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RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011, 141 p.

RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Buffa, Cinzia. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141

João Ubaldo Ribeiro, romancista, cronista, ensaísta e jornalista, deixou uma obra rica e variada no panorama da literatura brasileira. Em Sargento Getúlio, publicado em 1971, encontra-se um anti-herói violento e determinado e junto com ele mergulha-se numa linguagem inovadora e revolucionária. Viva o povo brasileiro, publicado em 1984, abarca cerca de quatro séculos de história brasileira narrados da Ilha de Itaparica. O fil rouge que reúne todos os textos de João Ubaldo é a ironia e a “dessacralização” (BERND; UTÉZA, 2001BERND, Zilá; UTÉZA, Francis (Orgs.). O caminho do meio: uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001., p. 11) que o narrador dissemina nas vozes de suas personagens: a função dessacralizadora é de fato saliente na fala da protagonista de A casa dos budas ditosos, romance publicado na série Plenos Pecados da editora Objetiva em 1999.

Neste romance, João Ubaldo Ribeiro utiliza o artifício literário da mise-en-scène de uma autora fictícia, CLB, que teria enviado para o autor um manuscrito, ou melhor, um depoimento oral datilografado em que narra a sua vida amplamente dedicada à luxúria. Ao longo do monólogo da protagonista, rico em flashbacks e digressões, enfrentam-se temas tabu como a zoofilia, o incesto e a promiscuidade, entre outros. A fala de CLB é marcadamente oral, alternando linguagem coloquial, às vezes chula, e citações intelectuais que assinalam a presença do verdadeiro autor.

A recepção do romance no Brasil e sua divulgação no exterior são significativos: após a publicação em 1999, permaneceu por 36 semanas entre os livros mais vendidos no Brasil tornando-se um sucesso editorial. Além disso, foi traduzido para o espanhol, o francês, o inglês, o holandês, o basco, o esloveno e o italiano. Em Portugal, seu lançamento virou notícia, pois a venda do romance foi temporariamente proibida em dois supermercados do grupo Auchan e Sonae: a diretora das Relações Internacionais da rede de supermercados Auchan chegou a declarar que o conteúdo do romance ofendia a política e a ética comercial do grupo (BATELLA, 2016BATELLA, Juva. Ubaldo: ficção, confissão, disfarce e retrato. I edição. Rio de Janeiro: Vieira & Lent. 2016, p. 264 - 317., p. 300). Contudo, essa censura não afetou as vendas já que em poucos dias se esgotou a primeira edição de 15.000 exemplares.

A obra de João Ubaldo Ribeiro é escassamente divulgada na Itália, embora o autor seja reconhecido como canônico dentro dos sistemas literários brasileiro e italiano. Dentre os romances traduzidos para a língua de Dante destacam-se Sargento Getúlio (1971) e Viva o povo brasileiro (1984), traduzidos pela primeira vez, respectivamente, em 1986 por Stefano Moretti e em 1997 por Claudio M. Valentinetti. Estas obras foram publicadas por grandes editoras, a Club degli Editori do grupo Mondadori e a Einaudi. A casa dos budas ditosos é o terceiro e último romance de João Ubaldo Ribeiro a ser lançado na Itália: foi traduzido por Cinzia Buffa e publicado pela primeira vez em 2006 pela Cavallo di Ferro. Em seguida ganhou uma segunda edição em 2011 pela BEAT (Biblioteca degli Editori Associati di Tascabili), sendo que a primeira editora já não é ativa no mercado.

O trabalho de tradução de Cinzia Buffa é prolífico1, ela é uma profissional do setor da editoria e traduz das variantes brasileira e europeia do português e também do espanhol. As decisões tradutórias – reconstruídas através da análise do texto, já que não há prefácio nem posfácio redigidos pela tradutora – revelam uma tendência domesticadora, quer a nível de registro linguístico, quer a nível de reescrita dos termos culturalmente marcados. Além disso, a tradução dos termos tabu ligados à sexualidade também merece uma reflexão considerável.

Primeiramente, a quantidade e qualidade das notas informativas no texto denotam uma certa heterogeneidade na política tradutória, embora não se tenha como saber se a iniciativa foi tomada pela tradutora ou pela editora. As notas explicitam alguns fatos históricos, ligados ao período do Estado Novo e, em seguida, à ditadura militar, alguns jogos de palavras que não foram traduzidos, e alguns termos culturalmente marcados, como candomblé – definido simplisticamente “religione brasiliana importata dall’Africa” (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 140) – e lança-perfume.

No plano lexical observa-se uma tendência a elevar o registro linguístico, através do uso de termos mais rebuscados no texto-alvo, como se pode constatar nos excertos abaixo:

Em seguida, mandei que ele tirasse também a roupa […]

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 80).

Poi, intimai anche a lui di togliersi i vestiti, […]

(RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 70).

[…] fazendo carinhas de nojo

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 121).

[…] facendo smorfie di repulsione

(RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 105).

Outros exemplos figuram na reescrita dos verbos e substantivos que seguem: não perceber torna-se misconoscere. ver torna-se constatare. ter (pesadelos) torna-se procurare e aparecer é traduzido com o verbo palesarsi. frescura é traduzido arzigogoli. multidão é traduzido com capannello, e sardas é traduzido com efelidi

Nota-se uma tendência à “correção”, sobretudo a nível de pontuação, em presença do discurso direto: se no texto-fonte não há uma forma homogênea de utilizar as aspas ou o travessão, no texto-alvo ajusta-se e homogeneíza-se o modo de utilizar a pontuação, tal como consta no trecho que se segue:

Vittorio Gassman tinha razão, numa entrevista que eu vi na tevê: a vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 97).

Vittorio Gassman aveva ragione, in un’intervista che ho visto alla tivù: “Le vite dovrebbero essere due: una per provare, l’altra per vivere sul serio” (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 85).

No que se refere às expressões idiomáticas e aos termos culturalmente marcados, há uma dupla tendência: de um lado há um apaga-mento de marcas da alteridade através da “europeização” de alguns termos, e do outro há uma modificação do sentido do texto. Faz parte do primeiro caso, por exemplo, a tradução de exuzinho: no texto-alvo a entidade do panteão candomblecista torna-se um piccolo satiro da mitologia clássica, eliminando a marca cultural da palavra, que carrega em si uma série de associações que não se teriam perdido ao utilizar uma nota explicativa. Isto acontece novamente quando se faz menção ao time de futebol Bahia no texto-fonte:

Fui criada para odiar o Bahia e odeio o Bahia, mas, quando ele está jogando fora de lá, eu torço por ele, é ridículo

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 126).

Sono stata cresciuta con l’odio per il baiano e odio il baiano, ma quando gioca fuori casa, io faccio il tifo per lui, è ridicolo

(RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 110).

Nesse excerto o sentido é alterado transformando o Bahia numa generalização do baiano e apagando uma conotação cultural que é relevante no texto-fonte. O que não está escrito na história dos times baianos, mas que é reconhecido pelo povo, é que a rivalidade entre os dois times, o Bahia e o Vitória, tem também a ver com a questão cultural e histórica de diferença de classes sociais, já que o Bahia é time mais popular, geralmente preferido pelas classes menos abastadas. Isso faz muito sentido no caso de CLB, pois ela é oriunda de uma família da alta burguesia soteropolitana.

Ao narrar várias experiências sexuais de forma explícita, o autor faz uso de uma linguagem chula, muitas vezes vulgar, para chocar o leitor numa tentativa de quebrar tabus. No que concerne a esse tipo de linguagem, pode-se perceber que as escolhas efeituadas durante o processo tradutório são heterogêneas: substantivos que se referem a órgãos sexuais, verbos que expressam o ato e objetos utilizados durante tais práticas são traduzidos por meio de equivalentes, eufemismos e, às vezes, explicitações. Se por um lado essas decisões se traduzem numa renovada tentativa de elevar o registro linguístico, por outro nota-se uma manipulação da tradução em contextos específicos. Por exemplo, omissões e eufemismos aparecem em vários excertos em que são narradas experiências homossexuais da protagonista ou que envolvem pessoas homossexuais, como se pode observar nos trechos que seguem:

[…] há muito tempo [as mulheres] se livraram das culpas por haverem transado com amiguinhas na infância […]

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 160).

[…] da molto tempo si sono liberate dalla colpa di aver avuto tresche con amichette durante l’infanzia […]

(RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 139).

Ela me chamou de meu amor, meu amor, minha tesão, minha dona, minha ídola, meu tudo, minha vida e, ai como eu a chupei, como chupei tudo dela, até que ela, falando as coisas mais sublimes que podem ser ouvidas, gozou como uma loba divina uivando […]

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 138).

Mi disse amore mio, [Ø], mi arrapi, mia signora, mia dea, mio tutto, [Ø], fino a quando lei, dicendo le cose più sublimi che possano essere intese, godette come una lupa divina ululando [...]

(RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 120).

[…] mas ele me emprestava um nome masculino e quase sempre me pedia para usar uns dildos especiais, umas picas de borracha deste tamanho […]

(RIBEIRO, 1999RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p., p. 112).

[…] ma lui mi chiamava con un nome maschile e mi chiedeva quasi sempre di usare dei gingilli speciali, dei piselli di gomma enormi […]

(RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., p. 98).

No primeiro trecho, por exemplo, a expressão italiana “avere una tresca” não implica o ato sexual, resultando numa eufemização da passagem. Além disso, várias eufemizações e uso de termos obsoletos no texto-fonte estão presentes nas falas da protagonista que descrevem o seu lado mais ligado ao feminino, manipulando a figura de CLB através de uma tentativa de torná-la uma dame de uma outra época, embora ao longo da narração o leitor se dê perfeitamente conta de que a protagonista não se expressa como uma senhora aristocrática poderia se expressar aos setenta anos. Um exemplo significativo é a tradução de camisinha, que é sempre traduzido “guanto”, mantendo a antiga expressão italiana “guanto di Venere”.

O exotismo e o erotismo são características caras ao público-leitor italiano que lê os autores brasileiros, fato demonstrado pelo fato de Jorge Amado ser o autor mais traduzido na Itália. Se o exotismo não é tão presente no texto de João Ubaldo Ribeiro como o poderia ser num romance do seu conterrâneo, o erotismo, ao contrário, é central na obra. Nos paratextos essas características são bem aproveitadas para chamar a atenção do leitor: a capa apresenta uma boca vermelha, um olhar lânguido e a frase “Sob o Equador o pecado não existe”. Esta não é uma citação do autor, mas lembra o ditado “Não existe pecado ao sul do Equador”, mencionada por Sérgio Buarque da Holanda (1995) em Raízes do Brasil, e que se tornou o título de uma música composta por Chico Buarque e Ruy Guerra em 1973. Na contracapa a frase é reiterada: “Impudico e provocatore, il grande maestro della letteratura brasiliana ha scritto un libro senza censure, provando che sotto l’Equatore il peccato non esiste...” (RIBEIRO, 2011RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati. Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p., IV).

Em suma, embora não se possa delinear um conjunto homogêneo de escolhas tradutórias, o texto-alvo possui uma linguagem mais aceitável para os leitores do sistema-alvo, apresentando mais um caso em que sistemas literários centrais tendem a produzir traduções mais aceitáveis ou domesticadoras, com a consequente perda de uma série de marcas da alteridade que poderiam contribuir para o enriquecimento do sistema-alvo.

  • 1
    Segundo o arquivo online WorldCat, as traduções do português realizadas por Cinzia Buffa são as seguintes (entre parênteses são indicados os títulos das traduções e o ano de publicação na Itália): A casa dos budas ditosos de João Ubaldo Ribeiro (Lussuria, publicado em 2006 e 2011), Dois rios (2011) e A chave de casa (2007) de Tatiana Salem Levy (Due fiumi, 2013; La chiave di casa; 2011), Porque eu sou gorda, mamãe? (2006) e Duas iguais (1998) de Cíntia Moscovich (Mamma, perché sono grassa? 2009; Due uguali, 2011), A vida sexual da mulher feia (2005) e Louca por homem: histórias de uma doente de amor (2007) de Claudia Tajes (La vita sessuale della donna brutta, 2008, Donne che amano gli uomini, 2010), Divã (2002) e Tudo que eu queria te dizer (2007) de Martha Medeiros (Lettino, 2007; Tutto quello che volevo dirti, 2008), Bellini e os espíritos (2005) de Tony Bellotto (Bellini e gli spiriti, 2009), O dia Mastroianni (2007) de João Paulo Cuenca (Una giornata Mastroianni, 2008), Rio das Flores (2007) de Miguel Sousa Tavares (Fiume dei fiori, 2017), O tempo dos amores perfeitos (2006) de Tiago Rebelo (Il tempo degli amori perfetti, 2010), Amados gatos: pequenas histórias de gatos célebres (2005) de José Jorge Letria (Amati gatti: racconti sulla vita di gatti famosi e dei loro illustri padroni, 2008), A voz dos deuses (1984) de João Aguiar (Viriato: nemico di Roma, 2007), Amália: uma biografia (1987) de Vitor Pavão dos Santos (Amália: una biografia, 2006).

Referências

  • BERND, Zilá; UTÉZA, Francis (Orgs.). O caminho do meio: uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001.
  • BATELLA, Juva. Ubaldo: ficção, confissão, disfarce e retrato I edição. Rio de Janeiro: Vieira & Lent. 2016, p. 264 - 317.
  • RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999. 163 p.
  • RIBEIRO, João Ubaldo. Lussuria. La casa dei Budda Beati Tradução de Cinzia Buffa. Milano: BEAT Biblioteca Editori Associati di Tascabili, 2011. 141 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2017
  • Aceito
    03 Fev 2018
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