Acessibilidade / Reportar erro

A Educação de Pessoas Trans*: relatos de exclusão, abjeção e luta

RESUMO

Este artigo apresenta resultados de investigação sobre os processos de exclusão, abjeção e luta de pessoas trans* na tentativa de garantir seus direitos à educação. A pesquisa qualitativa foi realizada a partir de cinco entrevistas e as análises foram organizadas em três eixos: a exclusão com a interrupção dos estudos; a retomada na vida adulta e as novas perspectivas de vida com a conquista do acesso e da permanência na escola. Os resultados revelam processos excludentes de estudantes que desafiam as normas de gênero quanto ao direito à educação ou, até mesmo, à vida com situações de abjeção. No entanto, também mostram formas de repensar as relações de gênero na luta pelo acesso e pela permanência em uma escola menos excludente.

Palavras-chave
Direito à Educação; Gênero; Pessoas Trans*

ABSTRACT

This article presents the results of an investigation about the processes of exclusion, abjection, and struggle from trans people* as an attempt to enforce their rights to education. The qualitative research was conducted drawing from five interviews and the analyses were organized in three axes: exclusion with the interruption of schooling; going back to school in adult life, and the new perspectives of life upon gaining access to and remaining at school. The results reveal students facing excluding processes who challenge gender rules regarding their right to education or, or even their right to live under situations of abjection. However, they also show ways to rethink gender relations in the struggle for accessing and remaining at a less excluding school.

Keywords
Right to Education; Gender; Trans People*

Introdução

Neste artigo partimos de pesquisa qualitativa (Xavier, 2020XAVIER, Thaís Pimentel de Oliveira. Direito das Pessoas Trans à Educação no Município de São Paulo: histórias de abjeção, exclusão e resistência. 2020. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.) para expor os processos de exclusão, abjeção e luta vivenciados por pessoas que se autoidentificam como trans*1 1 O termo pessoas trans* refere-se às identidades de gênero não normativas, mais especificamente de pessoas transexuais e/ou travestis que não se identificam com as classificações que lhes são atribuídas no nascimento, como homens ou mulheres. Optamos pelo uso com asterisco no final como uma tentativa de abranger diferentes formas de identificação que podem ser localizadas dentro ou fora de um sistema de gênero binário (Jesus, 2012; Santos, 2017; Carvalho, 2015; Rodovalho, 2017). na tentativa de garantir o direito à educação. Os resultados dessa reflexão revelam um direito negado historicamente a determinados grupos, processos excludentes de estudantes que desafiam as normas de gênero quanto ao direito à educação ou, até mesmo, à vida. No entanto, a existência de pessoas trans*, no ambiente escolar, também nos mostrou formas de luta por uma escola menos excludente.

Ao nos aproximarmos da temática em tela é importante reconhecer a defesa do direito à educação como um consenso no Brasil. Nossa história recente registra diferentes dimensões desse direito, incluindo a democratização do acesso ao ensino público e a garantia da permanência na escola. O direito à educação é assegurado na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CF/1988), no artigo 205, localizado na Seção I, do Capítulo III, em que é reconhecido como dever do Estado e da família. Ainda, no mesmo artigo, atribui-se à educação as funções de desenvolvimento pleno da pessoa, preparo para o mercado de trabalho e exercício da cidadania (Brasil, 1988BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Seção I. P. 1.).

São inúmeras as pesquisas sobre o assunto e não é nossa intenção mapeá-las exaustivamente, mas sim discorrer sobre a questão do direito à educação de pessoas trans*. Buscamos as contribuições de diferentes perspectivas e correntes teóricas para problematizar o fato de que, ainda que a Constituição Federativa de 1988 acene com a garantia do direito à educação, esse direito não é realidade para grupos marcados por gênero, sexualidade, etnias/raça e classe social inconformes.

Dentro dos limites deste artigo, apontamos a importância do debate de gênero na educação como um conceito capaz de ultrapassar a noção inata e binária da diferença entre homens e mulheres, apreender os múltiplos sentidos políticos socialmente construídos de femininos e masculinos e denunciar um sistema de relações sociais de poder definidas pela dominação masculina, de caráter cisheteronormativo2 2 De acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 26), cisgênero é um conceito que “[…] abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento”. Cisheteronormatividade é um conceito que faz referência a um conjunto de relações de poder que normaliza, regulamenta, idealiza e institucionaliza a cisgeneridade como norma. , voltada para as regulações de gênero e sexualidade (Scott, 2012SCOTT, Joan Wallach. Os Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, p. 327-351, dez. 2012.). Nessa perspectiva, a educação ainda não pode ser considerada um direito de todas as pessoas.

Contudo, a ausência de determinados sujeitos nas instituições de ensino não é inédita na história do país. Os séculos XIX e XX foram marcados por processos que procuravam hierarquizar e naturalizar diferenças de etnia e raça, de classe, de orientação sexual e de gênero. Tais processos associaram-se à privação de cidadania para grupos formados por mulheres, indígenas, negros e pessoas trans* completamente excluídas do acesso à educação (Oliveira, 2002OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O Direito à Educação. In: OLIVEIRA, Romualdo de Portela; ADRIÃO, Thereza (Org.). Gestão Financiamento e Direito à Educação. São Paulo: Xamã, 2002. P. 15-43.; Andrade, 2012ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.).

Na década de 1980, houve grandes esforços para a ampliação do direito à educação. A constituição assumiu, como princípio do ensino, condições de acesso e permanência, assim como a obrigação do Estado de oferecer uma educação de qualidade a todo/a/e e qualquer cidadão, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.

Diante desse cenário, encontramos como exemplos de avanços o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – elaborado a partir da regulamentação do artigo 227 da CF/1988, representando um marco ao reconhecer, pela primeira vez em legislação, crianças e adolescentes como sujeitos de direito – e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – aprovada em 1996 (Oliveira, 2002OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O Direito à Educação. In: OLIVEIRA, Romualdo de Portela; ADRIÃO, Thereza (Org.). Gestão Financiamento e Direito à Educação. São Paulo: Xamã, 2002. P. 15-43.).

Desde a CF/1988, podemos evidenciar muitas alterações no campo político e econômico com pressões internacionais articuladas aos movimentos feministas e de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (LGBTI) para a introdução das questões de gênero na educação pública.

Os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva fizeram, ainda que de forma pouco sistematizada, investimentos no enfrentamento das desigualdades e discriminações sociais no âmbito das relações de gênero (Vianna, 2018VIANNA, Cláudia. Políticas de Educação, Gênero e Diversidade Sexual: breve história de lutas, danos e resistências. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.). Nesse longo período, assistimos à defesa de planos e programas voltados para os temas da diversidade em geral e, mais especificamente, para as questões de gênero, sexualidade e diversidade sexual.

Contudo, essa onda de inclusão do gênero nas políticas públicas de educação nunca foi linear ou sem conflitos. Muitas das desigualdades educacionais permanecem e necessitam de esforços dos poderes públicos para serem combatidas, na medida em que o Estado “[…] mostrou-se refratário à efetivação de tais direitos” (Oliveira, 2002OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O Direito à Educação. In: OLIVEIRA, Romualdo de Portela; ADRIÃO, Thereza (Org.). Gestão Financiamento e Direito à Educação. São Paulo: Xamã, 2002. P. 15-43., p. 41). Mais recentemente, o fortalecimento de propostas conservadoras nas arenas políticas, até mesmo incompatíveis com os ideais democráticos e de direitos humanos, foram cruciais para a paulatina diminuição e desqualificação das políticas sociais voltadas para a redução das desigualdades sociais.

Entre os segmentos que são acometidos pela falta de acesso aos direitos básicos, é possível destacar o público LGBTI que há anos reivindica o reconhecimento legal de seus direitos. Concedemos destaque ao público trans* – foco deste artigo – que vem enfrentando uma série de problemas quanto ao reconhecimento e à efetivação de seus direitos à educação em uma sociedade ancorada fortemente na heteronormatividade. A filósofa Judith Butler (1999)BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. P. 151-172. é nossa referência para o conceito de abjeção3 3 A categoria teórica de abjeção foi inicialmente elaborada pela filósofa búlgara pós-estruturalista, radicada na França, Julia Kristeva (1982) em Powers of Horror: an essay on abjection, ganhando grande destaque na obra de feministas como Judith Butler, aqui utilizada como principal referência para nomeação dos corpos que se constroem a partir da exclusão, a partir do que a cisheteronormatividade rejeita. , que tão bem pode apreender a desclassificação dos corpos de pessoas trans* pelas normas excludentes de gênero. Carla Rodrigues e Paula Gruman (2021, p. 68)RODRIGUES, Carla; GRUMAN, Paula. Do Abjeto ao Não-Enlutável: o problema da inteligibilidade na filosofia de Butler. Anuário Antropológico, Brasília, v. 46, n. 3, p. 67-84, set./dez. 2021. sintetizam o raciocínio da autora: “Butler aplica o conceito de abjeção às existências que não se encaixam nos parâmetros normativos heterossexuais, retomando seu caráter fronteiriço, de exclusão”.

Esse caráter fronteiriço e excludente é mais do que manifesto no Brasil, país que mais mata pessoas trans* em todo o mundo. Com o intuito de documentar a violência praticada contra pessoas trans*, o Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 (Benevides, 2022BENEVIDES, Bruna (Org.). Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag; ANTRA, 2022.) registra pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans* em 2021. Dados apontados por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira (2021, p. 30)BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE, 2021. ressaltam ainda a articulação entre transfobia e racismo ao evidenciarem que aproximadamente 80% dos assassinatos ocorridos contra a população trans* brasileira foram cometidos contra travestis e mulheres trans* negras.

O governo brasileiro trata de forma negligente os debates sobre políticas públicas para a população LGBTI, como bem sugere Michelle Miranda (2018)MIRANDA, Michelle Borges. Mais do que rua, camisinha e gel: TransCidadania, a experiência de um programa para travestis e transexuais na cidade de São Paulo. 2018. 186 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.. Não existe, até os dias atuais, uma ferramenta que quantifique as informações sobre morte e violência praticadas contra pessoas trans* no Brasil. Os alarmantes dados de violência sofrida por pessoas LGBTI atraem tanto os olhares de órgãos que defendem a cidadania como daqueles que protegem os direitos humanos como Organização das Nações Unidas no Brasil (ONU Brasil).

Vários estudos relatam persistentes preconceitos, ameaças e agressões físicas direcionadas a estudantes LGBTI nas escolas brasileiras. Levantamento da Associação Brasileira de Lésbica, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGT, 2016ABGLT. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.) mostra que 73% dos estudantes não heterossexuais já foram agredidos verbalmente na escola, e a menção às agressões físicas foi de um a cada quatro estudantes. Se considerarmos que a juventude trans* está diretamente exposta à violência, a problematização do direito das pessoas trans* à educação se torna ainda mais imperativa. Dados apontados por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira (2021)BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE, 2021. corroboram a violência cotidiana vivida por essa população:

15 anos foi a idade com que a mais jovem adolescente trans foi assassinada em 2019. Foram 3 vítimas de 15 anos cada e duas delas foram apedrejadas até a morte. A terceira, além de espancada até a morte, foi enforcada e o seu corpo foi encontrado com sinais de violência sexual

(Benevides; Nogueira, 2021BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE, 2021., p. 30).

Ainda persiste a ênfase da ausência do uso do nome social nas escolas ou da exclusão de pessoas trans* no ambiente escolar, “[…] interrompendo o direito à Educação de uma parcela considerável da população” (Benevides, 2022BENEVIDES, Bruna (Org.). Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag; ANTRA, 2022., p. 43).

No entanto, mudanças também ganharam força a partir dos anos 2000. Por um lado, o ativismo de pessoas trans* no Brasil ganha maior visibilidade (Carvalho, 2015CARVALHO, Mário. “Muito prazer, eu existo!”: visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. 2015. 263 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Centro Biomédico, Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.). O mesmo país que mata, assiste à eleição de 30 pessoas trans* no pleito eleitoral de 2020, como bem enfatizam Maria Clara Araújo dos Passos e Carla Cristina Garcia (2021)Passos, Maria Clara Araújo dos; GARCIA, Carla Cristina. Entre Inexistências e Visibilidades: a agência sociopolítica de travestis e mulheres transexuais negras no Brasil (1979-2020). Revista Brasileira de Estudos da Homocultura – REBEH, v. 4, n. 14, p. 32-53, maio/ago. 2021., conquistas de um longo processo de mais de quatro décadas de lutas por seus interesses coletivos.

O Estado encara novos significados; gênero e sexualidade passam a ser incluídos no currículo escolar. Os direitos de sujeitos cujas sexualidades são menosprezadas ganham espaço tanto de resistência à ordem normativa (Andrade, 2012ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.; Bortolini; Pimentel, 2018BORTOLINI, Alexandre; PIMENTEL, Thaís. Direito à Educação de Pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola. Revista Científica dos Direitos Humanos, Brasília, v. 1, n. 1, p. 82-104, 2018.) quanto na construção de políticas educacionais. Essas, por sua vez, são baseadas no respeito aos direitos humanos de forma a garantir o acesso e a permanência do Ensino Fundamental à Pós-Graduação (Vianna, Bortolini, 2020VIANNA, Cláudia; BORTOLINI, Alexandre. Discurso Antigênero e Agendas Feministas e LGBT nos Planos Estaduais de Educação: tensões e disputas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 46, e221756, 2020.; York, 2020YORK, Sara Wagner. Tia, Você é Homem? Des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2020.). Algumas pesquisas apontam novas perspectivas relacionadas ao percurso das políticas públicas educacionais voltadas ao gênero, à diversidade sexual e ao público LGBTI no cenário nacional, ressaltando a importância de estudos sobre a presença de pessoas trans* em ambientes educacionais (Andrade, 2012ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.; Sierra, 2013SIERRA, Jamil Cabra. Marcos da Vida Viável, Marcas da Vida Vivível: o governamento da diversidade sexual e o desafio de uma ética/estética pós-identitária para uma teorização político-educacional LGBT. 2013. 228 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.; York, 2020YORK, Sara Wagner. Tia, Você é Homem? Des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2020.; Matos, 2022MATOS, Marília Neri, Cisnormatividade e Presenças Trans em Universidades Públicas da Bahia. 2022. 226 f. Tese (Doutorado Psicologia do Desenvolvimento) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022.). Também ganham relevo estudos que problematizam o caráter patológico da diversidade sexual e das múltiplas posições identitárias no âmbito da educação (Cavaleiro, 2009CAVALEIRO, Maria Cristina. Feminilidades Homossexuais no Ambiente Escolar: ocultamentos e discriminações vividas por garotas. 2009. 217 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.; Junqueira, 2009JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas Escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco/MEC, 2009. P. 13-51.; Louro, 1997LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.; 2009LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e Homofobia. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco; MEC, 2009. P. 85-93.).

Assim, na área da educação, já é possível denunciar o árido terreno no qual se procura exercer a docência de professoras e professores trans*, cabendo destaque para os trabalhos de Dayanna Brunetto Carlyn dos Santos (2017)SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Docência Trans*: entre a decência e a abjeção. 2017. 445 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017., Luma Andrade (2012)ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012., Marco Antonio Torres (2012)TORRES, Marco Antonio. A Emergência de Professoras Travestis e Transexuais na Escola: heteronormatividade e direitos nas figurações sociais contemporâneas. 2012. 363 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012., Maria Clara Araújo dos Passos (2020)PASSOS, Maria Clara Araújo dos. Pedagogias das Travestilidades. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) – Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020., Marília Neri Matos (2022)MATOS, Marília Neri, Cisnormatividade e Presenças Trans em Universidades Públicas da Bahia. 2022. 226 f. Tese (Doutorado Psicologia do Desenvolvimento) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022., Marina Reidel (2013)REIDEL, Marina. A Pedagogia do Salto Alto: histórias de professoras travestis e transexuais brasileiras. 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013., Neil Franco e Graça Aparecida Cicillini (2016)FRANCO, Neil; CICILLINI, Graça Aparecida. Travestis, Transexuais e Transgêneros na escola: um estado da arte. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 23, n. 2, p. 122-137, 2016. Disponível em: http://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/5349/3272. Acesso em: 20 abr. 2022.
http://periodicoseletronicos.ufma.br/ind...
, dentre vários outros. Mas, mesmo contando com estudos sobre as lutas pela presença de pessoas trans* na escola, ainda segue urgente a reflexão, considerada por nós de extrema relevância, sobre os processos excludentes de pessoas trans* do direito à educação ou, até mesmo, à vida. Judith Butler mostra que pessoas, como travestis, intersexos ou transexuais, trazem na própria forma de identificação questionamentos sobre a suposta correlação entre o sexo designado, gênero e desejo. Contudo, por questionarem essa lógica, tornam-se seres abjetos, ou seja, são pessoas lidas socialmente como não humanas. Isso acontece, pois, estão inseridas em um mundo onde a coerência entre as modalidades de gênero, sexo designado e desejo são naturalizadas e apenas aqueles que articulam as três modalidades são considerados seres humanos:

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sobre o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. […] Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, ‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio

(Butler, 1999BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. P. 151-172., p. 155-156).

Consideramos, portanto, de extrema relevância retomar as considerações de Butler (2011)BUTLER, Judith. Vida Precária. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, UFSCar, n. 1, p. 13-33, 2011., em Vida precária, ao retratar os corpos abjetos que são subordinados e excluídos do direito à educação para construir o diálogo com os sujeitos da pesquisa que deu origem a este artigo e que foi realizada com cinco pessoas trans* integrantes do Centro de Cidadania LGBTI Luana Barbosa dos Reis, também conhecido como CCLGBTI Norte.

Inaugurado em 29 de agosto de 2016, o CCLGBTI Norte tem como objetivo acolher pessoas LGBTI em situação de vulnerabilidade social, violência psicológica e/ou física motivadas por discriminação de identidade de gênero ou orientação sexual e possui ligação com o Projeto Reinserção Social Transcidadania4 4 O Projeto Reinserção Social Transcidadania foi desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico do Trabalho (SMDTE) com o propósito de reintegração social, reinserção no mercado de trabalho e resgate de cidadania de pessoas trans* que se encontram em situação de vulnerabilidade, pela oferta da conclusão da educação básica. Para maiores informações consultar Concílio, Amaral, Moreno (2017). realizado na cidade de São Paulo. Os serviços oferecidos pelo CCLGBTI Norte dividem-se em duas grandes áreas:

a) defesa dos direitos humanos – incluindo o atendimento de vítimas de violência, discriminação ou preconceito; prestação de apoio de ordem psicológica, jurídica e de serviço social com acompanhamento para a realização de boletins de ocorrência e demais orientações;

b) promoção de cidadania LGBTI – com o apoio e suporte a serviços públicos municipais por meio de sensibilização de servidores, mediação de conflitos, realização de palestras, seminários e debates.

O centro não foi o foco nem da pesquisa e nem deste artigo, constitui-se apenas em um local onde pudemos localizar pessoas trans* que buscam por direitos que foram negados ao longo de suas vidas, entre eles a oportunidade de retomar seus estudos.

Relatos que se cruzam, Fios que se perdem

Judith Butler (2015)BUTLER, Judith. Relatar a si Mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2015., em diálogo com Friedrich Nietzsche reflete sobre ética ou questões morais no âmbito das relações sociais. Para a autora, em sua Genealogia da Moral, Nietzsche relata de maneira controversa que o relato de “si” ocorre quando somos interpelados, isto é, quando somos obrigados a fazer um relato de nós por um sistema de justiça e castigo. Em outras palavras, a acusação nos conduziria a relatar pelo temor da retaliação que por ventura possa ocorrer ou ser aplicada. Ou seja, o surgimento de uma narrativa própria ou a necessidade de tornar-se um sujeito autonarrativo está propiciado pelo constrangimento.

Butler (2015)BUTLER, Judith. Relatar a si Mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2015. considera restrita essa concepção de Nietzsche (2009)NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. sobre o relato de si. Como diz a autora, ele não considera as diversas situações em que somos convidados a fazer um relato, concentrando-se na punição, no medo ou na agressão originária que faria parte de todo ser humano. Para ela, seria possível haver outros motivos, além do medo e do castigo, para um relato de nós mesmos/as:

O ato de relatar a si mesmo, portanto, adquire uma forma narrativa, que não apenas depende da sua capacidade de transmitir uma série de eventos em sequência com transições plausíveis, mas também recorre à voz e a autoridades narrativas, direcionadas a um público com o objetivo de persuadir. […] Nesse sentido, a capacidade narrativa é a pré-condição para fazermos um relato de nós mesmos e assumirmos a responsabilidade por nossas ações através desse meio

(Butler, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si Mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2015., p. 22).

Achamos significativo apresentar brevemente algumas das limitações apontadas por Butler (2015)BUTLER, Judith. Relatar a si Mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2015. acerca da visão de Nietzsche sobre a origem do relato também porque nos alerta que, se fizermos um relato sobre nós respondendo a um questionamento, nos envolveremos e colocaremos a nós mesmos/as em uma relação com esse receptor com quem e para quem falamos. Para a autora, há um limite no reconhecimento de si, sendo necessário reconhecer a nossa própria opacidade. Fazemos um relato de nós para nós mesmos e para o outro, cada relato acontece em um determinado contexto de questionamento. No momento em que uma pessoa está ligada a uma atividade reflexiva e, ao mesmo tempo, reconstruindo-se ao pensar sobre si, está falando com o outro e desenvolvendo uma relação com esse outro por meio da linguagem.

Aliás, cabe ressaltar que não é possível fazer uma narrativa plena de si por certas limitações desse ato. Ao contar a sua história, há um comprometimento com o que está sendo dito, ao mesmo tempo em que esse relato é oferecido com o intuito de resumir os motivos que o levaram a se tornar como é. Não é uma tarefa simples, pois no momento que o sujeito tenta ligar um fato ao outro e identificar determinados períodos como aspectos centrais da própria história, acaba encenando a si mesmo na sua narrativa.

E foi essa a perspectiva aqui adotada ao procurarmos agrupar os relatos apresentados, pautados por essa ambiguidade do relatar-se como algo que escapa e que não pode ser considerado de maneira fixa ou completa. Mas que, também, apesar de suas limitações, conta uma história comprometida. Os relatos por nós analisados partiram de entrevistas semiestruturadas com pessoas trans* de diferentes faixas etárias e experiências em relação à escolarização, todas integrantes do CCLGBTI Norte.

As entrevistas foram escolhidas por serem consideradas mais adequadas para entender e analisar as questões relacionadas ao direito à educação das pessoas trans* com a finalidade de identificar a forma como foram estabelecidas e vivenciadas as relações com a Educação Básica.

Após o contato inicial com as pessoas trans* interessadas em participar da pesquisa, apresentamos os procedimentos necessários para obter sua concordância, enviamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, explicando que era uma exigência dos comitês de ética em pesquisa para garantir a confidencialidade das entrevistas e o tratamento ético das/os entrevistadas/os. As cinco pessoas trans* – aqui citadas com nomes fictícios – são maiores de 18 anos, com diferentes experiências educacionais. Valentina, com 40 anos, identifica-se como mulher trans*, negra, católica e frequenta o 8º ano do Ensino Fundamental II. Rebeca, também com 40 anos, define-se como mulher trans*, branca, católica não praticante e cursa o 3º ano do Ensino Médio. Antonio e Maria Eduarda possuem 45 anos. Ele, um homem trans*, diz ser da raça brasileira, espiritualista, cursando o 2º ano do Ensino Médio. Ela define-se como travesti, parda e espírita, cursando simultaneamente o 5º ano do Ensino Fundamental I e o 6º ano do Ensino Fundamental II. Por último, a mais nova do grupo, Arlequina, mulher trans* de 28 anos, branca, sem religião definida, aluna do Ensino Fundamental I.

Apesar dessas distinções, o grupo possuía um aspecto em comum: a retomada dos estudos da Educação Básica com o incentivo do próprio CCLGBTI Norte. O roteiro de entrevista foi organizado de forma a abordar a relação atual com a escola, as memórias sobre a escola, a descoberta da identidade de gênero e a relação estabelecida com a escola antes, durante e depois desse processo. Os relatos aproximam-se em muitos aspectos, como a experiência de exclusão, de abjeção e as dificuldades de assumir a identidade de gênero, a relação com a família, com o trabalho e as experiências de transfobia sofridas ao longo de suas trajetórias educativas.

As memórias das experiências vividas na escola também revelam que, junto à percepção de ser diferente, inicia-se um forte processo de desigualdade que reverbera em outros aspectos de suas vidas. A escola, então, demonstra dificuldade em lidar com estudantes que desafiam as normas de gênero. E, de acordo com as circunstâncias, assume uma postura de ocultamento em relação às experiências de discriminação ou de reiteração de processos normatizadores baseados na matriz heterossexual, numa tentativa de encaixar os dissidentes na norma, gerando, assim, a expulsão e/ou o abandono escolar. Essas pessoas trans* contam suas histórias, e suas narrativas aproximam-se de outras tantas já registradas, apesar de constantemente negligenciadas pelas políticas de educação, que se pretendem democráticas.

Todavia, na vida adulta, após a transição de gênero, a retomada dos estudos com o acesso ao CCLGBTI Norte acaba dando novas perspectivas de vida para essas pessoas ao conquistarem direitos básicos de cidadania aos quais outros cidadãos sempre tiveram acesso.

Assim, as experiências dessas pessoas trans* na escola, além de provocarem as noções hegemônicas de gênero, também desafiam a repensar o espaço escolar e convidam pessoas cisgênero a refletirem sobre os privilégios de determinados grupos, que se configuram como desigualdade para outros.

Dessa forma, procuramos explorar o momento e os motivos de exclusão e/ou interrupção dos estudos; as circunstâncias da retomada de um processo de escolarização interrompido e a forma como o acesso à educação pode trazer novas perspectivas de vida.

Histórias de Exclusão: parei a escola porque não estava me aceitando naquele padrão

As primeiras experiências escolares aproximam-se, em muitos aspectos, sobretudo quando a escola se revela um ambiente hostil, levando à crença de que há uma única e legítima forma de vivenciar feminilidades e/ou masculinidades não hegemônicas.

As primeiras lembranças sobre a escola e a relação com a infância e/ou adolescência são assinaladas pelas discriminações vividas e, muitas vezes, traduzidas em exclusão escolar. Se, como indica Miguel Arroyo (2010)ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas Educacionais e Desigualdades: à procura de novos significados. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1381-1416, out./dez. 2010., a exclusão escolar pode ser a causa de todas as outras exclusões, no caso das histórias aqui narradas, a saída da escola é, algumas vezes, posterior à exclusão da própria família e do direito ao acesso a muitas de nossas instituições.

No caso de Arlequina, ela não sabia o que era “transexual”: “[…] a descoberta surgiu em mim quando eu tinha 13 anos. […] Eu sou uma meninazinha que nasceu um pouco diferente”. E mesmo antes de conseguir nomear-se, lhe foi negada a possibilidade de ao menos frequentar a escola.

Além disso, nem todas as pessoas deixaram os estudos pelos mesmos motivos. No caso de Rebeca, a sobrevivência dependia da inserção de um membro da família no mercado de trabalho, por isso interrompeu os estudos com 14 anos de idade. Já Antonio, Maria Eduarda e Valentina relatam ter deixado os estudos pelo sofrimento e discriminação sofridos durante as primeiras experiências com a escola.

As primeiras lembranças da escola remetem a uma percepção de si como diferente do outro. Diferença, essa, transformada sistematicamente em desigualdade. Algumas pessoas relatam uma percepção de si mesmas como diferentes desde a infância. Outras, quando tentam fazer uma releitura sobre o passado, nomeiam a violência sofrida na infância e na adolescência:

Desde pequeno, na escola, o povo ficava com aquelas piadinhas, ‘bichinha, viadinho’, essas coisas, mas eu não sabia o que era, então por mim eu não fazia tanto caso […] E aquelas brincadeirinhas, sempre, de bullying, que eles falam, de crianças. Mas eu não sei o que era. Naquela época, eu não sabia nem o que era. Não sabia na verdade que o mundo GL existia. Esse mundo sabe? Eu não sabia, nem sonhava. Para mim o povo estava me xingando e eu nem sabendo o que era. Eu tinha o quê? Oito, nove, dez anos

(Rebeca).

Então, eu, quando eu me descobri eu era muito nova. Eu estava acho que na segunda série, mais ou menos, que eu me vi que não era aquilo que eu queria

(Valentina).

E na escola eu tinha uma dificuldade, porque quando eu fiquei adolescente, eu me interessava pelas meninas e não pelos meninos, e aí isso foi um problema na minha vida, sofri bullying da escola toda […] porque na época, nem era bullying não é?

(Antonio).

Essas experiências nos expõem o que Michel Foucault (2014)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. (1975). Petrópolis: Vozes, 2014. chama de escola disciplinadora, regulatória e vigilante da norma que estabelece formas de vivenciar o gênero e a sexualidade. Como sugere Willian Siqueira Peres (2009)PERES, Willian Siqueira. Cenas de Exclusões Anunciadas: travestis, transexuais e transgêneros e a escola anunciada. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília UNESCO; MEC, 2009. P. 85-93., quando uma criança ou um/a adolescente reconhece suas vontades e desejos como diferentes de colegas de mesmo sexo e/ou identidade de gênero, inicia-se um processo de interiorização da homofobia que poderá durar toda a sua vida.

Sujeitos que constroem a sexualidade ou a identidade de gênero de maneira normativa, ou seja, em correspondência ao sexo designado, e reproduzem comportamentos esperados dentro da lógica binária feminino/masculino costumam desfrutar de posição privilegiada em relação àqueles que vivem os processos de construção identitária de forma não normativa. Por outro lado, o privilégio de determinado grupo se transforma em processos de exclusão e abjeção para outros grupos que, ao transgredirem esses modelos previamente dados, não só ficam marcados negativamente, como são privados de direitos.

As normas de gênero fazem-se presentes desde a mais tenra infância e os corpos carregam significados antes mesmo do nascimento. Dessa maneira, se uma visão hegemônica sobre gênero encontra coerência e relaciona o sexo designado ao gênero, consequentemente, essa visão não só é reducionista, mas também concede privilégios aos que correspondem a essa lógica binária.

Na maioria dos relatos, a discriminação, ora entendida como bullying, homofobia ou transfobia provocou o abandono dos estudos. Valentina parou de estudar na oitava série, atualmente nono ano. Ela afirma ter sentido medo de seus colegas na época, por ser objeto de inúmeras ameaças:

[…] Então, quando me ameaçaram pela primeira vez, eu me escondi. A segunda, eu me escondi. Mas teve uma hora que eu não queria me esconder mais, porque eu já me sentia sufocada como criança, porque eu tinha que comer o meu lanche dentro do banheiro, mesmo não querendo entrar no banheiro dos meninos que eu tinha vergonha. Mas eu tinha que entrar para comer escondida […] porque tinha uma turminha que roubava lanche

(Valentina).

Valentina conta que certo dia um “moleque”, disse para ela “Ai, eu vou quebrar a cara do veado hoje”. Inicialmente, ela pensou que não poderia fugir da situação, pois, se escapasse naquele momento, poderia passar a vida inteira fugindo. Relembra os ensinamentos de sua mãe para não levar os problemas que aconteciam em outros espaços para dentro de sua casa. Sua mãe dizia que, se algum dia ela chegasse em casa e relatasse alguma agressão, ela “apanharia” novamente por não ter se defendido. Assim, ameaçada pelo colega de escola, agrediu quem a ameaçava antes de ser agredida. E descreve esse momento como surpreendente em sua vida: “[…] foi quando eu fui, bati e não sabia que tinha aquela força, aquela capacidade de me impor dentro do colégio, de me empoderar”. Depois daquele momento, apesar de as piadas continuarem na escola, os meninos pararam de importuná-la. Entretanto, acabou deixando a escola mesmo assim e, ao tentar retornar, 20 anos mais tarde, conta que estudantes “[…] jogaram umas pedras” em sua direção. Como sublinha Sara York (2020, p. 51)YORK, Sara Wagner. Tia, Você é Homem? Des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2020., o corpo clandestino, fugidio à cisheteronormatividade, enfrenta piadas, opressões e preconceitos em todo o trajeto escolar: “[…] uma vida tecida sobre a violência”.

A violência também faz parte das lembranças de Antonio, desde adolescente, quando descobriu seu interesse por meninas e não por meninos. Certa vez, deixou de ir à escola por quatro dias. Então, seus colegas procuraram-no, pois, caso não voltasse, a professora daria suspensões a todos. Antônio, em sua inocência, de acordo com suas palavras, voltou, mas continuou sofrendo as mesmas piadas e comentários a seu respeito. Quando chegou no Ensino Médio, resolveu se afastar dos estudos:

Eu não tive mais estrutura para continuar porque eu não sabia quem era eu, não sabia aonde me encaixava no mundo. E aquilo: eu não consegui focar, sempre fui uma criança meio hiperativa. Então as coisas que não me chamavam a atenção, eu não prestava atenção. E aí com a vida atribulada, adolescente, sem ter com quem falar, com essa coisa de não saber […]. Porque hoje em dia eu sei que não era legal, eu teria que ter continuado. Mas como eu não tinha o respaldo de alguém para poder me dar uma luz […]. Agi por instinto. Saí da escola e comecei a trabalhar. E isso me levou para os subempregos, não é? Porque sem conhecimento e qualificação, você acaba sendo deixado e vai sendo deixado. As pessoas vão sendo promovida […] E nessa condição de Trans* é difícil arrumar um emprego legal, não é?

(Antonio).

No caso de Antonio, a visão hegemônica de gênero não só pressupõe formas corretas de se vivenciar as relações de gênero, mas também determina quais são as formas saudáveis de se vivenciar a sexualidade. E qual seria a única forma saudável de se viver a sexualidade? A heterossexualidade, cada vez mais consistente e reiterada pelas instituições sociais e seus atores, pressupondo essa ligação entre gênero, sexo e sexualidade. Consequentemente, as pessoas que fogem à norma e descontinuam essa sequência, por um lado, são colocadas à margem das preocupações de instituições como a escola, e por outro, se fazem necessárias para “[…] circunscrever os contornos daqueles tidos como normais” (Louro, 2009LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e Homofobia. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco; MEC, 2009. P. 85-93., p. 92).

Já a relação de Maria Eduarda com a escola é permeada por idas e vindas. Ela saiu da escola no início da adolescência, quando se identificava como menino gay:

Eu parei a escola porque a escola não estava me aceitando naquele padrão. Porque quando eu estudava eu era gay, não travesti ainda. […]. Na escola, logo que eu comecei a querer ir para a escola eu já sofri preconceito e eu já não fui mais, aí eu parei […]. Eu parei de estudar porque o preconceito era demais

(Maria Eduarda).

Posteriormente, tentou retomar os estudos, mais velha, aos 25 anos, quando já se identificava como travesti em relação à identidade de gênero. Seus relatos mostram a relação intrínseca entre experiência escolar e violência. Ela considera ter sofrido discriminações e encarado situações homofóbicas nas duas experiências. Chegou a sofrer agressões durante a adolescência, o que aparentemente não ocorreu mais quando se assumiu como travesti.

Elaborado anos antes, o relato etnográfico de Luma Andrade (2012, p. 247)ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012. parece descrever a realidade aqui dimensionada nesta pesquisa:

A negação das travestis no espaço da sala de aula resulta no confinamento e na exclusão, que as transforma em desviantes e indesejadas. Quando isso ocorre no ambiente escolar, a pressão normalmente é tão intensa que impele as travestis a abandonar os estudos, sendo disseminada a ideia de que foi sua própria escolha.

A violência de gênero manifesta-se de distintas maneiras. No entanto, a transfobia, hostilidade generalizada na forma de “[…] preconceitos e discriminações sofridos pelas pessoas transgênero, de forma geral” (Jesus, 2012Jesus, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre Identidade de Gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012., p. 7), insere-se no campo da produção da violência praticada contra LGBTIs. Ela também atinge igualmente as pessoas que não estão em conformidade com a matriz heterossexual. Contudo, o efeito mais profundo da transfobia é o seu resultado nos processos de construção de identidade e subjetivação das pessoas trans* (Peres, 2009PERES, Willian Siqueira. Cenas de Exclusões Anunciadas: travestis, transexuais e transgêneros e a escola anunciada. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília UNESCO; MEC, 2009. P. 85-93.).

Na escola, tal efeito incide vigorosamente nas trajetórias educativas e na tentativa de inserção social de jovens que estão vivenciando processos de construção identitária de gênero e/ou sexuais fora da norma. Alguns relatos destacam estratégias. Como Rebeca, ao relembrar ser chamada de “veadinho” e “bichinha” na escola, diz que sofreu, mas precisou lidar com meninos que a “zoavam” e faziam piadas, riam e tiravam “sarro”. Desenvolveu uma forma de não se deixar impactar por esses acontecimentos. Dizia para ela mesma que isso não era importante.

No entanto, esse não dar atenção ao que os outros dizem mostra o necessário fortalecimento de jovens LGBTI para lidar com a discriminação ostensiva por parte de colegas, docentes, familiares e até mesmo de conhecidos.

Diferente de outros relatos, Rebeca conta que, aos 14 anos, sua mãe e seu pai se separaram, e ela precisou colaborar financeiramente com a família, ingressando no mercado de trabalho; foi fora da escola que se descobriu trans*.

Se Rebeca deixa a escola por questões de sobrevivência, Arlequina sequer conseguiu frequentar essa instituição na infância ou adolescência. Sofreu muitas agressões em casa e precisava trabalhar na roça, carregando lenha para fazer carvão. Ela lembra que esse era um trabalho muito pesado: “para homens”. A junção das agressões e do trabalho desgastante provocou a fuga de casa. Os relatos de Arlequina revelam a sua inaceitabilidade pela família e, simultaneamente, pela escola, um projeto de abjeção no qual algumas vidas “[…] não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante”, como nos lembram Baukje Prins e Irene Costera Meijer (2002, p. 161)PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os Corpos se tornam Matéria: entrevista com Judith Butler. Estudos Feministas, Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 155-167, jan. 2002..

Assim a escolarização desse grupo é inconclusa, precária ou até mesmo inexistente. As discriminações relatadas, ainda no início da vida escolar, revelam privilégios de sujeitos cisheteronormativos em relação àqueles que se identificam de forma a questionar a cisheteronormatividade (Rodovalho, 2017RODOVALHO, Amara Moira. O Cis pelo Trans. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 365-373, jan./abr. 2017.), e essa vivência sem dúvida torna-se visível na escola. Isto é, desafiar normas de gênero na escola leva a uma experiência marcada por discriminações e por uma presença considerada problemática no ambiente escolar.

De fato, a invisibilidade da temática da sexualidade, estritamente das sexualidades consideradas inconformes, pode muitas vezes gerar pânico e recusa de atores escolares que tentam reiterar cada vez mais a norma e, desta feita, fortalecer a manutenção das desigualdades.

A escola é um lugar onde há disputas curriculares que determinam o tipo de cidadania a ser instituída. Para além das questões curriculares, nesse espaço, circulam discursos que influenciam os processos de ensino e aprendizagem, além de ser o local onde são estabelecidos critérios em acordo com esses discursos. Desse modo, a disseminação de um pensamento heteronormativo sobre questões relacionadas a gênero e sexualidade causa muitas vezes a exclusão e a abjeção daqueles alheios às normas preestabelecidas do ambiente escolar. Sendo assim, a escola, que deveria ser um espaço de promoção da cidadania, acaba se tornando um espaço que deve ser problematizado por excluir e marginalizar determinados sujeitos. No contexto excludente, há poucas alternativas de conduta para jovens. De um lado, a dissimulação e o silêncio; de outro, a violência, a humilhação pública ou a segregação (Cavaleiro, 2009CAVALEIRO, Maria Cristina. Feminilidades Homossexuais no Ambiente Escolar: ocultamentos e discriminações vividas por garotas. 2009. 217 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.; Oliveira, 2017OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. O Diabo em Forma de Gente (R)Existências de Gays Afeminados, viados e Bichas Pretas na Educação. 2017. 190 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.).

A invisibilidade da temática da sexualidade, e mais fortemente das sexualidades consideradas inconformes, fortalece a manutenção das desigualdades. Como indica Rogério Junqueira (2009)JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas Escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco/MEC, 2009. P. 13-51., as atitudes homofóbicas, na escola, desempenham um efeito de privação de direitos, geram desinteresse, produzem evasão e abandono, comprometem a inserção no mercado de trabalho, abalam a autoestima e interferem no processo de construção identitária.

Há muitos casos, como os de Maria Eduarda, Antonio e Valentina, em que as crianças e adolescentes deixam a escola pela hostilidade sofrida ao não se adequarem às normas. As pessoas trans* podem ter suas bases emocionais fragilizadas em virtude das discriminações enfrentadas, começando pela família e reverberando em outras instituições e relações. A intensidade da discriminação vivida institucionalmente provoca o abandono dos estudos e, de fato, expulsa essas pessoas das escolas. Nesse sentido, podemos nos referir a uma transfobia, praticada pelo Estado e suas instituições, estruturada com base na cisheteronormatividade.

Essas pessoas excluídas do espaço escolar não o são apenas por estarem fora da instituição escolar, mas pelas circunstâncias e relações que as afastam da permanência e efetivação desse direito. E, quando esse direito é negado, o que resta? Poucas possibilidades. A primeira seria permanecer nesse sistema sem garantias e, ao mesmo tempo, sem oportunidades para a efetivação do acesso à educação de qualidade. Quando a primeira se torna inviável, o que resta é sair; deixar; abrir mão. E, nesse caso, evasão escolar é um termo que limita, pois não mostra de fato o motivo do abandono da escola, uma vez que a cisheteronormatividade anseia por eliminar os dissidentes (Bento, 2011BENTO, Berenice. Na Escola se aprende que a Diferença faz Diferença. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 548-559, maio/ago. 2011.).

A experiência de opressão e exclusão se fortalece na medida em que as escolas se silenciam. O silêncio como garantia da norma (Louro, 1997LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.) oculta esses sujeitos e se mostra interessante para as análises da política pública de educação e da ausência quanto ao atendimento de necessidades básicas de cidadania, como o direito ao acesso e à permanência na escola.

A Retomada: voltar a estudar depois de burra velha?

Dentre as similaridades das trajetórias educativas relatadas, está também a retomada dos estudos na vida adulta, após terem assumido uma identidade de gênero trans*, incentivadas pelo Projeto Reinserção Social Transcidadania.

As oportunidades de retomada dos estudos para a conclusão da escolarização básica e de apoio psicológico e jurídico, promovido pelo CCLGBTI Norte, dão de fato condições de mais autonomia financeira para essas pessoas pensarem em projetos, poderem olhar para o mercado de trabalho de uma forma diferente e, também, ressignificarem a relação com a escola.

Contudo, há relatos distintos sobre o significado da volta à escola. As experiências passam do medo da retomada às novas perspectivas que o estudo pode trazer.

Todas as pessoas entrevistadas retomaram os estudos por meio do apoio recebido pelo Projeto Reinserção Social Transcidadania. Entretanto, a descoberta do projeto e da possibilidade de retomada dos estudos se deu de maneira diferente para cada uma/um.

Para Arlequina e Maria Eduarda, com histórias de subalternização mais intensas, a oferta de vários serviços oferecidos pelo CCLGBTI e a volta aos estudos representaram uma oportunidade de sair minimamente de uma condição abjeta para conseguir direitos básicos de cidadania (Butler, 1999BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. P. 151-172.). As duas foram as que estudaram menos tempo, aquelas cuja ajuda de custo e outros serviços/direitos adquiridos por meio do Centro de Cidadania deram a oportunidade de dispor de direitos ainda não conquistados:

Eu estou amando o colégio, porque eu nunca estive na escola […]. Eu entrei muito mal sabe? Entrei usuária mesmo. Todo mundo via na cara que eu já era usuária, pelo modo esquelético que eu estava […]. O projeto está me ajudando bastante, através disso eu saí, eu estou bem melhor, eu já estou há mais tempo. As meninas falaram que eu não ia durar um mês, eu já estou indo para o 7º mês

(Arlequina).

Minha mãe faleceu faz seis meses, e ontem foi dia treze, e foi aniversário dela, e eu estou passando por psicólogo aqui no Centro de Transcidadania, estou me sentindo bem depois de estar passando por ele. Eu acho que estou um pouquinho depressiva, entrando em uma depressão, porque eu estava com vontade de desistir de tudo, e eu fiquei dois anos para entrar no projeto e agora que eu consegui entrar está fazendo muito bem para mim, mas eu ainda estou me adaptando, porque só era eu, a minha mãe e o meu marido. Como eu me separei dele e minha mãe morreu, agora eu fiquei sozinha, então eu estou me adaptando a viver sozinha

(Maria Eduarda).

A solidão e a falta de apoio ganham novas perspectivas diante das alternativas apresentadas pelo Centro de Cidadania e pela escola. Antonio já tinha uma vida um pouco mais estabilizada. Casado há 17 anos, morando em um bairro nobre de São Paulo e trabalhando com mais frequência que Arlequina e Maria Eduarda, apesar de fazer bicos, novamente contou com o apoio do CCLGBTI, retomando seus estudos após uma mensagem:

Porque eles sempre passam uma mensagem, não é, de ajuda, de trabalhos, não sei o que; e ela colocou uma mensagem, falando que ia haver essa possibilidade, quem não… não tinha terminado o Ensino Médio e fosse Trans. Havia uma ajuda de custo para a pessoa terminar; e eu vi nessa possibilidade a volta dos meus estudos, conseguir completar e fazer uma faculdade…

(Antonio).

Valentina e Rebeca igualmente retomaram os estudos por meio do Centro de Cidadania. Valentina retomou-o aos 37 anos, após ter conseguido um estágio em uma Organização Não-Governamental:

E os meus chefes se apaixonaram por mim, do setor e perguntaram pra mim se surgisse uma vaga de emprego se eu gostaria […]. E aí quando surgiu minha chefe me chamou […] Ela falou assim: ‘Mas então, Valentina, você vai ter que pagar pra gente de alguma forma o emprego’. Aí eu ‘Como assim?’. Daí ela virou e falou assim ‘Voltando ao estudo. Esse vai ser o nosso pagamento’

(Valentina).

Rebeca conheceu o Projeto Reinserção Social Transcidadania por intermédio de uma colega quando ainda morava no centro da cidade de São Paulo:

Eu sou uma das primeiras que surgiu beneficiária do Transcidadania, que fundou o projeto. Aí eu aluguei um quartinho, parei de ir pra rua, falei que meu próximo passo era um trabalho. A escola que eu fui estudar, eles próprios iam à escola, explicavam para o pessoal do projeto, do que se tratava e tudo. A escola é perto da minha casa também, que é o EJA. […] Foi aí que fiz a sexta, a sétima, a oitava e a nona. […] E já estou terminando

(Rebeca).

Apesar disso, voltar a um ambiente do qual se tem lembranças de opressão nem sempre é uma tarefa fácil e, por isso, abre margem para incertezas:

Aí aquilo me deu um nó na garganta […] a minha barriga mexeu e eu falei ‘Ai meu Deus, depois de burra velha encarar a escola? Como que vai ser isso?’ Eu enrolei um ano, aí quando foi no ano seguinte… […] E aí voltei para a escola […]. E aí assim, foi uma tortur

(Valentina).

Contudo, a despeito de estar em um projeto voltado às pessoas trans* e ter a possibilidade de estudar com pessoas que tiveram um percurso minimamente parecido, a experiência não é livre de reveses ou até mesmo discriminação:

Eu tenho uma professora só porque eu estou na sexta série, mas eu tenho outros professores de lá, principalmente a de informática que só de você conversar com ela você nota que ela é homofóbica, ela mantém certo distanciamento. Já ouvi falas com as outras meninas, não comigo porque sou muito na minha, eu sou reservada, mas amigas minhas são mais falantes, mas assim, já sentiram meio que aquela distância da parte dela. […] A gente já conversou sobre isso e todas já chegamos ao consenso de que ela é homofóbica. Todas. […] Só que ela tipo maquia aquilo, porque ela é professora e não pode ter preconceito

(Maria Eduarda).

[…] Só não estou amando algumas pessoas que estão lá, que frequenta lá que são pirracentas. Alguma que se diz ser minha amiga, fica com deboche, fica dizendo que…por causa que eu visto. […] O meu padrão de ser… foge de um…até as meninas aqui às vezes falam pra mim ‘Arlequina, tu tem muita coragem. Usando uma legging assim’ […]

(Arlequina).

Os casos mais evidentes da forma como a homo-lesbo-transfobia incide sobre a vida de sujeitos marcados por identidades de gênero ou sexuais inconformes no ambiente escolar são vividos por pessoas trans*, que têm comprometidas suas possibilidades de inserção social em função da falta de acolhimento afetivo de amigos ou familiares. Isso sem contar as violências institucionais. Tais situações geram fragilidade emocional e, nesses casos, a saída é lutar, encontrar forças para lidar com a discriminação.

As discriminações no cotidiano escolar prejudicam os processos de socialização. E mesmo que essa experiência já tenha sido vivida no contato inicial com a escola, ela pode voltar a acontecer nesse retorno. Isso porque estamos inseridos em uma cultura cisheteronormativa. E, embora pessoas trans* possam em alguns momentos apresentar discursos inovadores, revolucionários ou críticos, podem, da mesma maneira, reproduzir discursos e modelos como os das colegas de Arlequina, quando questionam sua indumentária e seu próprio corpo.

Por outro lado, o trabalho de sensibilização feito pelos Centros de Cidadania auxilia no enfrentamento de situações de discriminação ou transfobia e possibilita a permanência na escola:

A escola que estou, está sendo maravilhosa para todas que estão estudando lá. Lá tem até um banner na escola que foi considerada como padrão de LGBT, então é uma escola maravilhosa. Mas aqui no projeto, tem meninas que estão em outras escolas, e estão sofrendo preconceito. O professor chama pelo nome dela mesmo, não chama pelo nome social, existe ainda um preconceito. Mas o pessoal aqui do projeto vai lá e conversa com a direção, então já está quebrando um pouquinho isso. Na minha está maravilhoso, mas têm meninas aqui que estão sofrendo mais que eu

(Maria Eduarda).

A escola que eu fui estudar, eles próprios iam na escola, explicavam para o pessoal do projeto, do que se tratava e tudo

(Rebeca).

Eu quero fazer de tudo para mim aprender, cada vez mais; eu sou uma pessoa dedicada. Lá, no colégio, era muita bagunça, mas agora não tem mais bagunça, porque eu tomei… eu tomei a decisão de me afastar do bagunceiro. Eu estou só pelo canto, o pessoal me chama de… algumas pessoas dizem que eu sou estranha, que eu sou magrinha, mas é até melhor, porque assim eu presto atenção na aula, eu não estou ali para brincar, eu estou ali para aprender

(Arlequina).

Esses relatos sobre a volta aos estudos nos acenam com a possibilidade de ressignificar uma experiência, em muitos casos, marcada pela dor. A sensibilização à experiência trans* é um exemplo da forma como as instituições podem investir e se aliar à luta do enfrentamento das desigualdades. E isso poderia acontecer de muitas formas: escolhas curriculares que contemplem a diversidade sexual, sensibilização de outros atores escolares, tentativa de subversão de práticas cisheteronormativas, escuta de estudantes trans* ou LGBTI e valorização das diferenças.

O Estudo para mim está dando Outra Perspectiva de Vida

Mesmo com todos os entraves e a ausência de igualdade de oportunidades encontradas pelo caminho, a retomada do estudo acaba trazendo um novo olhar sobre o mundo. Ainda com as dificuldades enfrentadas nas escolas, há uma esperança de superação do quadro de discriminação e exclusão encontrado, quando membros da comunidade escolar incentivam o respeito, a sensibilidade e a inclusão pela valorização das diferenças.

Dessa forma, a volta para um ambiente menos hostil e a expectativa de desfrutar direitos, entre eles a educação, constroem novas perspectivas de vida:

Aquilo foi mágico pra mim […]. Daí você fala ‘Nossa, mais uma vitória cumprida, mais uma missão cumprida. […] Foi uma vitória de vida. Daí veio 1º, 2º, 3º. Eu falei assim ‘Ai meu Deus que não vai acabar’. E acabou. Não é? E agora eu quero fazer RH. Eu não quero parar. […] Agora eu vou fazer, agora, para o final do ano, que é três meses, eu vou fazer um curso de Educadora Social que vai crescer meu currículo também. E aí, ano que vem, conforme for, o RH

(Valentina).

São dois anos, não é? O começo, mas eu pretendo fazer faculdade, essas coisas, porque eu acho que o conhecimento é tudo. A única coisa que você leva dessa vida é o conhecimento

(Antonio).

Olha, na minha época era tudo mais difícil, a gente apanhava na rua, tinha muito preconceito, as pessoas olhavam. Hoje ainda existe o preconceito, mas está bem melhor. As meninas que estão chegando agora não estão passando nem a metade do que eu já passei. Hoje na escola está maravilhoso, existe sim o preconceito, mas as pessoas estão respeitando mais, já chamam a gente pelo nome social, os professores são maravilhosos

(Maria Eduarda).

O estudo traz uma perspectiva de respeito e continuidade para essas pessoas que, integrado às iniciativas do poder público, pode se tornar um aliado na luta pelos direitos das pessoas trans*.

Ouvir os relatos de pessoas trans* apenas como narrativas abjetas poderia limitar a visão das potências dessas mesmas pessoas na escola. A busca pelos direitos faz com que criem formas de luta e resistência em meio a esse processo e, articuladas, produzem o que Miguel Arroyo (2012, p. 14)ARROYO, Miguel Gonzalez. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012. define como “outras pedagogias”, pedagogias de resistência:

Vítimas de processos históricos de dominação/subalternização trazem pedagogias de resistência. Trazem contextos históricos, as relações políticas em que foram produzidos subalternos, mas também trazem com maior destaque, as resistências a esses contextos e a essas relações sociais, econômicas, políticas, culturais e pedagógicas.

Seguindo o raciocínio do autor, podemos dizer que pessoas trans* resistem ao lutar pela própria sobrevivência, ao clamar pelo direito a uma vida com qualidade. Assim, contribuem de forma significativa para a construção de novas pedagogias, aprendem a pensar de outras maneiras, uma vez que o pensamento é construído considerando as experiências discriminatórias, mas também de luta. Suas próprias visões refletem na leitura do mundo, relações e percepções políticas, questionamentos; ou seja, estão se afirmando como sujeitos.

Desse modo, novos olhares podem servir como referência na formação de qualquer sujeito e, como sugere Marina Reidel (2013)REIDEL, Marina. A Pedagogia do Salto Alto: histórias de professoras travestis e transexuais brasileiras. 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. na Pedagogia do Salto Alto, as relações de gênero precisam ser repensadas em novas abordagens no espaço escolar. E, aqui, cabe o questionamento: quais são as pedagogias que as pessoas trans* estão produzindo?

De fato, olhar para a experiência trans* na escola é contemplar uma pedagogia de desestabilização, de resistência. Na tentativa de obterem o direito à educação, resistem, desobedecem e lançam novas formas de oposição ao trazer uma série de questionamentos para o ambiente escolar (Andrade, 2012ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.).

Se, por um lado, as pessoas trans* enfrentam a exclusão do sistema escolar, e suas existências são invisibilizadas, por outro, quando voltam e tentam buscar seus direitos como cidadãs e cidadãos, estão reivindicando seus lugares. Isto é, reivindicam o acesso, mas também a permanência e a igualdade de oportunidades ao se depararem com esse lugar privilegiado que os sujeitos com identidades e sexualidades normativas ocupam, pois a educação não é ou pelo menos não deveria ser um privilégio.

As pessoas trans* na escola desestabilizam – ora de forma implícita, ora explicitamente – as normas de gênero e acabam questionando o formato da própria instituição:

Esses ainda que estão vivendo na mentalidade de um mundo pequeno, um dia ainda lá na frente eles vão cair, quebrar a cara e acordar para a vida porque o mundo não é como eles querem, e sim é como deve ser, como se fala, o que seria se existisse só uma cor e não várias cores

(Rebeca).

Eu queria só dizer que a gente está ganhando essa batalha, não chegamos ainda no que a gente tem que chegar […]. Então eu acho que ainda tem muito pela frente, mas a gente está caminhando, eu acho para poder chegar no ponto em que todo mundo é livre, para ser o que quiser ser. Eu acho que tem que ter respeito

(Maria Eduarda).

Porque eu estava falando que eu saí da casa dos meus pais pelo fato de eu ser diferente, de eu não seguir o padrão de meninazinha, que dá um dinheirozinho certinho. Não, eu quero fugir desse negócio de certinho, não existe certinho no mundo, existe pessoas que tentam ser certo, mas não… nunca são. […] Tem mulher do cabelo raspado, tem mulher que enjoa disso, enjoa daquilo, tem mulher que tatua o corpo, tem vários tipos de mulher. Então, eu sou uma das mulheres que é diferente. Eu não posso ser diferente? Pode sim

(Arlequina).

Essas pessoas resistem ao concluir a educação básica, entrar no mercado de trabalho, continuar estudando, reivindicar seus direitos, não só a conclusão da educação básica, mas o uso do nome social, o acesso e ao tratamento específico pelo sistema público de saúde. E algumas falas dão pistas do que entendem por uma escola mais inclusiva:

É uma escola tipo, ali é uma escola que tem tudo, pessoas especiais, pessoas normais, idosos, então ali todo mundo é igual, não tem essas coisas

(Rebeca).

Lá o EJA […], os professores são excelentes. O professor de português super erudito, ele tem um conhecimento bom. A maioria dos professores de lá tem conhecimento bom. A maioria dos professores de lá tem conhecimento de mestrado. Então eu acho tudo excelente. Excelente! O que eles podem ensinar para a gente, eles ensinam. O pessoal, disponibiliza lá livros para a gente estudar e tudo

(Antonio).

Interagir [com] a gente, trazer a gente porque hoje lá na escola que eu estou tem meninos de catorze, quinze anos, de dezoito, que tinham uma noção diferente do que era travesti, de que travesti era só drogada, que travesti batia, travesti era marginalizado. Então hoje os meninos estão começando a ver a gente diferente, começam a olhar e notar que a gente também faz parte da sociedade, que a gente também é ser humano, que a gente não é tudo aquilo que a sociedade pinta […]. Então, eles estão começando a ver e começando a notar e chegar mais perto da gente. Eu acho que um dia a gente vai ganhar essa batalha

(Maria Eduarda).

Ainda que permaneçam muitos percalços e desafios para a continuidade dos estudos, ao olharem para o percurso vivido nas escolas após a entrada no Projeto Reinserção Social Transcidadania, as pessoas trans* por nós entrevistadas nos dão pistas sobre o que seria uma escola inclusiva. A experiência da Educação de Jovens e Adultos (EJA) mostra que a escola não necessariamente precisa ser um ambiente hostil ou assustador. Existem outras pessoas buscando novas oportunidades. A escola pode reunir pertencimentos de classe, de raça, sexuais e de gênero convivendo, interagindo e trocando saberes e experiências, pois também pode se configurar como uma instituição fundamental no combate às opressões sofridas por pessoas trans*.

E é importante compreender o papel central que a educação pode desempenhar para a mudança de um cenário excludente:

Mais uma vez será central o papel da educação. Mesmo com todas as dificuldades, a escola é um espaço no interior do qual e a partir do qual podem ser construídos novos padrões de aprendizado, convivência, produção e transmissão de conhecimento, sobretudo se forem ali subvertidos ou abalados valores, crenças, representações e práticas associados a preconceitos, discriminações e violências de ordem racista, sexista, misógina e homofóbica

(Junqueira, 2009JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas Escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco/MEC, 2009. P. 13-51., p. 36).

Se a educação foi e é um direito negado historicamente a determinados grupos, o continuará sendo enquanto não houver igualdade de oportunidades, sobretudo para aqueles e aquelas historicamente marcados pela eliminação. O mesmo vale enquanto os saberes, conhecimentos e práticas de pessoas tratadas como abjetas não forem consideradas nos processos educacionais. Mas as lutas aqui notadas e anotadas são uma espécie de esperança de que existir para além da cisheteronorma é possível.

Considerações Finais

A análise dos resultados de pesquisa expostos neste artigo aponta para um longo caminho a ser percorrido para a universalização do direito à educação. Essa é uma ideia amplamente difundida, que, se não for examinada com rigor, abre margem para um pensamento meritocrático, culpabilizando o sujeito pelo não cumprimento da própria escolarização. Apesar de ser direito constitucionalmente garantido, não se efetiva da mesma maneira para todas as pessoas.

Grupos marcados por gênero, etnias/raça, classe e orientação sexual inconformes acabam não usufruindo de seus direitos e pessoas que se autodefinem trans* vivenciam processos de exclusão, abjeção, mas também forjam lutas e resistências na tentativa de garantir seu direito à educação.

Nas escolas, torna-se urgente desestabilizar a homofobia e a transfobia. Essas e outras formas de discriminação e violência têm sido problematizadas no âmbito individual, coletivo e institucional, com a denúncia do caráter estruturante da violência, do preconceito e das desigualdades de gênero.

Claro que a escola não pode ser plenamente responsabilizada pelos processos aos quais pessoas trans* estão submetidas em diversas instituições. É necessário que haja esforços por parte do Estado na promoção de políticas públicas que visem à promoção de igualdade de oportunidades e efetivação de direitos sem que haja distinções baseadas nas desigualdades de gênero.

Há muitas minorias que ainda lutam pelo seu reconhecimento como sujeito para ter acesso a direitos básicos, como o simples direito de ir e vir, ter direitos básicos de cidadania, de ter sua identidade de gênero reconhecida e validada, ter acesso ao sistema público de saúde, ou de ter uma expectativa de vida maior do que a de 35 anos de vida, como é o caso das pessoas trans* (Benevides, 2021BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE, 2021.).

Nesse processo, para ganhar mais aliados na luta pela igualdade, é preciso de fato desestabilizar as normas de gênero. Fomos ensinados a compreender formas únicas de ser, existir, pensar, produzir e reproduzir conhecimentos baseados nas perspectivas hegemônicas. Com o espelho que tivemos, aprendemos também a usar critérios classificatórios de opressão e determinação de inferioridade.

Os relatos aqui analisados mostram que, apesar de pessoas trans* terem histórias que se aproximam, quando consideramos as opressões sofridas, todas são únicas. Mas são também diferentes faces da experiência de ser trans* em um país tão desigual. Para além da violência sofrida em diversos âmbitos, desde que eram percebidas como crianças ou adolescentes desviantes, há modos de enfrentamento para se fazer visíveis como sujeitos de direitos e não apenas nas estatísticas de morte. Todas as pessoas entrevistadas encontraram formas de resistir às opressões sofridas e de se fazerem visíveis. Retomaram os estudos, voltaram ao mercado de trabalho, transicionaram, foram em busca dos direitos e fizeram planos para o futuro.

Aqui não há uma conclusão mirabolante, nem uma receita. Realmente acreditamos que essas foram as alternativas possíveis de lutar e resistir. Luta e resistência que são, ou deveriam ser, daqueles/as que tiveram oportunidade de concluir seus estudos, isso porque a conclusão da escolaridade pode se transformar em privilégios em relação às pessoas que não tiveram o mesmo direito. Não são nossas diferenças que nos separam, mas sim a forma como lidamos com elas transformando-as sistematicamente em desigualdades.

Notas

  • 1
    O termo pessoas trans* refere-se às identidades de gênero não normativas, mais especificamente de pessoas transexuais e/ou travestis que não se identificam com as classificações que lhes são atribuídas no nascimento, como homens ou mulheres. Optamos pelo uso com asterisco no final como uma tentativa de abranger diferentes formas de identificação que podem ser localizadas dentro ou fora de um sistema de gênero binário (Jesus, 2012Jesus, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre Identidade de Gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.; Santos, 2017SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Docência Trans*: entre a decência e a abjeção. 2017. 445 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.; Carvalho, 2015CARVALHO, Mário. “Muito prazer, eu existo!”: visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. 2015. 263 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Centro Biomédico, Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.; Rodovalho, 2017RODOVALHO, Amara Moira. O Cis pelo Trans. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 365-373, jan./abr. 2017.).
  • 2
    De acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 26)Jesus, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre Identidade de Gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012., cisgênero é um conceito que “[…] abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento”. Cisheteronormatividade é um conceito que faz referência a um conjunto de relações de poder que normaliza, regulamenta, idealiza e institucionaliza a cisgeneridade como norma.
  • 3
    A categoria teórica de abjeção foi inicialmente elaborada pela filósofa búlgara pós-estruturalista, radicada na França, Julia Kristeva (1982)KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: an essay on abjection. New York: Columbia University Press, 1982. em Powers of Horror: an essay on abjection, ganhando grande destaque na obra de feministas como Judith Butler, aqui utilizada como principal referência para nomeação dos corpos que se constroem a partir da exclusão, a partir do que a cisheteronormatividade rejeita.
  • 4
    O Projeto Reinserção Social Transcidadania foi desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico do Trabalho (SMDTE) com o propósito de reintegração social, reinserção no mercado de trabalho e resgate de cidadania de pessoas trans* que se encontram em situação de vulnerabilidade, pela oferta da conclusão da educação básica. Para maiores informações consultar Concílio, Amaral, Moreno (2017)CONCÍLIO, Isabela; AMARAL, Marcos; MORENO, Paula (Org). TRANScidadania Práticas e Trajetórias de um Programa Transformador. São Paulo: Koinonia/PM-SP, 2017..

Referências

  • ABGLT. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.
  • ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.
  • ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas Educacionais e Desigualdades: à procura de novos significados. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1381-1416, out./dez. 2010.
  • ARROYO, Miguel Gonzalez. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias Petrópolis: Vozes, 2012.
  • BENEVIDES, Bruna (Org.). Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021 Brasília: Distrito Drag; ANTRA, 2022.
  • BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos Assassinatos e da Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020 São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE, 2021.
  • BENTO, Berenice. Na Escola se aprende que a Diferença faz Diferença. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 548-559, maio/ago. 2011.
  • BORTOLINI, Alexandre; PIMENTEL, Thaís. Direito à Educação de Pessoas LGBT: uma transformação na e a partir da escola. Revista Científica dos Direitos Humanos, Brasília, v. 1, n. 1, p. 82-104, 2018.
  • BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Seção I. P. 1.
  • BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. P. 151-172.
  • BUTLER, Judith. Vida Precária. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, UFSCar, n. 1, p. 13-33, 2011.
  • BUTLER, Judith. Relatar a si Mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2015.
  • CARVALHO, Mário. “Muito prazer, eu existo!”: visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. 2015. 263 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Centro Biomédico, Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.
  • CAVALEIRO, Maria Cristina. Feminilidades Homossexuais no Ambiente Escolar: ocultamentos e discriminações vividas por garotas. 2009. 217 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
  • CONCÍLIO, Isabela; AMARAL, Marcos; MORENO, Paula (Org). TRANScidadania Práticas e Trajetórias de um Programa Transformador São Paulo: Koinonia/PM-SP, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. (1975). Petrópolis: Vozes, 2014.
  • FRANCO, Neil; CICILLINI, Graça Aparecida. Travestis, Transexuais e Transgêneros na escola: um estado da arte. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 23, n. 2, p. 122-137, 2016. Disponível em: http://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/5349/3272 Acesso em: 20 abr. 2022.
    » http://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/5349/3272
  • Jesus, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre Identidade de Gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.
  • JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas Escolas: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco/MEC, 2009. P. 13-51.
  • KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: an essay on abjection. New York: Columbia University Press, 1982.
  • LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e Homofobia. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Unesco; MEC, 2009. P. 85-93.
  • MATOS, Marília Neri, Cisnormatividade e Presenças Trans em Universidades Públicas da Bahia 2022. 226 f. Tese (Doutorado Psicologia do Desenvolvimento) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022.
  • MIRANDA, Michelle Borges. Mais do que rua, camisinha e gel: TransCidadania, a experiência de um programa para travestis e transexuais na cidade de São Paulo. 2018. 186 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. O Diabo em Forma de Gente (R)Existências de Gays Afeminados, viados e Bichas Pretas na Educação 2017. 190 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
  • OLIVEIRA, Romualdo Portela de. O Direito à Educação. In: OLIVEIRA, Romualdo de Portela; ADRIÃO, Thereza (Org.). Gestão Financiamento e Direito à Educação São Paulo: Xamã, 2002. P. 15-43.
  • PASSOS, Maria Clara Araújo dos. Pedagogias das Travestilidades 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) – Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.
  • Passos, Maria Clara Araújo dos; GARCIA, Carla Cristina. Entre Inexistências e Visibilidades: a agência sociopolítica de travestis e mulheres transexuais negras no Brasil (1979-2020). Revista Brasileira de Estudos da Homocultura – REBEH, v. 4, n. 14, p. 32-53, maio/ago. 2021.
  • PERES, Willian Siqueira. Cenas de Exclusões Anunciadas: travestis, transexuais e transgêneros e a escola anunciada. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília UNESCO; MEC, 2009. P. 85-93.
  • PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os Corpos se tornam Matéria: entrevista com Judith Butler. Estudos Feministas, Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 155-167, jan. 2002.
  • REIDEL, Marina. A Pedagogia do Salto Alto: histórias de professoras travestis e transexuais brasileiras. 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
  • RODOVALHO, Amara Moira. O Cis pelo Trans. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 365-373, jan./abr. 2017.
  • RODRIGUES, Carla; GRUMAN, Paula. Do Abjeto ao Não-Enlutável: o problema da inteligibilidade na filosofia de Butler. Anuário Antropológico, Brasília, v. 46, n. 3, p. 67-84, set./dez. 2021.
  • SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Docência Trans*: entre a decência e a abjeção. 2017. 445 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.
  • SCOTT, Joan Wallach. Os Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, p. 327-351, dez. 2012.
  • SIERRA, Jamil Cabra. Marcos da Vida Viável, Marcas da Vida Vivível: o governamento da diversidade sexual e o desafio de uma ética/estética pós-identitária para uma teorização político-educacional LGBT. 2013. 228 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
  • TORRES, Marco Antonio. A Emergência de Professoras Travestis e Transexuais na Escola: heteronormatividade e direitos nas figurações sociais contemporâneas. 2012. 363 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.
  • VIANNA, Cláudia. Políticas de Educação, Gênero e Diversidade Sexual: breve história de lutas, danos e resistências. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
  • VIANNA, Cláudia; BORTOLINI, Alexandre. Discurso Antigênero e Agendas Feministas e LGBT nos Planos Estaduais de Educação: tensões e disputas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 46, e221756, 2020.
  • XAVIER, Thaís Pimentel de Oliveira. Direito das Pessoas Trans à Educação no Município de São Paulo: histórias de abjeção, exclusão e resistência. 2020. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
  • YORK, Sara Wagner. Tia, Você é Homem? Des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2020.

Editado por

Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2022
  • Aceito
    28 Nov 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br