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ATUALIDADE DE BAUDELAIRE

Resumo

Trata-se, neste ensaio, de abordar a atualidade de Baudelaire a partir de sua percepção das noções de“modernidade”, “progresso” e do “mal”. Com efeito, o poeta estabelece, em sua definição de modernidade, uma dialética na qual triunfaria a eternidade na arte, a eternidade da arte. Ora, muitas vezes recorda-se apenas desta tese fundadora da parte relativa, que diz respeito ao transitório, ao fugidio. A ideia que Baudelaire tem do progresso é indissociável do sentido que dá ao mal, um progresso que é individual, que passa pela “diminuição do pecado original”, não pelo progresso material, este falso progresso celebrado em sua época (e atualmente).

Palavras-chave
Baudelaire; Atualidade; Modernidade; Progresso; Mal

Resumé

Il s’agit, dans cet essai, d’aborder l’actualité de Baudelaire à partir de sa perception des notions de “modernité”, de “ progrès “ et de “ mal “. Le poète engage en effet, dans sa définition de modernité, une dialectique où triompherait l’éternité dans l’art, l’éternité de l’art. Or, on retient trop souvent de cette thèse fondatrice la partie relative, qui a trait au transitoire, au fugitif. L’idée que Baudelaire a du progrès est indissociable de son sens du mal, un progrès qui est individuel passant par la “diminution du péché originel”, et non pas par le progrès matériel, ce faux progrès célébré à son époque (et de nos jours).

Mots-clés
Baudelaire; actualité; modernité; progrès; mal

Abstract

In this essay, it is a question of tackling Baudelaire’s topicality from his perception of notions of “modernity”, “progress” and “evil”. Indeed, in his definition of modernity, the poet engages in a dialectic in which eternity triumphs in art, the eternity of art. Now, too often this founding argument is retained in the relative part, which relates to the transient, to the fugitive. The idea that Baudelaire has of progress is inseparable from his sense of evil, a progress which is individual through the “diminution of original sin”, and not by material progress, that false progress celebrated in his time (and our days).

Keywords
Baudelaire; topicality; modernity; progress; evil

Baudelaire é inatual, para retomar o adjetivo de Nietzsche. E questionar sua atualidade pode parecer absurdo. Cairíamos na tentação de responder à pergunta brandindo As Flores do Mal e apontando que a atualidade do mal não fraqueja, que prospera indefinidamente. Essa perpetuação do mal é, além disso, um dos eixos do pensamento de Baudelaire e da permanência do pecado numa imagem que o obceca e que atravessa sua poesia. O espetáculo do “imortal pecado” torna-se até mesmo “entediante”: é o argumento da Viagem (BAUDELAIRE, 1975______. Ceuvres complètes. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1975. v. 1. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 132).

Nada envelheceu na poesia de Baudelaire, dizia Walter Benjamin. Nada na obra de Baudelaire “envelheceu ainda”, declarou precisamente, com uma espécie de cautela, como se fosse uma questão de esperar pelo momento em que o edifício começaria a rachar. Desde aquela declaração forte, de fato, o trabalho de Baudelaire não ganhou rugas. Alguns historiadores da arte se permitem às vezes contestar uma opinião, que seria muito severa, ou muito indulgente, sobre esse ou aquele pintor. E Rimbaud julgou “mesquinha” a “forma” do autor das Flores do Mal. Mas essas contestações incidentes passam como escuma sobre o mármore.

Desde as últimas emoções artísticas de Baudelaire, aquelas que teve perante as primeiras tentativas de Manet e as igrejas jesuíticas das cidades belgas, tantas revoluções ocorreram na arte, no último terço do século XIX e durante todo o Século XX, e tantas individualidades fortes declaram que se poderia julgar ultrapassado o pensamento que o autor do Pintor da vida moderna expressava sobre a “modernidade”:

A modernidade, é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável. […] Esse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes, não se pode menosprezá-lo ou dispensá-lo. Ao suprimi-lo, recai-se forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como aquela da única mulher antes do primeiro pecado

(BAUDELAIRE, 1976______. Ceuvres complètes. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1976. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 695)

Retemos com frequência dessa tese fundadora a parte relativa, que diz respeito ao transitório, ao fugidio, ao ar do tempo. E esquecemos que Baudelaire não apartava a arte moderna da eternidade, que engajava uma dialética na qual triunfava a eternidade na arte, a eternidade da arte.

Dois sentimentos percorrem a reflexão de Baudelaire no final de sua vida, sobre o que está nascendo na arte. Um sentimento eufórico, que dá pleno sentido ao seu ensaio sobre Constantin Guys, O pintor da vida moderna (BAUDELAIRE, 1976______. Ceuvres complètes. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1976. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), pp. 682-724). É um momento – aliás, um momento prolongado – em que Baudelaire vai em direção à “modernidade”. E, inversamente, uma sensação de declínio. Familiarizado com os Salões, mas também com o museu do Louvre, Baudelaire pôde observar na evolução da pintura o que nomeia, em uma carta a Manet, de 11 de maio de 1865, a “decrepitude” da arte contemporânea (BAUDELAIRE, 1973b______. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973b. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 497). Esses dois sentimentos nele se mesclam e há nesse desassossego uma premonição das perturbações estéticas iminentes: as primeiras exibições impressionistas ocorrerão alguns anos após sua morte.

Baudelaire analisa a modernidade na arte e, ao mesmo tempo, a arte moderna lhe inspira um temor premonitório, marcado de fatalismo. Nenhum pintor lhe fará provar a emoção que teve, adolescente, perante Delacroix. O grande pintor romântico ainda poderia reencarnar Rubens. Ele é o último dos “faróis”, isto é, o último dos grandes artistas que iluminam o mundo, no oceano das eras. Depois dele, o romantismo, que Baudelaire prefere ver na pintura como na literatura, está se esgotando. A emoção diante de Delacroix é como o último tremor do grande romantismo, o romantismo da lenda, dos horizontes e das cores.

Manet, por sua parte, não se parece com ninguém. E Baudelaire o percebeu muito bem, quando tenta dissuadir Théophile Thoré de uma crítica que faria do jovem pintor promissor um imitador da tradição pictórica espanhola: Thoré havia falado imprudentemente de pastiche. Baudelaire lhe responde, em 7 de maio de 1864: “A palavra pastiche não é correta. O Sr. Manet nunca viu um Goya, o Sr. Manet nunca viu um Greco” (BAUDELAIRE, 1973b______. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973b. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 386). Ele lembra a Théophile Thoré que na época em que se podia visitar a coleção de pintura espanhola de Louis-Philippe, Manet “era uma criança”, e que a coleção deixou a França em 1850. Baudelaire, que conhece bem Manet, acrescenta que o pintor, de quem foi dito muitas vezes que pastichava Goya, agora buscava “ver um Goya”, como para verificar que pode confiar nele mesmo.

Uma das forças do pensamento de Baudelaire sobre a arte é que recusa as filiações, as escolas, as influências para dar lugar às afinidades e às coincidências. Existe entre Manet e Goya “coincidências misteriosas”, relações secretas, como existem algumas, e é a confissão que faz a Théophile Thoré, entre Edgar Poe e ele. Essa é a sua maneira de manter a ideia de que o grande artista é necessariamente único. É o que explica nas primeiras páginas de seu artigo sobre a Exposição Universal de 1855:

Na ordem poética e artística, um revelador raramente tem um precursor. Qualquer florescência é espontânea, individual. Signorelli era realmente o gerador de Michelangelo? Será que Perugino continha Rafael? O artista não é responsável senão por si mesmo. Promete aos séculos futuros apenas suas próprias obras. Afiança apenas a si mesmo. Morre sem filhos. Ele foi seu rei, seu sacerdote e seu Deus

(BAUDELAIRE, 1976______. Ceuvres complètes. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1976. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 581).

Aqui reconhecemos muito bem Baudelaire, seu gosto pela unicidade e sua maneira de jamais pensar a arte pelo viés da economia do ato criador. Prefere separar, distinguir, isolar mesmo. Este é o significado do que escreve para sua mãe: “Eu não amo nada tanto quanto estar sozinho”, quando anunciam-lhe que a juventude poética se reclama dele:

Tem talento nesses jovens; mais quanta loucura! quantos exageros e fatuidade de juventude! Há alguns anos, surpreendia, aqui e acolá, imitações e tendências que me alarmavam. Não sei nada mais comprometedor do que os imitadores e não amo nada tanto quanto estar sozinho

(BAUDELAIRE, 1973b______. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973b. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 625).

Baudelaire havia começado a escrever: “Não sei nada mais perigoso do que os imitadores”, antes de corrigir “perigoso” por “comprometedor”, como se ele próprio tivesse medo de exagerar. Mas sua religião está feita. O artista ou o poeta não tem descendentes. E se quisermos ver uma ascendência, é um trompe-l’oeil ou uma facilidade. A história literária, como a história da arte, gosta de genealogias. Como gosta de escolas. E Baudelaire, na carta a sua mãe de 5 de março de 1866, concluía num tom de resignação cética: “Eu não amo nada tanto quanto estar sozinho. Mas isso não é possível; e parece que a escola Baudelaire existe” (BAUDELAIRE, 1973b______. Correspondance. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973b. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 625).

Baudelaire enxerga muito bem a história, e ninguém melhor do que ele respira os odores sui generis de seu tempo: ele o faz como filósofo, sonhador, flâneur. Mas rejeita a ideia de uma implicação, na arte, de um princípio que lhe é estranho, como a pedagogia, o filosofismo ou o progressismo. A arte pode ter objetos, pode estender seu território, até incluir a “vida moderna”, mas não tem outro mecanismo senão a si mesma. É o que chamam, na época, a “autonomia da arte”, à qual Baudelaire dá pleno significado. Em uma carta de esclarecimento, Victor Hugo, que é seu antagonista neste domínio, responde: “Eu nunca disse a Arte pela Arte, sempre disse: a Arte pelo Progresso”. A carta é de 6 de outubro de 1859. É destinada a prefaciar o ensaio de Baudelaire sobre Gautier – Gautier, que foi eleito o campeão da “Arte pela Arte”. Baudelaire, em maio de 1855, em seu relato da Exposição Universal, estava atacando o progresso, aquele “obscuro fanal” (BAUDELAIRE, 1976______. Ceuvres complètes. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1976. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 580), que lança sua escuridão sobre a consciência da humanidade e a faz esquecer sua marca original.

A ideia que Baudelaire tem do progresso é inseparável de seu sentido do mal. Um progresso é admissível aos seus olhos, um progresso que seria o da civilização e que se manifestaria individualmente: é “a diminuição dos traços do pecado original”, como escreve em um fragmento do Meu coração desnudado (BAUDELAIRE, 1975______. Ceuvres complètes. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1975. v. 1. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.), p. 697). O outro progresso, material – a iluminação a gás e as locomotivas – o progresso que as forças políticas celebram num consenso eloquente – tanto Napoleão III como o republicano Maxime Du Camp –, este progresso é um falso progresso, que toma a presa pela sombra.

A atualidade de Baudelaire se sustenta nessas ideias fortes. Nada em seu trabalho ainda envelheceu, dizia Benjamin. Em todo caso, o refutador de sua ideia de modernidade e de sua ideia de progresso ainda não nasceu.

Références

  • BAUDELAIRE, Charles. Correspondance Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973a. v. 1. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)
  • ______. Correspondance Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973b. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)
  • ______. Ceuvres complètes Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1975. v. 1. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)
  • ______. Ceuvres complètes Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1976. v. 2. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Aug-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2018
  • Aceito
    10 Out 2018
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