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WOODS, Michelle. Kafka translated. How translators have shaped our reading of Kafka. London, New Delhi, New York, Sydney: Bloomsbury, 2014, 283 p

Não há dúvida que a fortuna da obra do escritor tcheco Franz Kafka está profundamente relacionada a suas traduções para inúmeras línguas; é certo também que foram sobretudo as traduções para o inglês, francês e espanhol responsáveis por sua mais ampla difusão em todo o mundo e que, no caso do Brasil, serviram de substrato para as primeiras traduções em sua maior parte indiretas, como relata com profusão de dados a tradutora Denise Bottmann (2014) em seus estudos sobre a recepção de Kafka entre nós. O estudo de Michelle Woods, professora de origem irlandesa e tcheca da Universidade SUNY — New Paltz, focaliza de modo muito particular o percurso da recepção da obra do autor tcheco no contexto cultural de língua inglesa, partindo de uma reflexão sobre quatro casos exemplares: a primeiríssima tradução de uma obra de Kafka, a da novela “O Foguista” [Der Heizer], feita pela jornalista tcheca Milena Jesenská, para o tcheco, com a qual o autor teve um dos mais famosos casos de amor por correspondência da história da literatura, uma fama responsável, como mostra a autora, pelo obscurecimento do trabalho e da interlocução de Kafka com sua tradutora; as primeiras traduções empreendidas pelo casal de tradutores escoceses Willa e Edwin Muir, ambos falantes de falares escoceses minoritários, totalmente ocultados em suas traduções; e, na contemporaneidade, são examinadas as traduções feitas pelo britânico de origem irlandesa, Mark Harman, e de Michael Hofmann, que em entrevista concedida à autora se define como “nem bem inglês, nem bem alemão” (p.108) (tradução livre). Hofmann defende de modo muito contundente uma maior visibilidade do tradutor, um tema já clássico nos estudos de tradução, pelo menos, desde a publicação, entre outros, do livro de Lawrence Venuti (1995) sobre a “invisibilidade do tradutor”, uma condição que, embora possa estendida à visão corrente sobre o trabalho dos tradutores, é particularmente naturalizada nas culturas de língua inglesa e é índice do modo como obras estrangeiras são, na maior parte dos casos, incorporadas ao cânone — por processos de domesticação a serviço de injunções de mercado e de hábitos leitura correntes na cultura da língua-alvo. Serve de fio condutor à autora em suas análises a decidida negação da ideia de que traduções fatalmente levem a perdas semânticas, ou seja, a uma defesa da ideia de que traduções não apenas não são reproduções imperfeitas ou infiéis de textos originais; que são, muito pelo contrário e por seu necessário gesto interpretativo, também capazes de revelar dimensões muitas vezes inaparentes ao leitor do texto original.

Se o adjetivo “kafkiano”, que tão bem representa a ampla penetração simbólica da obra e dos dilemas kafkianos nos mais diversos contextos linguísticos e culturais, tornou-se um lugar-comum para descrever situações em que o indivíduo não consegue se liberar das amarras de estruturas de poder entranhadas tanto no microcosmo familiar quanto no macrocosmo social, acaba por perder sua precisão denotativa, sendo aplicado de modo indiscriminado a toda e qualquer situação que envolva as dificuldades do indivíduo diante de estruturas administrativas e/ou de poder, é igualmente verdade que a própria história e o destino de determinadas traduções e de seus tradutores — e muitas vezes, de suas tradutoras, como no emblemático caso de duas das primeiras tradutoras de Kafka para o tcheco, Milena Jesenská e para o inglês, Willa Muir — pode ser designado por esse adjetivo, como têm mostrado cada vez mais os estudos de tradução empreendidos nas últimas décadas, que não descuram de examinar em que medida elementos ideológicos determinam não só certas escolhas estilísticas das traduções mas também as escolhas editoriais, refletindo assim as condições materiais de publicação das obras. Até hoje o protagonismo da tradução para o inglês é atribuído sobretudo ao escritor Edwin Muir, sendo o trabalho de sua mulher omitido, como faz Dieter Lamping (2006, 9-23), em um artigo, de resto, excelente, sobre a meteórica carreira de Kafka, que de autor conhecido apenas em círculos praguenses é alçado a um dos mais conhecidos clássicos modernos.

O ponto de vista de Woods é assumidamente contemporâneo, atualizador, como mostra a abertura do livro, na qual um aforismo de Kafka e a dificuldade de interpretá-lo são parte de um diálogo entre dois personagens de The Wire [A Escuta, em português], uma elogiada série televisiva do gênero policial cujos episódios retratam a inextricável rede de problemas urbanos relacionados ao tráfico de drogas. Que um produto da indústria cultural coloque em evidência um problema relacionado à dificuldade de interpretação da obra de Kafka assim como enunciado por um de seus intérpretes eminentes e grande crítico da cultura de massas, Theodor W. Adorno, é mais uma volta irônica na engrenagem das infinitas interpretações do texto kafkiano e descreve a perspectiva sob a qual o problema da tradução será visto no estudo de Woods. A tradução entendida não apenas como questão de transferência ou traslado de significados entre um par de línguas e culturas, ou seja, a clássica tradução interlingual, mas também em sentido muito mais amplo, abarcando todas as três modalidades de tradução, segundo a clássica tripartição de Roman Jakobson (2003, p. 63-64) em tradução intralingual, interlingual e intersemiótica e, no caso da poesia e da literatura, a transposição criativa (id. ibid, p. 71) . Essa ampliação do campo de reflexão sobre a tradução caminha, no estudo de Woods, em várias direções, abrangendo aspectos da obra de Kafka que remetem tanto à tradução interlingual quanto à intralingual, ou seja, à tradução entendida como uma dimensão da comunicação com a qual os indivíduos se deparam cotidianamente em suas ações mais triviais, no seio da própria língua materna mas também como situação de comunicação que deriva de um contexto multilíngue. Ora, Kafka viveu num ambiente multilíngue em que as principais línguas utilizadas eram o alemão e o tcheco (com a progressiva hegemonia do tcheco sobre o alemão graças ao crescente predomínio do nacionalismo tcheco), mas teve contato, também devido a sua origem judaica, com o ídiche, e com o italiano, pela proximidade geográfica e pelas históricas relações entre o ambiente culto de língua alemã e a Itália, bem como na escola, com o francês, como língua da alta cultura e literatura, e com muitas outras línguas e falares que circulavam no denso caldeirão multicultural abarcado pelas diferentes nações englobadas pelo Império Austro-Húngaro, já então fadado ao desaparecimento. O estudo de Woods resgata esse pano de fundo multilinguístico e multicultural e, além disso, focaliza os problemas hermenêuticos derivados dos complexos processos de reelaboração no interior de cada língua. Completam o estudo um capítulo a respeito de questões surgidas a partir da análise de algumas adaptações fílmicas da obra de Kafka e outro, sobre a fortuna crítica kafkiana, no qual a autora enlaça problemáticas de tradução a problemas de interpretação da obra do autor tcheco.

Buscando reiteradamente ultrapassar o lugar-comum segundo o qual todo o processo tradutório se reduziria à busca de um precário equilíbrio entre perdas e ganhos, Woods examina sob nova luz supostos “erros” de tradução, evidenciando em que medida eles podem estar relacionados a elementos circunstanciais, ligados ao contexto histórico-cultural do tradutor ou tradutora e mesmo em que medida podem ser hermeneuticamente produtivos. Nada trivial se se pensar que, como já foi apontado por parte da crítica, os escritos kafkianos exibem eles mesmos uma preocupação com a dimensão circunstancial de sua produção, expressa por reiteradas referências a elementos metalinguísticos e metaliterários e à própria circunstância da produção de cada escrito no momento em que ela se dá, bem como uma insistência em enfatizar a condição indecidível de polarizações filosófico-conceituais entre certo e errado, falso e verdadeiro, tanto do ponto de vista existencial quanto do ficcional — algo como a condição mesma da comunicação humana com seus incontornáveis equívocos produtivos e fracassos exemplares.

O ponto alto do estudo encontra-se, sem dúvida, no primeiro capítulo, que historia de modo fascinante e muito bem documentado as singulares contingências que cercaram as primeiras traduções da obra kafkiana, para o tcheco e para o inglês, colocando no foco da atenção e considerando como digno de importância para a recepção da obra do autor um aspecto até então pouco contemplado pela fortuna crítica, a não ser por observações laterais e de caráter depreciativo: o fato de as primeiras traduções terem sido realizadas por tradutoras mulheres, Milena Jesenská e Willa Muir, esta última em colaboração com o marido Edwin Muir. Até hoje, de modo geral, os créditos da tradução dos Muir são dados ao marido, que graças a sua atuação como poeta, teria emprestado a forma final aos textos traduzidos pela esposa, uma visão que cai totalmente por terra à medida que seguimos o bem documentado exame das circunstâncias em que a tradução foi realizada, feito num arquivo com diários e outros materiais que a pesquisa de Woods revela de modo fascinante. Descobrimos, entre outros, que Willa fora uma filóloga e escritora ela mesma, autora de um não publicado romance experimental modernista. De caráter autobiográfico, a narrativa a respeito de um casal de tradutores de ... Kafka revela o contraste entre a posição pública da mulher, tradutora e escritora Willa, ensombrecida pela figura do marido, e o protagonismo que assume em seus diários, nos quais aparece a injusta depreciação de seu trabalho como tradutora diante do do marido, bem como a posição ambígua em relação a seu background escocês e às prementes necessidades financeiras, que os obriga a realizar uma tradução mais fluente, domesticadora, ao agrado de editores sempre preocupados com o sucesso comercial das obras. Descobrimos também que Edwin foi um escritor e poeta bastante convencional, além de calvinista convertido que aderira a uma interpretação religiosa da obra de Kafka, que deixa suas (in)devidas marcas na tradução. Da mesma forma, preconceitos de gênero assombraram a reputação da tradução feita por Milena, com recriminações a seu alegado mau domínio da língua alemã e seu estilo “por demais fiel ao original alemão”(p. 27) (tradução livre), as quais subscrevem uma visão da tradução como atividade derivada, feminina, em contraposição à ideia segundo a qual o texto original seria resultado de impulso criativo de cariz eminentemente masculino, repetindo o histórico preconceito contido na ideia das “belas infiéis”. Tanto é que, na posteridade, Milena é lembrada somente como a amante e correspondente de Kafka, tendo sua atuação de tradutora, bem como a de escritora e jornalista sido relegada ao esquecimento. Por sua vez, o fato de a tradução do casal Muir ter-se notabilizado por seu inglês fluente, num gesto que trai a ocultação de sua origem escocesa, traz à baila um segundo preconceito histórico para com atividade dos tradutores: o de sua necessária transparência, sua existência de sombra ou fantasma em relação ao texto original e a proibição de assumir seu papel enquanto criadores/as de novos texto numa nova língua. Tendo em vista o caráter eminentemente fragmentário da obra kafkiana, em boa parte não publicada em vida, a intenção dessas primeiras traduções era — como aliás foi a intenção do primeiro editor das obras póstumas de Kafka, o amigo Max Brod, responsável por não realizar o alegado e ambíguo último desejo de destruir seus escritos — garantir a ela uma recepção favorável do público leitor para além das fronteiras dos países de língua alemã, uma empresa que muito se assemelha à do tradutor de Freud para a língua inglesa, James Strachey, que converteu o fluente estilo literário de Freud em textos inseridos numa densa rede conceitual e terminológica científica. O livro de Woods mostra de modo inconteste como traduções respondem a essas demandas circunstanciais e como certas obras, a depender de diferentes constelações históricas, necessariamente requerem ser retraduzidas — o que não significa dizer que retraduções são invariavelmente melhores do que traduções anteriores, mas que cada nova tradução tem de ser avaliada em sua singularidade textual e histórica.

A reabilitação da figura do tradutor, aliás, sobretudo, das tradutoras, é complementada pela apresentação do trabalho recente de dois tradutores, Mark Harman e Michael Hofmann, que buscam não escamotear a dimensão criadora de seu trabalho, assumindo de modo muito explícito sua própria interpretação das obras traduzidas, fazendo conscientemente escolhas tradutórias ligadas às próprias preferências e influências literárias e a seu próprio perfil autoral. Assim é que a tradução feita por Mark Harman, um estudioso da obra kafkiana de origem irlandesa, se mostra como resultado consistente de sua pessoal interpretação das obras e do modo como lê e mesmo escuta o texto original como leitor da obra de Samuel Beckett, salientando aspectos como a gestualidade e o particular humor presente na obra. Nesse sentido é exemplar o destaque dado por Harman a leitura em voz alta do texto, que revela aspectos desse singular humor kafkiano, algo proscrito por leituras anteriores, por demais ligadas a interpretações religiosas, existencialistas e psicologizantes, por um lado, e pela visão adorniana da obra de Kafka, marcada pelo advento das catástrofes decorrentes dos anos da ditadura nacional-socialista. Não necessitando tornar a obra de Kafka mais “legível” para garantir sua recepção junto ao público leitor, tradutores contemporâneos como Harman e Hofmann, no contexto de língua inglesa, não se sentem na obrigação de corrigir supostos “defeitos” do escrita kafkiana, tais como suas reiteradas repetições lexicais, períodos ou parágrafos por vezes excessivamente longos e podem assim assumir sua tarefa como uma tarefa hermenêutica no sentido forte e com isso, deixar sua marca no texto, uma marca claramente não domesticadora, mas assumidamente estrangeirizante. Certamente isso só terá sido possível graças aos enormes esforços filológicos realizados ao longo de muitos anos, na segunda metade do século XX, por equipes de especialistas empenhados na publicação não de uma mas de duas edições das obras de Kafka: a edição crítica e a edição histórico-crítica, facsimilar, em alemão. Infelizmente, esses marcos fundamentais para os estudos da obra kafkiana não foram levados em conta focalizados no estudo de Woods, embora certamente sejam talvez responsáveis pelo surgimento de leituras melhor embasadas do ponto de vista filológico, consequentemente, traduções filologicamente mais acuradas. Talvez esse aparente descuido se deva à tentativa, sem dúvida alguma meritória, de deslocar o foco da atenção do texto original e da figura do autor, tradicionalmente superestimados nos comentários e avaliações de traduções, para o texto traduzido, a figura do tradutor e sua dimensão igualmente autoral e criativa, bem como para a presença absolutamente pervasiva da tradução para além dos textos, nas artes, na vida cultural e em diferentes campos da vida e da comunicação humana.

Compondo uma estrutura afunilada, os capítulos que se seguem ao primeiro diminuem progressivamente de extensão, evidenciando o privilégio dado pela autora à reflexão sobre traduções propriamente ditas, isto é, de traduções interlinguísticas, ainda que de um ponto-de-vista de grande amplitude e muito pouco tradicional. No segundo capítulo, a autora mostra como Kafka ficcionaliza a tradução, a incorpora em sua própria criação, quando mostra personagens ou narradores às voltas com o estudo e a compreensão de línguas estrangeiras e/ou precisam realizar traduções — ou mesmo, não conseguem fazê-lo, como em algumas cenas nas quais os movimentos corporais, a gestualidade dos personagens são descritos de modo extremamente cômico, como no famoso capítulo “Na catedral”, de O processo (Kafka: 2005, p. 200-202): K. se vê às voltas com dicionários e gramáticas do italiano pois deve, a serviço do banco para o qual trabalha, ciceronear e servir de intérprete para um visitante italiano, cuja fala, contaminada por um dialeto meridional, é de difícil compreensão.

No sentido alargado de tradução, privilegiado pela autora, também a presença de elementos intertextuais é vista como uma particular forma de tradução. Nesse sentido, o baú que tantos aborrecimentos traz ao personagem dickensiano de David Copperfield irá se converter na mala, fonte de perene preocupação para Karl Rossmann, o garoto de Praga emigrado para os Estados Unidos, protagonista do primeiro romance kafkiano, considerado pelo próprio Kafka um texto essencialmente epigonal, pois produto explícito de suas leituras literárias e também de sua leitura de narrativas de viagem, tais como os relatos jornalísticos sobre a América, de autoria de Arthur Hollitscher e Frantisek Soukup. Esses relatos e as imagens que traziam foram reaproveitados e reelaborados textualmente por Kafka em diferentes pontos de seu inacabado romance americano, cuja ordenação em capítulos — como também a dos dois outros fragmentos de romance — fora estabelecida pelo amigo Max Brod (tendo sido corrigida mais recentemente pelas edições críticas, a partir de um reexame dos manuscritos). Woods assinala também que circunstâncias biográficas de sua primeira tradutora são parcialmente retraduzidos para determinados personagens — por exemplo: a emigração de Karl Rossmann, forçada por seus pais por causa de uma gravidez derivaria da circunstância de Milena Jesenská ter sido obrigada pelo pai a deixar Praga e ir para Viena, por ter ficado grávida de um homem judeu).

A essas reflexões sobre o papel que pode ter uma reflexão sobre a tradução na leitura e interpretação de textos literários, em particular, do texto kafkiano e sua permanente e sempre baldada busca de definir e circunscrever o significado nas línguas e nos textos, segue-se um capítulo sobre algumas adaptações fílmicas da obra de Kafka. É claro que aqui se entende tradução no sentido da transposição de um campo semiótico a outro — a assim chamada tradução intersemiótica. Em sua discussão de diferentes adaptações da obra kafkiana para o cinema, Woods novamente acentua a importância da marca pessoal que cada diretor deixa na sua transposição, como resultado de um conjunto de fatores como a interpretação pessoal do autor, interesses artísticos individuais, sua própria estética e determinações históricas, circunstanciais. Os filmes analisados são o clássico The Trial [O Processo] (1962), de Orson Welles, Das Schloss [O Castelo] (1997), uma produção destinada à TV, dirigida pelo austríaco Michael Haneke, Intervista [Entrevista] (1987) de Federico Fellini, America, (1997), do diretor tcheco Vladimír Michálek, Kafka (1991), de Steven Soderbergh, e o menos conhecido Kafka´s It´s a Wonderful Life (1993), de Peter Capaldi, um premiado curta-metragem cômico, produzido pela BBC escocesa. Dando destaque para a natural liberdade com que cada adaptação fílmica reconstrói visualmente o tecido textual do texto de partida, Woods leva seu leitor a um inevitável questionamento: porque em geral se aceita um maior grau de liberdade no tratamento do texto original no caso de traduções intersemióticas (filmes, quadrinhos, composições musicais, entre outras) do que se aceita no caso de tradutores que vertem a obra “apenas” para um outro sistema de signos verbal? A partir do contexto brasileiro — que a autora não parece conhecer — obtém-se de imediato a resposta: porque o tradutor não é considerado um autor no sentido pleno da palavra, um criador. Certamente, a teoria da tradução elaborada pelos poetas Haroldo e Augusto de Campos e Decio Pignatari, que tem como ponto nodal o conceito de transcriação, haurido de uma persistente prática da tradução como ato criativo, viria ao encontro das demandas postas pela reflexão de Woods em sua defesa do trabalho e da figura do tradutor como protagonistas dos complexos movimentos da prosa do mundo em seu trânsito por múltiplos tempos e espaços. Não por acaso, no capítulo final, a autora cunha a palavra transreading — uma prefixação que a ouvidos brasileiros soa tão familiar — para designar uma leitura permeável aos influxos de múltiplas formas sígnicas. De fato, no último capítulo, Woods propõe uma interpretação da última narrativa escrita por Kafka antes de morrer, Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos, destacando o modo como cada tradutor procurou dar conta de elementos sonoros e musicais, fundamentais numa narrativa cuja protagonista é uma (rata) cantora. Como assinala Woods (p. 244), o conto é uma longa ruminação do/a narradora a se questionar se Josefina afinal canta ou não, a se indagar sobre a natureza desse canto e se não seria o caráter de performance do canto mais importante que os sons que emite, sons aos quais o leitor não tem acesso. Não ouvimos seu canto, nem seus assobios, guinchos e sibilos, mas acompanhamos o/a narrador/a enquanto ele/ela por assim dizer reperformatiza o som em palavras, ou seja, traduz a música em texto e, ao fazê-lo, converte-o em música novamente. Com suas análises, Woods mostra como a narrativa é permeada por lances irônicos e bem humorados, que se produzem, ou por alusões a outros sons e a outros textos, criando uma textura onomatopaica única, feita de múltiplas alusões textuais e musicais (entre elas à já nos anos 20 conhecida Suíte Quebra-Nozes, de Tchaikóvsky, por sua vez, adaptação de um conto de E.T.A. Hoffmann (2011), “O quebra-nozes e o rei dos camundongos”), ou pela tentativa de reproduzir os sons aos quais o texto em seu andamento remete, evidenciando o interesse que o autor tinha pela sonoridade das/nas línguas, e também das/nas traduções. No caso do som do quebra-nozes, Woods (p. 245) evoca um comentário que faz Kafka, em sua correspondência com Milena, a respeito da palavra tcheca nechápu, que significa justamente “eu não compreendo” e cuja sonoridade estranha e estrangeira é comparada à do som de nozes sendo quebradas numa boca, numa ação corporal que se articula num dança de mandíbulas, dentes e boca. A busca pelo significado das palavras e da comunicação se dá pela tentativa de traduzir as palavras e os enunciados até chegar a seus elementos mínimos, sonoros, musicais, o que novamente torna uma comunicação plena difícil, quando não impossível. Entretanto, ao invés de sublinhar a impossibilidade reproduzir a sonoridade e a musicalidade do texto original nas traduções, Woods prefere mostrar, ao contrário, como diferentes tradutores enfrentam o desafio de transpor a particular textura, a materialidade sonora da narrativa, abandonando o secular balanço de perdas e ganhos, fazendo a balança pender favoravelmente para o lado do tradutor, como autor responsável por reconfigurar e com isso garantir a transmissão da obra para além de fronteiras linguísticas e nacionais.

Um pequeno reparo deve ser feito: Bem escrito, bem documentado e original na sua abordagem do tema, o livro de Michelle Woods deixa a desejar quanto ao cuidado filológico-editorial para com as citações em língua alemã utilizadas. Lamentavelmente os excertos utilizados nem sempre provêm das edições mais recentes e mais confiáveis da obra de Franz Kafka (ou seja, das edições crítica e histórico-crítica alemãs, que justamente têm, em geral, servido de base para os tradutores contemporâneos) e, ademais, contêm certo número de erros tipográficos. Essas falhas, entretanto, não invalidam os resultados de um estudo bem escrito e bem documentado que procura trazer os tradutores — e sobretudo, as tradutoras — para o lugar de protagonistas que merecem ocupar na história da literatura.

  • Publicado em setembro de 2017

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2017
  • Aceito
    18 Jun 2017
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