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Martins, Márcia A.P., Guerini, Andréia (Org.). Palavra de Tradutor: reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, 205 p.

Martins, Márcia A.P.; Guerini, Andréia. Palavra de Tradutor: reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018. 205

A nota das organizadoras é digna de um destaque inicial. Nela, Martins e GueriniMartins, Márcia A.p., Guerini, Andréia (Org.). Palavra de Tradutor: reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros – The translator’s word: reflections on translation by brasilian translators. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, 205 p. afirmam que a finalidade do livro é contribuir para a história da tradução no Brasil, com foco nas teorias, pontuando o fato de que “reflexões produzidas em línguas e culturas não hegemônicas não costumam ser incluídas nas antologias que contemplam teorizações sobre tradução.” (13) Esclarecem que realizaram a coletânea de vários textos de tradutores brasileiros, de gêneros textuais diversos, que compreendem um período de mais de duzentos anos (final do século XVIII até hoje), com reflexões sobre concepções da tradução e do fazer tradutório. Destacam os seguintes critérios: reunir o pensamento de homens e mulheres, dar voz a tradutores não muito conhecidos por seu pensamento teórico, não se ater apenas a paratextos editoriais, observar a diversidade de gêneros textuais, mantendo a ortografia da época em que foram traduzidos. Realçam que a versão bilíngue reflete o desejo de

ampliar e difundir entre a comunidade acadêmica nacional e internacional um conjunto de textos originalmente encontrados em volumes que nem sempre ressaltam a importância teórica desses escritos.

Ao final, dão os créditos devidos aos tradutores, bem como agradecem aos que ajudaram desde a localização dos textos e aos detentores dos direitos autorais.

A introdução, “A metalinguagem de tradutores brasileiros: uma introdução”, é de autoria de Else Vieira. Nela, a autora traça um paralelo entre a tradução de Clarice Lispector e Barbara Heliodora, ambas voltadas para a encenabilidade, associando aos conceitos de Bassnett (o texto deve estar estreitamente ligado à interpretação) e de Newmark (tradução que enfatiza o valor estético do original). Em seguida, comenta a tradução de Millôr Fernandes, sublinhando que realizava traduções e não adaptações, como os comentaristas diziam. Ao tratar de Lobato como tradutor de textos infantis, realça o papel da compreensão e apreensão imediata, classificada, segundo Newmark, de tradução comunicativa. Ao mencionar Haroldo de Campos, diz que ele defende que a autotradução é uma ferramenta para se ler o original, diferentemente de Lispector e João Ubaldo Ribeiro, que consideram ser uma via crucis o retorno ao seu original pela tradução. Ao comentar o trabalho de Paulo Bezerra, depara-se com a problemática da tradução indireta. Sobre Paulo Henriques Britto, faz uma aproximação com Benjamin, no sentido de que, no caso de tradução poética, o estilo tem precedência sobre a semântica. Em relação a Agel de Mello, ressalta a defesa pela estrita fidelidade ao original. Retornando a Campos, afirma que a diluição de hierarquia entre o autor original e o tradutor é explicitada na tradução daquele, em que na capa da obra traduzida aparece apenas seu nome. Sobre Nogueira da Gama, Vieira afirma que ocorre a teorização da tradução técnica, com o papel de disseminar epistemologias. Conclui sua introdução aduzindo que a obra “eleva a contribuições brasileiras ao mesmo patamar de outras antologias publicadas no exterior”.

Do século XVIII tem-se o texto “Discurso do Traductor”, de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, em que ele comenta o auge da língua latina, que por muito tempo ficou conhecida como “a língua dos sábios”, sendo ensinada em escolas de Teologia, Filosofia, Jurisprudência e Medicina. No entanto, assevera que havia um verdadeiro monopólio das Ciências por determinados grupos, razão pela qual a tradução foi uma ferramenta com o fim de facilitar o acesso a todos os indivíduos. Desta forma, diversas nações, com destaque para a França, passaram a traduzir para seus respectivos idiomas as principais obras em todos os gêneros do conhecimento humano. A tradução serviu também para fortalecer a língua francesa, que se tornou um instrumento apropriado para os autores divulgarem suas ideias e descobertas. O francês passou a ser não apenas “a língua dos sábios”, mas também “a das nações polidas”, sendo adotado nos intercâmbios políticos, diplomáticos, mercantis e literários e vindo a ser a língua de muitas cortes da Europa. Gama pontua que a tradução constitui uma das possibilidades de superar o embaraço das diversidades das línguas, sem a qual se vedaria o acesso a tesouros de línguas antigas e modernas e se perderiam imensas riquezas de vários ramos literários. O autor também realça a importância da tradução para a aquisição de conhecimentos e descobertas do estrangeiro, para manter o nível das nações cultas, para espalhar o gosto pelas ciências e para desenvolver “gênios”. Finaliza afirmando que é papel do governo, representado pelo príncipe, fomentar e promover as traduções, elogiando a atitude do soberano a quem estava subordinado.

Do século XIX, a antologia inclui o prólogo da Ilíada, escrito por Odorico Mendes. Instigado pela irmã, após a finalização da tradução de Virgílio, propõe-se a fazer a tradução da obra de Homero, destacando a dificuldade do idioma, do qual não se lembrava muito aos sessenta anos. Depois, informa que consultava dicionários e autores como Dacier, Bignan, Rochefort, e fazia ajustes. A lentidão do trabalho foi outro fator que desmotivava o autor, uma das razões que o fez ir à Pisa para continuar seu trabalho. Nesse cenário, salientou a relevância de se dominar a língua original e a sua, mas, curiosamente, afirma que “se lhe basta saber a do original como um forçoso lhe saber a própria em dobro ou tresdobro.” (88)

Do século XX há fragmentos de cartas de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, nas quais o escritor destaca sua intenção de traduzir as fábulas de Esopo e de La Fontaine, considerando a pobreza da literatura infantil brasileira da época, observando que as traduções eram “espinhentas e impenetráveis”. Em outro trecho da correspondência, o autor sugere ao destinatário a continuidade da tradução de contos shakespearianos, em “linguagem bem simples, sempre na ordem direta e com toda a liberdade” (94). Alerta, ainda, para o seguinte ponto: “não te amarres ao original em matéria de forma – só em matéria de fundo” (94). Em outro trecho, referindo-se aos contos de Grimm dados por Garnier, ressalta a necessidade de “abrasileirar a linguagem”. Quanto menciona a tradução de Kipling, evidencia o prazer de remodelar uma obra de arte em outra língua. Quando fala da sua tradução de Kim, critica a versão anterior, dando alfinetadas nas traduções de algumas palavras.

No segundo texto do período, “Traduzir procurando não trair”, Clarice Lispector aborda o minucioso trabalho de traduzir uma peça, especialmente pelo fato de ser fiel ao texto do autor e à inexistência de expressões equivalentes em português para exprimir expressões americanas, exigindo uma adaptação mais livre. Ressaltou também a entonação de cada personagem, exigindo palavras e tons apropriados. Ao comentar a tradução da peça de Tchekhov, confessou a dificuldade por sentir-se descrevendo a si mesma no personagem principal. Acabou não concluindo o trabalho em virtude da interferência do diretor que sugeria opções de tradução com as quais não concordava. Ao comentar a tradução que realizou de um livro condensado de Agatha Christie destacou que, ao contrário do que costumava fazer, foi lendo e, em seguida, traduzindo, pois era um romance policial e não suportava a curiosidade. A autora finaliza demonstrando medo em ler a tradução que fazem de suas obras, pelo fato de considerar que o autor tem verdadeira náusea de se reler, mesmo em outros idiomas e, no fundo, tem a preocupação de saber o que o tradutor poderia fazer da sua obra.

O terceiro texto é de Haroldo de Campos, intitulado “Transluciferação Mefistofáustica”. Como o título sugere, a partir de um palavreado idiossincrático e cheio de trocadilhos em outros idiomas, o autor trata da tradução criativa, defendendo a ideia de que o objetivo desse tipo de tradução é fazer desaparecer o texto original, um processo de “desmemória parricida” a que ele nomeia de “transluciferação”.

Em seguida, tem-se o texto de Silviano Santiago, a Introdução a “Cotidiano e humor: o pequeno homem.” Nesse trecho, ele revela alguns elementos da poesia de Prévert, alinhando-a ao estilo dos poetas brasileiros dos anos 30, com sua linguagem coloquial, passando pelo humor. Nesse ponto, ele justifica o uso de “modelos” como Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Murilo Mendes para fazer sua tradução. Sobre esta, afirma que é uma “decisão de leitura por parte de quem traduz” e “requer que o que é polissêmico no texto de origem permaneça polissêmico no texto traduzido (...)” (119). Defende que a tradução destina-se unicamente ao leitor do texto traduzido e que, sobre outra perspectiva que não seja a do referido público alvo, pouco se salvaria do trabalho do tradutor, concluindo que, no caso de tradução poética,

além da fidelidade, numa tradução tudo é hipótese, aproximação, desacerto com acerto e até mesmo acerto sem acerto, transgressão com pedido de perdão e, finalmente, posse sem direito autoral. (119)

No “Prólogo” de Haroldo de Campos, há uma explicação sobre a tradução do poema Beppo, de Byron, como a existência de palavras intraduzíveis, como “Brotherby”, resultado da fissão de “brother” com o nome “Sotheby.” Soma-se a isso a questão de Byron usar rimas engenhosas e, às vezes, forçadas, na intenção de dar um tom de humor ao poema, sendo esta uma das dificuldades do tradutor, que nem sempre conseguiu passar para o português todas as correspondências da rima jocosa. Menciona o uso da omissão em alguns casos, realçando que a tradução de poema em língua essencialmente monossilábica e dissilábica, como o inglês, para idioma polissilábico, como nossa língua, faz com que se opte por usar versos mais longos que o original ou então usar abreviações e cortes.

Em “Sobre tradução”, de Millôr Fernandes, há um breve desabafo sobre o ofício do tradutor que, para ele foi um trabalho exaustivo, anônimo e mal remunerado, fatores que fizeram com que abandonasse a tarefa durante anos. Depois, ele assevera que a tradução “é a mais difícil das empreitadas intelectuais” (133), que exige certa maturidade daquele que se propõe a traduzir. Sobre o tema, ele diz:

não se pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto, não se pode traduzir sem ter o maior respeito ao original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para se lhe captar melhor o espírito, não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da língua traduzida, mas acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual se traduz, não se pode traduzir sem cultura (...), sem intuição, (...) sem ser escritor, com estilo próprio e originalidade (...), sem dignidade.” (134).

Algumas dessas características já foram destacadas por autores anteriormente citados, como Odorico Mendes e indicam a necessidade de se valorizar a formação acadêmica-profissional do tradutor para que o trabalho seja desenvolvido com esmero.

No texto “Hamlet - a tradução”, também de Millôr Fernandes, há um desabafo: suas traduções de peças estrangeiras não seriam adaptações como sugeriam os críticos. Seria a primeira e última vez que faria “notas esclarecedoras” de sua tradução para clarificar para o leitor como sua cabeça teria trabalhado nas opções tradutórias, possibilitando discutir sobre acertos e erros, sobre suas seguranças e incertezas. Encerra, de forma, abrupta, seus comentários sobre sua estratégia tradutória, sugerindo ser essa uma tarefa um tanto enfadonha e chata.

O nono texto, “Suffering in translation”, de João Ubaldo Ribeiro, é a revelação de como foi uma tarefa ingrata autotraduzir-se. Sob a promessa de nunca mais fazê-lo, Ribeiro fala que gastou mais tempo em traduzir sua obra “Sargento Getúlio” para o inglês do que para escrevê-la em português. Aponta como problema na tradução a questão das diferenças culturais entre Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, especificamente sobre a visão histórica que um tem sobre o outro: nós mal sabemos a nossa história, então como contá-la em outra língua? Como transpor a pompa dos pronomes de tratamento em português para o inglês? E os palavrões e obscenidades? E os nomes de frutas, árvores e animais brasileiros como traduzir, se desconhecidos para o público alvo? Apesar do trabalho árduo, o autor sente-se minimante satisfeito com o seu trabalho de se traduzir, indicando que tinha certa intimidade com o inglês que tanto amava.

No décimo texto, “Apresentação do tradutor”, William de Mello afirma que cada tradutor é uma escola de tradução, sugerindo que o ato de traduzir sempre será uma escolha. Diz ainda que a tradução é um ato de humildade, através do qual o tradutor (alter ego do autor) transmite o pensamento originário de forma mais exata possível, exigindo uma relação de afinidade, comunhão de interesses e sentimento entre ambos. Faz a comparação com o espelho, ao refletir uma imagem, de forma fiel, sem nada acrescentar ou tirar. Destaca como um dos desafios do tradutor o refreamento do ímpeto de aperfeiçoamento que, ao seu ver, se conquistado, evidenciará a suplantação do próprio tradutor.

O último texto relativo ao século XX é o de Bárbara Heliodora, “My reason for translating Shakespeare”, no qual apresenta seu amor às peças do autor e a necessidade de realizar a tradução em que se preservasse forma e conteúdo. Segundo ela, sua experiência como crítica teatral, durante seis anos, antes de iniciar as traduções de Shakespeare, aliada à experiência de tradutora de outros livros foram fatores que facilitaram seu trabalho. Diz que sempre se preocupava em elaborar falas através das quais os atores pudessem transmitir para a plateia o significado do que estavam dizendo. Esse aspecto coloquial, na obra shakespeariana, dava maior acessibilidade à mesma, devendo ser ressaltado que a autora sempre se posicionou contrária à ideia de que o poeta era inacessível. Para Bárbara Heliodora, as dificuldades de se traduzir para o teatro desdobravam-se em dois pontos: a concisão da forma dramática e a necessidade de entendimento imediato pela plateia - uma equação de difícil acerto: fidelidade à forma e ao sentido versus a musicalidade e a beleza na língua alvo. Os desafios de traduzir nomes de pessoas, pássaros desconhecidos também foram citados pela tradutora, que finaliza seu texto pontuando que sua principal preocupação era a busca da musicalidade e um ritmo em português que fossem fluentes e pudessem ser aceitos como “ equivalentes mais próximos” (193), focando no conforto tanto do ator como da plateia ao identificar o texto em seu idioma.

Do século XXI, há o texto “Nas sendas de Crime e castigo”, de Paulo Bezerra, que fez a primeira tradução direta do original russo para o português. Inicialmente, o autor destaca que a tradução anterior, de Rosário Fusco, foi feita a partir da versão francesa, ou seja era uma tradução de tradução, refletindo como os franceses traduziam os autores russos. Diz que, em caso de textos literários, há uma constante carga polissêmica em que o tradutor se ver obrigado a interpretar o sentido de certas palavras e procurar o modo mais adequado de transmiti-lo, sempre atento à honestidade profissional, uma espécie de “compromisso ético com a palavra do outro” (198). No caso específico da tradução de Crime e castigo, Bezerra afirma que procurou manter os elementos de estilo próprios do autor: uso de travessões, ritmo das falas dos personagens, a ordem de sua construção.

Por todo o exposto, evidencia-se que Palavra de tradutor é de suma importância para o campo da história da tradução brasileira, ao reunir diferentes pontos de vista sobre o ato tradutório, produzidas em momentos históricos diferentes, abrangendo um lapso temporal de mais de duzentos anos, em vários gêneros textuais: técnico-científico, ficção, contos infantis, poesias épica e lírica e teatro. É um excelente livro que chega em um momento apropriado, sendo um verdadeiro convite para os que exercem a tradução refletirem sobre seu ofício, de forma ética e profissional.

Referências

  • Martins, Márcia A.p., Guerini, Andréia (Org.). Palavra de Tradutor: reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros – The translator’s word: reflections on translation by brasilian translators Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, 205 p.

Fechas de Publicación

  • Publicación en esta colección
    25 Nov 2019
  • Fecha del número
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recibido
    24 Abr 2019
  • Acepto
    29 Jul 2019
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