Acessibilidade / Reportar erro

MÁRIO LARANJEIRA: TRAJETÓRIA DE UM TRADUTOR

Mário Laranjeira, que é uma das maiores referências brasileiras atualmente na área da tradução, teve na verdade uma trajetória bastante atípica. Nasceu em 1929, em plena crise econômica, numa família de classe média baixa, e aos nove ou dez anos de idade já precisou trabalhar para ajudar com as despesas da casa. Tal contexto teria certamente levado o futuro professor e pesquisador da USP a concluir apenas o primário, como fizeram seus irmãos, não fosse um encontro fortuito e seu gosto pelo estudo. De fato, em 1942, um Irmão Marista (membro da Congregação dos Irmãos Maristas ou “Petits frères de Marie”, fundada na França pelo Padre Marcelin Joseph Benoît Champagnat em 1817, que forma irmãos religiosos leigos destinados ao ensino) passava pela cidade para recrutar meninos que desejassem seguir a carreira de professor religioso. Com esse fato providencial, Mário Laranjeira viu a possibilidade de continuar seus estudos e assim o fez. Em dezembro de 1951, não renovou os votos, retirou-se da Congregação onde havia começado a fazer traduções para uso interno e começou a dar aulas de português, latim, francês e geografia. Após uma inspeção, sem diploma para dar aula, sua manutenção como professor foi condicionada à inscrição numa universidade. Foi assim que cursou a graduação e pós-graduação na USP, onde foi também assistente do professor Claude-Henri Frèches. Mário Laranjeira se efetivou num cargo na USP apenas em 1975, aos 46 anos de idade, de onde se aposentou em 1995.

Como tradutor, sua contribuição é bastante significativa e, fato interessante, começou a publicar seus trabalhos em livro aos aproximadamente 50 anos de idade. Uma de suas primeiras traduções foi Geografia rural, de Pierre George, publicada pela DIFEL em 1982. Verteu para o português, tanto em prosa quanto em poesia, autores como Baudelaire, Gide, Apollinaire, Flaubert, Voltaire, La Fontaine, Perrault, Gaston Leroux, Yves Bonnefoy ou ainda Vauvenargues, Pascal, Barthes e Georges Duby, além de ter elaborado importantes antologias como Poetas de França Hoje (1996) e Poetas franceses da Renascença (2004). Seu trabalho foi reconhecido com dois prêmios Jabuti por suas traduções de Poetas de França hoje e Madame Bovary.

Como pesquisador e professor, publicou o livro Poética da tradução em 1993, além de ter formado uma geração de importantes pesquisadores na área dos Estudos da Tradução. De fato, é um dos poucos tradutores poéticos brasileiros a produzir uma teoria tradutória que auxilie tanto no processo quanto na crítica de traduções, baseada no conceito de significância, do crítico literário francês Michael Riffaterre. A significância é um propensão do texto a enfatizar o pólo do significante (não o do significado): resulta disso um afrouxamento da arbitrariedade do signo – que se torna, portanto, mais motivado –, e a abertura do texto para múltiplas leituras, uma vez que a relação entre os significantes foi dinamizada de modo não-linear e não necessariamente sintático ou denotativo. Aliada a este conceito, a teoria de Laranjeira ainda busca analisar as agramaticalidades dos textos poéticos – sendo estas os desvios conscientes que o poema faz das normas vigentes da língua em questão. A principal consequência, para o ato tradutório, é que o tradutor poético deve se ater não ao sentido do poema, mas à sua significância, a seu modo de produzir aberturas para o sentido. Assim, Laranjeira consegue fazer uma crítica às traduções feitas por outros tradutores (como, por exemplo, fez com as traduções de Silviano Santiago da obra de Jacques Prévert), e propor suas próprias soluções.

ENTREVISTA COM MÁRIO LARANJEIRA1 1 LARANJEIRA, Mário. Depoimento [junho de 2017]. Entrevistadores: Álvaro Faleiros, Gilles Jean Abes. São Paulo, 2017. Entrevista concedida para o número especial Baudelaire 150 anos (Cadernos de Tradução PGET/UFSC) a Álvaro Faleiros, Andréa Cesco, Fabiano Seixas e Gilles Jean Abes.

Cadernos de Tradução (CT): Como você começou a traduzir?

Mário Laranjeira (ML): Como eu comecei a traduzir? Bom, eu fiz o ginásio e o colegial como interno nos irmãos Maristas. Nessa época, pediram que eu traduzisse uma série de textos franceses, embora eu não tivesse feito nem a universidade ainda, nem curso de tradução nenhum – aliás, curso de tradução nunca fiz. Foi quando eu comecei a traduzir, principalmente textos religiosos, mas era para uso interno. Isso foi lá pelo anos 50 e pouco; em 52 eu sai dos Maristas, então foi no fim dos anos 40, começo dos anos 50. Foi meu início com tradução; depois, comecei a trabalhar como professor de francês; na verdade, eu era professor de três coisas: de português, latim e francês. Era no tempo que tinha latim no ginásio, o francês também. Depois, na época da professora Marina Cintra, inspetora seccional da nossa região, ela andou mandando inspetores para verificar a situação dos professores nas escolas. E vieram lá duas professoras, eu lecionava nessa época no GITEMA, Ginásio Tereza Martin. (Sabe quem é Tereza Martin? Tereza Martin é a Santa Terezinha do Menino Jesus, o nome de família dela era Thérèse-Martin, e o dono da escola era devoto de Santa Terezinha, e botou no colégio dele o nome de Tereza Martin.) Então lá na época, como disse, só tinha ginásio e colégio, não tinha faculdade. Eu morava lá no Largo da Matriz da Igreja de Nossa Senhora do Ó, que é o topo do bairro da Freguesia do Ó. E esse colégio, Tereza Martin, ficava a uns 50, 100 metros de onde eu morava, então para mim era muito cômodo. Aquela inspetora mandou as outras inspetoras verificarem as aulas que eu estava dando, porque eu não tinha documentação nenhuma, eu só tinha colegial; aí, durante as minhas aulas de francês, vinham duas inspetoras, sentavam lá no fundo, e ficavam assistindo. E nas aulas de latim e de português também vinham duas, que também ficavam sentadinhas lá atrás, assistindo as minhas aulas. Tem um detalhe: na época, tinha uma outra professora que dava as mesmas aulas que as minhas, de português, latim ou francês, no outro período, e essa era formada em Letras Neolatinas pela Universidade Mackenzie. Então, para ter um termo de comparação, elas iam também assistir as dessa outra professora. Foi triste durante um semestre; no fim, as inspetoras fizeram o relatório para a dona Marina Cintra, e o relatório, entre outras coisas, dizia o seguinte: que eu era um professor excelente, que minhas aulas eram exemplares e, embora eu não fosse formado, e a outra professora fosse, elas recomendaram que dessem as aulas da outra para mim. Eu fiquei muito honrado com a coisa, mas a Marina Cintra, a partir daí, fez uma carta para os diretores da Escola da Freguesia do Ó, dizendo que autorizava que eu continuasse a dar as aulas, desde que eu me matriculasse numa faculdade. Acontece que já era mês de abril, por aí, e eu rodei todas as faculdades de São Paulo, e não tinha uma que tivesse com matrículas abertas, então, eu vi num papel que havia uma faculdade com matrículas abertas em Uberaba. Eu peguei um ônibus e fui para Uberaba, abri minha inscrição, prestei vestibular, entrei, pedi um atestado de que eu estava matriculado na faculdade, peguei outro ônibus, e nunca mais voltei lá. Mas com esse papel me autorizaram a lecionar. No ano seguinte, eu entrei na USP, aí estava tudo regular. Certo? E na USP eu fiz a graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado.

CT: Mário, você começou falando da sua experiência traduzindo para os Maristas. Nesse percurso todo da sua formação, quando é que você começou a traduzir de maneira mais regular?

ML: Eu comecei a traduzir praticamente na minha época de faculdade, enquanto eu era aluno ainda; eu entrei em contato com a Martins Fontes e eles me deram vários livros pra traduzir.

CT: Você lembra qual foi o primeiro livro?

ML: Não sei. Bom, antes disso, eu escrevi um livrinho sobre tradução [Poética da tradução, 1993].

CT: Mas, quando escreveu o livro, você já traduzia?

ML: Sim, já, eu estava começando a traduzir, e ao mesmo tempo eu fiz o livro. Aí ganhei dois prêmios Jabuti com as minhas traduções, um deles foi Poetas de França hoje [LARANJEIRA, 1997LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.], e o outro foi Madame Bovary [FLAUBERT, 2012FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Mário Laranjeira. – São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011.].

CT: Você traduziu Flaubert, um escritor proverbialmente rigoroso com a forma. O trabalho como tradutor de poesia o ajudou de alguma maneira nessa tarefa?

ML: É difícil responder. Eu não acho que Flaubert seja excepcionalmente mais difícil do que os outros. Eu acho que Voltaire, por exemplo, tem coisas tão difíceis quanto, e outros autores que eu traduzi. Mas eu nunca pensei nisso.

CT: Ser tradutor de poesia ajudou de alguma forma?

ML: Eu acho que ser tradutor de poesia é, digamos, a nata de ser tradutor. Você já deve ter visto as minhas traduções de poesia. Eu, além do conteúdo semântico, procuro traduzir ou transpor para o texto traduzido coisas como métrica, rima, tônica. É isso que dificulta, porque não é só traduzir o sentido e tal. Isso seria traduzir prosa, principalmente prosa de comunicação, a prosa literária já é um pouquinho mais complicada. Mas o fato de traduzir poesia, primeiro corresponde a um gosto que eu tenho, eu gosto de poesia, sempre gostei desse moleque. Mas traduzi a poesia porque eu gosto de traduzir poesia, e algumas porque me pediram. Outras, eu fiz por minha conta. Esse aí por exemplo [Poetas de França hoje], eu fiz por minha conta, e depois eu entreguei na editora. Aliás, tem uma coisa interessante: eu tinha um colega francês, que deu aula durante doze anos aqui na USP, e depois voltou para a França, já faleceu, infelizmente; ele levou um exemplar do Poetas de França hoje para a França, e mostrou para o editor dele, e o editor, através dele, me pediu autorização para publicar o Poetas de França hoje na França, sem a tradução, como antologia. Ele disse que nunca tinha visto uma seleção tão bem feita para esse período da literatura francesa. E, sem querer me vangloriar, eu acho que é uma coisa que significa que meu trabalho é um trabalho sério.

CT: Sim, com certeza. Você é um dos poucos tradutores de poesia no Brasil a ter lançado um livro teórico sobre o assunto, e que também atuou como crítico de traduções. Você acredita que a reflexão teórica e o exercício da crítica auxiliam a tradução poética?

ML: Eu acho que uma coisa e outra estão imiscuídas de tal maneira que cada uma auxilia a outra, mas não sei, porque eu sempre fiz as coisas assim. Se não fosse assim, eu não sei como seria.

CT: Sua gama de traduções do francês é bastante ampla, alcançando desde a renascença até os contemporâneos, como Yves Bonnefoy. Quais diferenças você percebe entre a tradução de textos antigos e a tradução de textos contemporâneos?

ML: Eu acho que, em geral, a diferença é a própria natureza do texto original, porque, evidentemente, a língua é um elemento vivo, e está sempre evoluindo. Então, se eu vou trazer um texto do século XX, tudo bem, é da época que eu estou vivendo. Agora, se eu vou traduzir uma coisa do século XVI, por exemplo, não é mais a minha linguagem. Então, a gente tem que levar isso em conta, e ter consciência de que você tem que fazer um ajuste. Quando a gente traduz esses textos, eu acho que têm que evitar duas coisas: primeiro, modernizar demais a linguagem, porque aí não dá mais a impressão de ser do século XVI; segundo, não arcaizar também demais, senão o leitor atual vai ter dificuldade para ler o texto.

CT: Focando agora As flores do mal. Qual foi seu primeiro contato com a poesia de Baudelaire?

ML: Foi lá pelos 12 anos de idade, quando eu estava nos Maristas. O colégio Marista é de uma congregação francesa, e lá a língua oficial da comunicação era o francês, então a gente era obrigado a falar tudo em francês no recreio. Só na quinta-feira e no domingo a gente podia falar português no recreio. Fora dali, tudo francês. Sem contar que, tirando as aulas de português, todas as outras eram dadas em francês. Então, eu tive uma imersão de língua e cultura francesa desde a minha primeira juventude.

CT: Mas se lia Baudelaire nos Maristas?

ML: Li alguma coisa.

CT: Vocês liam escondido? Como é que era?

ML: Não, era expurgado, quer dizer, eles tinham uns textos lá. Porque alguns textos não são condenados. Não são todos, entende?

CT: Você lembra qual poema?

ML: Ah, não lembro. Muito tempo, muito tempo, e pouca memória pra lembrar.

CT: O primeiro poema que eu li dele foi “O albatroz”.

CT: O meu eu acho que foi “Correspondance”.

ML: Eu não lembro qual foi, honestamente.

CT: Como você avalia a importância de As flores do mal na literatura em geral e, mais especificamente, na brasileira?

ML: Eu acho que até comento isso no prefácio, mas a minha ideia é que toda tradução de grande autor estrangeiro enriquece a literatura local, desde que seja uma tradução bem feita. Então, eu acho que enriquece muito, inclusive, você veja que, em uma cultura como a portuguesa (que praticamente começa lá no século XV, XVI, por aí, a mais pesada, sem contar a medieval), a língua portuguesa ficou lá naquele cantinho (como diz o nosso poeta [Olavo Bilac], “Última flor do lácio, inculta e bela”, e eu costumo dizer cada vez mais inculta e menos bela), ela ficou meio isolada do movimento geral da Europa, principalmente França, Itália e Alemanha. Eu acho que a tradução de textos franceses (não falo das minhas, mas de um modo geral, desde as priscas eras) ajudou muito a literatura portuguesa e, em consequência, a brasileira. Aliás, eu acho que você sabe que todo intelectual brasileiro, até o século XIX, lia correntemente francês.

CT: E especificamente sobre As flores do mal, você acha que tem um papel especial, qual seria esse papel?

ML: Na literatura brasileira?

CT: Na literatura brasileira, as traduções.

CT: As traduções dos poemas de As flores do mal certamente influenciaram muito a literatura brasileira.

ML: Sim, lógico. Influenciaram, porque tudo que é novidade, venha ela de fora do país ou seja ela criada no próprio país, influencia todo o conjunto da literatura. E eu acho que as traduções pesam muito nesse balanço.

CT: Inclusive, são muitas as traduções de poemas de As flores do mal, tantos de tradutores que traduziram alguns poemas apenas, como de tradutores que traduziram a obra toda. No seu caso, são poucos, são só quatro traduções na íntegra. Como chegou à ideia de traduzir a principal obra do poeta Charles Baudelaire? Foi um pedido da Martin Claret ou foi um projeto pessoal?

ML: Foi um projeto meu, que submeti à editora, e ela aceitou. Como outros livros que eu publiquei, são ideias minhas que eu submeto. Como essas editoras já fizeram outras publicações de trabalhos meus, elas conhecem mais ou menos o meu tipo de trabalho, geralmente quando eu ofereço alguma coisa, eles aceitam.

CT: Essas traduções de As flores do mal influenciaram a sua tradução de alguma forma? Você chegou a ler essas traduções antes de começar a sua? Ou leu outras? Ou fez outras leituras para fazer a sua?

ML: Não li outras traduções; posso esporadicamente ter lido uma ou outra tradução, mas não sistematicamente para depois fazer a minha. De modo geral, quando eu faço a tradução, como é o caso de As flores do mal, eu não leio, eu evito ler outras traduções que tenham sido feitas para o português. Depois que eu faço, muitas vezes, eu sei mais ou menos quais são os pontos que me deram mais trabalho, quais foram os maiores problemas, aí eu vou procurar em outras traduções qual foi a solução que o outro sujeito deu para aquilo, mas eu não faço isso antes, de medo de ser influenciado.

CT: Você chegou a elaborar algum projeto de tradução? Você já tinha alguma ideia do que você queria fazer com a sua tradução?

ML: Não, não tinha, foi coisa espontânea.

CT: Justamente sobre a forma de traduzir esses poemas, a organização, a metodologia, você começou a traduzir poemas que você preferia, ao acaso, ou foi começar desde o primeiro?

ML: Eu peguei do primeiro verso e fui até o último. E fui também na parte de poemas em prosa.

CT: Você já tinha toda uma leitura crítica antes do Baudelaire, a relevância da obra dele…

ML: É evidente que eu já tinha um certo conhecimento da obra dele, mas dizer que eu fui procurar algo especificamente para fazer a tradução… não.

CT: Você já tinha a sua leitura de As flores do mal. Quais são, na sua opinião, os principais desafios de se traduzir a poesia do Baudelaire? Eu penso particularmente a partir do conceito de significância, que está no seu livro A poética da tradução: quais são esses elementos que compõem essa significância da poesia do Baudelaire?

ML: Isso não é fácil de responder. Eu acho que a poesia do Baudelaire, independentemente de eu tê-la traduzida ou não, é uma das produções poéticas mais importantes do século XIX, da França e, até diria eu, do mundo ocidental. É um livro realmente fora de série. Agora, quando eu vou traduzir, tem duas coisas que eu acho importante. Primeiro é não traduzir com dúvidas, quer dizer, você tem que matar todas as charadas do texto original, de maneira satisfatória. E a segunda coisa é tentar colocar em português um nível de estilo que seja mais ou menos equivalente ao nível no mundo de língua francesa. Eu acho que essas duas coisas são importantes.

CT: E eu penso na linguagem do Baudelaire, que uma das complexidades da linguagem dele é o uso do coloquialismo. Uma certa linguagem coloquial, com uma forma apurada, não é tão simples de conseguir traduzir, porque essa forma limita as escolhas das palavras.

ML: Tem coisas ditas, bastante populares, e existem outras que são eruditíssimas. Tem que combinar essas duas coisas de maneira que não dê alguma coisa chocante; tem que combinar de maneira harmoniosa.

CT: E tentando seguir esses registros, esses níveis de linguagem, eu penso, por exemplo, no emprego da rima imperfeita. Há uma solução interessante para tentar ter um pouco mais de flexibilidade, um pouco mais de liberdade no momento da tradução? Manter sempre as rimas perfeitas?

ML: Bom, vocês têm também que reconhecer a teoria da poesia francesa e a teoria da poesia de língua portuguesa – que não são idênticas; muita coisa é igual, mas tem algumas coisas diferentes. Por exemplo, a poesia francesa tem aquele negócio que se chama l’alternance de rime, que vem desde o século XVI; acho que foi o Clément Marot quem inventou isso. Ele criou esse negócio de alternância das rimas, entre rima masculina e rima feminina. Para ele, a rima masculina é aquela que termina com a sílaba tônica, e a rima feminina é aquela que termina com sílaba átona, ou seja, “e” mudo, com ou sem consoantes. Essa alternância de rima eu nunca segui, porque é uma coisa formal que existe na França, mero formalismo. Me dei ao direito de não respeitar isso, mesmo porque a rima, em cada língua, pode ser julgada diferentemente; particularmente, em francês, só existem palavras oxítonas, só não é oxítona se a última vogal for “e”. Em português, você pode ter oxítona, paroxítona e proparoxítona. Tem um poema por exemplo do Chico Buarque, “Amou daquela vez como se fosse a última…” – chama-se “Construção” –, em que todos os versos terminam em proparoxítona, só os dois últimos que são paroxítonos. Com isso, ele obtém um efeito de suspense, de ansiedade, do trabalhador nos altos andaimes das construções. E isso não pode ser levado para o francês, por uma razão muito simples: o francês não tem proparoxítona. Então, a tradução tem dessas coisas, existe a intradutibilidade linguística, e esse é um dos casos.

CT: Daí o tradutor pode tentar compensar de alguma outra forma.

ML: Pode tentar, mas nunca vai conseguir. Não existe proparoxítona e ponto. Então, você pode tentar conseguir aquele efeito da proparoxítona, de insegurança, por outros meios – tentar, agora se vai conseguir, eu não sei.

CT: Esse emprego da rima imperfeita é uma forma de obter certa liberdade em relação a uma convenção da forma, você consegue então um pouco mais de plasticidade…

ML: A definição do que é uma rima imperfeita varia de autor pra autor, eu acho que a maioria deles considera que a rima imperfeita é aquela que rima só a tônica.

CT: Isso, exatamente.

ML: Mas tem outros que acham que a rima imperfeita é aquela que rima só as consoantes. Eu li isso aí em algum lugar. Eu acho que tem pouca gente que pensa isso.

CT: A definição mais geral é a seguinte: a rima perfeita ocorre quando o segmento rimante coincide perfeitamente, e a rima imperfeita ocorre quando, no segmento rimante, há algum elemento que distoa: pode ser um “s” a mais, pode ser uma variação de uma consoante, pode ser eventualmente a variação de uma vogal.

ML: É, mas, de um modo geral, o pessoal define que a rima imperfeita é aquela que rima a última vogal tônica. O que dá na mesma, no fim.

CT: Tem até uma uma definição interessante lá naquele livro, eu acho que é Teoria do verso [de Rogério Chociay], que ele prefere chamar de rima completa ou incompleta. Quer dizer, incompleta é quando faltam (ou não coincidem exatamente) um ou dois elementos dentro do segmento rimante.

CT: São vários casos que, inclusive você, Álvaro, citou na sua tradução de As flores do mal, como rimas: “transa” com “laranja”, “tantas” com “chamas”, “escarros” com “espaços”. Eu acho que essa escolha acaba dando um pouco mais de liberdade, pelo menos possibilita outras opções de tradução. Uma escolha, inclusive, que você tem tentado explorar nas suas traduções também. Eu acho que é uma opção; pelo menos possibilita outra coisa.

ML: É muito mais difícil fazer rima em português que em francês. Primeiro, porque em português nós temos, a partir da última tônica, mais três sílabas; em francês, não pode ter isso. Portanto, rimar três sílabas é mais difícil do que rimar duas ou uma. Segundo, a rima em português admite umas coisas que a rima francesa não admite, como por exemplo, essa tal de rima imperfeita, você defina como quiser, mas em francês não tem esse negócio. Ou rima ou não rima.

CT: É uma vantagem que temos no português…

ML: É, porque o português é uma língua muito mais próxima do latim. E você sabe que o verso latino não tinha rima – verso latino que eu digo é do latim do tempo do império romano, porque, depois, com o latim eclesiástico, aí tem rima. Rima é uma coisa que, no latim, surgiu na idade média.

CT: Você diria que a sua tradução contribuiu para alterar a recepção da poesia do Baudelaire no Brasil? Principalmente, se pensarmos na influência da versão do Ivan Junqueira, que é tida como muito próxima, seguindo muito de perto a forma do verso, e não tanto a questão da oscilação da linguagem entre o coloquial e o erudito.

ML: Acho que contribuir, contribui. Todas as traduções contribuem de algum jeito, de alguma forma. Mas quando a gente faz, ou pelo menos quando eu faço alguma coisa, eu não penso se está contribuindo ou não. Eu penso simplesmente em levar a poesia estrangeira para uma manifestação em português, com uma roupagem de português, mantendo tanto quanto possível semântica, ritmo, métrica, etc.

CT: Eu acredito que vai contribuir muito com uma mudança na maneira como o Baudelaire é lido, porque são sempre outras interpretações, outros tons que são dados, e realmente as traduções e o resultado final acabam sendo bastante diferentes. O mesmo poema tem diferentes traduções. Isso vai influenciar certamente a recepção do Baudelaire.

ML: Mas quanto a isso de ser diferente, dos versos das traduções serem diferentes, eu acredito que uma boa parte disso também se deve não à pessoa que traduziu, nem ao autor, mas à diversidade das línguas.

CT: Para finalizar, você lembra de alguma tradução que te deu mais trabalho, que foi mais penosa, algum poema talvez, algum autor?

ML: Eu nunca pensei nisso.

CT: Essa edição sua do Baudelaire é uma edição só com os poemas em português. Você acha que isso tem algum reflexo na maneira como a sua tradução é recebida, comparando com a edição, por exemplo, do Ivan Junqueira?

ML: Eu acho que tem pelo seguinte: primeiro, eu tenho alguns livros que eu entreguei o texto da tradução e o texto do original – vários deles, a maioria. Mas, mesmo quando eu faço isso, eu nunca ponho chamada justalinear, tradução justalinear, eu faço décalé [deslocado], ou faço em nota, com o texto principal sendo a tradução – eu estou publicando a tradução, não estou publicando o original. Porque senão, se eu puser justalinear, o cara vai fazer o seguinte: “vamos ver como é em francês… ah, ele traduziu bem… e aqui ele fez um…” – não é para ler assim! Um poema é feito para ler de ponta a ponta; depois você lê a tradução de ponta a ponta. Se, depois, você quiser fazer um confronto detalhado, aí você faz, mas se você fizer isso que eu estou dizendo de ficar comparando, você mata a poeticidade dos dois textos, tanto do original quanto da tradução.

CT: É uma questão muito interessante essa da maneira como se edita. Se a gente pensa, por exemplo, no Romantismo, ou mesmo em um certo Modernismo, os poemas traduzidos estão dentro das próprias obras dos poetas, muitas vezes; é muito comum, em edições espanholas ou de língua espanhola, não se publicar o original junto; no Brasil, desde o Guilherme de Almeida, se desenvolveu um hábito de se fazer uma coisa mais justalinear. Mas alguns dos seus livros são assim.

ML: São.

CT: Esse por exemplo, aqui, o Apollinaire – ou esse mesmo que ganhou o Jabuti, não, esse é deslocado, nesse você já teve um controle maior sobre o modo como ele foi editado. Mas é interessante essa sua colocação sobre a maneira como esse livro aqui é editado… Agora, no caso de As flores do mal, qual é a sua opinião sobre o fato de o livro estar só em português?

ML: Eu não queria isso, eu queria que tivesse em algum lugar – ou em apêndice, ou em rodapé, não justalinear – a tradução e o original, mas a editora disse que era uma edição que não comportava esse tipo de coisa, porque ia aumentar muito o preço de custo, coisas desse tipo.

Transcrição: Radharani Oribka Bejarano (Capes/UFSC)

  • 1
    LARANJEIRA, Mário. Depoimento [junho de 2017]. Entrevistadores: Álvaro Faleiros, Gilles Jean Abes. São Paulo, 2017. Entrevista concedida para o número especial Baudelaire 150 anos (Cadernos de Tradução PGET/UFSC) a Álvaro Faleiros, Andréa Cesco, Fabiano Seixas e Gilles Jean Abes.

Referencias

  • BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal Tradução de Mário Laranjeira. - São Paulo: Martin Claret, 2011.
  • FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Mário Laranjeira. – São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011.
  • LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Aug-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2018
  • Aceito
    14 Out 2018
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br