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BAUDELAIRE 150 ANOS

Baudelaire se despede da vida em pleno verão parisiense, por volta das 11h do dia 31 de agosto de 1867, um sábado. O funeral, que ocorreria dois dias depois, numa segunda-feira, reuniria os poucos amigos que tomaram conhecimento e puderam chegar a tempo ao cemitério de Montparnasse. Ali, começa a glória do poeta, segundo as palavras proferidas in loco por Charles Asselineau. Ali, se inicia uma nova fase na história das literaturas francesa e ocidental, conforme observa o amigo Théodore de Banville, também sobre o túmulo do poeta. “Homme charnière” do século XIX, nos termos de Jean Pierre Bertrand e Pascal Durant, Baudelaire é o ponto de convergência das principais tendências da poesia de seu tempo e a partir do qual se desenvolvem as principais linhas de força da poesia moderna. Sua “razão de estado”, como afirmaria décadas mais tarde Paul Valéry, era justamente fazer dessa convergência algo novo, “ser um grande poeta, mas não ser nem Lamartine, nem Hugo, nem Musset”. Mergulhar no seu tempo para dele extrair o novo – “Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe? / Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!”. Esse amor do presente, da vida presente, foi celebrado por Banville, naquele 2 de setembro em Montparnasse, nestas palavras que serviriam perfeitamente para definir a própria arte moderna, que Baudelaire ajudara a fundar:

Continuando, mesmo que inovador, a tradição antiga, Victor Hugo sempre transfigurou o homem e a natureza à imagem de certo ideal desejado; ao contrário, Baudelaire, como Balzac, como Daumier, como Eugène Delacroix, aceitou o homem moderno em sua totalidade, com suas falhas, sua graça doentia, suas aspirações impotentes, seus triunfos mesclados de tantos desânimos e tantas lágrimas!1 1 Tradução inédita. Publicado originalmente no jornal L’Étendard em 04 de setembro de 1867.

O amor de seu tempo e de suas contradições – lembremos, aqui, o quanto estas são importantes para a arte de Baudelaire, que reivindicara certa vez “o direito de se contradizer” – fizeram daquele homem que perecia o protótipo eterno do poeta da modernidade. “Sim, ele foi o homem, foi o artista moderno com toda sua energia e toda sua vivificante tristeza”, ressaltaria Banville naquele 2 de setembro. Compagnon usa a expressão que define bem o poeta e sua obra, “Baudelaire l’irréductible” (COMPAGNON, 2014COMPAGNON, Antoine. Baudelaire l’irréductible. Paris: Flammarion, 2014., p. 7).

Baudelaire estava mesmo destinado a “ultrapassar as fronteiras da nação”, como já havia observado Valéry, em conferência de 1924. Pensemos, por exemplo, no impacto de sua produção literária e crítica sobre o desenvolvimento da modernidade artística na Itália, na Espanha, em Portugal, nos Estados Unidos e na América Latina. Pensemos em seus leitores ilustres, fora da França: Cesário Verde, Nietzsche, Stefan George, Gabriele D’Annunzio, T.S. Eliot, António Machado, Giuseppe Ungaretti, Mário de Sá-Carneiro, Octavio Paz..., a lista é bastante longa.

No Brasil, mesmo no tempo dos imitadores realistas da geração de 1870, condenados por Machado de Assis pela crueza do estilo e pela ingenuidade da leitura que fizeram de Baudelaire, ou no tempo em que prevaleceram, sob o influxo de Valéry, leituras de cunho mais formalista ou esteticistas, como as de Félix Pacheco e aquelas que aparecem aqui e acolá em torno da Geração de 1945, a influência do poeta francês sempre esteve ligada, de uma forma ou de outra, a um esforço de atualização da nossa tradição literária, em outras palavras, à busca pelo contato com o presente, com o contemporâneo, fosse ele entendido pelo viés do contato com a vida ou pelo viés da renovação da forma.

Não podemos esquecer, ainda, o papel essencial que as traduções de Baudelaire entre nós cumpriram e ainda cumprem nesse esforço de apreensão da modernidade – entendida como fenômeno estético e político – proposta pelo poeta. Traduzir é, num certo sentido, atualizar. Na passagem para outra língua, “aclimatado” ou preservado, Baudelaire se deixa apropriar ao mesmo tempo que se apropria de um novo espaço e de um novo tempo. Pensar e traduzir Baudelaire no Brasil é, de alguma maneira, colocar à prova a lição do próprio mestre de se entregar ao presente e suas contradições – o presente do autor, o presente da obra, o presente do leitor? Uma lição estética, e sobretudo política, que cabe aos poetas – e críticos e tradutores – interpretar infinitamente a partir daquela segunda-feira, 2 de setembro de 1867.

O presente número especial, Baudelaire 150 anos, pretende, em homenagem aos 150 anos da morte do poeta (1867-2017), justamente se debruçar sobre a atualidade de Baudelaire, com trabalhos que tecem reflexões sobre a tradução de sua obra, tanto sua poesia quanto os poemas em prosa ou ainda os escritos íntimos e sua correspondência.

Assim, esse número não poderia deixar de começar com um dos maiores especialistas do poeta das Flores do mal, André Guyaux, professor da universidade Paris-Sorbonne, editor, com Antoine Compagnon, da mais importante revista dedicada exclusivamente a estudos sobre a obra baudelairiana no mundo, L’Année Baudelaire, fundada por Claude Pichois em 1995. O seu ensaio, “Atualidade de Baudelaire”, apresentado aqui em francês, e em tradução para o português brasileiro, busca elaborar uma reflexão concisa e intensa sobre os motivos da atualidade do poeta. Após esse texto de abertura, a primeira seção disponibiliza ao leitor seis artigos de estudiosos de sua obra.

Em “Retraduções de As flores do mal uma viagem entre Brasil e Portugal”, o especialista em tradução de poesia (Mallarmé, Apollinaire, Valéry), poeta, cancioneiro, e professor da USP, Álvaro Faleiros compara traduções brasileiras e portuguesas de As flores do mal buscando analisar as práticas tradutórias dos dois lados do continente. No artigo “Rumo à prosa: aspectos de um novo projeto de tradução dos Petits poèmes en prose, de Baudelaire”, Eduardo Veras, professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, desvenda as principais diretrizes que guiaram o seu trabalho em uma nova tradução dos poemas em prosa do poeta parisiense, realizada em parceria com Isadora Petry. O professor Gilles Jean Abes, do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (Letras-Francês) e do programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC, em “Uma nova leitura da vida de Charles Baudelaire: uma recepção biográfica a partir da tradução de sua correspondência”, questiona a imagem do poeta no Brasil a partir de uma atenta leitura (e tradução) de sua correspondência. Marcelo Tápia, diretor da Casa Guilherme de Almeida, na sua pesquisa “Amantes da beleza imperfeita”, busca demonstrar, por meio da releitura dos apontamentos do poeta Guilherme de Almeida, ilustre tradutor dos poemas de Baudelaire, o persistente potencial iluminador de suas reflexões sobre características das Flores do mal e a tarefa do traduzir como um diálogo convergente entre poéticas e idiomas distintos. Ricardo Meirelles, professor palestrante do Centro Universitário Anhanguera e professor da FECAF - Faculdade Capital Federal, elabora um estudo sobre a história das traduções da poesia baudelairiana no Brasil, assim como a sua recepção e influência na literatura brasileira, no artigo “Les fleurs du mal antes de As flores do mal: os primeiríssimos baudelairianos.” Por fim, o sexto trabalho de autoria do doutorando Thiago Mattos, do Programa de Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês (USP), ocupa-se do caso da (não) ordenação de Mon cœur mis à nu, procurando mostrar como a estratégia do comentário-ensaio como tradução lhe permitiu estabelecer uma relação com Mon cœur mis à nu que nem recorre a soluções apressadas (ordenação randômica digital, edição em folhas avulsas etc.) nem se limita a uma inviável restituição linear e cronológica dos manuscritos.

Na sequência, esse número apresenta duas traduções inéditas, para o português brasileiro, dos famosos elogios fúnebres de Théodore de Banville e Charles Asselineau, lidos no funeral do poeta e publicados no jornal L’Étendard em 04 de setembro de 1867. Caroline Aupick, mãe do poeta, autorizou os dois fiéis amigos de Baudelaire a dirigirem a publicação póstuma das Oeuvres complètes (o volume II sendo publicando em 1868). Asselineau, notadamente, é o autor de sua primeira biografia, publicada em 1869 na editora Alphonse Lemerre: Charles Baudelaire, sa vie et son œuvre. Os dois elogios são leitura obrigatória para quem pretende melhor entender a importância da obra de Baudelaire, logo após sua morte, e onde era situada a singularidade de sua poesia, o famoso “frisson nouveau”, entre tantos poetas importantes como Victor Hugo, Lamartine ou ainda Chateaubriand, do ponto de vista de alguns de seus contemporâneos.

Buscamos, à nossa maneira, cinzelar um elogio à poesia das “Flores doentias”, com a tradução intersemiótica para história em quadrinhos (HQ) de dois de seus mais famosos poemas, “Uma carniça” e “A uma passante”. As ilustrações ficaram a cargo de Paula Watzko, com tradução e roteiro de Francisca Y. M. Silveira e diagramação de Thiago B. H. Silveira.

Finalmente, o número especial disponibiliza uma entrevista com o grande tradutor e professor aposentado da USP, Mário Laranjeira, autor de inúmeras e valiosas traduções incluindo o Cândido de Voltaire, Madame Bovary de Flaubert, poemas de Yves Bonnefoy, traduções de poetas renascentistas ou contemporâneos, para citar apenas alguns trabalhos. Mas, sobretudo, Laranjeira é o autor da última tradução na íntegra de As flores do mal, publicada em 2011. É também aqui uma homenagem a todos os pesquisadores, professores e tradutores da obra de Charles Baudelaire, de literatura francesa e de língua francesa, assim como de literatura de modo geral.

O desenho da capa é um clin d’oeil à atualidade de Baudelaire, representado por Bernardo A. Beledeli Perin com cabelos verdes. Os cabelos tingidos estão na moda, como já foi o caso no final dos anos 70 e início de 80 do século passado com o movimento Punk. No entanto, o poeta já teria, em pleno século XIX, conforme o testemunho do também autor, membro da Academia Francesa de Letras, Maxime Du Camp, aparecido à porta de sua casa em Neuilly, num domingo, com os cabelos tingidos de verde. Sob o olhar silencioso de Du Camp, Baudelaire se olhava no espelho, passava as mãos nos cabelos, aguardando uma reação do anfitrião. Como este permanecia propositalmente em silêncio, o poeta perguntou: “Não percebe nada de anormal em mim?” Esse testemunho, verídico ou não, se encontra no segundo volume do livro de memórias de Du Camp, intitulado Souvenirs littéraires, publicado pela editora L’Harmattan (1993, p. 63). Nada como uma anedota como essa para ilustrar, com um sorriso nos lábios, a atualidade de Baudelaire e o impacto de sua poesia na época, recebida com escândalo e admiração, bem ao seu gosto de provocar o espanto, sorte de estética do putsch, como dizia Benjamin.

Não poderíamos deixar de agradecer o apoio da profa. Dra. Andréia Guerini, na qualidade de editora da revista Cadernos de Tradução do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina, e de toda sua equipe, assim como os que colaboraram com esse número muito especial com pesquisas de significativa importância para os estudos baudelairianos no Brasil.

Desejamos a todas e todos uma excelente leitura.

Os organizadores

  • 1
    Tradução inédita. Publicado originalmente no jornal L’Étendard em 04 de setembro de 1867.

Referência

  • COMPAGNON, Antoine. Baudelaire l’irréductible. Paris: Flammarion, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Aug-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2018
  • Aceito
    20 Out 2018
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