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Rizoma e Educação Física Escolar: didatografias

RESUMO

O presente artigo, do tipo ensaístico, busca aproximar a filosofia de G. Deleuze e F. Guattari com o campo da Educação Física escolar. Para tanto, formula-se como problema a seguinte questão: quais as conexões entre o conceito de rizoma e a docência em Educação Física escolar? Defende-se que o conceito demonstra ter a funcionalidade de reorganizar as relações da docência, desde que amparado por um modo de atuação cartográfico – não entendido apenas como um método de pesquisa em educação. Propõe-se, ao final, o conceito de didatografia para defender algumas implicações que são remetidas a partir da operação do rizoma na Educação Física escolar.

Palavras-chave
Rizoma; Educação Física Escolar; Cartografia; Gilles Deleuze; Félix Guattari

ABSTRACT

This essay-like article seeks to bring the philosophy of G. Deleuze and F. Guattari closer to the field of school Physical Education. Therefore, the following question is formulated as a problem: what are the connections between the rhizome concept and teaching in school Physical Education? It is argued that the concept demonstrates the functionality of reorganizing teaching relationships as long as it is supported by a cartographic mode of action – and not understood exclusively as an educational research method. Finally, the concept of didactography is proposed to defend some implications regarding the operation of the rhizome in school Physical Education.

Keywords
Rhizome; School Physical Education; Cartography; Gilles Deleuze; Félix Guattari

Introdução: começando pelo meio

Figura 1
Um mapa

O mapa da Figura 1 é o desenvolvimento de um trabalho realizado nas aulas de Educação Física em uma escola do interior de São Paulo, no ano de 2020, na qual se estudou o estilo de jogo RPG1 1 Sigla para Role-Playing Game. Também pode ser conhecido como Jogo Narrativo ou Jogo de Representação. Sua característica principal é justamente essa: a possibilidade de os participantes interagirem de maneira mais aberta dentro de uma história conduzida por um mestre, com intenso desenvolvimento de personagens. A prática começa com tabuleiros nos anos 1970, migrando para outras modalidades nas décadas seguintes, inclusive com forte presença eletrônica. com salas do 5º ano do Ensino Fundamental. Chamamos de mapa e não tabuleiro porque a relação que se cria com o primeiro é diferente. Um mapa precisa ser criado ao passo que é produzido. Nesse sentido, criar um mapa possui uma relação intrínseca com o que se pensa sobre o jogo, sobre suas histórias, sobre seus personagens – não à toa, na imagem, existem protagonistas e desenhos diferentes, criados apenas para aquele formato. Outros foram desenhados: mapas dos mares, mapas de florestas, mapas medievais.

Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. […] O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente

(Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 30, grifo dos autores).

Os desdobramentos dessa citação nos interessam, pois sobre eles outras linhas serão criadas. O estudo dos jogos de RPG com essas salas buscou, justamente, o rizoma. No entanto, isso não é qualquer movimento. O conceito de rizoma, como formulado por Deleuze e Guattari (2011a)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., é explorado dentro da perspectiva do que a área da Educação Física convencionou agrupar em um conjunto de obras denominadas de pós-crítica; mais especificamente, nas pesquisas que remetem ao Currículo Cultural, como em Neira e Nunes (2009)NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mario Luiz Ferrari. Educação Física, Currículo e Cultura. São Paulo: Phorte, 2009., Nunes e Neira (2017)NUNES, Hugo César Bueno; NEIRA, Marcos Garcia. A Diferença no Currículo Cultural: por uma Educação (Física) menor. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 12, n. 2, p. 464-480, maio/ago. 2017., Bonetto e Neira (2018BONETTO, Pedro Xavier Russo; NEIRA, Marcos Garcia. Deleuze-Guattari e Educação Física Cultural: pedagogia do conceito de “escrita-currículo”. Filosofia e Educação, Campinas, v. 10, n. 2, p. 406-437, maio-ago. 2018.; 2019)BONETTO, Pedro Xavier Russo; NEIRA, Marcos Garcia. A Escrita-Currículo da Perspectiva Cultural da Educação Física: por que os professores fazem o que fazem? Educação, Santa Maria, v. 44, p. 01-23, 2019., Boscariol (2020)BOSCARIOL, Marina Contarini. Existir Docente: processo de subjetivação e o cuidado de si. 2020. 126 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020., Bonetto (2021)BONETTO, Pedro Xavier Russo. Esquizo-Experimentações com o Currículo Cultural de Educação Física. 2021. 336 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021., Gehres e Neira (2021)GEHRES, Adriana de Faria; NEIRA, Marcos Garcia. Dançar com o Currículo Cultural da Educação Física: histórias, imagens e performances. Recife: EDUPE, 2021. e Vieira (2022)VIEIRA, Rubens Antônio Gurgel. Educação Física Menor. Jundiaí: Paco, 2022..

Dessa forma, este artigo, de caráter ensaístico, intenta experimentar outros deslocamentos, como propõe Gallo (2017)GALLO, Silvio. Deleuze & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., não se servindo apenas de uma perspectiva curricular em específico; remetendo, assim, ao trabalho com os 5°s anos e seus mapas construídos nas aulas de Educação Física, tratando de abrir linhas, segui-las, cartografar suas potencialidades. Linhas que se encontram, cruzam, fogem e circulam, porque o rizoma “[…] não tem começo e nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 43). Construir um mapa não é um trabalho qualquer, mas o trabalho de abrir rizoma – seja no RPG ou em outras aulas. Sua oposição com o decalque é justamente essa: no mapa não se contornam linhas, não se identificam umas sobre as outras, mas abrem-se linhas imanentemente imprevisíveis.

O rizoma é o conceito (ou platô) primeiro de Mil Platôs e não à toa é com ele que iniciam o livro. Dizem Deleuze e Guattari (2011, p. 44)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., “[…] escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs”. Apesar da brevidade da passagem, sua clareza dificilmente se apresentará novamente. Aulas de Educação Física que se desenvolvem como rizomas não conhecem outros objetivos além da produção de platôs intensivos: um conteúdo, uma expressão, uma quadra, uma imagem, um tempo… tudo o que possa compor com o desejo para abrir novos rizomas. O seu meio é sempre esse, uma espécie de indefinição, não por desleixo, mas pela composição do desejo ser também imprevisível.

Pensar aulas, unidades, projetos e seus trajetos como rizomas; quais as implicações disso? Eis o questionamento central: quais as conexões entre o conceito de rizoma e docência2 2 Chamamos de docência as instâncias que envolvem o território das aulas, aqui no caso, de Educação Física. A escola, as aulas, o planejamento, as relações com os(as) alunos(as) e a coordenação. A docência será considerada uma interconexão particular que tem como um ponto de convergência fundamental as aulas de Educação Física da escola do ponto de vista de quem é responsável por essa organização: o(a) professor(a). em Educação Física escolar? É, logicamente, irônico perguntar sobre suas conexões, pois são as mais variadas. No entanto, afirmamos que se trata, por outro lado, de compor rizomas com platôs, estendê-los e não os arborizar.

Utilizaremos a cartografia como um método de pesquisa e também de escrita, pois, antes de fechar mapas, ela persegue linhas, “A vida da cartografia vem do seu trabalho sobre linhas” (Oliveira; Paraíso, 2012OLIVEIRA, Thiago Ranniery Moreira; PARAÍSO, Marlucy Alves. Mapas, Dança, Desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 3 (69), p. 159-178, set.-/dez. 2012., p. 9). Há, no entanto, certa condição especial: como fazer da cartografia um método, visto que as próprias linhas de um mapa não seguem por caminhos paralelos, identificáveis entre si? Oliveira e Paraíso (2012, p. 5)OLIVEIRA, Thiago Ranniery Moreira; PARAÍSO, Marlucy Alves. Mapas, Dança, Desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 3 (69), p. 159-178, set.-/dez. 2012. são assertivos quanto a isso: “[…] um método não é um caminho para saber sobre as coisas do mundo, mas um modo de pensamento que se desdobra acerca delas e que as toma como testemunho de uma questão: a potência do pensamento”. Um método cartográfico não é uma tabela dada de antemão, passos que devem ser seguidos, elementos que devem ser considerados. Uma cartografia como método de pesquisa e escrita precisa ser um modo de pensamento testemunha dos platôs intensivos, um rigor de pensamento. Não é descrever, comentar, relatar, mas inventar problemas, partir das grandezas que nos agenciam, por isso “[…] o objeto cartográfico é a dissolução da forma e a instauração da velocidade (Oliveira; Paraíso, 2012OLIVEIRA, Thiago Ranniery Moreira; PARAÍSO, Marlucy Alves. Mapas, Dança, Desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 3 (69), p. 159-178, set.-/dez. 2012., p. 7).

Para escrever cartograficamente, compor com platôs, não nos remetemos unicamente à bibliografia da área, mas buscamos compor com ela, seja com um filme, uma fala, uma imagem, um frame, uma aula, uma música ou um álbum inteiro, que nos ajudem a pensar, a inventar conexões. Por forças maiores que dificultam a imposição de algumas resistências, necessitamos referenciar isso e torna-lo o mais científico possível. Mas, aos(às) leitores(as), convidamos a se deixarem afectar3 3 O afecto, segundo Rolnik (2017), é amplamente diferente da ideia de afeto, que significa proximidade, carinho ou cuidado. O afecto é uma força, um corpo variável que toma espaço e morre. Não se tem afecto, mas somos atingidos por ele – por isso Yung Buda nunca foi metafórico: “Suas mensagens chegam tipo bala/ Seu choro até molha minha cara/ Suas lágrimas vêm do telefone/ Eu falo que o ódio me consome/ Minhas linhas não fazem mais sentido/ Uso elas, costuro a minha alma” (Buda, 2018). por fluxos anticientíficos. Que pegue simplesmente o que necessita, talvez para uma ou várias aulas. Não conclua, faça rizoma. Por isso a pesquisa é imediatamente política, pragmática e conceitual, pois não intentamos entender se na prática da Educação Física isso ou aquilo pode ou não dar certo; ter a prática como medida da teoria. O problema é outro: “Como isso funciona? Eis a única questão” (Deleuze; Guattari, 2011bDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011b., p. 239).

Rizoma e Docência e Aulas e Linhas

Figura 2
Rizoma

A Figura 2 é particularmente interessante para entender o que chamamos de mapa. Ao menos três pontos poderiam ser ressaltados. O primeiro, suas linhas; o segundo, seus traços; o terceiro, seu funcionamento. Não é, claro, um mapa convencional. Não há entradas, saídas ou semáforos nos cruzamentos. Primeiro ponto: o desenho das linhas. Há uma espécie de divisão da imagem, na parte de baixo, vemos linhas que correm menos entrelaçadas; na parte de cima, podemos perceber linhas que produzem um emaranhado pouco identificável caracterizando cores mais fortes. Isso causa, na verdade, como comentamos, um aspecto confuso, linhas mais finas, soltas, que logo encontram outras linhas, se entrecruzam, formam um preenchimento mais escuro, deixam invisível uma parte do fundo cinza da imagem. O mapa que essa imagem produz não é identificável justamente porque seu desenho não forma um decalque. A cartografia do rizoma, para perseguir linhas, precisa ser singular. Por mais que se faça o esforço de voltar, de cruzar uma linha com outra, deixar determinado território mais escuro, mais tracejado, o rizoma se mostrará sempre “[…] estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 29). Sua forma está sempre em movimento.

O segundo ponto é a aparente construção dos seus traços. Não seria prudente dizer “esse “mapa começa aqui, ou esse mapa termina ali” – não há brecha para isso. Vemos inícios e términos nos mesmos lugares, continuações na borda da imagem, linhas que continuam e não são registradas, que terminam e que não podemos acompanhar, pois não chamam atenção. A Figura 2 funciona como um filme em que nem tudo se resolve com os personagens e nem todas as perguntas possuem respostas, em que são imaginados acontecimentos nunca confirmados de fato. A borda é somente o limite do centro captada pela imagem, as linhas demonstram apenas que ela não poderá fazer nada dali para a frente. Se cruzam, se chocam, se tornam mais espessas, avançam os limites, voltam para cruzar outros territórios: “[…] qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 22). E poderíamos questionar: não será necessária uma rigorosa análise para entender esses caminhos, demonstrar seus porquês? Afinal, faria isso a cartografia? Pelo contrário, não se cartografa um rizoma para explicá-lo, mas para criá-lo. Qualquer segmento pode ser útil em qualquer contexto. Mas, talvez, não hoje. Talvez amanhã. Semana que vem. Quem sabe, venhamos a esquecer. “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 25).

E aqui se encontra o terceiro ponto de análise: o funcionamento das linhas. Não estamos justificando, ordenando, dizendo para que servem. Nossa escrita é de outra ordem. Suas linhas se entrelaçam, rodam, seguem reto, devido ao seu funcionamento. Funcionar, aqui, é conexão de heterogeneidades. Não à toa, ora as linhas parecem conectadas umas com as outras, e ora elas saem do nosso escopo de visão. Isso se dá porque as conexões do rizoma funcionam em intensidade, abrindo novas linhas, cruzando outras, e ele só poderá continuar avançando desde que façamos multiplicidade. Não há origem da qual derivariam as linhas e para qual elas deveriam voltar, ou dela deveriam variar – esse seria o princípio do que é múltiplo, variações do uno. “É somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno […]” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 23). O funcionamento é, então, o próprio devir do mapa e não o seu mecanismo de objetificação, veridicção prática, comparação. A imagem demonstra isso: não se perdem objetivos, não se volta ao original, as linhas não se encontram, afinal, no que foi anteriormente acordado, uma profunda falta de identificação com um à priori. “Me ligaram e perguntaram quem estava falando. Eu disse, sou eu, Skylab. Me responderam: ‘então prove!’. Eu entrei em desespero, porque comecei a pensar que eu, era eu mesmo”4 4 Releitura de uma entrevista concedida por Júpiter Maçã à Rogério Skylab no programa Matador de Passarinho (Júpiter Maçã, 2016). .

Por outro lado, é necessário explorar: falamos em demasia sobre linhas, que seguem retas, invadem ou fogem. Ora, é de se supor que esse não é um tema óbvio, que não são apenas linhas porque riscam mapas. Propomos um entendimento contrário: são, na verdade, mapas porque cartografam-se linhas. Não linhas que se passam da tinta para o papel, que representam o espaço. Linhas, por outro lado, do desejo. Somos feitos(as) dessas que, produzidas pelo desejo, criam grandes cartografias que constituem diferentes tipologias entrelaçadas – “[…] essas linhas não querem dizer nada. É uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa” (Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 84).

São três espécies de linhas propostas pelos filósofos: “linha de segmentaridade dura ou molar” (Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 73); “linha de segmentação maleável ou molecular” (Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 75) e “linha de fuga” (Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 76). Linhas de investimento do desejo que não são nenhum tipo de metáfora. As linhas duras deixam poucas dúvidas: é o que é, a escola, a lição, a fila – “formem fila, vamos andando para a quadra!”. Por outro lado, as linhas maleáveis produzem a fatídica questão: o que aconteceu? Algo já se passou. Como um sismógrafo, desestabilizou a linha dura (ou estabilizou a linha de fuga). Ela precisa ser reposta? Podemos ir mais longe? – “Gabriel, por que saiu da fila?”, “atenção, eu sou o professor e isso é uma aula!”, “mas o que acham, podemos pensar o futebol de outra forma?”. Mas há um segmento ainda mais perigoso, de morte e de vida, que são as linhas de fuga, desenho abstrato, seu funcionamento é outro, pois há total desterritorialização dos investimentos, uma nova invenção, outro mundo por outra via: “Elis, onde está? Saiu da quadra!? Foi para o parque, professor!”. Essas linhas não são necessariamente boas ou ruins e é justamente por isso que devemos nos perguntar como estender ou como diminuir o seu alcance.

É a produção que investe linhas e não a falta de um objeto representado que gera desejo. Querer é já produção desejante. Mas nunca queremos por nada, muito pelo contrário: desejamos a escola, desejamos a fila, mas também a maleabilidade ou a linha de fuga: “O desejo nada tem a ver com uma determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado” (Deleuze; Guattari, 2012cDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs, Vol. 5: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012c., p. 83). Há todo um sistema social que faz desejar isso ou aquilo, não se deseja no vazio e pelo que se luta é pelo que se deseja, e é dessa maneira que cartografamos linhas que compõem o espaço da quadra ou da sala de aula: desejos que circulam, rizomas que se abrem ou fecham. A que preço uma aula de Educação Física é desenvolvida? De uma segmentaridade dura quase em absoluto (um(a) aluno(a) atrás do(a) outro(a); colunas; rigidez) ou uma quase total desterritorialização (um rola-bola; aulas livres; qualquer coisa) sem rumo? A grande questão é precisar que cada linha possui o seu perigo, assim como sua potencialidade – de certa maneira, nenhuma é de vida ou de morte, mas podem ser as duas coisas.

[…] quais são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de fuga? […] Você racha? Você rachará? Você se desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem figuras nem símbolos?

(Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 84-85).

É dessa maneira que entendemos a produção cartográfica – até por isso a cartografia não é um método rígido, pré-elaborado, que se comprova na prática. A cartografia é imediatamente política porque só pode cingir sobre nossas próprias relações imediatas. Queremos dizer que não se trata de abrir um rizoma por causa de uma atividade ou testar o rizoma na prática de maneira anteriormente elaborada. O que objetivamos é clarificar o trabalho no rizoma, por dentro dele, um trabalho que busque expandir, ir mais longe, pois recusaríamos dizer: “aqui começa o rizoma e aqui deve terminar”; “assim começamos o trabalho com uma prática corporal e assim terminamos”. Sua formação é um entrelaçamento entre diferentes segmentaridades que podem ser exploradas em suas diversas faces, sem que uma se sobreponha a outra. “É curioso como a segmentaridade maleável está presa entre as outras duas linhas, pronta para tombar para um lado ou para o outro” (Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 86).

Gaspar Noé5 5 Cineasta (1963-presente) argentino, conhecido por filmes como Seul Contre Tous, Irréversible e Soudain la Vide. levou isso a sério: a câmera constantemente persegue seus personagens, que, em certo sentido, parecem deixar de atuar. A câmera acompanha a caminhada e enquadra suas costas, escondendo seus rostos. Entra depois dos(as) atores(as) no taxi ou no metrô. Ela não espera que os personagens cheguem no quarto, captando as vozes que se aproximam: ela os segue pelo corredor. Espera, pacientemente, enquanto conversam futilidades; que a porta do metrô se abra para que possa sair junto com eles(as). Tudo está nessas cenas. Borra-se a linha divisória entre filme, história, personagens. Há aí toda uma questão para a cartografia e para o currículo.

Figura 3
Gaspar Noé cartógrafo

É certo que o rizoma pode ser entendido de diferentes maneiras, mas o entenderemos como esse “entrecruzar de linhas” (Bonetto; Neira, 2018BONETTO, Pedro Xavier Russo; NEIRA, Marcos Garcia. Deleuze-Guattari e Educação Física Cultural: pedagogia do conceito de “escrita-currículo”. Filosofia e Educação, Campinas, v. 10, n. 2, p. 406-437, maio-ago. 2018., p. 19). Está aqui o nó entre o conceito de rizoma, a docência e a Educação Física Escolar. Aproveitar das conexões desejantes e por isso mesmo apostar nas relações imanentes das aulas e não apenas nas representações do ensino, o que se deve aprender, expectativas de aprendizagem, estruturações. Uma Educação Física e uma docência combativa, revolucionária: “O desejo não ‘quer’ a revolução, ele é revolucionário por si mesmo, e como que involuntariamente, só por querer aquilo que quer” (Deleuze; Guattari, 2011bDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011b., p. 159). Poderiam nos acusar de individualismo ou questionar se simplesmente fazemos tudo o que queremos por improviso. Não se trata, claro, disso! Nos perguntamos, por outro lado, como faremos funcionar sistemas de extensão que ramifiquem essas linhas e esses platôs intensivos.

Estender um platô (ou vários) à(s) sua(s) última(s) possibilidade(s) e extrair daí um novo aprender, uma nova prática corporal que vai mais longe, um novo atravessamento entre esportes e brincadeiras, danças e ginásticas… um eterno retorno dos sistemas de extensão. É certo que nem sempre alcançaremos a mobilidade necessária para trabalhar um tema por mais de uma aula; assim como outros podem estender suas intensidades iniciais por vários meses. Por outro lado, o(a) docente, mais um agenciador dentre tantos, não olha para essas extensões como fruto da sua racionalidade, mas sim como uma produção coletiva e, nesse sentido, não se entristece quando um platô perde potência.

Há um ponto importante, melhor dizendo, uma pergunta importante, já lançada por Silva (2002, p. 51)SILVA, Tomaz Tadeu da. A Arte do Encontro e da Composição: Spinoza + Currículo + Deleuze. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 47-57, jul.-dez. 2002.: “Poderá o currículo deixar de ser, inevitavelmente, processo renitente de reterritorialização para se transformar, de forma igualmente obstinada, em impulso insistente de desterritorialização?”. Como poderemos fazer do currículo menos forma e mais um encontro de linhas, um entrecruzar delas, separando-o do que deve, aproximando-o do que pode? “Por que fizeram assim e não de outra forma?!”, responderíamos: “Porque pudemos!”6 6 Construção inspirada na fala de Luiz Fuganti, quando concedeu uma entrevista para o podcast Razão Inadequada. Fuganti pergunta por que um vulcão explode, e conclui da mesma maneira que a citação: porque ele pode. . Uma composição que persegue linhas do desejo e com elas busca inventar nova trajetória. Nada mais do que uma dança – mas uma dança sem coreografia, uma dança-movimento, com, talvez, alguns passos já conhecidos: “Um[a] professor[a] assim tem muita chance de botar um currículo para dançar” (Silva, 2002SILVA, Tomaz Tadeu da. A Arte do Encontro e da Composição: Spinoza + Currículo + Deleuze. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 47-57, jul.-dez. 2002., p. 52).

Não queremos para nós, de maneira nenhuma, o papel de negação do currículo, dizer que ele não existe ou não deveria existir. Por outro lado, queremos levar ao “pé da letra” quando Silva (2017 [1999])SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, [1999] 2017. propõe o currículo como percurso, pista de caminhada ou coisa do tipo. É sempre uma questão de perspectiva, de onde se olha, antes de começar, depois de terminar, há uma grande diferença. Por isso, a discussão que Gallo (2015)GALLO, Silvio. Educação Menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In: GRUPO TRANSVERSAL (Org.). Educação Menor: conceitos e experimentações. Curitiba: Appris, 2015. levanta é amplamente considerada por nós: a possibilidade de uma educação menor em relação ao que é maior na educação. Também aquela que Vieira (2022)VIEIRA, Rubens Antônio Gurgel. Educação Física Menor. Jundiaí: Paco, 2022. emprega ao propor o conceito de Educação Física menor. O rizoma é sempre a minoração de uma aula. Não poderíamos ser ingênuos, dizer que não há de fato um currículo, pois os currículos estaduais, municipais, a base nacional ou os próprios documentos curriculares das escolas em que atuamos são um farto material para explicitarmos esse pensamento. No entanto, a isso poderíamos chamar de educação maior, como fazem os autores mencionados. O rizoma é uma minoração na medida em que funciona em paralelo aos agenciamentos do desejo na própria aula, uma revolução do que está proposto, do que está dado e registrado. E não se trata de demonstrar a opressão dos referidos documentos, mas de oportunizar linhas de fuga, visto que o desejo já é revolucionário na medida em que não investe na molaridade da educação maior.

Mas não se trata de uma dialética entre maior e menor, onde um se sobreponha ao outro, mas bem o contrário, pois no rizoma, nada se sobrepõe de maneira definitiva, uma dominação total, todos os fluxos são cortados, diminuídos, dobrados e encerrados. É certo que a educação maior (Base Nacional Comum Curricular, diretrizes, planos, imposições, autoritarismos, unidades) ocupa um vasto território (Gallo, 2015GALLO, Silvio. Educação Menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In: GRUPO TRANSVERSAL (Org.). Educação Menor: conceitos e experimentações. Curitiba: Appris, 2015.). No entanto, a potência revolucionária do menor em educação sempre retorna, como nos filmes de halloween, para perturbar, para tirar do eixo: Michael Myers, quase ironicamente, ressurge. O menor é sempre uma empreitada imprevisível dentro do próprio maior; assim como a maiorização do menor é um risco sempre constante. O menor estremece a racionalidade moderna.

Figura 4
De onde virá?

Em certa medida, é uma defesa do irracional, como se pudéssemos nos deixar levar na medida em que propomos ou organizamos menos. Não é a defesa da falta de intervenções, mas de um surfar nas ondas (Lins, 2010LINS, Daniel. Por uma Leitura Rizomática. História Revista, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 55-73, jan.-jun. 2010.), ou nos ventos, de determinado contexto, momento, dia, uma espécie de leveza, uma oportunidade para rir de si e das aulas, como fizeram Deleuze e Guattari com seus platôs7 7 “Escrevemos esse livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 44). . É certo: dessa forma, chegará o momento em que o formato e o final, o objetivo e a expectativa ficarão mais embaçados, haverá dificuldade de identificá-los ou de retorná-los. É preciso que se saiba até onde pode ir, como pode estender ou onde deve interromper, por medo ou por dever, é sempre um desafio. Mas eis aí a beleza! Queremos uma escrita-currículo (Bonetto; Neira, 2018BONETTO, Pedro Xavier Russo; NEIRA, Marcos Garcia. Deleuze-Guattari e Educação Física Cultural: pedagogia do conceito de “escrita-currículo”. Filosofia e Educação, Campinas, v. 10, n. 2, p. 406-437, maio-ago. 2018., p. 13), mas na medida em que ela é um “antimodelo”. Um currículo que é escrito no momento de sua produção. Um antimodelo que não é contrário a uma perspectiva curricular ou que teça críticas ferrenhas às suas empreitadas. Antimodelo porque o modo de operação rizomático só pode acontecer sem um molde anterior, caso contrário, identifica-se logo com uma arborescência, um eixo genético, uma base necessária. Uma escrita-currículo que não deve ser interpretada, racionalizada, mas experimentada, no sentido deleuzeano (Deleuze; Parnet, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.). Brincadeiras que possam ser simplesmente brincadas, vivenciadas; e um(a) docente cartógrafo(a) que possa ser afectado(a) pelos platôs abertos, seguir as linhas que se ramificarem e dar ouvido às novas línguas que soarem.

Uma defesa do irracional se faz a nível do inconsciente. Não se trata de uma total linha de fuga, uma abertura para o caos incontido, mas da produção desejante do inconsciente, que é tão corpórea e material quanto o próprio nível consciente, que aprende e inventa tanto quanto. A vivência tem aí um papel importante: ela é produtora, geradora de temas, e não policialesca: “melhore seu movimento!”, “eu falei que o gesto não era assim!”, “é assim que se dança!”. Quais platôs são produzidos numa vivência? Como estendê-los sem necessariamente planejá-los? Podemos retornar-lhes na próxima aula? Dar vazão aos fluxos inconscientes, desmolarizar a prática.

Necessitaríamos, então, nos posicionarmos anteriormente aos princípios, as leis e as etapas. Defendemos um antimodelo na medida em que é uma anti-identificação. Não se fazem leis e não se cumprem etapas, não se fala da mesma coisa de um jeito diferente. “Fizemos assim”, a partir daí, nada mais. Parece-nos interessante o artigo de Rigoni e Daolio (2017)RIGONI, Ana Carolina Capellini; DAOLIO, Jocimar. A Aula de Educação Física e as Práticas Corporais: a visão construída por meninas evangélicas. Movimento, Porto Alegre, v. 23, n. 1, p. 147-158, jan.-mar. 2017., pois mostram isso em operação. Não nos filiamos necessariamente às suas convicções ou a visão que o quadro teórico propõe sobre o campo da Educação Física escolar ou da sociedade em geral. Na verdade, chamamos atenção para outro ponto, aquele em que os(as) autores(as) constroem suas problematizações, explorando, singularmente, as tensões entre a cultura escolar e a cultura evangélica e a produção conceitual para se fazer entender as relações entre aqueles que participam ou não das aulas na escola. Isso é interessante na medida em que se estende a linha de investimento do desejo em problemas pouco aprofundados. Em outras palavras, não se havia, na literatura, criado nomeações para aqueles que participam, participam pouco ou que não participam (Oliveira; Daolio, 2014OLIVEIRA, Rogério Cruz de; DAOLIO, Jocimar. Na “Periferia” da Quadra: Educação Física, cultura e sociabilidade na escola. Pro-Posições, Campinas, v. 25, n. 2 (74), p. 237-254, maio-ago. 2014.); assim como se investiga pouco os meandros das relações das meninas com o corpo na escola e na igreja (Rigoni; Daolio, 2017RIGONI, Ana Carolina Capellini; DAOLIO, Jocimar. A Aula de Educação Física e as Práticas Corporais: a visão construída por meninas evangélicas. Movimento, Porto Alegre, v. 23, n. 1, p. 147-158, jan.-mar. 2017.). São pontos, talvez, pouco reproduzíveis, situações que pode ser que não encontremos novamente. E a coragem da escrita menor está aí – pois não foi, afinal, Kafka quem pediu para que seus livros fossem queimados, visto que não tinham valor algum? Em problematizar e desenvolver o que não é categoria, sem se preocupar se isso poderá acontecer de novo ou não.

Ora, isso quer dizer que não possuímos inspirações, que não nos baseamos em nada? Vemos de outra maneira: queremos uma língua nômade8 8 Em Deleuze e Guattari, o nômade ganha destaque visto que é aquele que experimenta diferentes desterritorializações e novas territorializações. O nômade passeia por diferentes campos de significados e se utiliza de novas línguas, faz vacilar a dos outros e a sua própria. Uma língua nômade é aquela que não se contenta com uma significância, mas desloca e perturba a linguagem hegemônica. “Ser um estrangeiro, mas em sua própria língua, e não simplesmente como alguém que fala uma outra língua, diferente da sua. Ser bilíngue, multilíngue, mas em uma só e mesma língua, sem nem mesmo dialeto ou patuá. […] É aí que o estilo cria língua” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 42-43). Dessa forma, olhando para as práticas corporais como produções da cultura (Neira, 2019), e a cultura como uma correlação específica de significados produzidos (Hall, 1997), encontramos outras vias da relação com o nomadismo. Em outras palavras, ser multilíngue é, ao mesmo tempo, produzir dialetos e práticas corporais outras. , forçar seu escorregamento, de outro modo, com outro intuito, funcionar de outra maneira.

Há aí pouco critério? Talvez sim, do ponto de vista moderno-científico, pois não se faz questão de encontrar invariantes ou relações baseadas em convicções dialeticamente estruturadas. Aposta-se, por outro lado, na multiplicidade. Isso quer dizer que até mesmo a perspectiva genealógica nos é muito cara, mas nos debruçamos sobre as linhas de fuga: o que podemos a partir daqui? Quando subvertemos a língua, experimentamos sua desterritorialização, investimos em uma linha de fuga que pode ser tão potente quanto a desconstrução da própria língua. E isso, em matéria de Educação Física, não é qualquer coisa. Percebemos diferentes modus operandi das perspectivas críticas e pós críticas9 9 Segundo Neira e Nunes (2009), a partir da leitura que fazem de Silva ([1999] 2017), há uma diferenciação curricular na área da Educação Física escolar que pode ser dividida em três perspectivas curriculares: tradicionais, crítica e pós críticas. No texto, mencionamos somente o “crítico” e o “pós-crítico” porque reconhecemos, junto com os autores, que a perspectiva tradicional é abertamente acrítica e seus currículos (ginástico, esportivista, desenvolvimentista, psicomotor e saúde renovada) não se baseiam em grande medida nas ciências humanas para pensar o campo. . Coletivo de Autores (2012) e Kunz (2014)KUNZ, Elenor. Transformação Didático-Pedagógico do Esporte. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014. defendem a importância do dialogicismo crítico para encarar o conhecimento científico que deve ser empregado no contexto escolar. Dessa forma, o conhecimento científico, supostamente o verdadeiro da realidade, só pode ser alcançado e transpassado para a vida fora da escola através do trabalho da constituição de uma conscientização crítica, seja a partir do que as historicidades das práticas corporais têm a nos mostrar (Coletivo de Autores, 2012COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 2012.) ou, então, o que o esporte pode nos ensinar direta ou indiretamente (Kunz, 2014KUNZ, Elenor. Transformação Didático-Pedagógico do Esporte. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014.). Por outro lado, tratando-se do pós-crítico, com o currículo cultural, chamamos de empreitada genealógica o emprego de esforços para fazer circular novas discursividades, problematizar os regimes de verdade instalados sobre as práticas corporais e apoiar sua ressignificação em diferentes níveis. Diferentemente do crítico, o currículo cultural não se apoia fundamentalmente na ciência, já que também questiona sua atuação e a vontade de verdade que propaga sua ação discursiva.

Se conhecer não é da ordem da descoberta, do achado, tampouco da revelação, mas da produção, da invenção e do artefato, então conhecer a ginástica rítmica implicaria um processo que, ao invés de buscar desvendar o que ela é, procuraria escrutinar as condições em que ela acontece, as formas pelas quais ela se tornou o que se diz que ela seja, assim como as outras maneiras possíveis de dizê-la e fazê-la. Com isso, a indagação do ato de conhecimento se modifica

(Oliveira; Neira, 2019OLIVEIRA, Glaurea Nádia Borges de; NEIRA, Marcos Garcia. Contribuições Foucaultianas para o Debate Curricular da Educação Física. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 35, e198117, 2019., p. 13).

E continuam mais a frente:

Já não se trata de buscarmos desnudar quais seriam as narrativas verdadeiras ou falsas acerca das práticas corporais, mas de interrogarmos as formas pelas quais essas narrativas se tornaram verdadeiras/falsas, que efeitos elas produzem e de que modo estamos posicionados nesses jogos de veridicção

(Oliveira; Neira, 2019NEIRA, Marcos Garcia. Educação Física Cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco Editorial, 2019., p. 19).

Queremos nos aliar e ser nômades em ambos os lados. Talvez não tratemos de conhecimentos científicos; ou talvez não problematizemos a prática corporal demonstrando suas condições de acontecimento. Perguntamos, ao contrário, sobre a perseguição dos platôs, pois não cremos no devir-bailarina (Lins, 2010LINS, Daniel. Por uma Leitura Rizomática. História Revista, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 55-73, jan.-jun. 2010.), mas no devir-dança, assim como Silva (2002)SILVA, Tomaz Tadeu da. A Arte do Encontro e da Composição: Spinoza + Currículo + Deleuze. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 47-57, jul.-dez. 2002.: “Eu fiz Ballet por um tempo, professor, mas não gostei, tem muitos passos, precisa ficar treinando e decorando, fazer tudo certinho. Hoje eu prefiro dançar livre”10 10 Aula com a temática das danças na segunda etapa do ano de 2020 – relato não publicado. .

O desejo, revolucionário por ele mesmo, revoluciona a prática porque pode desejá-la de outra maneira, o que não nos exime de problematizar o que acontece. Há um compromisso com o problema somente na medida em que ele faz pensar, que é ponto forte do aprender (Schérer, 2005SCHÉRER, René. Aprender com Deleuze. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1183-1194, set.-dez. 2005.). Estender os platôs formados pelas linhas de investimento, pelas outras maneiras de fazer e entender. Tão claro quanto interpretar como as discursividades foram constituídas, é para nós também experimentar outro acontecimento: “Sentados fora da quadra, os meninos esperam as meninas concluírem seus jogos. Um deles exclama: ‘Nossa! Olha lá! Daquele lado jogam meninos e meninas!’. O professor sugere que eles podem se distribuir de uma forma diferente na próxima vez”11 11 Aula com a temática dos jogos na primeira etapa do ano de 2020 – relato não publicado. . Eis a possibilidade de desinvestimento do desejo na organização molar em que meninos não jogam com meninas. É aí onde tudo pode começar de novo, onde tudo se decide. Isso apoiará nova discussão sobre as desigualdades no esporte ou será algo que trataremos apenas na próxima aula? Não se preveem acontecimentos. “Um canto se eleva, se aproxima ou se afasta. […] processos ou devires se desenvolvem, intensidades sobem ou descem” (Deleuze, 2013DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 188).

Cartografias e Diagramas

Figura 5
Devir-rainha-de-maio

A estrangeira é convidada para uma dança. Uma homenagem aos jovens de Haarga que uma vez foram chamados pela escuridão para dançar até a morte. Como símbolo de sua afronta, vivas, dançarão até cair. A mais resistente será coroada a rainha de maio. É ela a última a permanecer de pé. Ganha uma coroa de flores, lhe é concedido um trono de plantas verdes. Sua tarefa: abençoar a terra, conduzir a refeição e decidir pela vida de alguns dos sacrifícios. Ao se sentar no trono, uma rápida imagem: as plantas que se acomodam ao seu braço e não o contrário. A estrangeira já não é mais Dani, mas deveio rainha de maio. Apesar das hesitações, há uma rápida territorialização. Em várias cenas seu corpo se funde com o capim, com a grama. Que isso quereria dizer? Qual o significado? O que representa? Não há nada a interpretar, pouco importa se os pés realmente se fundem à grama, se as plantas abraçam a rainha de maio, ou se tudo não passa de um alucinógeno que foi tomado tempos atrás. Midsommar (2019) é puro devir. Dani devém rainha de maio. Christian devém sacrifício no fogo. A roda de moças devém a dor do choro. A comunidade é a terra, são todos o ritual: “Eu perdi meus pais num incêndio […] A diferença é que eu nunca tive que me sentir perdido, pois aqui eu tenho uma família” (Midsommar, 2019MIDSOMMAR: o mau não espera a noite. Direção: Ari Aster. Produção: Beau Ferris, Jeffrey Penman, Patrick Andersson e outros. Intérpretes: Florence Pugh, Jack Reynor, William Jackson Harper e outros. Roteiro: Ari Star. Estados Unidos, 2019. (147 min.).). Eis o(a) cartógrafo(a), aquele(a) que devém cartógrafo(a).

Como processualidade, a cartografia é inventada no momento que é escrita. Devir cartógrafo(a) é aprender a cartografar aquela terra e suas segmentaridades. Inúmeras cartografias possíveis entre a sala de aula, a quadra e os mais variados espaços: cartografias das práticas corporais, dos investimentos, do que territorializa e desterritorializa, ou ainda do que não pode circular. Não se decalca, não se confere, devém-se cartógrafo(a), objeto, escritor(a) e aprendiz da própria cartografia, o(a) cartógrafo(a), em primeira pessoa, na verdade, deixa de existir, dá-se lugar aos afectos, à terceira pessoa, pois a cartografia sobrevive de platôs: “[…] o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu” (Deleuze; Guattari, 2012bDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 4: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012b., p. 22).

Como Midsommar (2019), a cartografia é puro devir, mas de uma forma bem específica. Quando o(a) cartógrafo(a) faz vacilar, o eu funde-se à cartografia do espaço, da maneira como fazem as plantas à rainha de maio, que já não são mais Dani, nem plantas e nem rainha de maio, mas um devir; como faz o(a) docente que pergunta, que oferece a fala, joga ou que dança junto, faz corpo com todo o resto, não porque imita o(a) aluno(a), mas porque faz de si parte do território:

Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda a sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a ‘parecer’, nem ‘ser’, nem ‘equivaler’, nem ‘produzir’

(Deleuze; Guattari, 2012bDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 4: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012b., p. 20).

Não se confere nem se provam argumentos com a cartografia. Não há, na verdade, um método cartográfico estruturado, mas, talvez, estilos cartográficos. Aquele(a) que devém cartógrafo(a) não pode decalcar e nem identificar passos, ao contrário, torna-se, com todos(as), a própria cartografia. Se há algum método, esse só pode estar na invenção de problemas. Mas não necessariamente problemas em formatos de questões ou algo que não possui uma reposta tão clara, o problema, muitas vezes, só faz tombar a linha do desejo, mudar seu rumo, perturbá-la, endurece-la, livrá-la. O método da cartografia é rizoma, assim como o devir, e se apoia em platôs abertos. Seria preciso sermos mais incisivos: não queremos um método para saber sobre as coisas do mundo; queremos um método que invente estilos, que invente novas perspectivas de falar sobre as coisas do mundo, a Educação Física e a escola. O compromisso do método é com a potência do pensamento (Oliveira; Paraíso, 2012), não só de quem escreve, mas também de quem lê. A “boa nova” de Deleuze é anunciar a verdade dos conceitos como questão de estilo: funciona para você? Formam-se novos problemas? Será possível dessa vez? “Não há questão alguma de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que lhes convêm ou não, que passam ou não passam” (Deleuze; Parnet, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998., p. 12).

Um(a) professor(a), uma escola, uma ou duas salas, uma cartografia. Há todo um devir, uma aliança. Um mapa é produzido, mas só a partir da sua exploração. Linhas são seguidas e descritas, mas somente na medida em que se configuram problemas. Linhas são interrompidas e isso não será um passo atrás. Vamos sempre mais longe, não voltamos ao início, pois isso não é possível. Devimos outra coisa, outro mapa se abriu, não queremos chegar ao topo da árvore, interessa desenhar rizoma, esse é nosso mapa. “Gentilmente, sentei na pedra/ Tornei-me parte dessa pedra/ Ninguém me compreendia, nem nada que eu sabia/ Os passarinhos me aclamaram” (As Tortas…, 1997AS TORTAS e as cucas. Intéprete: Júpiter Maçã. Compositor: Flavio Basso. In: A SÉTIMA Efervescência. Intérprete: Júpiter Maçã. Porto Alegre: Antítodo, 1997. (61 min.).).

“Isso é demais”, dirão, “afastaram-se da realidade!”, mas, ao contrário: nunca fomos mais realistas, porque a cartografia se insere mesmo na imanência, e não na representação, na expectativa, no que transcende a realidade nela mesma. Não se espera que algo aconteça, mas quer-se extrair a potência do acontecido. A cartografia é um mapa demarcado por linhas, desenhadas, descobertas, inventadas, a partir da sua própria exploração. Quem de nós exercerá uma docência cartográfica antes de habitar os territórios da Educação Física, das suas turmas, da escola, do bairro? É só a partir da observação dos movimentos, das forças da contração, das expressões de dor, que inventaremos uma nova problematização sobre as ginásticas ou que um platô será instalado. Alguns/algumas descobrem a necessidade do esforço, outros(as) a delicadeza dos materiais. Há quem fale até mesmo sobre as roupas ou questione pelo nome dos aparelhos.

Há uma espécie de retorno, um ou vários, melhor dizendo: platô, linha, platô linha… que se dão na imanência daquele(a) que devém cartógrafo. Nada querem dizer, não se interpreta as linhas para descobrir o que escondiam. Nada querem mostrar, não se procura pela verdade ontológica dos objetos de pesquisa. São linhas do desejo que compõem a cartografia, e o desejo deseja novas conexões, produzir mais. Algo convém, outra coisa não. Eis toda a rigorosidade da análise da prática docente.

Não queremos uma resposta para a cartografia, queremos construí-la, riscar nosso próprio mapa e não decalcar algum outro. Tudo o que escrevemos, novamente, é uma questão de estilo, é o que instaura platôs cartográficos e leva o pensamento para mais longe de si mesmo, devir cartógrafo, aprender a cartografar. Definimos mal12 12 Definir mal não se assemelha ao desleixo, pelo contrário, está associado ao entendimento de que não definiremos nada por completo, não estabilizaremos, por mais que se tente, nenhum tipo de significação. Uma definição, nesses termos, é sempre ruim, visto que nunca é completa: algo é um, são dois ou três, mas nenhum se completa ou retira do outro. , de maneira incompleta. Não nos desesperaremos com a falta de identidade, iremos nos servir dela. O que faz essa Educação Física? Quais seus objetivos perante os(as) alunos(as)? Sobre nada disso entenderemos muito bem13 13 Reinterpretação da música Ponta de Lança (Verso Livre) (Sapiência, 2017): “Quando alguém fala que eu não sou um MC acima da média, eu falo… / Eu não entendo nada, pai”. . O que pôde ser feito? Quão longe pudemos ir? Sobre isso talvez tenhamos uma ou mais pistas, mas nunca modelos.

Nesse sentido, não nos referimos ao método cartográfico como um método científico de pesquisa. O método cartográfico, aqui, é entendido como uma postura cartográfica, uma espécie de esquizoanálise da prática escolar, uma didatografia. Um método pragmático de didática, vivência, afecto, pensamento. Não se trata de entender o método como um validador das pesquisas que são feitas na escola. Uma postura metodológica cartográfica pode produzir pesquisas convencionais, mas é também um operador dos modos da própria pragmática escolar. Função-cartógrafo: perseguir linhas; função-docente: abrir rizomas. Paralelos, seguem-se borrando suas divisões para cortar fluxos. É possível afirmar que a maneira como nomeamos é o menor dos problemas, visto que é mais interessante que tipo de velocidade isso imprime ao pensamento.

Apostar no conceito de rizoma na Educação Física exige uma função-cartógrafo como essa, devires operantes. Devir-criança, devir-mulher, devir-besta, como Kevin Crumb em Fragmentado (2016)FRAGMENTADO. Direção: Manoj Nelliattu Shyamalan. Produção: Marc Bientock, Jason Blum e Manoj Night Shyamalan. Intérpretes: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson, Jessica Sula e Izzie Coffey. Roteiro: Manoj Night Shyamalan. Estados Unidos, 2016. (117 min.).. Será possível implodir a identidade e captar a potência de um transtorno não clínico14 14 Reinterpretação da passagem “[…] será que é possível captar a potência da droga sem se drogar, sem se produzir como um farrapo drogado?” (Deleuze, 2013, p. 35). ?

Figura 6
Patrícia

“[…] o sentido da cartografia: acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas” (Passos; Kastrup; Escóssia, 2020PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides. Por uma Política da Narratividade. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 10). A postura metodológica cartográfica é um deslocamento, uma inversão, porque não se estabelecem metas para cumprir ao se entrar em contato com o objeto, mas é a partir do objeto que as metas são estabelecidas. Seu rigor é esse, da ordem da produção conectiva, da formação de platôs e não da comprovação de hipóteses: “[…] uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos [meta-caminho] em hódos-metá [caminho-meta]” (Passos; Kastrup; Escóssia, 2020PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana. Apresentação. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 10). Rizomática, a cartografia é um mundo próprio, pois não possui compromisso com uma suposta verdade essencial. Não há última instância da realidade sobre as práticas corporais ou sobre a Educação Física na escola, apenas afectações, devires, que autorizam novas construções, outros investimentos.

Interessa-nos, dessa forma, a imanência do efeito: o que isso produziu? O que desencadeou? De certa forma, preocupar-se com o efeito, com a sua imanência, é também assumir a finitude do(a) docente cartógrafo(a) e da sua prática, pois foi até aquele momento que se registrou, ou que se conseguiu acompanhar ou estender. Esse(a) não dá conta de nada para além da sua própria realidade e nem por isso é individualista, pelo contrário, a cartografia é um empreendimento que se faz possível unicamente a partir de uma sensibilidade coletiva. Não no sentido de que haveríamos de trabalhar juntos, em parcerias, mas de que não há pesquisa, aula ou temática que não se torne ou construa seu próprio objeto numa empreitada essencialmente coletiva. Acompanhar os efeitos de uma aula, de um jogo ou uma dança, de um filme ou música, linhas do desejo que investem novas fugas ou enrijecem em novos sistemas, novas significações (Passos; Barros, 2020PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides. Por uma Política da Narratividade. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020.). Mas é importante não arborizar o rizoma tão rapidamente: os efeitos não derivam de um eixo genético, de um centro, não podemos identificá-los facilmente. Temos, claro, um problema de organização: algo a mais para rir. Trata-se de perseguir linhas abertas por rizomas onde nascem platôs de intensidade. A postura cartográfica é de perseguição, e não de identificação em “fases”, “desenvolvimentos”, “etapas”. Distante das etapas racionalistas, a cartografia é intensiva. Não se justifica seu formato, mas explica-se como ela pôde se tornar aquilo. Um conceito operatório, assim como o rizoma, importa o seu funcionamento confuso, de caminhos abandonados e investidos.

Como propõem Kastrup e Barros (2020, p. 71)KASTRUP, Virgínia. O Funcionamento da Atenção no Trabalho do Cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., “É muitas vezes tentador para o pesquisador introduzir, através da interpretação, uma coerência, mesmo que ilusória, aparando as arestas quando a pesquisa não fecha suas conclusões num todo homogêneo”. Nesse sentido, as conclusões que se fecham em si mesmas interessam menos do que as arestas que forçam a tomada de espaço na escrita. Isso não quer dizer que os jogos não tenham regras ou histórias, mas que é preciso jogar para inventar novas estratégias, para combinar outras possibilidades. Da mesma maneira, cabe ao(à) docente enxergar essas minúcias, estendê-las para vários lados. Há uma potencialidade nas pontas soltas que precisa interessar à cartografia, quais os efeitos disso? Uma espécie de docência-geográfica, que habita caminhos e territórios. Têm-se uma “memória curta” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a., p. 43) porque as orientações se dão mais pelos efeitos e menos pela constituição dos objetos.

Objetos, problemas, objetivos: a cartografia conhece-os parcialmente, primeiro porque nunca os conhecerá, não há o que interpretar, apenas experimentar, e segundo porque limitar a cartografia a um objeto é, na verdade, a despotencializar, a arborificar. Trata-se de inventar problemas enquanto abrem-se conclusões constantes: “[…] acompanhar um processo, e não representar um objeto” (Kastrup, 2020KASTRUP, Virgínia. O Funcionamento da Atenção no Trabalho do Cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 45). O processo é mais do que um objeto. Vários objetos para vários processos. Precisamos ir além, posicionarmo-nos de maneira contrária à conclusão moderno-científica, por que haveríamos de nos unir a ela15 15 Releitura da interpretação de Antônio Abujamra no programa Provocações da poesia de Lisbon Revisited de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) no trecho em destaque: “Vão para o diabo sem mim, / ou deixe-me ir sozinho para o diabo! / Por que haveríamos de ir juntos?”. ? “A noção de unidade aparece unicamente quando se produz numa multiplicidade uma tomada de poder pelo significante […]” (Deleuze; Guattari, 2011aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a.. p. 24).

Para tanto, a atenção é fundamental. Talvez pareça óbvio, mas trata-se de se deixar afectar pelo máximo possível sem por isso escrever sobre qualquer coisa. Esse é um ponto importante, já que tratamos de devir. Devir é mais do que prestar atenção ao que pode acontecer, mas é habitar um território, ser feito de territórios. A atenção é atenção ao que passa e ao que se desenrola na aula, mas também fora dela, é uma postura atenta. Um corpo atento e não um cogito atento que adentra o campo para recolher aquilo que busca. A cartografia analisa um território, um plano coletivo de forças – “[…] uma atenção onde a seleção se encontra inicialmente suspensa, cuja definição é ‘prestar igual atenção a tudo’” (Kastrup, 2020KASTRUP, Virgínia; BARROS, Regina Benevides. Movimentos-Funções do Dispositivo na Prática Cartografia. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana. (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 36).

A suspensão da seleção abre mais espaço para a possibilidade do inconsciente – inconsciente atento e atenção ao inconsciente. É certo que há investimento inconsciente naquilo que selecionamos atenção. No entanto, o rizoma, violento, abre novas fendas nas máquinas afectadas, permitindo a passagem de novos fluxos, dobrando novas linhas. Um método cartográfico é amplamente inconsciente. Uma docência nesse sentido, nem sempre justifica tão bem suas escolhas e tem uma grande dificuldade de prestar contas sobre as expectativas que deveria atingir anteriormente. Sua atenção foi modificada e os investimentos revolucionados.

Por isso se tem dito que o(a) cartógrafo(a) é um(a) interventor(a). Não interessam somente as movimentações da sua subjetividade, mas, de que maneira ela habita e, consequentemente, intervém num território? Que linhas se dobram com essa habitação? Todo cuidado é pouco quando se fala sobre a armadilha do eu, da identidade, das certezas sobre os objetos da Educação Física: “Pois é exatamente em torno do ‘eu’ que a besteira se forma, com seu rosto de olhos fixos, segura de si mesma, surgindo do fundo dos lugares-comuns, das ideias feitas, dos falsos problemas” (Schérer, 2005, p. 1186). As linhas traçam territórios, dobram-se nas subjetividades, mas não há um eu: eu-professor; eu-transformador; eu-interventor. Ao contrário, o eu é sempre territorializado, atraído por buracos-negros instalados em paredes brancas que lhe conferem rostos16 16 Referimo-nos aqui à discussão proposta por Deleuze e Guattari (2012a) em torno da subjetividade (buraco negro) e os sistemas de significância (muro branco). Os autores ressaltam que esse duplo sistema é um produtor de traços de rostidade, ou seja, conferem formatos, identificações: “Nada se assemelha aqui a um rosto e, entretanto, os rostos se distribuem em todo o sistema, os traços de rostidade se organizam” (Deleuze; Guattari, 2012a, p. 38). : não é o eu que inventa linhas das quais a cartografia persegue; mas o Eu é inventado pelas linhas que a cartografia quer desemaranhar, “[…] a atividade de cartografar não se faz sem a introdução de modificações no estado de coisas […]” (Kastrup; Barros, 2020KASTRUP, Virgínia; BARROS, Regina Benevides. Movimentos-Funções do Dispositivo na Prática Cartografia. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana. (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 80).

Deixar-se guiar, eis um desafio: antes tatear, ouvir, “perder tempo” (Alvarez; Passos, 2020ALVAREZ, Johnny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um Território Existencial. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 146) para conhecer e entrar em devir com o território escolar, território dos signos compartilhados, dos ritmos (Deleuze; Guattari, 2012bDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 4: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2012b.) e não do que é cercado por seus muros. O que só pode ser feito alheio à postura representativa: não se pode dizer quem é o(a) docente cartógrafo(a) e muito menos o que é o objeto de uma aula de Educação Física antes da sua efetivação, porque é na própria docência que ambos se farão conhecer. Deixar-se guiar, seguir, acompanhar, o(a) cartógrafo(a) não está à frente e nem atrás, mas é um devir do próprio território: “Levantou! Mão de Kung Fu! Respirou! Que silêncio, nós somos mesmo monges shaolins!”17 17 Transcrição não literal de uma fala no momento de uma vivência do Kung Fu com os 2ºs anos do ensino fundamental – relato não publicado. . “Para realizar sua tarefa, não pode estar localizado na posição de observador distante, nem pode localizar seu objeto como coisa idêntica a si mesmo” (Passos; Eirado, 2020PASSOS, Eduardo; EIRADO, André Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 129).

O rigor da docência é esse: a atenção às diferentes conexões, sem que para isso tenhamos que cientificizar todos os acontecimentos, ou que voltemos atenção para qualquer coisa. Ao contrário, a descientifização, como uma gota de tinta na água, precisa espalhar-se pela cartografia, dar nova cor à sua escrita, sem que para isso cubra toda a visão, mas que ao mesmo tempo impossibilite sua dissociação – “[…] o saber nunca está frente a formas fixas, dadas desde sempre. Nesse sentido, o que as práticas do saber, filosóficas ou científicas, realizam, quando referendadas ao modelo da representação, são recortes nesse processo em andamento” (Escóssia; Tedesco, 2020ESCÓSSIA, Liliana da; TEDESCO, Silvia. O Coletivo de Forças como Plano de Experiência Cartográfica. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, da Liliana (Org.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 99).

Desenlaces

Figura 7
Nós, estrategistas

Não escrevemos como, mas nos interessa o que isso pôde. Por isso não importa definir nomes para uma prática que opera com a cartografia, isso não seria mais do que estabilizar uma língua comum. Um novo rizoma é aberto, perseguido, investido e isso faz pensar, pesquisar, aprofundar, retornar, conversar com os(as) alunos(as), repensar uma temática, ir mais longe, insistir, abandonar. Nesse sentido, não falamos sobre teoria e sobre prática. Este não é um texto muito teórico. Ele é imediatamente prático, como qualquer outro, assim como qualquer livro. Nosso compromisso é com a produção do pensamento, com a velocidade da sua produção e isso abre mil devires outros.

Como propõe Gauthier (2002)GAUTHIER, Clermont. Esquizoanálise do Currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 143-155, jul.-dez. 2002.: há uma dupla tarefa nisso tudo, negativa e positiva; destrutiva e imaginativa. A primeira é destrutiva, pois tem como missão acabar com a essencialidade da identidade, “[…] trata-se de desfazer os conjuntos unificadores. A criança É ISSO. A escola É AQUILO. Aprende-se DESSA FORMA. A sociedade É ISSO” (Gauthier, 2002GAUTHIER, Clermont. Esquizoanálise do Currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 143-155, jul.-dez. 2002., p. 150). Seria fácil continuar descrevendo as essencialidades presentes no nosso cotidiano escolar e na própria Educação Física. Um devir-x não cabe dentro de uma essência e nem é dividido anteriormente como bom ou ruim. Apenas um encontro é bom ou ruim. Experimenta-se antes de perguntar como fazer. Por outro lado, a tarefa imaginativa é justamente essa: imaginar desterritorializações, linhas de fuga. Ora, se a destruição é a de um campo de significados instalados, um território fixado, só podemos imaginar uma fuga dessas enunciações que passem por baixo da identidade do campo, uma potente desterritorialização. “Frente a um programa escolar que reterritorializa a criança ou a aprendizagem, imaginar, pois, pistas de desterritorialização” (Gauthier, 2002GAUTHIER, Clermont. Esquizoanálise do Currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 143-155, jul.-dez. 2002., p. 150).

A questão é como extrair partículas de velocidade, ser atravessado por fluxos de velocidade, imprimir rapidez aos pensamentos, às práticas corporais e aos agenciamentos. Se aproveitar da lentidão para produzir novos platôs em que tudo aconteça mais rápido. São necessárias cartografias que indiquem a possibilidade de investimento, perguntas que explorem e interesses que levem a sério o que é produzido em momento de aula: “Eu estou ganhando, professor, estamos somando pontos a cada pino de boliche que derrubamos!”18 18 Relato não publicado de uma vivência de boliche no ano de 2021. A partir disso, passamos a estudar a pontuação. . Artistagens (Corazza, 2006CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença em educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.) que se inspirem na arte como método: circulação de afectos, ir além sem se perguntar pela identificação curricular, mas extrair elementos de fontes de pensamento, se aproveitar do que está posto, usar a seu favor. Cientificidades que produzam funções para os objetos, para as práticas. Filosofar também, criar novas línguas, novas práticas, dentro das línguas e das práticas já criadas. Inventar uma maneira nova de falar sobre os jogos, brincadeiras, danças, ginásticas e/ou lutas que, às vezes, apenas aquela sala conhece, criar dialetos nas línguas maiores, didatografar. Sem dúvida, uma questão de estratégia.

Não se buscam conclusões, apenas linhas e desenlaces: esperamos produzir novos platôs. Não introdução e desenvolvimento. Não professor(a) e aluno(a); mas rizomas e cartografias. Habitar um território nem sempre é uma tarefa fácil, mas exigirá esforço, é uma questão de vida ou morte. O que importa é saber que são muitos os territórios, saibamos atravessá-los, vive-los e produzi-los. “Fazer um uso menor da pedagogia significa, antes, adotar o devir como regra: tudo vale, exceto aquilo que impede o desejo de circular” (Gauthier, 2002GAUTHIER, Clermont. Esquizoanálise do Currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 143-155, jul.-dez. 2002., p. 153).

Notas

  • 1
    Sigla para Role-Playing Game. Também pode ser conhecido como Jogo Narrativo ou Jogo de Representação. Sua característica principal é justamente essa: a possibilidade de os participantes interagirem de maneira mais aberta dentro de uma história conduzida por um mestre, com intenso desenvolvimento de personagens. A prática começa com tabuleiros nos anos 1970, migrando para outras modalidades nas décadas seguintes, inclusive com forte presença eletrônica.
  • 2
    Chamamos de docência as instâncias que envolvem o território das aulas, aqui no caso, de Educação Física. A escola, as aulas, o planejamento, as relações com os(as) alunos(as) e a coordenação. A docência será considerada uma interconexão particular que tem como um ponto de convergência fundamental as aulas de Educação Física da escola do ponto de vista de quem é responsável por essa organização: o(a) professor(a).
  • 3
    O afecto, segundo Rolnik (2017)ROLNIK, Suely Rolnik. Entrevista Completa. Entrevista concedida a Paula Sibilia. Narciso no Espelho do Século XXI: diálogos entre Psicanálise, as Ciências Sociais e a Comunicação. Rio de Janeiro, Buenos Aires, 2017. 1 vídeo (88 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GjsRiQB_5DY. Acesso em: 6 abr. 2021.
    https://www.youtube.com/watch?v=GjsRiQB_...
    , é amplamente diferente da ideia de afeto, que significa proximidade, carinho ou cuidado. O afecto é uma força, um corpo variável que toma espaço e morre. Não se tem afecto, mas somos atingidos por ele – por isso Yung Buda nunca foi metafórico: “Suas mensagens chegam tipo bala/ Seu choro até molha minha cara/ Suas lágrimas vêm do telefone/ Eu falo que o ódio me consome/ Minhas linhas não fazem mais sentido/ Uso elas, costuro a minha alma” (Buda, 2018BUDA, Yung. Sozinho no Touge. São Paulo: Sound Food Gang, 2018. (12 min).).
  • 4
    Releitura de uma entrevista concedida por Júpiter Maçã à Rogério Skylab no programa Matador de Passarinho (Júpiter Maçã, 2016JÚPITER Maçã. Matador de Passarinho. Entrevista concedida a Rogério Skylab. Direção: Leandro Ramos. Produção: Heitor Zanatta. Rio de Janeiro: Equipe Canal Brasil, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V48E_pRlKjE. Acesso em: 17 jan. 2021
    https://www.youtube.com/watch?v=V48E_pRl...
    ).
  • 5
    Cineasta (1963-presente) argentino, conhecido por filmes como Seul Contre Tous, Irréversible e Soudain la Vide.
  • 6
    Construção inspirada na fala de Luiz Fuganti, quando concedeu uma entrevista para o podcast Razão Inadequada. Fuganti pergunta por que um vulcão explode, e conclui da mesma maneira que a citação: porque ele pode.
  • 7
    “Escrevemos esse livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir” (Deleuze; Guattari, 2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011b., p. 44).
  • 8
    Em Deleuze e Guattari, o nômade ganha destaque visto que é aquele que experimenta diferentes desterritorializações e novas territorializações. O nômade passeia por diferentes campos de significados e se utiliza de novas línguas, faz vacilar a dos outros e a sua própria. Uma língua nômade é aquela que não se contenta com uma significância, mas desloca e perturba a linguagem hegemônica. “Ser um estrangeiro, mas em sua própria língua, e não simplesmente como alguém que fala uma outra língua, diferente da sua. Ser bilíngue, multilíngue, mas em uma só e mesma língua, sem nem mesmo dialeto ou patuá. […] É aí que o estilo cria língua” (Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 2: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., p. 42-43). Dessa forma, olhando para as práticas corporais como produções da cultura (Neira, 2019NEIRA, Marcos Garcia. Educação Física Cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.), e a cultura como uma correlação específica de significados produzidos (Hall, 1997HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul.-dez. 1997.), encontramos outras vias da relação com o nomadismo. Em outras palavras, ser multilíngue é, ao mesmo tempo, produzir dialetos e práticas corporais outras.
  • 9
    Segundo Neira e Nunes (2009)NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mario Luiz Ferrari. Educação Física, Currículo e Cultura. São Paulo: Phorte, 2009., a partir da leitura que fazem de Silva ([1999] 2017)SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, [1999] 2017., há uma diferenciação curricular na área da Educação Física escolar que pode ser dividida em três perspectivas curriculares: tradicionais, crítica e pós críticas. No texto, mencionamos somente o “crítico” e o “pós-crítico” porque reconhecemos, junto com os autores, que a perspectiva tradicional é abertamente acrítica e seus currículos (ginástico, esportivista, desenvolvimentista, psicomotor e saúde renovada) não se baseiam em grande medida nas ciências humanas para pensar o campo.
  • 10
    Aula com a temática das danças na segunda etapa do ano de 2020 – relato não publicado.
  • 11
    Aula com a temática dos jogos na primeira etapa do ano de 2020 – relato não publicado.
  • 12
    Definir mal não se assemelha ao desleixo, pelo contrário, está associado ao entendimento de que não definiremos nada por completo, não estabilizaremos, por mais que se tente, nenhum tipo de significação. Uma definição, nesses termos, é sempre ruim, visto que nunca é completa: algo é um, são dois ou três, mas nenhum se completa ou retira do outro.
  • 13
    Reinterpretação da música Ponta de Lança (Verso Livre) (Sapiência, 2017SAPIÊNCIA, Rincon. Ponta de Lança (Verso Livre). São Paulo: Bóia Fria Produções, 2017. (46 min.).): “Quando alguém fala que eu não sou um MC acima da média, eu falo… / Eu não entendo nada, pai”.
  • 14
    Reinterpretação da passagem “[…] será que é possível captar a potência da droga sem se drogar, sem se produzir como um farrapo drogado?” (Deleuze, 2013DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 35).
  • 15
    Releitura da interpretação de Antônio Abujamra no programa Provocações da poesia de Lisbon Revisited de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) no trecho em destaque: “Vão para o diabo sem mim, / ou deixe-me ir sozinho para o diabo! / Por que haveríamos de ir juntos?”.
  • 16
    Referimo-nos aqui à discussão proposta por Deleuze e Guattari (2012a)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a. em torno da subjetividade (buraco negro) e os sistemas de significância (muro branco). Os autores ressaltam que esse duplo sistema é um produtor de traços de rostidade, ou seja, conferem formatos, identificações: “Nada se assemelha aqui a um rosto e, entretanto, os rostos se distribuem em todo o sistema, os traços de rostidade se organizam” (Deleuze; Guattari, 2012aDELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a., p. 38).
  • 17
    Transcrição não literal de uma fala no momento de uma vivência do Kung Fu com os 2ºs anos do ensino fundamental – relato não publicado.
  • 18
    Relato não publicado de uma vivência de boliche no ano de 2021. A partir disso, passamos a estudar a pontuação.

Referências

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  • BONETTO, Pedro Xavier Russo; NEIRA, Marcos Garcia. Deleuze-Guattari e Educação Física Cultural: pedagogia do conceito de “escrita-currículo”. Filosofia e Educação, Campinas, v. 10, n. 2, p. 406-437, maio-ago. 2018.
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  • BUDA, Yung. Sozinho no Touge São Paulo: Sound Food Gang, 2018. (12 min).
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  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 1: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011a.
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  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012a.
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  • VIEIRA, Rubens Antônio Gurgel. Educação Física Menor Jundiaí: Paco, 2022.

Editado por

Editora responsável: Lodenir Karnopp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
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