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A PROPÓSITO DA TRADUÇÃO DA NOVELA A DÓCIL, DE DOSTOIÉVSKI

ABOUT THE TRANSLATION OF “THE MEEK ONE” BY DOSTOEVSKY

Resumo

A partir de uma breve contextualização da recepção da obra de Dostoiévski no Brasil, o presente artigo procura apresentar algumas das características que se sobressaem na linguagem por ele empregada em sua novela A dócil. Para transmitir espontaneidade ao discurso do narrador de A dócil e representar sua perturbação, confusão e espanto diante de um acontecimento inesperado em sua vida, Dostoiévski utiliza amplamente alguns recursos sintáticos, como partículas expletivas, repetições, travessão, reticências, itálico, dois pontos, diminutivos, que anotam como que o processo, ou o próprio ritmo da composição, e constituem verdadeiros desafios ao tradutor para a recriação de seu estilo em português.

Palavras-Chave
Dostoiévski; A Dócil ; Literatura Russa; Tradução

Abstract

Starting with a brief contextualization of the reception of Dostoevsky’s work in Brazil, this article analyzes some traits of the language and style employed by the author in the story “The Meek One”. To impart spontaneity to the narrator’s speech and to convey his unease, confusion, and amazement at an unexpected event in the narrator’s life, Dostoevsky makes broad use of certain syntactic resources, such as expletive particles, repetitions, dashes, ellipses, italics, colons, and diminutives. These have the effect of transmitting the process, or the rhythm, of the composition itself, and they present genuine challenges for the translator in recreating Dostoevsky’s style in Portuguese.

Keywords
Dostoevsky; “The Meek One”; Russian Literature; Translation

Em um artigo de 1873 intitulado “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki), Dostoiévski atribui a falta de interesse pela literatura russa na Europa principalmente à incapacidade dos europeus de transmitir o que nela havia de mais essencial. Na sua opinião, era impossível traduzir Gógol, assim como Púchkin e mesmo Turguêniev para o francês, já que nas poucas traduções existentes eles “desapareciam completamente”, tornando irreconhecível tudo o que havia de “verdadeiramente característico e nacional”, ou seja, tudo o que havia de “verdadeiramente artístico” em suas obras. Daí a sua desoladora conclusão de que todos os grandes talentos russos “estavam fadados a permanecerem desconhecidos na Europa ainda por muito tempo. E quanto maior e mais singular o talento, mais desconhecido seria”. (DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980., A propósito da exposição 68).

Para as diretrizes estéticas do realismo e do naturalismo francês, fundamentadas na filosofia materialista, os novos padrões da literatura russa, de fato, revelavam-se demasiado estranhos. Daí os parcos resultados obtidos com as tentativas de introdução dos romancistas russos na França, que permaneceram quase ignorados até o surgimento do famoso livro de Melchior de Vogüé, O romance russo, em 1886. Publicado num momento em que já se esboçava uma certa atmosfera de “desilusão com o progresso” e um “sentimento de um vazio qualquer, que o cientificismo não conseguia preencher”, o estudo de Vogüé vinha justamente, como apontava então o crítico brasileiro Brito BrocaBroca, Brito. “Introdução”. O romance russo, Melchior de Vogüé. (org), Rio de Janeiro: Editora A Noite, s./d. s/p, “opor à secura do realismo e do naturalismo francês a amplitude artística e humana do realismo russo”. (Vogüé 8-9Vogüé, Melchior de. (Org). O romance russo. Rio de Janeiro: Editora A Noite, s./d. s/p).

Tenham ou não conseguido transmitir o que havia de essencial nessa nova literatura apresentada por Vogüé, o fato é que, justamente graças aos tradutores franceses, não demorou para que o território desconhecido do “romance russo” começasse a se revelar ao seu público e a se difundir no Ocidente, criando uma euforia sem precedentes até mesmo em mercados editoriais ainda incipientes, como era o caso do Brasil. Sem deixar escapar nenhum dos grandes talentos, a verdadeira onda que se formou em torno da literatura russa a partir da França envolveu também Dostoiévski, cuja obra, ao aportar em solo brasileiro, encontrou um terreno pouco preparado para uma recepção à altura da sua singularidade. “Não que o Brasil fosse um país culturalmente atrasado e sem leitores”, ao contrário, existia aqui uma atividade intensa de circulação de livros, que tornava o mercado brasileiro altamente promissor, além de comercialmente atraente (Ferrari 76Ferrari, Márcio. “Globalização no século XIX”. Revista Pesquisa FAPESP. São Paulo: 2016.). E com o surgimento das primeiras grandes editoras no país, na década de 1930, que incluíam em seus títulos grandes obras de ficção, em especial do século XIX, os russos ocuparam lugar de destaque.

Liberados da exigência que se tem hoje de fidelidade ao original, os tradutores, no geral “homens de letras” que se dedicavam a várias atividades intelectuais, gozavam de plena liberdade em relação ao texto. Mas, assim como em praticamente todo o Ocidente, no Brasil, por quase um século, o processo de recepção dessa literatura se deu principalmente através de traduções indiretas, realizadas sobretudo a partir das edições francesas, que Dostoiévski havia considerado “impróprias”. E se, de fato, como apontava o escritor, nas traduções diretas para o francês já se perdia todo o essencial, a ponto de as obras se tornarem irreconhecíveis, nas retraduções, dadas as especificidades que cada língua possui, os prejuízos no que se refere às sutilezas dos originais eram ainda maiores. Embora como versões do francês pudessem resultar em textos de valor inegável, em todo caso eram traduções que já haviam passado pelo filtro de uma língua intermediária e, em grande medida, haviam sido acomodadas às necessidades da língua e do gosto do leitor a que se destinavam.

Principalmente no que se refere à história da publicação da obra de Dostoiévski, a tendência das traduções, realizadas sobretudo, a partir das francesas, era ganhar um tom muito mais abrandado e elegante do que o original, dadas as “exigências gramaticais e sintáticas” estritas deste idioma, considerado “claro, preciso e pouco flexível”. (Rónai 94Rónai, Paulo. A tradução vivida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981.). Afora isso, algumas obras ainda eram submetidas pelas editoras a certos expedientes inconcebíveis, como a redução quase aleatória do texto, com a intenção de diminuir não só o preço como também o volume. E, nesse sentido, como aponta Denise Bottman, tradutora e pesquisadora em história da tradução no Brasil, uma das obras russas mais sacrificadas por esse processo foi o romance Os irmãos Karamázov. (Bottman 63-64Bottman, Denise. “Bibliografia Russa Traduzida no Brasil (1900-1950). Breves notas complementares”. RUS Revista de Literatura e Cultura Russa. 5.5 (2015): 60-65. Portal de Periódicos da USP. 07/02/2019. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rus/article/view/108342/106636.
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). Além de cortes, adaptações, condensação do argumento, muitas das características e mesmo detalhes que deveriam ser ressaltados nas obras simplesmente se perdiam, o que, no caso de Dostoiévski, cuja língua literária é caracterizada por um aparente (mas intencional) mal acabamento estilístico, cria realmente um problema.

E à medida do surgimento de novas gerações de tradutores e pesquisadores da literatura russa no Brasil, nossa tendência foi sendo cada vez mais de torcer o nariz para as versões realizadas a partir de uma língua de permeio, que, aliás, estão praticamente deixando de existir. No entanto, não obstante os expedientes utilizados e todos os inconvenientes que esse processo possa ter apresentado, ele cumpriu um papel essencial para a divulgação dos escritores russos principalmente entre os leitores de países periféricos, como o nosso. E mesmo nos casos em que não podia proporcionar um conhecimento do que havia de mais “característico”, de “verdadeiramente artístico” nestes escritores, ao menos obsequiou com a concepção estética de suas narrativas todos aqueles que não conheciam o idioma russo e só assim puderam ter acesso às suas obras.

Ao me propor a traduzir a novela A dócil (Krótkaia, em russo),1 1 Com o subtítulo “Uma história fantástica”, esta novela foi publicada no número de novembro de 1876 do Diário de um escritor, revista mensal de Dostoiévski, da qual ele foi o único editor. de Dostoiévski, procurei fazer uma leitura prévia de suas várias versões existentes em português,2 2 Em português, esta obra recebeu os mais diversos títulos, entre outros: “Ela era doce e Humilde”, tradução de Valdemar Cavalcanti para O livro de Ouro dos contos russos, da Ediouro, s/d.; “Krotkaia”, tradução de Ruth Guimarães para Histórias dramáticas, da Editora Cultrix, 1960, e Os mais brilhantes contos de Dostoiévski, da Edições Ouro, 1970; “Uma doce criatura”, tradução de Natália Nunes para a Obra Completa de F. M. Dostoiévski em 4 volumes, da Ed. Nova Aguilar, 1963. com o objetivo de obter uma visão global dos problemas apresentados nas traduções indiretas e da maneira como cada uma delas refletia a atmosfera e as tendências da época em que fora publicada. Como foi possível verificar, como versões realizadas a partir de outras línguas, algumas eram até excelentes, mas, em relação ao original em russo, para nós, leitores brasileiros, deixavam muito a desejar.

A novela A dócil foi escrita logo após a publicação de O adolescente, o quarto dos cinco grandes romances de Dostoiévski. Ou seja, ela foi escrita num momento em que seu método de criação já havia se desenvolvido em toda a sua complexidade e apresentava-se nela numa forma extremamente acabada e exemplar. O crítico russo A. S. Dolínin, num artigo inteiramente dedicado à novela, considerou-a como “uma das mais íntegras e mais acabadas de suas obras literárias” (Dolínin 428Dolínin, A. S. “Krótkaia” (A dócil). F. M. Dostoiévski. Statii i materiali (F. M. Dostoiévski. Artigos e Materiais). 2: 423–508. Leningrado-Moscou: Ed. Misl, 1924. 01/11/2019. Disponível em: https://yadi.sk/a/MDm3sCKB3WUECU/5b06ca058d77d407ea2c9245.
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).

A fonte de inspiração para escrevê-la foi um fato da vida real, tirado de uma notícia de jornal – o suicídio de uma jovem costureira. Em seu anseio por tentar desvendar os “enigmas” capazes de levar uma pessoa ao suicídio, Dostoiévski submete as inquietações das personagens a uma análise detalhada, revelando a sua existência em toda a sua complexidade. Para isso, A dócil foi construída completamente em forma de monólogo interior, à maneira de uma narrativa oral em primeira pessoa. Considerada por Leonid Grossman como “quase o melhor exemplo de monólogo interior em toda a obra de Dostoiévski” (Grossman 134-135Grossman, L. Dostoiévski artista. Tradução de Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.), o tom é dado pela personalidade do narrador e pelo estado emocional em que ele se encontra no momento da enunciação de seu monólogo. Ele expõe seus pensamentos e sentimentos andando de um lado para o outro, enquanto sua esposa jaz sobre a mesa, após ter se atirado da janela. Transtornado sob o abalo da catástrofe que representou para ele a morte da mulher que dizia estar “preparando” para ser sua “companheira”, ele irrompe numa busca torturante da verdade sobre o ocorrido. E, assim, é levado a realizar uma investigação profunda de sua própria vida e, em particular, de sua relação com ela.

Para justificar a técnica empregada na novela, Dostoiévski sugere ao leitor a hipótese de que um estenógrafo onipresente pudesse ter anotado as palavras do herói, que fala por algumas horas, ao rememorar o que aconteceu, voltando-se ora a si mesmo, ora a um interlocutor imaginário, ora a um juiz. Como o narrador se apresenta na novela num momento de exceção em sua vida, sob o efeito de um acontecimento inesperado, seu discurso está repleto de repetições, de partículas expletivas, de sinais de exclamação, de pausas, de suspensão de frases com reticências, travessões, parênteses, dois pontos, etc. Ainda que o discurso do narrador tenha sido reelaborado pelo autor, conforme anunciado no prefácio (“Do autor”) à narrativa, as principais características da linguagem oral foram mantidas pelo autor.

Como foi possível perceber, em algumas das traduções para o português a partir de línguas intermediárias o texto havia sofrido modificações inconcebíveis. Em geral, os enunciados haviam passado por um rearranjo, visando a um melhor acabamento beletrístico, e eliminado a repetição de palavras e até de frases inteiras, quando cada palavra, cada detalhe na obra tem a sua importância. O mesmo havia acontecido com o “excesso” de sinais de pontuação e de partículas expletivas com função enfática no monólogo do herói, que fora edulcorado com a exclusão desses elementos.

Boris Schnaiderman diz ter se deparado com este mesmo tipo de problemas no cotejo que fez de sua tradução do conto “O senhor Prokhartchin” com outras versões. Constatou que estas tinham uma tendência a tornar o discurso mais coerente, com uma sequência melhor elaborada, resultando num trabalho em “boa linguagem literária”. Schnaideman atribui isso ao fato de terem sido realizadas a partir das francesas, que, apesar de “excelentes como estilo, como texto em francês, caracterizam-se, no entanto, por maior suavidade, por um polimento das arestas que altera completamente o tom do original” (Schnaiderman 56Schnaiderman, Boris. Dostoiévski. Prosa e poesia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982.).

No caso de A dócil, as alterações encontradas, que se verificam até mesmo no sentido de trechos do texto, em geral suprimiram pormenores que, ainda que não tenham modificado em nada o seu desfecho ou o seu sentido mais profundo, são características inerentes não só à construção desta obra como ao próprio método criativo de Dostoiévski.

O excesso de partículas expletivas com função enfática é um dos recursos linguísticos característicos do escritor que mais chamam a atenção em sua obra. Em geral, essas partículas têm o propósito de matizar a linguagem da personagem e realçar no texto o tom de narrativa oral, em virtude do caráter extremamente coloquial e expressivo que elas possuem. A questão é que Dostoiévski, que tinha propósitos e objetivos precisos, costumava abusar de seu emprego, o que acaba implicando muitas vezes em verdadeiros desafios para a tradução.

Já em seu romance de estreia, Gente pobre, em seu anseio de representar a realidade com o máximo de objetividade, como exigiam os escritores da então chamada escola natural, de tendência realista, Dostoiévski lançou mão da narrativa em primeira pessoa. Não que a forma, em si, implique em desafios para a tradução. A questão é que, ao colocar um funcionário do mais baixo escalão para conduzir a narrativa, Dostoiévski reproduz, do início ao fim do romance, o modo de falar característico do meio social a que ele pertence. E o modo de Diévuchkin se expressar reflete justamente a pouca formação escolar que ele recebeu. A linguagem que ele emprega em suas cartas é muito diferente, por exemplo, da linguagem empregada nas cartas de Várienka, sua protegida, que recebeu uma formação escolar mais regular. Mas também é possível observar que, à medida que Diévuchkin passa a exercitar a escrita, através da correspondência, ele vai adquirindo experiência e seu estilo vai passando por nítida mudança, que, aliás, chega a ser um alívio para o tradutor, em comparação com o seu início.

Ou seja, cada personagem de Dostoiévski tem um modo característico de se expressar, e este é um elemento ao qual o tradutor tem de estar sempre atento, para não uniformizar a linguagem. No caso de Diévuchkin, a linguagem em suas cartas é cheia de partículas expletivas, de locuções, de repetições, de arranjos que exprimem a sua dificuldade de lidar com a palavra escrita. E numa época em que se exigia dos escritores o emprego de uma linguagem que fosse eminentemente literária, a linguagem do romance não só se revelou insólita para a crítica como foi tomada como uma grande transgressão da norma.

Entre os vários recursos a que Dostoiévski recorreu em Gente pobre para sublinhar o modo característico de Diévuchkin se expressar, um dos que mais se sobressaem é o uso das partículas “-то” e “-нибудь”, que se tornou até motivo de zombaria, por parte da crítica, que não conseguia aceitar seu estilo. Amostra exemplar dessa reação constitui a resenha do crítico russo K. S. Aksakov sobre Gente pobre e O duplo, em que condena violentamente a linguagem literária de Dostoiévski, que considera uma “forma de conversação”. Ao reproduzir algumas das características do estilo narrativo de O duplo, entre elas a repetição frequente das mesmas palavras, o uso de entonação oral e a mistura de estilos de fala, Aksakov termina a sua crítica com uma paródia da linguagem empregada no romance: “A этово-то, другово-то и не имеется; именно этово-то и не имеется; таланта-то, господа, поэтического-то, господа, таланта, этак художественного-то и не имеется. Да вот оно, оно самое дело-то, то есть, настоящее вот оно как; оно именно так.” (Aksakov 11Aksakov, K. S. “Tri kritítcheskie statii g-na Imrek”. Moskóvski literatúrnii i utchenii sbornik na 1847 god (Coleção literária e acadêmica de Moscou para o ano de 1847). Crítica, p. 1-44. Moscou: 1847. 05/12/2019. http://az.lib.ru/a/aksakow_k_s/text_0140.shtml.
http://az.lib.ru/a/aksakow_k_s/text_0140...
)3 3 Tentativa de tradução aproximada: “Mas é isto mesmo, não é outra coisa não, é isso mesmo que não se tem; é talento mesmo, senhores, é talento, assim do artístico mesmo é que não se tem. Sim, aqui está, é esse justamente o caso, isto é, eis como de fato é; é justamente isso.”

As partículas “-то” e “-нибудь”, anexadas com hífen a determinados termos da oração, como pronomes relativos, advérbios, transmitem a eles um significado semântico completamente definido. Mas elas podem ser utilizadas também para enfatizar ou dar destaque semântico (entonacional) às palavras, introduzindo várias tonalidades emocionais ao seu significado em uma frase. Em A dócil, uma novela relativamente curta, de trinta páginas, com 13.725 palavras e 79.801 caracteres com espaços no original em russo, a partícula “-то” foi empregada setenta vezes e a partícula “-нибудь” catorze vezes, com o intuito principalmente de transmitir ao discurso do narrador um colorido que refletisse o seu estado emocional. A questão é que, a cada ocorrência, é necessário encontrar na língua de chegada uma forma adequada para transmitir a expressividade do discurso nelas contida, como na frase a seguir da novela: “Так прошла вся зима, в каком-то ожидании чего-то.” (Dostoiévski Krótkaia 23)4 4 A seguir, os trechos relativos à novela no original em russo serão indicados apenas pelo número da página. / Assim transcorreu todo o inverno, como que à espera de algo.5 5 A seguir, a tradução dos trechos da novela virá sempre ao lado da citação em russo separada por barra.

A solução encontrada foi traduzir as expressões “в каком-то” e “чего-то” por “como que” e “algo”, respectivamente. A expressão “в каком-то ожидании”, que está no caso prepositivo, também poderia ter sido traduzida por: “numa certa expectativa” ou “numa espécie de expectativa”; e a oração toda: “в каком-то ожидании чего-то”, poderia ser traduzida com um discurso mais neutro, como: “à espera/na expectativa de que algo acontecesse”. Esta solução, no entanto, significaria uma certa interferência no tom altamente coloquial do monólogo do narrador, que, convém destacar, tem origem na nobreza e uma boa formação.

Ou no seguinte exemplo:

“– Вы какой-то странный... Я вовсе не хотела вам сказать что-нибудь такое...”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 9)

O senhor é meio estranho... Eu não quis absolutamente lhe dizer algo nesse sentido...

Para какой-то, aqui no caso nominativo, a solução que me pareceu mais adequada foi traduzir por “meio”, no sentido de parecer estranho.

Já o trecho abaixo está cheio não só de partículas de reforço, como também de repetições de palavras e expressões, de arranjos que transmitem a expressividade do discurso da personagem.

“Тут-то я и заметил ее в первый раз особенно и подумал что-то о ней в этом роде, то есть именно что-то в особенном роде. Да; помню и еще впечатление, то есть, если хотите, самое главное впечатление, синтез всего: именно что ужасно молода, так молода, что точно четырнадцать лет.”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “Krótkaia”. Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 24. Leningrado: Ed. Naúka, 1982. Krótkaia 7)

Nessa altura, pela primeira vez eu reparei nela de um modo particular e pensei algo no gênero sobre ela, isto é, justamente algo num sentido particular. Sim: e lembro ainda a impressão, isto é, possivelmente (se querem saber), a impressão principal, síntese de tudo: justamente que ela era demasiadamente jovem, tão jovem que parecia ter catorze anos.

A expressão “Тут-то я и” poderia ter sido traduzida por: “Foi justamente aí que eu”. A partícula -то, nesse caso, foi introduzida com o sentido de reforço da palavra “тyт”, que foi empregada 62 vezes na novela. Dostoiévski também poderia ter empregado, no lugar de “Тут-то”, a expressão: Именно тут (Justamente aí). A palavra também significa justamente, exatamente, precisamente, e aparece catorze vezes no texto original. Dostoiévski, no entanto, evitou a repetição da palavra , que aparece em seguida repetida duas vezes neste mesmo parágrafo. Já a expressão “то есть” (isto é), que também aparece repetida duas vezes no trecho mencionado, foi empregada 29 vezes na novela. Além disso, neste parágrafo, Dostoiévski repete duas vezes também as palavras: “особенно” (particular), “впечатление” (impressão) e “молода” (jovem).

Ou seja, o tradutor não pode simplesmente ignorar a ocorrência desses detalhes, que têm uma função extremamente calculada no original. No que se refere às partículas, ainda que se diga que elas são próprias da estrutura da língua russa, que não há nada similar em português, elas são necessárias para transmitir a expressividade da linguagem coloquial característica das personagens de Dostoiévski. Daí o grande desafio que impõem ao tradutor de sua obra, que é encontrar em português algo que possa de alguma forma desempenhar uma função semelhante, de recriar o seu efeito na língua de chegada.

Dentre os elementos estruturais do texto, componentes que inegavelmente modificam ou matizam o sentido do enunciado, marcando a sua coloquialidade ou expressividade, destacam-se as já mencionadas repetições. Um exemplo significativo, bastante explorado pela crítica, é a palavra vdrug (вдруг), que significa de repente. A.L. Slonímski observa que ela foi usada no romance Crime e castigo mais de quinhentas vezes como um recurso artístico básico, que constitui uma técnica para expressar surpresa, algo inesperado. Entre as variedades desta técnica Slonímski destaca, “além do vdrug relativo ao enredo, à composição, de sentido ideológico, emocional, o vdrug estilístico, que caracteriza uma peculiaridade do narrar dostoievskiano”. (Slonímski 11Slonímski, A. L. “‘Vdrug’ u Dostoevskogo” (O ‘de repente’ em Dostoiévski). Kniga i revoliútsya (Livro e revolução). 8: 9-16. Petrograd: Petrogosizdat, 1922.)

Na novela A dócil, Dostoiévski emprega 76 vezes a palavra vdrug. Em português, a repetição seguida da mesma expressão – de repente – em alguns casos podem saltar aos olhos, constituindo uma obstrução ao ritmo da narrativa, à própria fluidez da leitura. Como temos outros termos para dizer exatamente a mesma coisa, como súbito, subitamente, num supetão, etc., sem perder em nada a intensidade da expressão, nesse caso o tradutor tem a possibilidade de recorrer a estes vocábulos e fazer a substituição sempre que possível e necessário. Mas, tendo em vista que a repetição de palavras é um expediente característico e forma um traço estilístico evidente de Dostoiévski, na medida do possível, a palavra vdrug foi sempre traduzida pelo mesmo termo – de repente. Por exemplo, nos seguintes trechos:

“я вдруг ей тогда шику задал и вырос в ее глазах. Такое у меня вдруг явилось намерение.”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 8)

na hora, de repente, banquei o chique para ela e cresci aos seus olhos. Tal propósito me ocorreu de repente.

“Она вдруг вскочила, вдруг вся затряслась и - что бы вы думали - вдруг затопала на меня ногами”.

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “Krótkaia”. Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 24. Leningrado: Ed. Naúka, 1982. Krótkaia 17)

De repente levantou-se de um salto, de repente pôs-se a tremer todinha e – pasmem os senhores – de repente se pôs a espernear na minha frente.

Já entre as várias pontuações gráficas adotadas por Dostoiévski, o travessão, que em russo é empregado principalmente entre o sujeito e o predicativo como substitutivo do verbo ser no presente do indicativo, para servir de ligação nas frases nominais, em A dócil adquire um papel muito especial. Dolínin, em um estudo realizado sobre esta novela, ao comparar todos os rascunhos, percebe que os travessões que não têm essa função de ligar sujeito e predicado, em sua maioria, e a despeito de não serem usuais na língua escrita, foram acrescentados a partir da segunda versão dos rascunhos, aparecendo às vezes apenas no texto impresso (E. A. Ivántchikov 83Ivántchikov, E. A. Análiz khudójestvennogo tieksta (Análise do texto artístico). Leningrado: Ed. Naúka, 1976.).

O travessão foi empregado em A dócil 222 vezes. Por se tratar de um monólogo, pouquíssimas vezes ele foi usado para transmitir discursos diretos, para indicar a fala de outra personagem, a mudança de interlocutor em diálogos. Seu emprego se deu principalmente para ressaltar pausas, substituindo a vírgula, ou até mesmo o ponto final e o sinal de dois pontos, e também para pôr em destaque alguma parte da frase, em orações intercaladas, em geral no sentido de apontar que se trata de um discurso oral, como se pode verificar nos exemplos a seguir:

“...Вот пока она здесь - еще всё хорошо: подхожу и смотрю поминутно; а унесут завтра и - как же я останусь о один?”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 6)

...Pois é, por enquanto ela está aqui – ainda está tudo bem: venho olhá-la a cada instante; mas amanhã será levada e – como é que irei me arranjar sozinho?

“То есть ссор не было, опять-таки, но было молчание и - всё больше и больше дерзкий вид с ее стороны. “Бунт и независимость” - вот что было, только она не умела.”

(Dostoiévski Krótkaia 15)

Isto é, brigas não houve, mas houve, de novo, o silêncio e – um ar cada vez mais e mais insolente da parte dela. “Revolta e insubordinação” – foi isso o que houve, só ela não sabia.

Nos exemplos acima expostos, na maioria dos casos o travessão poderia perfeitamente ser substituído por vírgula. Mas todos, sem exceção, foram empregados com a clara função de marcar uma pausa na fala do narrador, como que para sublinhar o tom de oralidade de seu discurso.

O sinal de dois pontos, que corresponde a uma pequena pausa numa frase que ainda não se encontra concluída, ou mesmo a uma entoação descendente, foi amplamente empregado na novela A dócil, mais precisamente, 128 vezes. Os dois pontos serviram também para a transmissão do discurso direto, em geral em situações em que o narrador se volta a si mesmo ou então a um interlocutor imaginário. Mas seu principal emprego se deu no sentido de sublinhar, com breves pausas, a linguagem oral do narrador, em especial para a introdução de observações, notas, exemplos, de orações apositivas, que explicam ou esclarecem um termo anterior, ou ainda como uma síntese do que ele acabara de dizer. Como se pode observar nos exemplos a seguir:

“Я, и как проснулись на другой день, еще с утра (это в среду было) тотчас вдруг сделал ошибку: я вдруг сделал ее моим друг

м.” (DostoiévskiDostoiévski, F. M. “Krótkaia”. Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 24. Leningrado: Ed. Naúka, 1982. Krótkaia 29)

Eu, assim que acordei no dia seguinte, ainda de manhã (isso foi na quarta-feira), no mesmo instante, de repente cometi um erro: de repente fiz dela minha amiga.

Os dois pontos, nesse caso, têm o propósito de esclarecer a frase anterior: “cometi um erro”.

“Я ей объяснил, что я тогда в буфете действительно струсил, от моего характера, от мнительности: поразила обстановка, буфет поразил; поразило то: как это я вдруг выйду, и не выйдет ли глупс?”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 30)

Eu lhe expliquei que daquela vez no bufê eu realmente tinha fraquejado, por causa do meu jeito, da minha cisma: a situação, o bufê, haviam me intimidado; uma coisa me intimidou: de repente, como é que eu vou me sair, será que não vai parecer ridículo?”

Também nesta ocorrência o sinal de dois pontos foi empregado para indicar um esclarecimento, na fala da personagem, do que foi dito na oração anterior.

“Судья крикнет: “Молчите, офицер!” А я закричу ему: “Где у тебя теперь такая сила, чтобы я послушался?”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “Krótkaia”. Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 24. Leningrado: Ed. Naúka, 1982. Krótkaia 34)

O juiz gritará: “Cale-se, oficial!” E eu começarei a gritar para ele: “Onde está agora este seu poder todo para que eu obedeça?

Neste caso, os dois pontos foram empregados para transmissão de um suposto discurso direto.

Por outro lado, as reticências, um gênero de pontuação usado para indicar um pensamento ou uma ideia que ficou por terminar e que transmite, por parte de quem exprime esse conteúdo, reticência, omissão de algo que podia ser escrito, mas não é, foram utilizadas 76 vezes no texto da novela. O emprego deste recurso como índice de suspensão ou interrupção do discurso ou pausa do pensamento, devido em geral a elementos de natureza emocional, tem um intuito não só de enfatizar o que vem a seguir, ou mesmo de realçar o que vem antes, ou, ainda, de indicar a continuidade de uma ação ou fato, mas principalmente de marcar o caráter oral do monólogo da personagem, que a todo instante se atrapalha, se confunde com os pensamentos, como ela própria reconhece nos trechos a seguir:

“Дело в том, что она принесла этот образ (решилась принести)... Ах, слушайте! слушайте! Вот теперь уже началось, а то я всё путался... Дело в том, что я теперь всё это хочу припомнить, каждую эту мелочь, каждую черточку.”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 8)

Acontece que ela tinha trazido a tal imagem (resolveu trazer)... Ah, ouçam! ouçam! É aqui que a coisa começa, até agora só fiz me atrapalhar todo...” Acontece que agora eu quero recordar isso tudo, tintim por tintim, nos mínimos detalhes.

“Другие так спорят, просят, торгуются, чтоб больше дали; эта нет, что дадут... Мне кажется, я всё путаюсь... Да; меня прежде всего поразили ее вещи: серебряные позолоченные сережечки, дрянненький медальончик - вещи в двугривенный.”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 6-7)

Os outros discutem, insistem, regateiam de tal modo para que se lhes dê mais; ela não, é o que dão... Parece que estou confundindo tudo... Sim; surpreenderam-me, antes de mais nada, os seus objetos: brincos de prata dourada, uma medalhinha ordinária – umas joias baratas.

Dostoiévski utiliza também amplamente na novela o ponto de exclamação, que aparece 169 vezes, sempre concentrado em alguns trechos em que o personagem expressa grande emoção, surpresa, admiração, indignação, espanto, susto, como nas orações a seguir:

“Батюшки, как вспыхнула! Глаза у ней голубые, большие, задумчивые, но - как загорелись!”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “Krótkaia”. Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 24. Leningrado: Ed. Naúka, 1982. Krótkaia 7)

Deus meu, como ela corou! Ela tem olhos azuis, grandes, pensativos, mas – como ficaram inflamados!

“Смелей, человек, и будь горд! Не ты виноват!..”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 17)

Coragem, homem, e seja orgulhoso! Você não tem culpa!..

“O, дико, дико! Недоразумение! Неправдоподобие! Невозможность!”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 33)

Oh, é um absurdo, um absurdo! Um mal-entendido! Uma inverossimilhança! Uma impossibilidade!

Para pôr em relevo certos elementos nos casos em que a ausência de contexto não permite perceber e para os quais o narrador quer chamar a atenção e fazer com que o leitor, ou então o interlocutor imaginário a quem ele se dirige, entenda que a palavra ou mesmo a frase está com destaque por ser importante, Dostoiévski recorreu amplamente também ao emprego do itálico. Como no seguinte trecho:

“Я ведь это только для вас, а такую вещь у вас Мозер не примет. Слово “для вас” я особенно подчеркнул, и именно в некотором смысле”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980. Krótkaia 7)

Só faço isso para a senhora, Mozer não aceitaria esse tipo de coisa. Frisei de modo especial as palavras: para a senhora, e justamente com uma certa intenção.

Pode haver muitas razões para se desejar realçar uma palavra empregando o itálico. Neste trecho de A dócil, o próprio autor revela que tem uma intenção com o emprego deste recurso, que é frisar as palavras “de modo especial”, “justamente com uma certa intenção”. No contexto mais geral da novela, foi possível depreender que a intenção de Dostoiévski, ao querer sublinhar, enfatizar as palavras, era principalmente de transmitir as características orais do monólogo da personagem. No discurso oral, isso pode ser percebido muito bem pela maneira como as palavras são proferidas; na escrita, Dostoiévski procurou reproduzir esse realce através do itálico.

Ou neste outro trecho:

“но вдруг - строгое удивление выразилось в глазах ее. Да, удивление, и строгое.”

(Dostoiévski Krótkaia 28)

mas, de repente – em seus olhos assomou uma expressão de severo espanto. Sim, era de espanto, e severo.

“— A я думала, что вы меня оставите так, - вдруг вырвалось у ней невольно”.

(Dostoiévski Krótkaia 38-39)

E eu que achava que fosse me deixar assim – deixou escapar sem querer.

Nas traduções a partir de outras línguas, o emprego deste recurso em geral se encontra completamente ausente. No entanto, se ele foi tão utilizado pelo escritor para dar ênfase à narrativa, por que não mantê-lo, ao traduzir, na língua de chegada?

Outro recurso muito empregado por Dostoiévski é o diminutivo, cuja significação depende do contexto e só existe em relação a ele. Na linguagem coloquial, as formas sintéticas dos diminutivos, tanto nos substantivos como nos advérbios e adjetivos, são muito empregadas para indicar manifestações de emoção ou as intenções do falante, e em geral estão relacionados a situações em que o tom carinhoso, afetivo, surge com mais intensidade. Em A dócil, os diminutivos em geral foram utilizados para melhor expressar, de modo espontâneo, impulsivo, as emoções e as intenções da personagem, assim como transmitir ao seu monólogo a ideia de discurso oral. Como no trecho a seguir:

“Я ломал руки над ней, смотря на это больное существо на этой бедной коечке, железной кроватке, которую я ей купил тогда за три рубля.”

(Dostoiévski Krótkaia 29)

Torcia as mãos fitando aquela criaturinha enferma, naquele pobre leito, na caminha de ferro que havia lhe comprado por três rublos.

“Ресницы лежат стрелками. И ведь как упала - ничего не размозжила, не сломала! Только одна эта 'горстка крови’.”

(DostoiévskiDostoiévski, F. M. “Krótkaia”. Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 24. Leningrado: Ed. Naúka, 1982. Krótkaia 35)

Seus cílios parecem flechinhas. E do jeito que caiu – não esmagou, não quebrou nada! Não passou daquele “fiozinho de sangue”.

Estes são alguns dos recursos que mais se destacam e que formam um traço estilístico evidente na obra de Dostoiévski, já que se repetem sempre e estão indissoluvelmente vinculados ao aspecto estético. Em A dócil, como procurei mostrar, o seu emprego foi orientado, de maneira consciente, para um objetivo extremamente preciso: transmitir espontaneidade ao discurso e pôr em relevo a caoticidade dos sentimentos e raciocínios do narrador, a sua impulsividade, anotando assim como que o próprio processo da composição. Eles foram empregados para representar a perturbação, a confusão, o espanto do narrador diante do inesperado. Suprimi-los da narrativa, como costumava ser feito nas traduções indiretas, poderia, sem dúvida, tornar a obra mais legível e, talvez, mais palatável ao leitor, mas, por se tratar de procedimentos composicionais característicos do autor, e não do idioma, estas particularidades foram conservadas na tradução, a não ser em um caso ou outro em que pudessem afetar a compreensão do texto. Ou seja, se, por um lado, a intenção adotada foi preservar ao máximo a estrutura do russo, se não nos padrões gramaticais mais exclusivos da língua, pelo menos naquilo que há de mais peculiar na linguagem do escritor, por outro lado, houve uma preocupação constante com uma tradução legível, porém que não dissolvesse, visto tratar-se de um estilo extremamente coloquial, a atmosfera criada por ele. E este foi o caminho escolhido por entender que só assim seria possível apresentar em português algo mais próximo da maneira dostoievskiana, que caracteriza o estilo da sua linguagem desde os primeiros escritos.

  • 1
    Com o subtítulo “Uma história fantástica”, esta novela foi publicada no número de novembro de 1876 do Diário de um escritor, revista mensal de Dostoiévski, da qual ele foi o único editor.
  • 2
    Em português, esta obra recebeu os mais diversos títulos, entre outros: “Ela era doce e Humilde”, tradução de Valdemar Cavalcanti para O livro de Ouro dos contos russos, da Ediouro, s/d.; “Krotkaia”, tradução de Ruth Guimarães para Histórias dramáticas, da Editora Cultrix, 1960, e Os mais brilhantes contos de Dostoiévski, da Edições Ouro, 1970; “Uma doce criatura”, tradução de Natália Nunes para a Obra Completa de F. M. Dostoiévski em 4 volumes, da Ed. Nova Aguilar, 1963.
  • 3
    Tentativa de tradução aproximada: “Mas é isto mesmo, não é outra coisa não, é isso mesmo que não se tem; é talento mesmo, senhores, é talento, assim do artístico mesmo é que não se tem. Sim, aqui está, é esse justamente o caso, isto é, eis como de fato é; é justamente isso.”
  • 4
    A seguir, os trechos relativos à novela no original em russo serão indicados apenas pelo número da página.
  • 5
    A seguir, a tradução dos trechos da novela virá sempre ao lado da citação em russo separada por barra.

Referências

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  • Bottman, Denise. “Bibliografia Russa Traduzida no Brasil (1900-1950). Breves notas complementares”. RUS Revista de Literatura e Cultura Russa 5.5 (2015): 60-65. Portal de Periódicos da USP. 07/02/2019. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rus/article/view/108342/106636
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  • Dostoiévski, F. M. “A propósito da exposição” (Po pôvodu vystavki). Pólnoe Sobrânie Sotchiniênii v tridtsati tomakh (Obras Completas Reunidas em trinta volumes). Vol. 21. Leningrado: Ed. Naúka, 1980.
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  • Ferrari, Márcio. “Globalização no século XIX”. Revista Pesquisa FAPESP São Paulo: 2016.
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  • Vogüé, Melchior de. (Org). O romance russo Rio de Janeiro: Editora A Noite, s./d. s/p

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2020
  • Aceito
    09 Mar 2021
  • Publicado
    Maio 2021
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