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PARATEXTOS DE TRADUÇÕES LITERÁRIAS E DE TRADUÇÕES ESPECIALIZADAS: ESTUDO COMPARATIVO DE PREFÁCIOS E INTRODUÇÕES

PARATEXTS IN LITERARY AND SPECIALIZED TRANSLATIONS: A COMPARATIVE STUDY OF FOREWORDS AND INTRODUCTIONS

Resumo

Na área acadêmica dos Estudos de Tradução, cada vez mais pesquisadores têm recorrido à análise de material paratextual como parte integrante de suas metodologias de pesquisa, o que tem levado a uma reflexão teórica sobre a função desse tipo de texto em traduções publicadas. Todavia, a maior parte dessas pesquisas assenta em traduções de textos literários e, por isso, pouco se sabe sobre as funções e características dos paratextos nas traduções de textos especializados. Neste trabalho, comparamos vinte e seis paratextos (introduções e prefácios) presentes em quinze traduções de Hamlet publicadas no Brasil nas últimas seis décadas com vinte e quatro paratextos extraídos de cerca de duzentos livros acadêmicos traduzidos (sobre medicina, engenharia, biologia, física, etc.) e publicados também nesse intervalo temporal. Os resultados da comparação permitem traçar semelhanças e diferenças entre os assuntos discutidos nos paratextos presentes nos dois tipos de tradução (literária e especializada).

Palavras-Chave
Paratextos; Prefácios; Tradução Literária; Tradução Especializada

Abstract

In the field of Translation Studies, paratexts included in translated books have been increasingly used by researchers as part of their descriptive-based studies, which has originated a wealth of theory about the functions that paratexts play in translated materials. However, for the most part, researchers have focused on literary translations and, as result, little is known about the functions and characteristics of paratexts in translations of specialized books. The paper addresses this gap by comparing 26 paratexts (forewords and introductions) taken from Brazilian translations of Shakespeare’s Hamlet with 24 paratexts taken from 200 translations of academic books (e.g. medicine, engineering, biology, physics) published over the last six decades. It discusses similarities and differences between the topics that both corpora of paratexts address

Keywords
Paratexts; Forewords; Literary Translation; Specialized Translations

1. Introdução

O paratexto mais popular entre estudiosos da tradução é, muito possivelmente, o texto intitulado “The Task of the Translator” que Walter Benjamin escreveu como prefácio para a sua tradução de Tableaux Parisiens (Charles Baudelaire) em 1923. Contudo, foi principalmente nas últimas duas décadas que os paratextos de traduções começaram a ser estudados pelos teóricos da tradução de forma mais sistemática. Ao darem voz aos tradutores, editores e outros agentes responsáveis pela produção de uma determinada tradução, muitos paratextos permitem compreender que concepções e práticas de tradução esses agentes defendem. Podemos até afirmar, sem grande probabilidade de incorrer em erro, que a utilização dos paratextos como fonte de pesquisa é hoje um lugar comum entre aqueles que seguem, por exemplo, a corrente teórica dos Estudos Descritivos de Tradução inaugurada por TouryToury, Gideon. Descriptive Translation Studies and beyond. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1995. e HermansHermans, Theo. Translation in Systems. Descriptive and System-Oriented. Approaches Explained. Manchester: St. Jerome Publishing, 1999..

No entanto, apesar dessa corrente teórica focar no estudo da tradução como fenômeno cultural abrangente, ela foi predominantemente aplicada ao estudo da tradução de textos literários e, por esse motivo, o conhecimento gerado a partir do estudo dos paratextos assenta principalmente em corpora de traduções de textos literários e não em corpora de traduções de textos especializados. Na obra Translation and Paratexts publicada em 2018, Kathryn Batchelor expressa esta mesma opinião e faz um resumo das principais linhas de pesquisas baseadas em paratextos e explica que há ainda muito por estudar.

O objetivo do presente trabalho consiste, precisamente, em colmatar essa lacuna, ao examinar a função dos paratextos incluídos em traduções publicadas que entram na categoria de traduções especializadas. Mais especificamente, pretendemos comparar as funções e os temas presentes em cerca de vinte introduções e prefácios de traduções literárias e em cerca de vinte e quatro introduções e prefácios de traduções especializadas. Para isso, utilizaremos um corpus de quinze traduções de Hamlet (William ShakespeareShakespeare, William (a). A Tragédia de Hamleto, Príncipe da Dinamarca. Tradução de Tristão da Cunha. Rio de Janeiro: Schmidt, 1933.) publicadas no Brasil nas últimas seis décadas e um corpus de cerca de duzentas traduções de livros acadêmicos sobre diversas áreas do conhecimento também publicados no Brasil nesse espaço de tempo. As nossas questões de pesquisa são as seguintes: que temas e funções podemos encontrar nos paratextos dos dois tipos de tradução (literária e especializada)?; o conhecimento acumulado sobre os paratextos de traduções literárias é compatível com o que se observará nos paratextos das traduções especializadas?; que temas e funções diferenciam os dois conjuntos de paratextos?.

Este trabalho está organizado da seguinte forma: em primeiro lugar, traçamos um panorama das pesquisas que têm utilizado os paratextos como metodologia de trabalho, sublinhando as principais descobertas feitas por outros pesquisadores. Em segundo lugar, descrevemos a metodologia da nossa pesquisa e caracterizamos os corpora de paratextos. Depois de compararmos e discutirmos os dados do corpus literário e do corpus especializado, terminamos com considerações sobre as respostas que obtivemos em relação às questões de pesquisa.

2. Estudos sobre os paratextos de traduções

Em 1987, Gérard Genette publicou um estudo sincrônico sobre as características dos paratextos editoriais, no qual distingue epitextos (exteriores à obra) de peritextos (no espaço físico da obra), classifica o autor dos paratextos (autor, editor, alógrafo) e caracteriza as funções (apresentar o texto, vender o texto) e as categorias de paratextos (introdução, nota, apresentação, preâmbulo, prefácio, etc.). GenetteGenette, Gérard. Seuils. Paris: Seuil, 1987. não trata dos paratextos presentes em obras traduzidas publicadas, mas sugere, de forma muito breve, que as traduções podem ser consideradas como um tipo de paratexto porque elas são textos sobre outros textos – os textos fonte.

Uma das primeiras reflexões sobre o papel que os paratextos poderiam desempenhar nos Estudos de Tradução veio da pesquisadora turca Tahir-GürçaglarTahir-Gürçaglar, Şehnaz. “Paratexts.” In: Gambier, Yves; Doorslaer, Luc van. (Eds.) Handbook of Translation Studies, volume 2, Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2011, p. 113-116., que critica a sugestão de Genette, pois implicaria em uma relação de inferioridade por parte dos textos traduzidos em relação aos textos fonte, relação esta que tem sido desconstruída por diversos teóricos da tradução nas últimas décadas. Para a pesquisadora turca, textos traduzidos têm o mesmo status que os textos fonte, não podendo, portanto, ser equiparados a paratextos. Para ela, os paratextos podem ser úteis para pesquisas nos Estudos de Tradução, pois eles servem para apresentar os textos traduzidos e os metadiscursos formados diretamente a partir desses textos traduzidos. Foi este princípio de base que orientou muitas pesquisas desenvolvidas desde então e, como a autora afirma mais tarde, o interesse pelo estudo dos paratextos só tem vindo a aumentar (Tahir-Gürçaglar 114Tahir-Gürçaglar, Şehnaz. “What texts don’t tell: the uses of paratexts in translation research” In: Hermans, Theo (Ed.) Crosscultural Transgressions. Research Models in Translation Studies II: Historical and Ideological Issues, Manchester: St. Jerome, 2002, p. 44-60.).

Como prova disso, nos últimos anos, algumas coleções de artigos têm mostrado que os paratextos de literatura traduzida podem ser estudados de diversas formas e sob diferentes enfoques. É o caso das obras coletivas de Gil-Bardaji et al.Gil-Bardají, Anna; Orero, Pilar; Rovira-Esteva, Sara. (Eds). Translation Peripheries: Paratextual Elements in Translation. Bern: Peter Lang, 2012.; PellattSardin, Pascale. “De la note du traducteur comme commentaire: entre texte, paratexte et pretexte.” Palimpsestes 20 (2007): 121-136.; Belle e HosingtonBelle, Marie-Alice; Hosington, Brenda. (Eds.) Thresholds of Translation Paratexts, Print, and Cultural Exchange in Early Modern Britain (1473-1660). Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2018., que examinam vários aspectos dos elementos paratextuais presentes, sobretudo, em traduções de obras literárias. Batchelor (31-39) considera que os principais temas de pesquisas baseadas em paratextos têm sido: a utilização de paratextos como fontes de documentação para pesquisa histórica; o estudo dos paratextos como lugar de tradução e visibilidade do tradutor; a relação entre paratextos e contextos socioculturais (e consequências) de tradução; paratextos e estudos de gênero; paratextos e formação de imagem; paratextos e agência.

Há pesquisadores que se concentram nas introduções e nos prefácios, como é o caso de Martins, mas há também quem se interesse por outras categorias de paratextos, como as notas do tradutor (Mittman; Ferreira; SardinMittman, Solange. Notas do Tradutor e Processo Tradutório. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.). Por exemplo, a pesquisadora espanhola Toledano BuendíaToledano Buendía, Carmen. “Listening to the voice of the translator: A description of translator’s notes as paratextual elements.” The International Journal for Translation and Interpreting Research 5.2 (2013): 149-162. argumenta, em seu ensaio sobre notas de tradução, que os elementos paratextuais servem de artifício para que a voz do tradutor seja ouvida, além de alegar que o estudo de notas de tradução e outros tipos de paratexto podem fornecer informações relevantes para a contextualização dos processos tradutórios e entender as normas e políticas vigentes da época.

Outra prova de que o interesse pelo estudo dos paratextos nos Estudos de Tradução cresceu significativamente é a proposta de Yuste FríasYuste Frías, José. “Au seuil de la traduction : la paratraduction.” In: Naaijkens, T. (Ed.) Event or Incident. Événement ou Incident. On the Role of Translation in the Dynamics of Cultural Exchange. Du rôle des traductions dans les processus d’échanges culturels. Bern: Peter Lang, 2010, p. 287-316. apresentada em seus trabalhos de 2010, 2012 e 2014, que cria o nome “paratraduccion” para a abordagem teórico-metodológica que faz uso dos paratextos para estudar a participação dos tradutores no processo editorial de publicação de uma determinada tradução. Yuste FríasYuste Frías, José. “Paratextual Elements in Translation: paratranslating titles in children’s literatura.” In: Gil-Bardají, Anna; Orero, Pilar; Rovira-Esteva, Sara. (Eds) Translation Peripheries: Paratextual Elements in Translation, 2012, p. 117-134. desenvolve, inicialmente, essa teoria da “paratraduccion” com base em suas pesquisas sobre tradução de literatura infantil, mas defende que ela pode ser aplicada a outros tipos e focos de tradução. Para Batchelor (152)Batchelor, Kathryn. Translation and Paratexts. New York: Routledge, 2018. não é necessário criar um termo novo para uma teoria específica sobre a importância dos paratextos em tradução como faz Yuste FríasYuste Frías, José. “Paratextualidade e tradução: a paratradução da literatura infantil e juvenil.” Cadernos de Tradução 34 (2014): 9-60. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2014v2n34p9/0. Acesso em: 23/01/2020.
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, ainda que ela reconheça a importância das questões levantadas pelo grupo de pesquisa por ele liderado.

Como fica claro no panorama traçado até agora e de acordo com o que Batchelor constatou, a maior parte da pesquisa baseada em paratextos tem se concentrado nas traduções de textos literários, o que significa que pouco se sabe sobre os paratextos em traduções de textos especializados. No entanto, existem algumas poucas contribuições que incidem sobre esse tipo de textos com descobertas que merecem ser discutidas aqui. Por exemplo, KoşKoş, Arzu. “Analysis of the paratexts of Simone de Beauvoir’s works in Turkish.” In: Pym, Anthony; Perekrestenko, Alexander. (Eds). Translation Research Projects 1. Tarragona: Intercultural Studies Group. Tarragona: Intercultural Studies Group, 2008, p. 59-68. mostra a ligação entre os paratextos das traduções para o turco das obras filosóficas de Simone de Beauvoir e as posições ideológicas sobre o feminismo na Turquia que foram evoluindo nas décadas de 60 a 80. Outra contribuição importante é a de Dimitriu que seleciona 20 introduções num corpus misto de traduções literárias e especializadas e identifica três principais funções desempenhadas por este tipo de paratextos. Uma delas consiste em fornecer explicações, que podem tratar da seleção dos textos e autores, e/ou de determinadas estratégias utilizadas para resolver problemas de tradução (tradução de títulos, trocadilhos, elementos culturais específicos da cultura fonte, etc.). Outra função seria a de dar informações, que podem corresponder a análises mais ou menos detalhadas dos textos fonte e dos contextos socioculturais, sem que haja justificações explícitas sobre a tradução em causa. A terceira função dos paratextos seria normativa ou prescritiva. Neste caso, os paratextos apresentam instruções ou modelos que devem ser seguidos por outros tradutores e que refletem normas de tradução vigentes numa determinada época e cultura que o tradutor/autor do paratexto seguiu ou rejeitou. Dimitriu acrescenta que há, frequentemente, um discurso sobre uma suposta “fidelidade” ao texto fonte e ao público-alvo da tradução.

Por fim, importa citar a contribuição de Schepper que se concentra nas traduções para o inglês de manuais de navegação portugueses e espanhóis publicados na época da Renascença na Inglaterra. À semelhança de DimitriuDimitriu, Rodica. “‘Translators’ prefaces as documentary sources for translation studies.” Perspectives: Studies in Translatology. 17.3 (2009): 193-206., SchepperSchepper, Susanna. Foreign Books for English Readers – Published Translations of Navigation Manuals and their Audience in the English Renaissance, 1500-1640. Doctoral thesis – University of Warwick, Centre for the Study of the Renaissance, 2012. identifica padrões temáticos nos paratextos do corpus de pesquisa: razões para a existência da tradução, declarações de intenções, método de tradução seguido pelo tradutor, e argumentação de modéstia (em que o tradutor/autor do paratexto afirma que experimentou sentimentos de humildade face à grande tarefa de tradução). Como também mencionado em Dimitriu, Schepper nota que o tamanho dos paratextos varia muito (de uma página até dezenas de páginas).

Com base no panorama que acabamos de traçar, podemos concluir que o único estudo verdadeiramente contrastivo (tradução literária vs. tradução especializada) é o de Dimitriu, mas a pesquisadora não procura estabelecer elementos de comparação entre os gêneros textuais e de tradução, apesar de utilizar um corpus misto. É neste sentido que o estudo que apresentamos aqui procura seguir uma abordagem comparativa e ampliar trabalhos anteriores, tais como VieiraVieira, Pedro. As traduções de Hamlet no Brasil: um estudo diacrônico dos paratextos. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018. e Vieira e PimentelVieira, Pedro e Pimentel, Janine. “Traduções de Hamlet no Brasil: um estudo diacrônico dos paratextos.” Tradução em Revista 25 (2018): 171-193., que apresentam um estudo diacrônico dos padrões discursivos identificados nas traduções brasileiras de Hamlet, cujas principais descobertas retomaremos nas seções seguintes para podermos viabilizar a comparação entre as funções dos paratextos em traduções literárias e em traduções especializadas. A seção seguinte apresenta e examina os dois corpora de paratextos.

3. Prefácios e introduções no corpus literário

O corpus de paratextos de tradução literária inclui os textos introdutórios em posição pré-textual (isto é, anterior ao texto traduzido) de doze traduções da peça Hamlet, de ShakespeareShakespeare, William (b). Tragédias de Shakespeare: Romeu e Julieta, Hamlet e Macbeth. Tradução de Oliveira Ribeiro Neto. São Paulo: Martins Editora, 1960., publicadas nas últimas sete décadas. O Anexo 1 apresenta a lista dos vinte e oito paratextos que examinamos em seguida.

A primeira tradução de Hamlet foi publicada em 1933 pela Editora Schmidt. O responsável pela tradução, Tristão da Cunha, também se incumbiu de escrever o prefácio da obra, utilizando o português seiscentista, tal qual o restante da tradução, com o claro objetivo de remeter ao português utilizado na época de ShakespeareShakespeare, William (c). A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1955.. Em seu “Prefácio”, Cunha enaltece a figura de ShakespeareShakespeare, William (l). Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução, introdução e notas de Lawrence Flores Pereira. 1st ed. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2015., denominando-o “gênio literário”, e classifica a sua tradução como “honesta e simples”, argumentando a necessidade de traduzir os versos shakespearianos em prosa para “não trair o espírito” da obra.

A segunda tradução, de Oliveira Ribeiro Neto (Martins Fontes, 1948Martins, Marcia. “A voz dos tradutores shakespearianos em seus paratextos”. TradTerm. 26 (2015): 87-120. Portal de Revistas da USP.), apresenta apenas um breve texto introdutório na orelha do livro, de cunho editorial/comercial em que se enaltece a obra e o autor. Sem indicação autoral, o texto destaca a capacidade de ShakespeareShakespeare, William (d). Cimbelino, Péricles e Hamleto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, 1956. de se inserir nas mais diversas escolas literárias – “dos românticos aos surrealistas” – atribuindo-lhe características como “indestrutibilidade” e “perenidade”, um “ponto de referência permanente”.

A tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos (José Olympio, 1955) apresenta um longo paratexto chamado “Introdução” que abrange os seguintes temas: o contexto sociohistórico da peça shakespeariana, descrevendo de forma breve a origem do conto do príncipe dinamarquês; o Ur-Hamlet, texto que teria servido como fonte principal de ShakespeareShakespeare, William (k). O primeiro Hamlet: In-quarto de 1603. Organização e tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo: Hedra, 2010.; e, por fim, informações a respeito das versões da peça, do enredo e das características dos personagens principais. Dedica, no entanto, pouco espaço para a questão da tradução, atendo-se a apresentar justificativas relacionadas ao uso da versão do texto fonte e também de questões concernentes a alternância entre o verso e prosa na tradução.

A tradução de Carlos Alberto Nunes (Melhoramentos, 1956) conta com três textos introdutórios. O primeiro, denominado “Introdução geral e plano da publicação do teatro de Shakespeare”, de autoria do próprio Nunes, traça uma comparação entre a crítica romântica de Shakespeare e a crítica moderna de cunho objetivo; fornece informações biográficas relevantes sobre o autor, apresentando a cronologia da publicação de suas peças; trata da questão da tradução nas duas últimas seções, realçando a importância de traduzir a obra shakespeariana para outras culturas com a afirmação de que “a influência de Shakespeare sobre uma literatura independe da excelência da tradução. Basta que seja Shakespeare” (9)Shakespeare, William (i). Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Tradução de Mario Fondelli. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil, 1996.. Assegura, ao fim da introdução, de que se manteve fiel ao texto em inglês, vertendo o verso para o decassílabo heroico que seria o “verso português que mais se aproxima do decassílabo inglês de cinco pés” (10), mantendo a uniformidade do estilo na tradução das passagens em verso branco.

Os outros dois paratextos não possuem indicação de autoria. O primeiro, intitulado “Hamleto”, aborda as fontes históricas da peça, uma breve sinopse do enredo e apresenta algumas reflexões críticas sobre a obra, porém de modo genérico, em meio a elogios enaltecedores ao que denomina como a “obra-prima de Shakespeare”. O segundo, intitulado “Prefácio”, se assemelha a um breve ensaio introdutório sobre a peça. Aqui são repetidas as informações sobre as fontes, porém de forma mais detalhada e específica.

A tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça, publicada em 1968 e republicada pela Nova Fronteira (1995)Shakespeare, William (e). Hamlet e Macbeth. Tradução de Hamlet por Anna Amélia Carneiro de Mendonça; tradução de Macbeth por Bárbara Heliodora. 2nd ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1968] 1995., apresenta dois prefácios escritos pela filha da tradutora, Bárbara Heliodora, uma das maiores críticas e especialistas de ShakespeareShakespeare, William (e). Hamlet e Macbeth. Tradução de Hamlet por Anna Amélia Carneiro de Mendonça; tradução de Macbeth por Bárbara Heliodora. 2nd ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1968] 1995. no Brasil. O primeiro prefácio remete à primeira edição, de 1968, em que Heliodora explica que necessitava de uma tradução de Hamlet para trabalhar em uma série de aulas que ministraria no Conservatório Nacional de Teatro. Deste modo, teria convencido a sua mãe de traduzir a peça na íntegra. Aborda didaticamente outras questões relacionadas ao enredo e ao contexto histórico da obra. No prefácio à 2ª edição, mais objetivo e curto, Heliodora discorre sobre as fontes primárias da peça e a história das diferentes versões publicadas.

A tradução seguinte, de Fernando Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes (Nova Aguilar, 1969Shakespeare, William (f). Obra Completa. Nova versão anotada de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, [1969] 1988.), constitui a primeira tradução realizada em parceria. O primeiro paratexto, a “Introdução geral”, possui quatro seções: “Nota Editorial”, escrita pelo editor José Aguilar, que apresenta o dramaturgo, de forma enaltecedora, e os tradutores da peça; “Shakespeare”, de autoria do crítico britânico C. J. Sisson abordando assuntos diretamente relacionados a ShakespeareShakespeare, William (j). Hamlet. Tradução interlinear e notas de Elvio Funck. São Leopoldo: Unisinos, 2003. e à era elisabetana; “A vida de Shakespeare na vida do seu tempo”, uma introdução escrita por Oscar Mendes a respeito de aspectos relacionados à vida e a época de ShakespeareShakespeare, William (f). Obra Completa. Nova versão anotada de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, [1969] 1988.; e a “Cronologia da vida e da obra de Shakespeare”, com foco na biografia e na bibliografia do dramaturgo. Além disso, a peça contém um prefácio composto duas seções: “Sinopse”, um breve resumo do enredo da peça, e “Dados Históricos”, contendo informações sucintas sobre a obra e o autor.

A tradução de Geraldo de Carvalho Silos, publicada pela Editora JB em 1984, inclui dois paratextos escritos pelo tradutor. No primeiro, intitulado “Prefácio”, Silos trata diretamente do processo tradutório, citando os cinco anos de pesquisa na Biblioteca Nacional do Canadá, além de fazer comentários sobre aspectos gramaticais da tradução, como a alternância entre pronomes pessoais tu e vós para expressar diferentes situações nas cenas. O segundo texto, intitulado “Introdução”, é mais extenso que o primeiro, e recapitula a questão das fontes históricas da obra. Além disso, ressalta que cada tradução é única, distinta uma da outra, devido a “polissemia intrínseca” da linguagem shakespeariana. Por fim, tece um resumo biográfico do autor.

A tradução de Millôr Fernandes (LP&M, 1988) conta com apenas dois breves textos editoriais. O primeiro é um prefácio sobre ShakespeareShakespeare, William (g). Hamlet. Tradução, introdução e notas de Geraldo de Carvalho Silos. Rio de Janeiro: Editora JB, 1984. de um modo geral, abordando aspectos como a estrutura do teatro elisabetano, dados biográficos básicos do bardo, a cronologia da sua obra e uma breve contextualização histórica da época. O texto da contracapa apresenta a peça como uma obra que trata da condição humana, da vingança e de questões como dúvida e desespero. Também realça a tradução de Millôr e o seu posicionamento crítico em relação a visão erudita tradicional que prejudicaria o texto dramático.

O paratexto da tradução de Mario Fondelli publicada em 1996 (Newton Compton Brasil) consiste em um pequeno e breve texto, intitulado “Nota bibliográfica”, em que introduz resumidamente o autor da peça ao leitor. Em outro texto, “As obras de Shakespeare”, traça um panorama histórico do cânone dramático e apresenta informações bibliográficas a respeito da crítica shakespeariana.

A tradução de Elvio Funck (Unisinos, 2003) se destaca pela sua proposta de tradução interlinear (o texto em inglês é diretamente seguido por sua respectiva tradução em português), justificando que o público-alvo deve ler a peça com mais profundidade e sentir prazer na leitura. Em sua “Introdução” o tradutor realça que muitos aspectos da peça escapam ao “leitor comum” devido à complexidade de sua linguagem, e alega que sua tradução é voltada aos estudantes de Letras não habituados com a leitura da obra. Funck também afirma que a sua tradução é “pragmática e sem pretensões poéticas”. Quanto ao autor e à obra, apresenta brevemente questões tratadas em paratextos de traduções anteriores: as fontes do enredo; críticos literários famosos da peça; fundamentos históricos; questões gramaticais; e uma breve biografia da vida íntima do bardo.

Publicada pela Editora Hedra em 2010, a tradução feita por José Roberto O’Shea se distingue por ser baseada no Primeiro In-Quarto da peça, publicada em 1603. No paratexto que assina (“Introdução”), explica a diferença entre as três versões da peça; enumera as diferenças entre elas; aborda a história da publicação das versões; e enfatiza o caráter dramático do Primeiro In-Quarto em comparação com as outras versões. Trata-se de um texto que evidencia o enorme conhecimento do tradutor sobre a história da obra.

A última tradução brasileira de Hamlet, por Lawrence Flores Pereira publicada em 2015, conta com os seguintes paratextos: a “Introdução”; a “Nota sobre o texto” e a “Nota sobre o tradutor”, todos de autoria do próprio tradutor; e o ensaio “Hamlet e seus problemas” de T. S. Eliot, traduzido pelo Lawrence. No primeiro texto, aborda variadas questões relacionadas à obra e em “Nota sobre o texto”, Lawrence apresenta o panorama histórico das versões das peças. Finalmente, na “Nota sobre a tradução”, aborda a questão tradutória, principalmente no que tange a tradução do verso shakespeariano, justificando sua opção por verter o pentâmetro iâmbico das passagens em verso da peça para o verso dodecassílabo.

4. Prefácios e introduções no corpus especializado

O corpus de pesquisa referente aos paratextos de tradução especializada abrange os textos introdutórios em posição pré-textual encontrados em duzentas traduções de livros acadêmicos de diversas áreas (medicina, física, engenharia, química, etc.) originalmente redigidos em inglês. Nesse conjunto de duzentas obras acadêmicas, publicadas no Brasil entre a segunda metade do século XX e a primeira década do século XXI, encontramos apenas vinte e quatro paratextos que são específicos da tradução, ou seja que não existem no texto fonte (Anexo 2). O tamanho, o título e o autor desses paratextos variam bastante.

O livro Estrutura das ligas de ferro de Hume-Rothery, traduzido por Renato Vieira, Jorge Finardi, Ivan Falleiros, Adolar Pieske e Jorge Cintra, inclui um “Prefácio da Edição Brasileira” assinado por um dos tradutores. O curto paratexto apresenta a relevância do texto-fonte, justifica a necessidade de tradução da obra em questão, explica de que forma os problemas de terminologia foram resolvidos e apela os leitores a colaborarem no “refinamento do texto numa próxima edição”.

A obra Métodos instrumentais de Análise Química de Ewing apresenta um “Prólogo à edição brasileira” assinado pelo tradutor Joaquim Campos, especialista na área do livro, que pede ao público-alvo que reaja à tradução em forma de comentários sobre as decisões que tomou e faz agradecimentos aos alunos que colaboraram com o trabalho de tradução. De forma similar, a obra Princípios da transmissão de calor inclui um “Prefácio da primeira edição brasileira” assinado por um tradutor especialista da área que argumenta sobre a relevância do texto fonte, aborda rapidamente a metodologia de tradução e caracteriza o público-alvo desta.

Já a tradução de Renato Di Dio de Delineamentos experimentais e quase-experimentais de pesquisa contém um “Prefácio à edição brasileira” que corresponde ao maior paratexto do corpus que coletamos assinado pelo tradutor. Trata-se de um paratexto peculiar que começa com um tom de crítica: “Há uma casta estéril de hipercríticos que, além de não produzir nada, se mantêm de tocais insone à espera de que, ao surgir qualquer trabalho, lhe possa assacar aleivosias” (ii). Depois dessa crítica, o tradutor explica a função da edição americana e da tradução, mas poucos parágrafos à frente o tom jocoso é recuperado: “a culpa não é da técnica, mas da banalidade mental de quem as aplica” (iii). O tradutor volta ao tema do texto fonte e de seus autores para expor os méritos e desafios da obra que traduziu, o que lhe permite, então, entrar em detalhes sobre os métodos de tradução que empregou. Esta argumentação inclui não apenas informações, mas também sugere normas em relação aos métodos de tradução: “[a] propósito, nada impede, antes por vários motivos se recomenda, que expressões técnicas fundamentais, quando não tenham correspetivo inequívoco em outra língua, sejam universalizadas, para melhor entendimento entre os especialistas” (iii). É então que humildemente admite que a tradução pode apresentar “imperfeições” e, por isso, mostra-se aberto a receber sugestões. O paratexto volta ao tema da função da tradução, traçando o perfil do público-alvo da tradução. Termina com mais uma última crítica e um parágrafo sobre o estado da arte da área.

Em Indústrias de processos químicos, Horácio Macedo assina uma “Nota à Edição Brasileira” e conta a metodologia de tradução/adaptação à realidade brasileira do texto fonte, dando exemplos sobre as conversões de medidas e outras dificuldades.

Consultamos duas edições do Manual de terapêutica clínica com autores distintos e tradutores diferentes: a primeira por Antônio Candido de Melo e Carvalho, que assina um prefácio à tradução chamado “Nota de Tradutor”, e a outra edição foi traduzida por Jayme Neves que assina o paratexto “Prefácio à Edição Brasileira”, no qual se refere explicitamente à tradução anterior produzida pelo colega tradutor, para além de dar informações sobre a metodologia de tradução.

O livro Fenômenos de calor, traduzido por Luiz Fernando Milanez, contém um “Prefácio à Edição em Português” que o tradutor e o revisor da tradução escreveram. Estes dois paratextos são pequenos, contendo poucos parágrafos sobre a metodologia da tradução e fazem uma caracterização sucinta do texto fonte. De igual forma, as traduções A lei, Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som e Inteligência emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente incluem paratextos que tratam das edições que os tradutores utilizaram para realizar as traduções, elogiam o autor do texto fonte, pedem desculpas por eventuais falhas e tecem agradecimentos.

Um dos paratextos do corpus que mais nos chamou a atenção foi a “Apresentação” escrita por Edmée Brandi e May Camara Moreira de Sousa em Patologia dos sistemas da fala. Nela encontramos, depois de uma descrição sumária da formação do fonoaudiólogo nos Estados Unidos, vários parágrafos sobre as dificuldades experimentadas durante o processo tradutório e o reconhecimento de que não são “tradutores profissionais” (s. p.):

Não somos tradutores profissionais, nem pretendemos o ser. Somos um grupo de especialistas, cujo intuito, ao empreender a tradução desta obra, foi servir à classe, já numerosa, de fonoaudiólogos brasileiros. Nosso empreendimento proporcionou-nos experiências enriquecedoras e desenvolveu em nós um grande sentimento de humildade.

O livro A Economia da Natureza, traduzido por Cecília Bueno e Pedro de Lima e Silva, apresenta um paratexto chamado “Nota dos Tradutores”, no qual os tradutores descrevem a metodologia que utilizaram durante o processo tradutório e as fontes de pesquisa terminológica que consultaram. Por exemplo, os tradutores explicam que decidiram incluir comentários e notas do tradutor para tratar de semelhanças e diferenças entre a cultura fonte e a cultura de chegada e terminam o texto com um agradecimento.

Em MARC 21, Formato condensado para Dados Bibliográficos encontramos um “Prefácio” assinado pela tradutora, Margarida Ferreira, no qual apresenta o campo disciplinar em que a obra se insere, o objeto de estudo do livro (um formato bibliográfico chamado MARC), e decisões em relação à tradução (s.p.):

[...] Informo que algumas partes que no momento não puderem ser traduzidas, foram colocadas em inglês tal como aparecerem no texto original, o que ocorre principalmente nas tabelas referentes a características físicas, cujos termos técnicos me eram desconhecidos. Para esta edição não foi possível fazer uma pesquisa de exemplos dos casos brasileiros, por isso foram repetidos os exemplos originais em inglês, mesmo porque muitos desses campos não são utilizados ainda no Brasil. [...]

Essa declaração da tradutora, de acordo com a qual não teria sido possível “fazer uma pesquisa de exemplos brasileiros”, é a única do gênero que encontramos no corpus dos paratextos das traduções especializadas e é enigmática, pois não é apresentada nenhuma justificativa para essa impossibilidade. O paratexto termina com agradecimentos e apela-se a sugestões e comentários críticos por parte dos leitores.

Em Cirurgia ortopédica de Campbell podemos observar uma “Nota do editor”, na qual isenta toda a equipe envolvida na publicação de qualquer responsabilidade envolvendo o material publicado, e uma “Apresentação” assinada pelo Presidente da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia.

O livro Geofísica da Exploração, traduzido por Maria Cristina Coelho, inclui três paratextos distintos relevantes. O primeiro chama-se “Apresentação”. O autor deste paratexto, o editor, explica a razão da tradução: “Ainda não se dispunha de um livro em português que abrangesse todos os métodos geofísicos para auxiliar esses estudantes e profissionais a seguir a carreira de geofísico” (6). Esse mesmo texto tece também comentários sobre o trabalho da tradutora: “[a] tradutora não poupou esforços em adequar os termos técnicos do inglês para o português, que podem, a partir daqui, ser cada vez mais consagrados e utilizados entre os profissionais de geofísica brasileiros” (6). O segundo paratexto presente neste livro intitula-se “Prefácio à edição brasileira” e é assinado por um professor da Universidade Federal Fluminense, que reforça a ideia do paratexto anterior. Em seguida, o paratexto apresenta uma caracterização do público-alvo da tradução: estudantes e profissionais de áreas técnicas e científicas, geocientistas e outros interessados de diversas áreas, que abrangem desde a Arqueologia até as Engenharias, passando pela Física e pela Matemática.

No livro Elementos da natureza e propriedades dos solos encontramos uma longa “Apresentação à edição brasileira” assinada por Igor Lepsch que é especialista na área. Trata-se de uma apresentação da história do texto fonte e dos conteúdos do livro. Também se caracteriza o público-alvo da tradução e o tradutor faz um agradecimento aos colegas especialistas que o auxiliaram.

Uma das poucas tradutoras no nosso corpus especializado que é bacharel em tradução é Maria Inês Corrêa que fez parte da equipe que traduziu Wong, fundamentos da enfermagem pediátrica. Aqui encontramos três prefácios: um “Prefácio à edição brasileira”, “Características Especiais” e “Adaptação à realidade brasileira”. O primeiro é o mais extenso e está assinado pela “Supervisora da Revisão Científica” que é também “Responsável pelas Adaptações à Realidade Brasileira”.

5. Conclusão

Este trabalho buscou comparar as funções e os temas de cerca de cinquenta introduções e prefácios presentes em traduções literárias e em traduções especializadas. De uma forma geral, a análise que apresentamos sugere que há mais diferenças do que semelhanças entre os paratextos de traduções literárias e os paratextos de traduções especializadas.

A primeira diferença reside no número de paratextos coletados, pois identificamos apenas vinte e quatro paratextos no corpus de duzentas traduções de textos especializados contra vinte e seis paratextos em quinze traduções da peça Hamlet. Isso parece indicar que os tradutores dos textos especializados nem sempre tiveram a possibilidade de escrever sobre a tradução que produziram.

É certo que há temas transversais em ambos os corpora, mas podemos afirmar que os paratextos de tradução literária correspondem, em geral, a prefácios e introduções que tratam, predominantemente, de aspectos diretamente relacionados à obra e/ou ao autor, incluindo algumas vezes comentários e reflexões sobre a tradução propriamente dita. Já nos paratextos de tradução especializada encontramos uma maior diversidade de temas abordados e até temas que não foram identificados no corpus de paratextos de traduções literárias, como a incitação à colaboração dos leitores e informações a respeito dos tradutores. Além disso, os autores dos paratextos fazem constante referência à metodologia de tradução que seguiram e aos principais problemas que encontraram. Assim, quando comparados, o corpus de paratextos de tradução especializada dedica mais espaço à reflexão sobre o processo tradutório.

A diferença mais proeminente entre os corpora consiste na relação que os paratextos estabelecem com o autor da obra traduzida: enquanto os paratextos de tradução literária enaltecem Shakespeare diversas vezes, os autores dos textos fonte do corpus de tradução especializada não são sempre enaltecidos.

Já a principal semelhança entre os corpora reside na autoria dos paratextos. Em ambos os casos, são apresentados prefácios e introduções que são escritos pelo próprio tradutor em sua maioria, mas ambos os corpora também apresentam textos de cunho editorial e com um tom propagandístico, bem como textos alográficos, isto é, escritos por outros autores que não o tradutor da obra – frequentemente especialistas de renome convidados para dissertar sobre a obra ou a tradução.

Como seria de esperar, e corroborando as descobertas das pesquisas resenhadas, a análise dos paratextos de tradução literária evidencia a importância da recepção cultural e histórica de Hamlet no Brasil. Podemos notara evolução do discurso a respeito de William ShakespeareShakespeare, William (h). Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: LP&M, [1988] 2012. e sua obra ao longo das décadas, tendo relação direta com o contexto de produção e recepção das respectivas traduções. Os paratextos de tradução especializada também apresentam vários aspectos sobre a obra e o autor. Porém, não há um foco no contexto sociohistórico de produção e recepção da obra tal como ocorre nos paratextos de tradução literária.

Ainda em relação aos paratextos de tradução especializada, os nossos resultados parecem corroborar as descobertas de Dimitriu e Schepper, em relação aos padrões temáticos dos paratextos. No entanto, a nossa pesquisa sobre os paratextos de tradução especializada identificou padrões temáticos que não constam dessas pesquisas. É o caso, por exemplo, da temática de interpelação do leitor para que este contribua com edições futuras da tradução e da crítica a colegas da área em que se insere a obra traduzida.

Por fim, podemos formular a hipótese de que as diferenças notáveis entre ambos os corpora refletem como os dois tipos de tradução se localizam nos Estudos da Tradução no âmbito geral, além de influenciar na recepção dessas obras. As motivações sociohistóricas que acarretam nessa diferença pode ser objeto de estudos posteriores mais aprofundados sobre o tema em questão.

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Corpus literário

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  • Shakespeare, William (c). A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1955.
  • Shakespeare, William (d). Cimbelino, Péricles e Hamleto Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, 1956.
  • Shakespeare, William (e). Hamlet e Macbeth Tradução de Hamlet por Anna Amélia Carneiro de Mendonça; tradução de Macbeth por Bárbara Heliodora. 2nd ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1968] 1995.
  • Shakespeare, William (f). Obra Completa Nova versão anotada de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, [1969] 1988.
  • Shakespeare, William (g). Hamlet Tradução, introdução e notas de Geraldo de Carvalho Silos. Rio de Janeiro: Editora JB, 1984.
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Corpus especializado

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  • Campbell, William; Frisse, Mark. Manual de terapêutica clínica Tradução de Jayme Neves. 24a edição. Rio de Janeiro: Medsi - Editora médica, 1985.
  • Campbell, Donald; Stanley, Julian. Delineamentos experimentais e quase-experimentais de pesquisa Tradução de Renato Alberto T. Di Dio. São Paulo: EPU/EDUSP, 1980.
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  • Hockenberry, Marilyn; Wilson, David. Wong, fundamentos da enfermagem pediátrica Tradução de Maria Inês Corrêa Nascimento. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
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Anexo 1

Anexo 1
Paratextos extraídos das 12 traduções publicadas de Hamlet

Anexo 2

Anexo 2
Paratextos extraídos das 200 traduções publicadas de livros acadêmicos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2020
  • Aceito
    30 Mar 2020
  • Publicado
    Maio 2020
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