tópicos, para poderem se organizar, a exemplo da partícipe Bertha Galeron de Calonne, que sugeriu um esclarecimento a respeito do prazo máximo para interagir nos fóruns a fim de não precisar revisitá-los a todo momento.

Ainda no estabelecimento de metas, ficou perceptível que a dificuldade de os cursistas realizarem escolhas de recursos para acessar o conhecimento dificultou a organização deles para que terminassem as atividades de cada um dos módulos antes da abertura do seguinte. Nesse sentido, apareceram muitas falas sobre excesso de material, mesmo tendo sido orientados de que eles poderiam escolher entre os recursos e de que não seria necessário fazer uso de todos. Assim, ficou evidenciada a necessidade de ampliar essa informação para garantir a agência dos cursistas nas escolhas dos recursos que melhor acolham suas necessidades e habilidades, pois, possivelmente, a maioria dos estudantes é habituada com um direcionamento unilateral que determina os recursos a serem utilizados sem possibilidade de escolhas. Faz-se necessário, portanto, desnaturalizar esse modo de organização da EaD.

De modo geral os cursistas compreenderam que a própria estrutura do curso, o modo como ele foi disponibilizado, os tipos de atividades apresentadas, assim como a variedade de recursos para abordar um mesmo conceito e as orientações de como participar em cada tópico são exemplos viáveis para aplicabilidade em outros contextos. Eles identificaram também que as diferentes abordagens, estratégias, tutores e professores com modos de apoio diferenciados contribuíram para a qualidade de suas expressões nas atividades ao longo do curso. Na análise dos vestígios, ficou evidente que os cursistas deram maior importância à postagem de atividades, as quais eram avaliadas e consideradas como frequência para certificação, do que construir uma comunidade de aprendizagem de fato, por meio de trocas e debates nos fóruns. Muitos indicam o debate como sendo de grande importância para aprendizagem, no entanto, os fóruns de conteúdo, nos quais havia debates temáticos, revelaram-se como espaços menos habitados ao longo do curso.

Categoria 3 - Princípio do Engajamento - Rede Afetiva

As motivações que os estudantes possuem para aprender e se manterem envolvidos com determinada aprendizagem são muito distintas. Há uma relação direta com a afetividade e com outros fatores relevantes, como apontado pelo CAST (2011CAST. Desenho Universal para Orientações de Aprendizagem versão 2.0. Wakefield, MA, 2011.), dentre eles: cultura, relevância pessoal, subjetividade, conhecimentos prévios etc. Assim, alguns estudantes se mobilizam de maneira mais espontânea, enquanto outros necessitam de maiores apoios externos, o que demanda na EaD a busca de antecipação das necessidades para potencializar a permanência e a participação de todos. Os interesses individuais, que têm relação direta com a busca pela formação continuada, diferem-se entre os estudantes de um mesmo grupo, assim como um mesmo sujeito os modifica à medida que obtém novos conhecimentos e habilidades.

Em um contexto de aprendizagem, é importante que as metas individuais dos estudantes sejam contempladas nas propostas educativas. Conteúdos, estratégias, entre outros, devem ser relevantes e ter uma certa autenticidade que seja envolvente. Uma das maneiras indicadas pelo CAST (2011) é destacar a utilidade e a relevância dos conteúdos e apresentar atividades significativas. A integração da teoria com a prática nas atividades apresentadas ao longo do curso foi um dos pontos percebidos pelos cursistas e considerada significativa, conforme apontou Christy Brown, “As atividades propostas por tópicos achei bem interessantes e pertinentes, foi valorizada a integração da teoria e da prática. Esse tipo de atividade me facilita a aprender e trazer para minha realidade o conteúdo aprendido”.

Algumas situações que coadunam com o que é indicado pelo grupo do CAST (2011) para o princípio do engajamento tiveram destaques nas inferências dos partícipes, tais como: curso com temática culturalmente relevante e sensível, conhecimento socialmente relevante, atividades com resultados de aprendizagem autênticos e apropriadas para os diferentes grupos. O porquê da permanência dos cursistas até o final do curso foi um item que teve ênfase nos diários pessoais. Dentre os destaques, tem-se a relevância profissional e/ou pessoal. Essa última apareceu em relatos de histórias de vida marcadas pela experiência da deficiência. O registro de Heller Adams Keller apontou essa questão:

Já venho nesta viagem de compreensão do modelo social de deficiência há um bocadinho, sim, bocadinho de tempo, mas com a demanda de muita bagagem a ser colocada para tornar o caminho menos tortuoso. Escutava um pouco de alguém, uma palestra aqui, outra ali e tentava juntar alguns pontos. Neste trecho da jornada, em que deparei-me com este curso, construí tantos saberes, agreguei tantos conceitos e sinto-me tão mais leve, sim, porque carregava o peso da deficiência em meus ombros, afinal de contas, ela era minha, não?

O depoimento acima vai ao encontro dos estudos de Shakespeare (2017SHAKESPEARE, Tom. Disability: the basics. London: Routledge, 2017.), que aponta o Modelo Social da deficiência como uma teoria que tira a responsabilidade da pessoa com deficiência pela lesão e visibiliza a deficiência como uma forma de opressão pelo contexto social. Com base nesta teoria, pessoas com deficiência se sentem autorizadas a advogar por uma sociedade mais inclusiva.

Estudantes de graduação de cursos distintos apontaram que os conceitos abordados foram significativos pela ausência dessa temática na formação inicial, denunciando que a temática da deficiência continua encerrada em disciplinas específicas, com limites bem demarcados. Mesmo aqueles que manifestaram terem cursado alguma disciplina na área, avaliaram-na como sendo insuficiente. Além disso, pesquisadores de mestrado e doutorado buscaram no curso direcionamentos teóricos para a compreensão da temática da deficiência. Nessa direção, Johnnie Lacy aponta que “[...] pouquíssimos são os cursos de licenciatura da UFSC que abarcam a cultura inclusiva”.

A aplicabilidade na prática profissional foi mencionada por diferentes partícipes. Esses relataram que o conhecimento adquirido ao longo do curso proporcionou algumas ressignificações que têm implicações imediatas no contexto das práticas cotidianas, tal como apontado por Helen Adams Keller, “Saberes tão atuais e necessários e que, sim, transformam o modo de percebermos o outro e nosso entorno e modificam as maneiras pelas quais atuamos em nosso cotidiano”.

As falas dos cursistas apontam que, quando ocorre um desencontro dos assuntos abordados em determinados cursos com as experiências cotidianas, não há muito sentido na aprendizagem, configurando-se como uma barreira. Assim como os conteúdos de um curso devem estar adequados ao grupo, também não é suficiente simplesmente fornecer opções diferenciadas de recursos e materiais. A condição de dependência de cada estudante deve ser avaliada para possibilitar o engajamento. A grande parte dos que chegaram até a etapa final da pesquisa apontaram que a oferta de recursos, materiais e estratégias condizentes com suas necessidades para aprendizagem e as possibilidades de escolha para participação foram aspectos considerados relevantes para a permanência, a exemplo de Bertha Galeron de Calonne, quando diz que “[...] por conta da minha rotina acabo acessando os materiais nos intervalos do trabalho, no ônibus, e em outros ambientes que muitas vezes não me permitem acessar os vídeos, por isso meu canal de informações é a leitura”.

Fica evidente que, para além das necessidades dos partícipes pela existência da experiência da deficiência, a implementação do DUA possibilitou uma melhor acolhida da rotina diária dos cursistas. Assim, esse foi outro motivo avaliado positivamente, poder dar devolutiva em voz, ou acessar recursos em texto e com retorno de áudio possibilitaram essa flexibilização para participação, conforme apontou Elizabeth Gertrude Suggs:

Nessa correria do dia, com um pouco de falta de tempo, ter a opção de se expressar pela gravação de áudio tem sido superinteressante para facilitar minha participação, porque, para mim, demanda muito tempo colocar minhas ideias no papel, organizar e sistematizar por escrito. Estou bem feliz por ter essa opção para além da escrita.

Os estudantes precisam de um espaço seguro e livre de distrações para obter mais sucesso na aprendizagem. Não se trata apenas da segurança física, mas é necessário também reduzir ameaças mais sutis ou o excesso de estímulos (CAST, 2011). A EaD, pela possibilidade de ser assíncrona, acolhe a necessidade de organização do tempo e de espaços para realizar os estudos. Uma das situações demarcada por diferentes sujeitos da pesquisa, a exemplo de Johnnie Lacy, Patricia Neal e Stephen William Hawking, é a necessidade de ambientes silenciosos para realizar as leituras e apropriar-se delas. Para além dos ambientes silenciosos, o uso de vídeos sem propagandas, espaços dos quais os cursistas tenham ciência de sua função (fórum, postagem de atividades) ou recursos que sejam intuitivos no seu uso são alguns dos facilitadores indicados pelos partícipes. Johnnie Lacydiz o seguinte: “[...] não presenciei nenhuma situação que me gerasse insegurança no decorrer do curso”. Como já destacado, a ambientação realizada no Moodle foi avaliada de maneira positiva para minimizar as inseguranças no trânsito e uso dos recursos do AVA.

Os cursistas demonstraram ter motivações diferenciadas para se manterem engajados no curso, o que respalda a orientação do DUA de diversificar os tipos de desafios nas atividades formativas e avaliativas e o nível de complexidade em cada uma delas, bem como variar os graus de liberdade para um desempenho aceitável (CAST, 2011). Dentre as falas dos partícipes como Wilma Pearl Mankiller, Helen Adams Keller e Bertha Galeron de Calonne, destacam-se aquelas direcionadas à flexibilidade na resolução das atividades propostas, sendo no nível de aprofundamento, no tempo para realização delas ou na maneira (recursos e estratégias) utilizada na elaboração de tal atividade.

Dentre os pontos críticos, há registros sobre excesso de recursos disponibilizados. A autonomia experienciada pelos cursistas é relacional com o espaço de aprendizagem previamente organizado para oferta do curso. Para tanto, não basta disponibilizar os recursos e apresentar uma certa flexibilidade no processo. Em consonância com a perspectiva de Kittay (2011KITTAY, Eva Feder. The Ethics of Care, Dependence, and Disability. An Internacional Jounal of Jurisprucence and Philosophy of Law, v. 24, n. 1, p. 49-58, 2011., p. 56), a qual enfatiza que “A ética do cuidado exige que o que é oferecido possa ser ocupado pela pessoa cuidada”, destaca-se que é preciso materializar, publicizar como pode ser vivenciado esses diferentes níveis de aprofundamento teórico ou de desenvolvimento das atividades.

A oferta do curso em formato de módulos foi uma situação que otimizou a motivação. Na página de abertura havia uma sinopse do que os cursistas localizariam em cada tópico com a meta da aprendizagem, isso instigou a curiosidade conforme os relatos nos diários pessoais de Stella Jane Young “[...] a novidade de recursos e a curiosidade pelo assunto me motivaram a continuar” - e Ligia Assumpção Amaral - “[...] os módulos foram organizados de maneira a despertar a curiosidade para os módulos seguintes”.

É desejável que estudantes, de modo geral, sejam capazes de colaborar e participar dentro de um grupo de aprendizagem, especialmente em cursos de EaD que trabalham na proposta de Aprendizagem Colaborativa. Entretanto, com base na análise realizada, pode-se constatar que muitos deles ficam como telespectadores e não como atores do processo de aprendizagem do grupo. Nas indicações do DUA, a própria estrutura do curso de EaD, com definição das atribuições de cada um (tutores, professores, cursistas) potencializa a consolidação de uma comunidade de aprendizagem com intuitos e interesses semelhantes, mas o passo inicial não é suficiente, outras estratégias se fazem necessárias. A aprendizagem é um processo de interdependência, é na relação com os demais que consolidamos nossas compreensões. Os debates são apontados por uma parcela dos partícipes como imprescindíveis para o processo de aprendizagem e como motivação para continuidade e aprofundamento de estudos. Entender a necessidade do outro no processo de aprendizagem é reconhecer a dependência e incompletude de cada um de nós. É nas relações com pares que ocorrem os processos de apropriação dos conhecimentos, sendo a participação um elemento central neste processo, conforme aponta Bertha Galeron de Calonne:

Somos seres sociais, somos seres finitos e limitados, nenhum de nós consegue suprir sozinho todas as suas necessidades, bem como não conseguiríamos viver sem a presença de um semelhante, não porque não teríamos autonomia, mas porque quando trabalhamos em conjunto em prol de algo temos maiores possibilidades de alcançar o sucesso, isso serve para todos os âmbitos da vida humana, educação, trabalho, afetividade e outros.

Identificar as motivações para a aprendizagem é imprescindível, mas é preciso um autoconhecimento para que o sujeito integre a capacidade de perceber as suas próprias necessidades e, assim, possa reconhecer nos recursos e estratégias ofertados mais um facilitador ao invés de uma barreira. A pesquisa, atrelada ao curso de extensão, foi um dos motivos de engajamento. Os participantes revelaram que nas questões disparadoras da pesquisa encontraram situações de reflexão que não haviam realizado anteriormente e isso possibilitou um exercício de autoconhecimento, além de despertar a percepção de situações apresentadas ao longo do curso que poderiam passar incógnitas, conforme depoimento de Christy Brown: “Gostaria de dizer o quanto está sendo bom participar da sua pesquisa e parar para olhar meu modo de aprender e por vezes fazer um paralelo com os possíveis modos de aprender dos outros e em especial dos meus pacientes”.

Independentemente de quais sejam as demandas que surjam nos espaços da EaD, o importante é romper com as práticas excludentes e com o silenciamento de determinadas vozes que foram consideradas ao longo dos anos como menos capazes. “É só a partir do (re)conhecimento das diferenças como ponto fundamental de mediação e de diálogo que podemos, efetivamente, construir uma prática pedagógica que se paute pela autonomia, pelo respeito e que seja efetivamente para todos(as)” (Vencato, 2014VENCATO, Anna Paula. Diferenças na Escola. In: MISKOLCI, Richard; JUNIOR, Jorge Leite (Org.). Diferenças na Educação: outros aprendizados. São Calos: EdUFSCar, 2014. P. 19-56., p. 53).

Considerações Finais

Oportunizar acesso à educação com respeito às diferenças de todas as pessoas nos níveis mais elevados de ensino continua sendo desafiador. Muitos estudantes têm encontrado na Educação a Distância uma possibilidade de acesso ao conhecimento, entretanto é preciso uma EaD que acolha as pessoas nas suas características e habilidades para aprender. Retomando o artigo de Edyburn (2010EDYBURN, Dave. Would You Recognize Universal Design for Learning if You Saw it? ten propositions for new directions for the second decade of UDL. Learning Disability Quarterly, v. 33, n. 1, p. 33-41, 2010.), que instigou a realização desse estudo, a promessa do DUA é sedutora e seu crescimento indica que é uma boa ideia para o momento. “No entanto, provou ser muito mais fácil ajudar as várias partes interessadas a compreender o potencial do DUA do que implementá-lo em larga escala” (Edyburn, 2010, p. 40). Precisamos fortalecer o entendimento do que significa implementar o DUA e de como medir os resultados de sua aplicabilidade na realidade do ensino brasileiro.

Dentre as indagações que permearam o estudo, muitas foram respondidas e outras surgiram. Fortaleceu-se a premissa de que para reconhecer o DUA é preciso mudar as concepções sobre acessibilidade, romper com o mito da normalidade e do sujeito independente. No decorrer do estudo foram localizadas falas em que a acessibilidade é atrelada à deficiência e, quando realizou-se um cruzamento das informações, ficou evidente que essa percepção permanece naqueles sujeitos que tinham uma compreensão da deficiência mais próxima ao modelo médico, no qual a lesão é o ponto determinante dessa experiência.

Evidenciou-se, ainda, que, quando um curso é planejado e ofertado tendo o planejamento pautado no DUA, muitas das necessidades específicas dos estudantes com deficiência são contempladas e as barreiras restantes são comuns à maioria dos aprendizes, levando a uma reflexão sobre a ampliação dessa lógica da acessibilidade que potencializa participações e engajamento, tal como o tempo da oferta dos cursos na relação com os recursos disponibilizados. A relação de gestão do tempo para participação e ainda como ele contribui para a apropriação dos conteúdos tiveram destaques nas falas dos partícipes, embora no momento da inscrição todos tenham sido comunicados do tempo a ser dedicado ao curso, esse também foi o grande motivo de desistências comunicadas, a incompatibilidade com as demais atividades da vida cotidiana.

A possibilidade de retorno por diferentes tutores e professores, com diferentes abordagens e modos de expor o conhecimento, fez diferença para garantir a qualidade do curso. Entretanto, apesar de a manutenção da equipe pedagógica durante todas as etapas do processo ser um elemento imprescindível na aplicabilidade dos princípios e diretrizes do DUA, pode-se dizer que este foi um dos pontos frágeis da organização do curso, que traz implicações na pesquisa. Tendo em vista o pouco recurso financeiro disponível para a viabilização do curso e da pesquisa, foi necessário contar com a participação de bolsistas e voluntários, que se disponibilizaram a participar nos tempos livres, o que representou uma fragmentação do processo, distanciando-se da aplicabilidade de uma proposta ideal. Essa falta de recursos é uma realidade bastante comum nos diferentes espaços formativos e que pode gerar dificuldades na incorporação do DUA. Böck, Gesser e Nuernberg (2018BÖCK, Geisa; GESSER, Marivete; NUERNBERG, Adriano. Desenho Universal para a Aprendizagem: a produção científica no período de 2011 a 2016. Revista Brasileira de Educação Especial, Bauru, n. 1, v. 24, p. 143-160, jan./mar. 2018. Doi: <https://doi.org/10.1590/S1413-65382418000100011>.
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, p. 153) identificaram em pesquisas sobre o DUA, realizadas em outros países, situações que dificultam a implementação e se assemelham com as condições precarizadas do Brasil. Os autores sugerem que isso não pode ser um motivo para diminuir o desenvolvimento de pesquisas e nem a aplicação prática do DUA.

Em resposta a essa necessidade de potencialização da implementação do DUA e com o rompimento de práticas normocêntricas, acredita-se ser necessário “[...] construir alianças que ajudem a redefinir nossos valores e trazer novos valores para nossos relacionamentos e nossa política pública. Para satisfazer a necessidade de nos aliarmos com os outros de forma diferente, não precisamos apenas uma ética do cuidado, mas também uma política da diferença” (Kittay, 2005KITTAY, Eva Feder; JENNINGS, Bruce; WASUNNA, Angela. Dependency, Difference and the Global Ethic of Long Term Care. Journal of Political Philosophy, v. 13, n. 4, p. 443-469, 2005., p. 456). Trazer a diferença para o centro, como aquilo que de fato existe, é um impulsionador de mudanças práticas. Na educação, é compreender que além dos estudantes com deficiência, todos os demais necessitam de experiências diferenciadas e acolhedoras de suas características, de uma educação interdependente e, assim, a acessibilidade poderá ser ressignificada e a cultura inclusiva fará parte dos contextos educativos.

Por fim, o estudo mostrou que a utilização dos constructos do DUA coaduna com os princípios e propósitos do campo dos Disability Studies in Education (DSE), uma vez que oferece elementos e estratégias voltados ao acolhimento dos estudantes que utilizam diferentes formas de acessar o conhecimento, rompendo com perspectivas normocêntricas e patologizantes que classificam os estudantes em normais e desviantes. Ademais, o estudo também mostrou que a organização de ambientes de aprendizagem com base no DUA, quando aliada a um posicionamento feminista pautado na ética do cuidado - que atenda às necessidades que ainda poderão surgir mesmo que tenham sido realizadas todas as adequações para tornar os conhecimentos acessíveis de acordo com os constructos do DUA - amplia ainda mais o seu potencial para se garantir espaços acolhedores de todas as expressões da variação humana.

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  • 1
    A absoluta centralidade constitutiva do conceito de norma enquanto princípio regulador de discursos e práticas é produtor das práticas normocêntricas. A naturalização desse padrão normativo de corpo e de funcionamento potencializa o capacitismo.
  • 2
    Fiona K. Campbell (2001CAMPBELL, Fiona. Inciting Legal Fictions: Disability’s Date with Ontology and the Ableist Body of the Law. Griffith Law Review, London, v. 10, n. 1, p. 42-62, 2001.) define o capacitismo como uma rede de crenças em que a pessoa com deficiência, ou todos aqueles que fogem à norma, são considerados um estado diminuído do ser humano. O mais importante, aqui, é compreendermos que o capacitismo é estrutural e estruturante, porquanto todos nós de alguma maneira o praticamos, em maior ou menor escala, sendo importante reconhecê-lo e combatê-lo.
  • 3
    Nesse estudo, como um princípio ético, a identidade dos partícipes foi preservada, seus nomes foram alterados por nomes de pessoas que, a partir da experiência da deficiência, fizeram parte da história com deficiência (in memoriam). Nomear os partícipes da pesquisa referendando essas pessoas é uma das maneiras de homenagear e reconhecer a importância de suas histórias de vida para o fortalecimento de práticas mais inclusivas e menos normativas em nossa sociedade.
  • 4
    Ressalta-se que os nomes dos participantes da pesquisa foram preservados e substituídos pelos de personalidades da história que tiveram a experiência da deficiência ao longo de suas vidas.
  • 5
    Este relato, assim como os próximos relatados apresentados neste artigo, foi coletado em Diário Pessoal fornecido pelos participantes da pesquisa.

Editado por

Editora-Responsável: Carla Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2019
  • Aceito
    13 Jul 2021
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