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Píndaro. As odes olímpicas de Píndaro. Introdução, tradução e notas de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. 1.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016. Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.

. As odes olímpicas de Píndaro. Onelley, Glória Braga; Peçanha, Shirley. 1.ed.Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016
. Píndaro: epinícios e fragmentos. Rocha, Roosevelt Araújo. Curitiba: Kotter, 2018

A importância de se estudar o legado da Grécia Antiga revela-se ao longo de vários momentos emblemáticos de nossa história cultural: no Renascimento italiano, por exemplo, com o desenvolvimento de um ideal humanista que passava a ver a Antiguidade como o modelo intelectual a partir do qual a poesia, a filosofia e as matemáticas deveriam ser estudadas com o objetivo de formação do caráter (ManuzioManuzio, Aldo. Aldo Manuzio editore. Introd. Carlo Dionisotti. Trad. Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1975.); ou no Primeiro Romantismo Alemão, quando os Antigos – em especial os gregos – surgiam como os responsáveis por deitar as bases das técnicas de expressão artística que seriam as mesmas dos séculos por vir, desde a mais concreta das artes, qual seja, a arquitetura, passando pela escultura, pintura e dança, até chegar à música e aos gêneros poéticos (epopeia, drama e lírica) e prosaicos (filosofia, retórica e história) (SchlegelSchlegel, A. W. Doutrina da Arte: Cursos sobre Literatura Bela e Arte. Introd., trad. e notas, Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.); ou ainda, em vários dos movimentos neoclássicos ou mesmo modernistas (aqui sob uma clara inspiração da leitura nietzschiana dos Antigos), desenvolvidos desde o início do séc. XX até a contemporaneidade. Essa retomada da tradição representada pelos gregos antigos ofereceu a possibilidade dos mais diversos intelectuais colocarem em perspectiva suas próprias crenças, bem como as de seus contemporâneos – a partir de uma comparação com as conquistas culturais dessas civilizações antigas, em termos de arte, filosofia e ciência –, propiciando um contexto de ricos debates culturais como aqueles apresentados em torno à Querelle des Anciens et des Modernes, na França (e com repercussões em toda a Europa), nos séculos. XVII e XVIII, por exemplo.

O acesso a essa cultura antiga, contudo, nem sempre é simples. Muitos dos autores mais importantes dessa tradição ficaram séculos sem conhecer traduções para as línguas modernas de países como França, Inglaterra e Alemanha. A situação de Portugal – e, por consequência, do Brasil – era, e continua sendo, ainda mais complicada, com o desenvolvimento tardio de um campo próprio de estudos clássicos, apresentando consideráveis dificuldades práticas para suplementar a biblioteca clássica disponível ao leitor lusófono. Uma lacuna importante dessa biblioteca, entretanto, acaba de ser suprimida, com a publicação de duas traduções brasileiras da obra de Píndaro, o venerável autor clássico dos célebres epinícios, isto é, dos cantos encomiásticos em honra aos vencedores das competições pan-helênicas.1 1 Para a referência às esparsas traduções anteriores de Píndaro para o português, cf. (Rocha 46-48).

Antes de abordarmos essas duas novas traduções, um breve esclarecimento sobre o interesse que pode ter um leitor moderno em conhecer essa obra. Autor de composições poéticas construídas a partir de complexos arranjos métricos e sintáticos, além de rebuscada criação lexical, nas quais o louvor às proezas atléticas da aristocracia grega era apresentado com o recurso a uma série de mitos, referências históricas e ditos sapienciais, Píndaro era reconhecido mesmo entre os Antigos por uma obra que se mostrava tão difícil quanto admirável. Várias das discussões de Platão sobre poesia, por exemplo, poderiam sugerir que a austeridade e a moralidade explicitadas nos poemas pindáricos estariam à altura das elevadas exigências impostas a uma poesia filosófica (Duchemin 19Duchemin, Jacqueline. “Platon et l’héritage de la poésie”. Revue des Études Grecques, [s.l], LXVIII (319-323), (1955), p. 12-37.). Da mesma forma, o prestígio que sua obra desfrutou entre os estudiosos alexandrinos confirma a potência de uma criação poética capaz de atravessar os séculos e vir a inspirar, modernamente, autores tão diversos quanto Hölderlin, Mallarmé e Valéry, por exemplo, como indicam alguns dos trabalhos recentes de Jean YgauninYgaunin, Jean. Pindare et les poètes de la célébration. T. 4 ; T. 6. Paris: Minard, 1997-1998. em torno a “Píndaro e os poetas da celebração” (em tradução ao título da obra francesa lançada em oito tomos, Pindare et les poètes de la célébration). Diante desses fatos, não resta dúvida de que o interessado por cultura e literatura em geral tem muito a aprender e a rejubilar com a experiência de tal obra poética, na qual florescem passagens tão antológicas quanto estas:

O melhor é a água, o ouro, como fogo incandescente, brilha na noite mais do que a suntuosa riqueza. Mas se desejas, meu coração, celebrar os Jogos, não procures um outro astro brilhante mais ardente que o Sol, de dia, no éter deserto, nem celebremos jogos melhores que os de Olímpia. (Píndaro, Olímpica 1.1-8, trad. Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha). Agora, aponta o arco para o alvo: vai, meu coração! Quem devemos atingir de novo, lançando de nosso delicado ânimo as gloriosas flechas? (Píndaro, Olímpica 2.89-91, trad. Glória Braga Onelley e Shirley PeçanhaPíndaro. As odes olímpicas de Píndaro. Introdução, tradução e notas de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. 1.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.). Por uma vida imortal, minh’alma, não anseies e esgota o praticável recurso. (Píndaro, Pítica 3.61-62, trad. Roosevelt RochaPíndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.). Efêmeros: o que é alguém? O que não é alguém? Sonho de uma sombra é o ser humano. (Píndaro, Pítica 8.95-96, trad. Roosevelt RochaRocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.).

Entremos agora na discussão sobre essas traduções, contudo. Talvez a partir desses curtos exemplos de trechos célebres da poesia pindárica não tenha ficado suficientemente claro, mas as propostas de tradução de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha, por um lado, e de Roosevelt Rocha, por outro, são radicalmente diferentes. Talvez a única semelhança realmente compartilhada por ambas seja a decisão de não tentar reproduzir em português nenhum tipo de esquema métrico fixo que buscasse correspondência com o que Píndaro faz em grego antigo. Assim sendo, ambas optam por versos livres. No tocante a outras opções tradutológicas, as diferenças são consideráveis.

Glória Braga Onelley é professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com um trabalho consolidado de ensino de língua e literatura da Grécia Antiga, além de alguma experiência na área de tradução de textos poéticos dessa cultura, posto que seu doutorado – publicado posteriormente como livro (Onelley, 2009Píndaro. As odes olímpicas de Píndaro. Introdução, tradução e notas de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. 1.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.) – trazia em apêndice uma proposta de tradução livre dos dísticos elegíacos de Teógnis (outro poeta grego antigo). Shirley Peçanha, professora com ampla experiência docente também na UFRJ, dedicou boa parte de suas pesquisas ao estudo da obra e da vida do próprio Píndaro, corroborando assim seu trabalho de tradução com conhecimentos consolidados sobre suas especificidades. Resultado do esforço conjunto dessas pesquisadoras, As Odes Olímpicas de Píndaro (Píndaro, 2016) consiste num livro bilíngue, com a tradução para o português acompanhada lado a lado pelo texto grego e longas notas explicativas ao fim de cada poema. Trata-se da tradução de uma parte da poesia supérstite de Píndaro (que, além dos fragmentos, contém as Odes Olímpicas, as Píticas, as Nemeias e as Ístmicas).2 2 Cumpre notar que a maior parte da obra poética de Píndaro se perdeu. Dela restaram os epinícios (quase todos, isto é, as odes acima mencionadas) e fragmentos de outros subgêneros poéticos, como os peãs, os ditirambos e os trenos. Além disso, uma breve introdução busca esclarecer aspectos gerais sobre o gênero do epinício e o contexto histórico em que ele se desenvolveu, principalmente a partir da atividade de Píndaro.

Embora não dediquem nenhuma seção ao esclarecimento de seus critérios de tradução, Onelley e Peçanha orientam-se por um modelo moderadamente domesticador, buscando soluções que – a um só tempo – sejam capazes de manter certa correspondência interlinear entre os versos do original e os versos da tradução, embora se pautem por uma leitura tão fluente quanto possível do texto em português. Seu principal mérito, inclusive, é a alta legibilidade de um texto normalmente difícil e a elegância sintática obtida por versos poéticos. Por outro lado, é evidente que essa busca por soluções claras eventualmente as obriga a alterar uma série de características típicas do grego pindárico: os intricados arranjos sintáticos, a dimensão sintética de certas proposições, além das constantes invenções lexicais (por meio, principalmente, de processos de aglutinação). Em que pesem tais perdas, os ganhos de fluência proporcionados por essa tradução hão de se revelar valiosos – sobretudo para leitores que não tenham ampla experiência com a sintaxe quebrada de certos poetas gregos arcaicos, ou mesmo de alguns modernos, como Mallarmé –, sendo amplamente recomendada para quem queira ter um primeiro contato com Píndaro. As diferenças com relação à outra proposta de tradução ficarão evidentes a partir de um breve cotejo dos mesmos trechos vertidos por ambas para o português.

Roosevelt Araújo da Rocha tem formação nas áreas de História e Letras, atuando como professor de Literaturas Clássicas na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde aborda questões relativas à música grega antiga, bem como ao estudo e à tradução de autores como Píndaro, Eurípides e Plutarco. Fruto de sua pesquisa de pós-doutorado e coroamento de um trabalho iniciado por volta de 2014, o livro Píndaro: epinícios e fragmentos apresenta sua proposta de tradução para o português de toda a obra supérstite do poeta tebano. O volume não é bilíngue – fato que talvez se deva à extensão que a versão exclusivamente em português já tem, com quase quinhentas páginas – e se faz acompanhar por uma introdução, bem como por notas explicativas ao longo do texto. Esses elementos paratextuais cumprem uma função importante para a fruição e a compreensão do texto de praticamente qualquer autor antigo, mas para o caso de Píndaro, com suas abundantes referências mitológicas, históricas e geográficas, esse apoio se revela absolutamente imprescindível.

O tradutor dedica uma das seções de sua “Introdução” a explicitar seus critérios de tradução. Passemos a palavra a ele próprio, portanto, antes de avançarmos nossas próprias impressões a esse respeito:

O que procurei fazer ao traduzir foi tentar encontrar um equilíbrio entre uma tradução que fosse fiel ao texto original e, ao mesmo tempo, uma tradução que tornasse o texto legível, compreensível para o leitor não iniciado. Contudo, tentando ser fiel ao original, julguei relevante não facilitar demais o resultado final, o que implicaria num texto muito interpretativo e calcado numa leitura pessoal determinada pelo meu olhar.

(Rocha 49Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.).

Embora eu próprio tenda a alimentar certas desconfianças com relação a tradutores que afirmem propor uma tradução que não seja “um texto muito interpretativo” nem “calcado numa leitura pessoal determinada pelo [s]eu olhar” – posto que a própria opção de tentar reproduzir a sintaxe rebuscada de um texto grego antigo em português moderno é sim fruto de uma interpretação muito específica e de uma leitura bastante pessoal –, acredito que as opções de tradução de Rocha representem uma faceta possível (e interessante) da poesia de Píndaro. Buscando encontrar uma correspondência interlinear e sintática precisa entre os epinícios gregos antigos e sua tradução para o português, bem como certa equivalência com a inventividade lexical do poeta tebano, Rocha propõe textos tão difíceis e admiráveis quanto os do próprio Píndaro. Talvez mais.

Certamente podemos alimentar nossas dúvidas de que “[q]uanto à tradução” ele tenha pretendido “apresentar um texto o mais claro possível” (Rocha 49Rocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.). A título de exemplo, cito – sem qualquer contextualização – um trecho mais longo, composto por duas estrofes inteiras, a fim de que o leitor compreenda a que estou me referindo:

Mas de longamente narrar me impedem a regra e as horas prementes. Por um encanto é arrastado meu coração a tocar na festa da lua nova. Porém, mesmo que te tenha a funda marinha água no meio, luta contra sua traição. Muito superiores a nossos inimigos pareceremos na luz chegar. Com inveja o outro homem olhando sua intenção vazia na escuridão revolve no chão caída. Mas a mim qualquer tipo de talento tenha dado o Destino rei, bem sei que o tempo chegando o predeterminado cumprirá. Tece, doce, também esta logo, forminge, com a Lídia harmonia, canção amada por Enona e por Chipre, onde Teucro reina exilado, o filho de Télamon, mas Ájax Salamina tem, a paterna. (Píndaro, Nemeia 4.33-49, trad. Roosevelt RochaRocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.).

É inegável que – para além da obscuridade que muitas referências possam ter para o leitor moderno, e talvez graças justamente a tais referências obscuras – esse trecho é dotado de um alto grau de poeticidade. As reflexões metapoéticas do início e do fim dessa passagem, bem como a meditação moral entre uma estrofe e outra, são sem dúvida frutos da lavra de um grande poeta. Mas a forma como a sintaxe do grego antigo é reproduzida na sintaxe da tradução para o português chega muito perto de implodir o próprio sentido do que se afirma. O que é “doce”? A que se refere “esta”? Qual é a relação entre “Ájax” e “Salamina”? A que se refere “a paterna”? Talvez um leitor experimentado nos percalços da sintaxe poética consiga responder essas perguntas sem precisar consultar o original em grego antigo – onde um sistema morfológico de marcação dos casos sintáticos não deixa margem a qualquer dúvida –, mas o fato é que dificilmente se poderia concordar que essa tradução busque “apresentar um texto o mais claro possível” (Rocha 49Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.).

Trata-se, portanto, de uma modalidade de tradução que busca estrangeirizar o texto de chegada, transformá-lo por meio do contato com essa língua radicalmente diferente que é o grego antigo, almejando aquilo que já fora preconizado por Walter Benjamin (1923) no célebre prefácio de suas (não tão célebres) traduções de alguns poemas de Charles Baudelaire, “Die Aufgabe des Übersetzers” (título que é normalmente traduzido por “A tarefa do tradutor”). Numa tradução elaborada na linha do que Benjamin (1923, p. XVII, trad. minha) propõe, “a harmonia das línguas é tão profunda que o sentido apenas – como o vento passando por uma harpa eólica – vem a ser tocado.” Tal é o paradigma da tradução de Rocha.

É certo que muitos de seus versos alcançam os altos píncaros da grande poesia, como, por exemplo, nas seguintes passagens:

Mas se na mente algum dos mortais tem da verdade a via, cabe pelos venturosos o que é enviado desfrutar. Ora para aqui ora para lá vão os sopros dos altivoláteis ventos. A ventura dos homens por muito tempo não permanece estável, quando caindo muito pesada vem. (Píndaro, Nemeia 4.103-106, trad. Roosevelt RochaPíndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.). Uma só a raça dos homens, uma só a dos deuses. E a partir de uma só mãe respiramos todos. Mas nos separa todo um distinto poder, pois uma é nada e o brônzeo céu segura sede permanece sempre. Porém em algo nos assemelhamos, contudo, seja na grande mente seja na natureza, aos imortais, embora de dia não saibamos nem de noite até que meta o destino nos prescreveu correr. (Píndaro, Nemeia 6.1-7, trad. Roosevelt RochaPíndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.). Espero, falando de modo grandioso, contra o alvo ter acertado como de um arco atirando. Dirige a esta casa, vamos, Musa, um glorioso vento de versos, porque depois que os homens partiram, as canções e os louvores seus belos feitos preservam. (Píndaro, Nemeia 6.26-30, trad. Roosevelt RochaPíndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.).

Como se vê, muitos são os trechos notáveis que poderíamos destacar da tradução de Rocha em que – buscando uma correspondência sintática e lexical com o texto grego antigo – a legibilidade se mantém maravilhosamente bem ainda em português. Muito frequentemente, contudo, a leitura encontrará entraves que podem desanimar alguém pouco acostumado aos torneios poéticos e aqui – para evitar a acusação de fazer afirmações infundadas – gostaria de propor um cotejo entre os mesmos trechos traduzidos tanto por Rocha quanto por Onelley e Peçanha.3 3 A parte da obra de Píndaro que é traduzida tanto por Rocha quanto por Onelley e Peçanha consiste na totalidade das Odes Olímpicas.

O grande perigo não captura o homem covarde. Para quem morrer é necessário, isso alguém anônimo a velhice na escuridão sentado cozinharia sem propósito, de todos os belos feitos não partícipe? (Píndaro, Olímpica 1.81-84, trad. Roosevelt RochaPíndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.). Mas um grande risco não alcança um homem covarde. Para quem a morte é inevitável, por que alguém, sentado à sombra, consumiria em vão uma velhice anônima, privado de todas as coisas belas? (Píndaro, Olímpica 1.81-84, trad. Glória Braga Onelley e Shirley PeçanhaPíndaro. As odes olímpicas de Píndaro. Introdução, tradução e notas de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. 1.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.).

Ou ainda:

Áureos pilares, sob o bem murado pórtico de um tálamo, alçando, como quando se alça mirífico palácio, construiremos. Começando uma obra, uma fachada cabe pôr longibrilhante. (Píndaro, Olímpica 2.1-4, trad. Roosevelt RochaRocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.). Estabelecendo douradas colunas debaixo de um bem murado pórtico do santuário, como quando se assenta um belo palácio, construamos! Iniciado o trabalho, é preciso dar-lhe uma fachada que brilhe ao longe. (Píndaro, Olímpica 2.1-4, trad. Glória Braga Onelley e Shirley PeçanhaPíndaro. As odes olímpicas de Píndaro. Introdução, tradução e notas de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. 1.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.).

Espero ter ficado claro para quem me lê que – em minha opinião – a tradução de Rocha é muito mais ousada em termos de invenção e originalidade, com suas constantes transgressões à sintaxe habitual do português e sua ampliação do repertório lexical disponível nessa língua. Contudo, não posso concordar que essa tradução se destaque por tornar o texto “compreensível para o leitor não iniciado” (Rocha 49Rocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.). A tradução de Onelley e Peçanha, por outro lado, cumpre exatamente esse papel: a meu ver, essa seria a “porta de entrada”, o “primeiro degrau” para o “leitor não iniciado”, a fim de que tivesse um bom primeiro contato com Píndaro. A versão de Rocha – que parece ter muito mais necessidade do apoio de uma edição bilíngue do que a de Onelley e Peçanha – exige muito mais tempo, preparo e paciência de seu leitor. Inclusive, acredito que a tradução de alguns dos fragmentos mais lacunares da obra supérstite de Píndaro – aqueles compostos por poucas palavras desconexas (ou mesmo por pedaços de palavras) – só poderá interessar ao “erudito especialista em poesia grega arcaica”, não ao “público em geral apreciador de poesia”.4 4 Retomo aqui as expressões empregadas pelo próprio autor (Rocha 53). Esse, sem dúvida, é mais um elemento que sugere o seguinte: Onelley e Peçanha traduzem para esse “público em geral apreciador de poesia”, enquanto Rocha traduz para o “erudito especialista em poesia arcaica”.

Aproveitando o espaço que me resta ainda nesta resenha, gostaria de atender ao pedido que Rocha (53) faz no parágrafo final de sua introdução, quando afirma que espera receber críticas de todo tipo de leitor para que, no futuro, possa aperfeiçoar suas traduções e comentários. Propus até agora uma análise mais geral do tipo de tradução que ele pratica – em contraposição ao tipo de tradução que ele afirma praticar –, mas gostaria de entrar agora em aspectos pontuais de sua proposta, criticando-a a fim de que em trabalhos vindouros o autor possa talvez rever alguns deles.

No tocante à criação vocabular, embora eu tenda a concordar com a ideia de que “criar novas palavras compostas era algo mais ou menos natural na língua grega antiga”, consistindo em “uma prática comum na poesia e não na língua do cotidiano” (Rocha 53Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.), é preciso cuidado com a forma como se faz isso numa língua como o português. O alemão, por exemplo, dispõe de uma capacidade de criação vocabular por aglutinação que é verdadeiramente espantosa, sendo, por isso, a meu ver, que muitas das versões alemãs de textos gregos antigos parecem tão “próximas” de seu original. Tal não é, contudo, o caso do português. Haroldo de Campos (2003)Campos, Haroldo de. Ilíada de Homero. Trad. Haroldo de Campos. Org. Trajano Vieira. 4.ed. São Paulo: Arx, 2003., em sua Ilíada de Homero, recorre ao hífen como modo de justapor inteligivelmente seus neologismos em português (o mais das vezes, sem aglutinação). Ele obtém, a meu ver, um razoável grau de sucesso na tentativa. Contudo, o Acordo Ortográfico de 1990 quis banir (quase) definitivamente o uso do hífen em nossos processos de criação de palavras compostas e – não sei se motivado por respeito ao espírito do Acordo – Rocha evita recorrer ao hífen. Isso o leva a criar, por aglutinação, novos itens lexicais consideravelmente mal-afortunados (ou “malafortunados”?): “ferrexultantes [sidarokharmân]”, “Tremechão [Ennosída]”, “regecavalos [hippárkhou]”, “dulcimélico [hadymeleî]”, “multineado [polymnḗtōi]”, “antigafamada [palaíphaton]”, “nauínclita [nausiklytàn]”, “vastionrado [eurytímou]”, “coherdeiro [homóklaron]”, “cerulolhos [Glaukṓpida]”, “todomatizados [pampoíkilos]”, “amalucro [philokerdḗs]”, “variopinto [poikílon]”, “violitrâncias [ioplókoisi]”, “amacarros [philarmátou]” etc. Fiz questão de colocar o termo original ao lado do neologismo em português para possibilitar que o leitor relativamente habituado ao grego e ao latim acompanhe as opções de tradução e compreenda que elas não são – em termos de processo composicional – opções problemáticas. No grego de Píndaro, o sentido dessas aglutinações é consideravelmente límpido. Contudo, a meu ver, as opções de Rocha se revelam mal-afortunadas por uma das seguintes razões: seja porque tais aglutinações acabam gerando outras palavras internamente não esperadas (“resultantes” de “ferrexultantes” ou “jeca” de “regecavalos”, por exemplo), seja porque evocam palavras responsáveis por rebaixar completamente a pretensa dignidade da poesia pindárica (sugerindo “comichão” a partir de “Tremechão”, “Dulcineia” a partir de “dulcimélico”, “amotinado” a partir de “multineado”, “ceroulas” a partir de “cerulolhos”, “maluco” a partir de “amalucro”, não sendo necessário comentar o caso de “variopinto” para se referir a um “dragão [drákonta]” em Pítica 8.46), seja ainda porque se tornam profundamente obscuros em português (casos de “nauínclita” e “violitrâncias”, por exemplo). É de se notar que a maior parte desses problemas seria resolvida com o mero uso do hífen: “rege-cavalos”, “multi-hineado”, “co-herdeiro”, “todo-matizados”, “ama-lucro”. Outros não (penso aqui, evidentemente, ainda no “dragão variopinto”).

Brincadeiras à parte, acredito que Rocha seja efetivamente bem-sucedido na criação da maior parte dos neologismos que emprega em sua tradução. Caberia, contudo, talvez rever o emprego de alguns dos listados acima. Caberia ainda reconsiderar o emprego excessivo da expressão “de certo” (sic) para traduzir as mais diversas partículas e conjunções do grego antigo. Frequentemente pouco fortes, esses elementos linguísticos passariam melhor na tradução se fossem marcados por outras formas de ênfase: pontuação, ordem de palavras, vários advérbios ou interjeições do português e, no limite, sem qualquer diferenciação. Se Rocha empregasse o advérbio “decerto” já seria cansativo o bastante, pois a maior parte das vezes em que “de certo” surge em sua tradução não há qualquer necessidade para tal. Que se leve em conta o primeiro momento em que isso aparece em sua tradução:

Mas, de certo, digerir sua grande ventura não pôde e, por sua ganância, conseguiu uma ruína monstruosa, que, de certo, o pai sobre ele suspendeu, a poderosa pedra [...]. (Píndaro, Olímpica 1.55-58, trad. Roosevelt RochaRocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.).

Essas seriam as principais críticas mais imediatas a questões de tradução (para não fazer caso aqui de certos deslizes de digitação no texto da introdução). Com relação aos comentários e às notas, um leitor mais exigente poderia esperar um trabalho de análise e interpretação um pouco mais detido e preciso do que aquele que vem a ser oferecido por essa edição, mas a extensão abreviada dos mesmos certamente se deve a questões editoriais e ao fato de que um volume com a “obra completa” de Píndaro já é vasto o bastante apenas com os textos traduzidos. Uma forma de contornar esse problema seria considerar a publicação de pelo menos quatro grandes blocos de textos em tomos separados – em versão bilíngue, com notas e comentários um pouco mais generosos –, propondo a publicação separada das Odes Olímpicas, das Píticas, das Nemeias e, finalmente, das Ístmicas junto com os fragmentos.

A presente resenha, contudo, avança mais do que devia e eu, também por questões de espaço, terei que parar por aqui. Antes de terminar, contudo, gostaria de exaltar essas duas recentes empreitadas brasileiras de tradução da obra de Píndaro: Glória Braga Onelley, Shirley Peçanha e Roosevelt Rocha demonstram toda a sua coragem ao encarar a complicada tarefa de traduzir sistematicamente essa poesia e se destacam ainda pela excelência e pela generosidade com que vêm a público nos presentear com um título incontornável da biblioteca de clássicos agora disponível ao leitor de língua portuguesa.

  • 1
    Para a referência às esparsas traduções anteriores de Píndaro para o português, cf. (Rocha 46-48Rocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.).
  • 2
    Cumpre notar que a maior parte da obra poética de Píndaro se perdeu. Dela restaram os epinícios (quase todos, isto é, as odes acima mencionadas) e fragmentos de outros subgêneros poéticos, como os peãs, os ditirambos e os trenos.
  • 3
    A parte da obra de Píndaro que é traduzida tanto por Rocha quanto por Onelley e Peçanha consiste na totalidade das Odes Olímpicas.
  • 4
    Retomo aqui as expressões empregadas pelo próprio autor (Rocha 53Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.).
  • 5
    Nos textos dos poemas propriamente ditos, por outro lado, praticamente não há incorreções ortográficas, à exceção dos dois momentos em que me deparei com: “extendiam” por “estendiam” (Pítica 4.240) e “rédias” por “rédeas” (Ístmica 2.22).

Referências

  • Campos, Haroldo de. Ilíada de Homero Trad. Haroldo de Campos. Org. Trajano Vieira. 4.ed. São Paulo: Arx, 2003.
  • Duchemin, Jacqueline. “Platon et l’héritage de la poésie”. Revue des Études Grecques, [s.l], LXVIII (319-323), (1955), p. 12-37.
  • Manuzio, Aldo. Aldo Manuzio editore Introd. Carlo Dionisotti. Trad. Giovanni Orlandi. Milano: Il Polifilo, 1975.
  • Píndaro. As odes olímpicas de Píndaro Introdução, tradução e notas de Glória Braga Onelley e Shirley Peçanha. 1.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
  • Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018.
  • Rocha, Roosevelt. “Introdução”. In: Píndaro. Píndaro: epinícios e fragmentos. Tradução, introdução e notas Roosevelt Araújo Rocha. Curitiba: Kotter, 2018, p. 9-54.
  • Schlegel, A. W. Doutrina da Arte: Cursos sobre Literatura Bela e Arte. Introd., trad. e notas, Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.
  • Ygaunin, Jean. Pindare et les poètes de la célébration T. 4 ; T. 6. Paris: Minard, 1997-1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2019
  • Aceito
    15 Nov 2019
  • Publicado
    Jan 2020
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