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Girondo, Oliverio. 20 Poemas para ler no bonde. Fotografias de Horacio Coppola. Tradução de Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2014, 112 p.

Girondo, Oliverio. 20 Poemas para ler no bonde. Fotografias de Horacio Coppola. Corsaletti, Fabrício; Titan, Samuel. Jr. São Paulo: Editora 34, 2014. 112

Oliverio Girondo, poeta argentino nascido em Buenos Aires em 1891, estudou Direito em Paris, onde travou contato com as vanguardas artísticas do pós-guerra. Participou da fundação da revista Martín Fierro (1924-1927), concebida como órgão das vanguardas em âmbito argentino e hispânico. Escritor consagrado, mas ainda pouco conhecido no Brasil, publicou Veinte poemas para ser leídos em el tranvía (1922), Calcomanías (1925), Espantapájaros (1932), Plenilunio (1937), Persuasión de los días (1942), Campo nuestro (1946) e En la masmédula (1954). Sua vida de viajante perdurará por toda a vida – inclusive estudando paleontologia e etnografia no Egito e arte pré-colombiana e colonial no México - tanto que, ainda hoje, circulam por Buenos Aires uns versos que aludem a seu estar viajero: “A veces rotundo,/ a veces muy hondo,/ se va por el mundo/ girando, Girondo”.

Ramón Gómez de la Serna conta, em breve biografia que o então criança Oliverio Girondo foi expulso do colégio Albert Le Grand, na comuna francesa de Arcueil, depois de atirar um tinteiro na cabeça de seu professor de geografia, quando este falava sobre “os antropófagos que existiam em Buenos Aires, capital do Brasil”. Figura central da renovação literária dos anos 1920 e 30 na Argentina, sua luta infantil permanecerá por toda a vida: contra tudo que lhe pareça falso esteticamente, artisticamente e que não tenha humor, ainda que com seriedade, defendendo a autonomia da linguagem a fim de transmitir a essência da invenção poética, um desafio à inércia e à imobilidade, abandonando territórios conquistados e ultrapassando os limites do manifestável.

Reacionando também contra o sublime, como quem quer se desprender de enganos ou simplesmente brincar, encabeça os poemas de seu primeiro livro com este lema: “Nenhum prejuízo mais ridículo que o prejuízo do sublime”. Publicado em 1922, a partir de viagens intercontinentais, cria seu estilo próprio que formará Veinte poemas para ser leídos em el tranvía, traduzido para o português como 20 poemas para ler no bonde pelo poeta Fabrício Corsaletti e pelo professor e editor Samuel Titan Jr., e publicado pela Editora 34. O livro é ilustrado por 22 fotografias de Horacio Coppola – tal como nos poemas de Girondo, feitas a partir de suas várias viagens: Berlim, Paris, Rio de Janeiro e, claro, Buenos Aires. Refinadíssima, a edição ainda nos brinda com ilustrações feitas pelo poeta para a primeira edição francesa do livro.

A apresentação do livro não podia ser mais clara e objetiva, ao gosto do poeta:

Os poemas de Girondo trazem a diversas cidades por onde passou o poeta, como Veneza, Biarritz, Mar del Plata, Paris e Rio de Janeiro, uma carga exótica do olhar de viajante. O poeta observa as ruas, o Pão de Açúcar – que “adoça” a cidade –, os cassinos, as soleiras e as mulheres, utilizando imagens sensoriais para descrevê-los. “Penso onde vou guardar os quiosques, os semáforos, os transeuntes que me entram pelas pupilas”, escreve em “Nota de rua”. Como vanguardista latino-americano, Oliverio Girondo se aproxima principalmente do Modernismo brasileiro, mais um bom motivo para conhecê-lo. Este 20 poemas para ler no bonde foi lançado, inclusive, em 1922 – em Paris antes de Buenos Aires, onde só chegaria três anos mais tarde –, ano em que os modernistas brasileiros inauguravam a Semana de 22, ou Semana de Arte Moderna.

O entusiasmo inicial do poeta com o movimento Martín Fierro atravessa todo seu Veinte poemas..., e, para além dos poemas: em “Carta aberta a la púa” incluída no livro e dirigida a Evar Méndez, Girondo nos diz: “um livro – e ainda mais um livro de poemas – deve se justificar por si só, sem prólogos que o defendam ou expliquem”. A presente edição traduzida faz jus a estas linhas. Neste livro de viagem temos um poeta percorrendo o mundo, tocando com poesia cada lugar que olha. O cotidiano do viajante, os lugares erigidos como protagonistas, os prédios e objetos humanizados se abrem para o leitor como um brinde à paisagem.

Das muitas críticas que sua obra despertou – Nicolás Guillén, José Carlos Mariatégui, Javier Villaurrutia, para permanecer com os hispano-americanos –, reproduzimos algumas linhas de Jorge Luis Borges:

Es innegable que la eficacia de Girondo me asusta, desde los arrabales de me verso he llegado a su obra, desde ese largo verso mío donde hay puestas de sol y vereditas y una vaga niña que es clara junto a una balaustrada celeste. Lo he mirado tan hábil, tan apto para desgajarse de un tranvía en plena largada y para renacer sano y salvo entre una amenaza de Klaxon y un apartarse de viandantes, que me he sentido provinciano junto a él. […] Girondo es un violento. Mira largamente las cosas y de golpe les tira un manotón. Luego, las guarda. No hay aventura en ello, pues el golpe nunca se frustra. A lo largo de las cincuenta páginas de su libro, he atestiguado la inevitabilidad implacable de su afanosa puntería. […] Ante los ojos de Girondo, ante su desenvainado mirar, que yo dije una vez, las cosas dialoguizan, mienten, se influyen. Hasta la propia quietación de las cosas es activa para él y ejerce una casualidad.

Os poemas, escritos entre 1921 e 22 são repletos de visões como: “El sol ablanda el asfalto y las nalgas de las mujeres, madura las peras de la eletricidad, sufre um crepúsculo, em los botones de ópalo que los hombres usan hasta para abrocharse la bragueta” - traduzidos por Corsaletti e Titan Jr.: “O sol amolece o asfalto e o traseiro das mulheres, amadurece as lâmpadas elétricas, sofre um crepúsculo nos botões de opala que os homens usam até para fechar a braguilha” (“RIO DE JANEIRO”); presencia o padre que “mastica uma plegaria como um pedazo de ‘chewing gum’” – traduzido: mastiga uma prece como num pedaço de chewing gum” (“SEVILLANO” / “SEVILHANO”); vê em Douarnenez como os velhos entram na igreja com gorros de dormir:

Mientras las viejecitas, con sus gorritos de dormir, entran a la nave para emborracharse de oraciones y para que el silencio deje de roer por un instante las narices de piedra de los santos. (“PAISAJE BRETÓN”) Na tradução: Enquanto as velhinhas, com gorrinhos de dormir, entram na nave para se embebedar de orações e para que o silêncio deixe de roer por um instante o nariz de pedra dos santos.(“PAISAGEM BRETÔ)

Se nos três breves trechos podemos compartilhar as visões de Girondo, temos também um vislumbre da tradução: nomes próprios e estrangeirismos que no original aparecem com aspas, na tradução, como é 3comum no Brasil, aparecem em itálico, troca de plurais por singulares (ou o contrário), para que o ritmo do poeta não se perca no idioma de chegada e expressões das “ruas” brasileiras, ao invés da transposição exata da palavra, visando não perder a ironia e o lirismo urbano presente na obra.

Uma importante inovação que Girondo opera em poesia refere-se ao verso livre, rompendo com os esquemas rítmicos ou métricos preestabelecidos, se guiando mais pelo ritmo do pensamento e pelas pausas próprias da oralidade e da respiração. Impossível não fazer uma relação com os poetas modernistas brasileiros, em especial Manuel Bandeira – embora boa parte de sua poesia tenha métrica, rimas, assonâncias, muitas vezes disfarçadas -, pinçando da própria vida cotidiana, num tom prosaico, a poesia. Os tradutores logram êxito em manter tal ritmo, mantendo sua carga emotiva, como podemos ver no poema escolhido para exemplo “APUNTE CALLEJERO”, traduzido como “NOTA DE RUA”. Temos em seu aspeto formal um poema composto por três estrofes com a estrutura referida e sem rima e sem regularidade entre as diferentes estrofes. Na primeira estrofe há uma descrição da rua por onde caminha; na segunda se inclui no poema, passando da terceira pessoa à primeira, utilizando o pronome pessoal “me” – mantido na tradução. Já a terceira estrofe, mais breve, refere-se à morte, personificando sua sombra. O título do poema completa a significação do mesmo, anunciando o tema e se vinculando especialmente com o título do livro já que faz alusão ao bonde.

A cena se desenvolve na rua, enquanto o poeta caminha, descrevendo seu percurso e como suas emoções se entrelaçam com a paisagem urbana. Para alcançar a força poética necessária em cenas prosaicas, o poeta se vale de imagens. No trecho “Passam unos senos bizcos buscando uma sonrisa sobre las mesas” – traduzido como “Passam uns seios vesgos procurando um sorriso pelas mesas” –, Girondo utiliza esta imagem recorrente em sua poesia, os “senos” – que em outros poemas podem aparecer como “pechos”, “tetas”, “pezones” -, bem como “sonrisa”; a aliteração “s” sugere suavidade aos movimentos rápidos da rua.

Entre os elementos que dão força aos poemas, estão as imagens visuais e auditivas. Na segunda linha o poeta utiliza uma enumeração caótica de imagens visuais “los transeuntes que se me entran por las pupilas”- traduzido literalmente como “os transeuntes que me entram pelas pupilas” -, característica da poesia vanguardista, para descrever ao mesmo tempo o que vê e o que sente, expressando sua saturação: “tengo miedo de estallar” – na tradução: “tenho medo de rebentar”.

Finalmente na última estrofe a sombra é metonímia de si mesmo, onde o verso, tal como o da rua, encontramos a morte que “se arroja entre las ruedas de um tranvía” – traduzido: “se joga entre as rodas de um bonde”.

Há ainda imagens características de Buenos Aires e da época: o café, os quiosques, o bonde, os faróis - estes traduzidos de diferentes maneiras a depender do poema “lampiões”, “lampiõezinhos”, “lanternas” e “postes de luz”.

Observamos no poema, e nos demais que compõe a obra, a predominância do traço semântico, utilizando procedimentos retóricos variados, misturando e alternando os significados e significantes para criar no leitor um interesse especial. Isto indica a prevalência da “função poética” porque importa o “como” se expressam as situações descritas, mais do que o seu conteúdo.

Como vimos, a tradução mantém os ritmos do autor sem grandes alterações formais – algumas inversões de frases/ versos; troca de plurais por singulares e o contrário, supressão ou acréscimo de vírgulas; nos poemas “CHIOGGIA” / “CHIOGGIA”, “PLAZA” / “PRAÇA” e “VERONA” / “VERONA”, temos uma quebra diferente nos versos, sempre logrando manter efeito imagético e rítmico.

Vez e outra, os tradutores usam palavras e termos comuns da “rua” brasileira, deixando para o leitor que lê a obra traduzida o “espírito” original da obra, sem, contudo causar estranhamento. O termo “ritmos de cadera” (“VENECIA” / “VENEZA”), é traduzido como “ginga”; “vigilante” se torna “leão de chácara” (“MILONGA” / “MILONGA”), em um poema cujas cenas se desenrolam num baile e, com esta tradução sugere uma espécie de bordel; temos ainda a tradução de “candombe” (ritmo rioplatense muito comum no carnaval; “FIESTA EM DAKAR” / “FESTA EM DACAR”), por “batucada”, termos familiares aos brasileiros que, no segundo caso, embora percam algo da significância espaço-temporal não comprometem a beleza e a força do poema.

Talvez o maior estranhamento, numa tradução que amiúde usa expressões de nossas ruas, esteja no trecho de “OTRO NOCTURNO” / “OUTRO NOTURNO”: “nos interesará tanto el partido de pelota que el eco de nuestros pasos juega en la pared”, traduzido quase literalmente: “teremos tanto interesse pela partida de pelota que o eco de nossos passos joga com a parede”, embora em alguns lugares do sul brasileiro a ‘partida de pelota’ seja comum, em outras regiões, como o nordeste, só faria sentido o “jogo de bola” ou mesmo a “pelada”.

Os elementos marcantes obra, como verso livre, metáfora, ironia, construção de imagens e musicalidade fazem parte do plano de Girondo rumo à autonomia da linguagem, do mesmo modo, Corsaletti e Titan Jr. o fazem muito felizmente nestes 20 Poemas para ler no bonde. Tal felicidade de tradução talvez não houvesse sem a experiência dos tradutores, conforme conferimos na obra:

Fabrício Corsaletti nasceu em Santo Anastácio, interior de São Paulo, em 1978, e desde 1997 vive na capital do estado. Em 2007 publicou o volume Estudos para o seu corpo, que reúne seus quatro primeiros livros de poesia: Movediço (2001), O sobrevivente (2003) e os então inéditos História das demolições e Estudos para o seu corpo. Também é autor dos contos de King Kong e cervejas (2008), da novela Golpe de ar (2009), dos poemas de Esquimó (2010, prêmio Bravo! 2011) e de Quadras paulistanas (2013), além dos livros infantis Zoo (2005), Zoo zureta (2010) e Zoo zoado (2014). Desde 2010 é colunista da revista sãopaulo, do jornal Folha de S. Paulo.

Samuel Titan Jr. nasceu em Belém, em 1970. Estudou filosofia na Universidade de São Paulo, onde leciona Teoria Literária e Literatura Comparada desde 2005. Editor e tradutor, assinou versões para o português de autores como Erich Auerbach (Ensaios de literatura ocidental, 2007, com José Marcos Macedo), Adolfo Bioy Casares (A invenção de Morel, 2006), Michel Leiris (O espelho da tauromaquia, 2001), Gustave Flaubert (Três contos, 2004, em colaboração com Milton Hatoum) e Voltaire (Cândido ou o otimismo, 2013).

Walter Benjamim dizia que há obras que clamam por tradução, é o caso deste livro. Esta tradução permite ler hoje poemas escritos por um autor um tanto quanto distante de nós no tempo e no espaço, de agudeza imagética para alcançar a essência das coisas, com maestria no manejo das metáforas: e com uma relação diferente com as pessoas, os lugares e as coisas. Neste livro de Girondo, encontramos nossa própria busca de um encantamento possível no centro do horror e da barbárie que podem ser as cidades todas – Tzvetan Todorov parece nos gritar: “a beleza salvará o mundo”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2016
  • Aceito
    10 Fev 2017
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