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TRADUÇÃO LEGENTE E EXPERIÊNCIA LITERÁRIA EM MARIA GABRIELA LLANSOL

LEGENT TRANSLATION AND LITERARY EXPERIENCE IN MARIA GABRIELA LLANSOL

Resumo

Este artigo pretende investigar as relações entre leitura, tradução e escrita em Maria Gabriela Llansol. Entre a língua de partida e a língua de chegada há o desenho de um caminho ético que pensa a tradução a partir de uma política e uma poética, levando em conta a alteridade presente no interior de todas as línguas. A experiência de tradução em Maria Gabriela Llansol nos permite vislumbrar um campo em que a vida escrita, sem apoio da memória, ou despossuída do seu fato histórico, resta como potência a traduzir. Entendemos que leitura, tradução e escrita fazem parte de um mesmo projeto literário. Talvez mais, trata-se, para essa escritora, de um projeto literário-político, que sustenta a sobrevivência de uma prática de escrita e leitura que se dirige aos lugares onde o real dos corpos e afetos deixou de ser a linha guia da literatura.

Palavras-Chave
Leitura; Tradução; Escrita

Abstract

This article intends to investigate the relationships between reading, translation and writing in Maria Gabriela Llansol. Between the originating language and the destination language there is the drawing of an ethical path that considers translation from a political and poetic perspective, taking into account the alterity present within all languages. The translation experience in Maria Gabriela Llansol allows us to perceive a field in which written life, without support from memory, or dispossessed of its historical fact, remains as a power to translate. We understand that reading, translation and writing are all part of the same literary project. Perhaps more, for this writer, it is a literary-political project that sustains the survival of a practice of writing and reading that addresses the places where the real of bodies and affections is no longer the guiding line of Literature.

Keywords
Reading; Translation; Writing

1. O início

Maria Gabriela Llansol dedicou a vida ao trabalho diário de ler, traduzir, escrever, tornando, cada um desse lugares, espaços potentes para atingir o ponto que parece ser aquele do desejo da escrita: a sobrevivência dos corpos e das línguas no espaço da “textualidade”1 1 Figura da obra llansoliana que sustenta, para a autora, o deslocamento da narratividade – controlada por uma função de verdade, a verossimilhança, e da racionalidade que modula –, para a textualidade – descentrando-se do humano consumidor de social e poder – que permitiria um acesso ao novo, ao vivo e ao fulgor. Nela, os corpos não são compactados, não são repelidos em seu movimento de expansão, não são submetidos a sistemas e chaves de leitura. (Llansol, Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso,120-21) . Traduziu vários poetas de língua francesa e alguns outros, colocando-se como pertencente à linhagem daqueles que tentaram fazer da literatura um lugar em que as palavras pudessem “voltar a significar o real” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994., Entrevistas, 36).

O projeto de LlansolLlansol, Maria Gabriela. “Introdução: uma página do diário de M.G.Llansol”. O rapaz raro. Tradução Maria Gabriela Llansol, Rimbaud, Arthur. Lisboa: Relógio D’Água, 1998. busca trazer para o centro da discussão essa possibilidade da literatura de subtrair-se ao poder, operando uma espécie de revolução permanente da linguagem. E essa possibilidade seria aquela aberta pelo poema. Lugar da paixão do sentido, recusa da representação e afirmação da singularidade, o gesto poético é ato que altera quem escreve e quem se relaciona com ele. Como gesto de resistência, algumas poéticas abrem sulcos por onde a vida pode correr.

2. Experiência literária

Na tentativa de circunscrever o que chamamos aqui de “experiência literária”, para aproximá-la da “tradução legente”2 2 Para Llansol legente é o que lê sabendo que existe outro modo de ler – mais próximo do texto – que penetra o texto e o torna, por sua vez, escrevente. em Maria Gabriela Llansol, tomamos o pensamento de Maurice Blanchot e a discussão de Silvina Rodrigues Lopes. Para ambos, a reflexão sobre a experiência literária emerge de uma outra: a experiência da arte. Silvina Rodrigues LopesLopes, Silvina Rodrigues. A legitimação em literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1994. nos esclarece que isso resulta da definição da obra de arte como objeto estético, o que conduziu à identificação da estética com a filosofia da arte. O paradigma desse pensamento é o da harmonia. Nesse paradigma, encontramos, como necessárias, a manifestação de uma subjetividade e uma comunicabilidade universal, com uma confluência e um elemento comum que seria o sentimento de prazer, e, portanto, a dependência de uma experiência de percepção/fruição. No entanto, em literatura, não há como reduzir as obras a objetos destinados a apreensão perceptiva de uma aparência, nem ao sentido de comunicabilidade universal da obra.

A escrita, para além do referente que se possa construir, é um acontecimento. A experiência literária é sem garantias, não se assenta numa previsibilidade – nem mesmo aquela que supomos na linguagem –, pois abre-se sempre ao inesperado. Herberto Helder, poeta português citado pela ensaísta, escreve: “a experiência é uma invenção. Sou um registo vivamente problemático” (Helder 37Helder, Herberto. Photomaton & Voz. Rio de Janeiro: Tinta da China, 2017.). Dizer que a experiência é uma invenção não é o mesmo que remeter a literatura para o domínio das ficções – como se também nelas não houvesse um ponto de verdade – mas afirmar que a experiência de cada um, na sua absoluta singularidade, é escrita.

Partindo também da reflexão sobre a experiência da arte, Blanchot chega à formulação do que ele designa como “experiência original”, original no sentido de uma radicalidade que vai além da experiência estética. Blanchot (1987)Blanchot, Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. recolhe o testemunho de alguns escritores para formular a condição da escrita como aquela de “um fora de si mesmo” e, por vezes, fora da linguagem de que se serve. Nesse sentido, o exílio é o risco do poeta. Nós, nós infinitamente arriscados..., interpelado por esse verso, de um dos “Sonetos a Orfeu”, de Rilke, Blanchot aponta o lugar da experiência literária como sendo o lugar de um risco: arrisca-se a identidade, arrisca-se a linguagem no interior da própria língua, arrisca-se o mundo das trocas e transmissibilidade. A linguagem, nesse lugar, faz um outro risco no mundo. E o sujeito que escreve, lê e traduz não tem garantido o seu ponto de apoio na rede simbólica das trocas. O trabalho com a palavra, a palavra do outro, a língua do outro, torna-se o encontro radical com a alteridade.

Para Blanchot (1987)Blanchot, Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., a poesia é o gesto que converge para a experiência radical, experiência da arte e, enfim, experiência literária. A pobreza da experiência – porque incomensurável –, seu risco, deixa o sujeito irremediavelmente sem resposta, sem preenchimento, e a possibilidade do começo torna-se, a cada vez, eterno recomeço. Dessa forma, essa experiência está à errância, confundindo-se com os movimentos da vida. A instabilidade das palavras, matéria mesma da experiência literária, o fato de poderem dizer para além do que designam ou comunicam, faz da escrita e, portanto, da tradução, uma tarefa impossível.

Em Llansol, a preeminência da palavra para além da representação cria uma ambiguidade entre o sentido e a significação, tornando-se, ela mesma, material, densa, corpo musical. Encontramos aqui um elemento fundamental que se aproxima da reflexão blanchotiana: por um lado, a palavra registra o poder mortal da linguagem que “reduz o ser da coisa falada ao não-ser abstrato do seu conceito na palavra” (BlanchotBlanchot, Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., A parte do fogo, 314) e, por outro lado, coloca a literatura à procura da realidade que foi perdida. A perda constitui-se, então, a condição de possibilidade dessa literatura, e sua procura assenta-se na materialidade da palavra, no seu aspecto físico, nas suas bordas: “o ritmo, o peso, a massa, a figura e, depois, o papel sobre o qual escrevemos o traço de tinta, o livro” (BlanchotBlanchot, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar. Tradução Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011., A parte do fogo, 315).

Blanchot pensa a literatura a partir de duas tendências. A primeira seria aquela da linguagem comum e da prosa com intenção significativa, voltada para o “movimento de negação, pelo qual as coisas são separadas delas mesmas e destruídas para serem conhecidas, submetidas, comunicadas” (BlanchotBlanchot, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar. Tradução Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011., A parte do fogo, p. 312). A segunda, a da literatura – principalmente depois da poesia de Mallarmé – preocupada com a realidade das coisas, com sua existência desconhecida. Essa literatura, ao interrogar a capacidade que a própria literatura tem, no exercício concreto com as palavras, de escutar o murmúrio inumano da existência, acaba por criar realidades fora deste mundo que são, no entanto, plenamente reais, ainda que nenhuma essência lhes sirva de garantia ou prova. Blanchot procura na literatura o momento que a precede, em que a escritura se revela uma força impessoal, uma existência sem ser — um il y a — na exterioridade radical da linguagem.

No ensaio “A besta de Lascaux”, Blanchot toma o poema de René Char para iniciar uma “conversa infinita” com a filosofia. O que está em questão no ensaio é a linguagem, a palavra escrita, a obra e a origem, pensadas a partir da tradição filosófica. A palavra escrita é aproximada da palavra sagrada, aquela proferida por uma voz que não lhe oferece garantia, herdando dela a sua desmesura, a sua estranheza, mas, também, o seu risco e a sua força. Sem presença que lhe confira o que é verdadeiro, a palavra dá voz à ausência.

A presença do silêncio que faz passar para a arte o estremecimento das forças sagradas abrindo o homem a regiões estrangeiras, e que tem a imutabilidade das coisas eternas é o escândalo da imagem, do invisível que ela porta na superfície de todo visível. Mantido o silêncio da origem, a palavra evocada, a partir do poema de René Char, mostra-se como corpo escrito no friso de Lascaux. Sem uma presença humana que lhe garanta a existência, a sua fala torna-se terrível e inumana. A palavra riscada no “friso de Lascaux” seria “aquilo que vem da poesia, como de uma eternidade passageira” (BlanchotBlanchot, Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., Uma voz vinda de outro lugar, 51). A sua “nascença” apaga os traços da presença, ao mesmo tempo em que afirma, no inédito do seu acontecimento, a ausência de uma origem à qual poderíamos retornar para buscar-lhe as garantias e os fundamentos. E, no entanto, o seu corpo riscado na pedra reúne e pulveriza a densidade silenciosa da origem, dando a ver o invisível, a sua matéria, o seu mistério.

Assim é a palavra convocada por Blanchot. Unida ao seu próprio futuro, ela é obrigada a falar a partir desse lugar em deslocamento, desse tempo em expansão, dando à vinda a firmeza de uma palavra sempre por vir, em seu presente mais real e mais pungente. Tal como a palavra poética que erra, infinitamente, na direção de algo que permanece sempre aberto, inscrevendo (traçando e retraçando), com seu ilimitado contorno, “a memória do traço que especula em sonhos acerca da sua própria possibilidade” (DerridaDerrida, Jacques. Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas. Tradução Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011., Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas, 10). O leitor a toma nas mãos, como corpo de poema, com sua espessura. Segue o desenho do seu traço, o brilho que avança sem direção, pois sabe que ela guarda o impossível que dura. Parece ser também nessa direção, tomando o vivo da palavra, que Llansol orienta a sua leitura e o gesto de tradução.

3. O duro desejo de durar

O que recolhemos das traduções de Llansol dos Últimos poemas de amor, de Paul Éluard, são sobreposições do audível e do visível, afirmados no intervalo de um tempo aberto às diversas espessuras, em que as cores da matéria que lhe chega às mãos traçam oscilações e aquelas que não lhe vêm mais aos olhos definem o fim da história e o início da tradução. O que resta desse gesto de tradução não é a presença incorporada do objeto, mas a vibração, o fulgor do desaparecimento na letra que o escreve. O vazio que a letra do poema evoca, por desenhar a sua borda, não é oposto a ela. Ao contrário: é suposto por ela. É talvez a sua intenção secreta, a sua ética de afirmar, pela própria ausência, uma ausência cada vez mais suficiente.

Imersa no trabalho de tradução dos livros de Paul Éluard, Llansol receia recriar a dor do poeta ao traduzir os seus poemas. Em 1946, Éluard perde brutalmente a sua mulher (Nusch). Um ano depois, publica, nos Cahiers d’Art, os poemas reunidos sob o título Le temps déborde, com o pseudônimo de Didier Desroches. O desejo dessa tradutora legente foi o de traduzir de uma só vez, num só golpe, para que a mágoa não se imiscuísse no tecido do poema a traduzir. Llansol lia na poesia de Éluard uma grande devastação, um pensamento sustentado pela herança desolada dos afetos guardados pela imagem de Nusch que, na cena do poema, parecia não ter morrido. “Vai morrer”, escreve Llansol. Lemos, no prefácio que acompanha a tradução: “nunca o texto em poema me vem de fora como uma necessidade de construção que não passe pela experiência viva. Experiências simultâneas vão criando a escrita – [...]” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000., Últimos poemas de amor, 13).

A suspensão do tempo, a não realização da morte na escrita, torna densa a imagem que ronda o poema. “Há uma hora em que as imagens do mundo nos hão de querer destruir o corpo” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994., Últimos poemas de amor, 15). É como se, em vez de realizar algo da morte, o poema a adiasse infinitamente, suspendendo a possibilidade de uma vida nesse lugar onde “a palavra é a vida dessa morte” (BlanchotBlanchot, Maurice. A parte do fogo. Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., A parte do fogo, p. 315). Essa grande devastação vinha do interior para encontrar um poema que tinha esquecido de que a realidade tem um número muito maior de faces do que aquele que podemos ver e abarcar. Nele, era possível ler o desejo do poeta de continuar poeta, com um poema que não se cindisse, na ausência do corpo daquela “que era todo o seu sexo-mundo” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011., Últimos poemas de amor, 17). Llansol considera que o poema deveria percorrer o caminho das imagens, seduzi-las e distraí-las para que o corpo sobrevivesse na sua forma de poema.

Distrair a imagem é desviá-la, fazê-la esquecer de si, na desatenção do seu movimento, mas, ao mesmo tempo, é não traí-la, nem enganá-la, mantendo-se fiel àquilo que ela secreta do acontecimento. A tradução que Llansol opera, a partir da delicadeza da leitura, deseja responder à única procura da poesia: “será possível olhar sem cindir?” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. “O curso natural”. Últimos poemas de amor. Trad. Maria Gabriela Llansol, Éluard, Paul. Lisboa: Relógio d´Água: 2002., Últimos poemas de amor, 13) Se, na tradução, nas infinitas traduções, “o poema se mantiver unido estaremos em face de poesia sem impostura”; ao contrário, se ele se esvai, tornando-se impreciso, “é porque não havia sentido a conviver com as palavras, e a poesia, inexistente ou incompleta, na sua aparência, finalmente fugiu” (Llansol, Últimos poemas de amor, 13). Nas traduções desses poemas, vemos surgir a água da água, e o corpo, dobrado sobre a sua própria leveza, alcança a arte de colorir o quarto em que se move, fazendo com que a vida se corresponda de longe em longe com a poesia. Eis uma direção para o Drama-Poesia Éluard: a vida reescrita na tradução legente dos seus poemas, como oferenda ao seu “duro desejo de durar”.

Tomemos, então, algumas traduções para acompanhar o seu movimento. Começo pela edição do livro que reúne os Últimos poemas de Paul Éluard, publicados pela primeira vez, separadamente: Uma longa reflexão sobre o amor (Une longue réflexion amorureuse); O duro desejo de Durar (Le dur désir de durer); O tempo transborda (Le temps débord); Corpo memorável (Corps mémorable); A fénix (Le phénix). Lidos assim, ordenados, os poemas parecem desenhar uma linha que parte de uma reflexão sobre o amor, atravessa o tempo e o desejo de durar, toca o corpo, para encontrar o seu fim na imagem da fênix – imagem mitológica que guarda em si a ideia de renascimento/ressurgência. Essa organização do livro é acompanhada pelo gesto de tradução dos poemas que abrindo mão do sentido denotativo das palavras, toma-as na sua materialidade, aproxima-as dos biografemas que escrevem a vida do poeta, para atingir a dimensão da “vida imediata”: “____ quando eu pousei o que fizera ao traduzir Éluard, senti amor por uma página; ter escrito esse amor não tem importância senão a de ter tido o conhecimento nítido e imprevisto de que a vida se corresponde, de longe em longe, com a poesia – a que Éluard chamava “Vida Imediata” [...] (Llansol, Últimos poemas de amor, 21).

Nusch Les sentiments apparents La légèreté d´approche La chevelure des caresses Sans soucis sans soupçons Tes yeux sont livres à ce qu´ils voient Vus par ce qu´ils regardent Confiance de cristal Entre deux miroirs La nuit tes yeux se perdent Pour joindre l´éveil au désir. (Éluard 32) Nusch Os sentimentos aparentes A leveza de abordagem A cabeleira das carícias Sem cuidados sem cuidar o mal Teus olhos são entregues ao que vêem Reflectidos por aquilo que olham Confiança de cristal Entre dois espelhos De noite teus olhos extraviam-se Para reunir ao desejo o despertar (Éluard 33Éluard, Paul. Últimos poemas de amor. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.)

Tomemos esse poema em tradução sem a intenção de discutir as escolhas da tradutora para todos os versos, nem ao menos compará-la a outras traduções. Tomemos como gesto de uma tradução legente, em que os biografemas do poeta se apresentam no poema traduzido, para que o corpo sobreviva. Como numa espécie de operação/ato de tradução, Llansol faz retornar ao poema o vivo do desejo: “sem cuidados sem cuidar o mal/Teus olhos são entregues ao que vêem [...]/ Para reunir ao desejo o despertar”. Na tradução, o “mal” aparece para que não seja cuidado, para que os olhos possam ser entregues ao que veem – ainda que não exatamente livres –, e, ao desejo, reúne-se o despertar. Para Llansol o que está escrito – a forma, o ritmo, a textura – não é a poesia; “o que se oculta na sua realidade é a sua realidade – só essa; sem dúvida o acesso a esse material oculto não é evidente, mas não faz desesperar” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000., Últimos poemas de amor, 21). O gesto de tradução busca tornar evidente esse material oculto do desejo, antes, bem antes que a morte possa operar sobre ele, sem que para isso se precise cindir o poema. “Com a morte de um ser amado, criou Poesia para Outro, o novo, a nova mulher que havia de vir, e que já estava na vida interior da primeira. Em Nusch estava Dominique, e nelas o ver do mundo” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000., Últimos poemas de amor, 21).

L ´ABSENCE Je te parle à travers les villes Je te parle à travers les plaines Ma bouche est sur ton oreiller Les deux faces des murs font face A ma voix que te reconnaît Je parle d´éternité O villes souvenirs de villes Villes drapées dans nos désirs Villes precoces et tardives Villes fortes villes intimes Dépouillées de tous leurs maçons De leurs penseurs de leurs fantômes Campagne règle d´émeraude Vive vivante survivante Le blé du ciel sur notre terre Nourrit ma voix je rêve et pleure Je ris et rêve entre les flammes Entre les grappes du soleil Et sur mon corps ton corps étend La nappe de son miroir clair. (Éluard 54Éluard, Paul. Últimos poemas de amor. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.) A AUSÊNCIA Falo-te através das cidades Falo-te através das planícies A minha boca repousa na tua almofada Os dois lados da parede opõem-se À minha voz que te reconhece Falo-te de eternidade Ó cidades lembranças de cidades Cidades envoltas nos nossos desejos Cidades precoces e tardias Cidades fortificadas cidades íntimas Despojadas de todos os seus pedreiros Dos seus pensadores dos seus fantasmas Campo modelo de esmeralda Viva vivaz sobrevivente O trigo do céu sobre a nossa terra Alimenta a minha voz eu sonho eu choro Rio e sonho entre as chamas No meio dos cachos de sol E sobre o meu corpo o teu corpo estende A toalha do seu espelho transparente. (Éluard 55Éluard, Paul. Últimos poemas de amor. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.)

Esse poema parece conter os versos que orientam a experiência de tradução em Llansol, fazendo dela um ato poético e político. Et sur mon corps ton corps étend. Os corpos estão ali – o dela, o do poeta, o de Nusch –, abertos aos movimentos do amor e da ausência. A ma voix que te reconnît/ Je parle d´éternité. É possível falar ao outro, ao outro ausente, porque há uma voz que o reconhece, ali onde a ausência não é lida sob o viés da negatividade, mas da afirmação. Afirma-se a ausência e, nessa afirmação, o poema acontece. Esse é o tempo do eterno. Do que ausente se eterniza no interior do poema. Afinal, a palavra do poema não traz de volta o objeto perdido, antes, afirma o desparecimento, fazendo dele a matéria mesma do poema. A tradução segue o fio desse desparecimento, toma nas mãos o que dele resta vivo, para deixar ressoar: “vive vivante survivante”.

Figura constante na obra de Llansol, Spinoza escreve que um corpo pode ser afetado de muitas maneiras, e cada um deles é determinado ao movimento ou ao repouso por uma outra coisa singular, isto é, um outro corpo. O que os distingue é justamente o fato de estarem em movimento ou em repouso, em lentidão ou em velocidade. Dessa forma, um corpo em movimento continuará se movimentando até que seja determinado ao repouso por outro corpo e, igualmente, um corpo em repouso continuará em repouso até que seja determinado ao movimento por um outro. O movimento ou o repouso, a extensão ou a redução de um corpo, são determinados por uma causa exterior (SpinozaSpinoza, Benedictus. Ética. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009.).

Por afeto, Spinoza entende as afecções do corpo pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada. As mudanças operadas nessa força são decorrentes do encontro dos corpos. Ora, quando um corpo encontra outro cuja relação não compõe com a sua, opera-se uma subtração e a potência de agir é diminuída ou impedida e as paixões correspondentes são paixões tristes. Ao contrário, quando um corpo encontra outro que convém com a sua natureza, e cuja relação se compõe com a sua, há uma adição na potência e as paixões que afetam esse corpo são fonte de Alegria. Assim, o que define um corpo é a sua capacidade de ser afetado.

A presença da ausência, do corpo, da voz e do sonho são os elementos que marcam, no poema, a experiência do eterno. A tradução parece operar uma espécie de esticamento dessas imagens do/no tempo, ao tornar possível o encontro dos corpos para além de uma geografia. Há uma persistência colocada não mais em linha contínua, mas em linhas móveis que se esticam para outros planos da superfície. Trata-se de uma mudança na superfície, um deslocamento que opera com a letra libidinal. Sabemos que essa mudança topológica mantém as propriedades dos elementos, mas pode alterar as suas potencialidades, a sua potência de agir.

“O corpo pode sofrer muitas mudanças, sem deixar, entretanto, de preservar as impressões ou os traços dos objetos” (Spinoza 99Spinoza, Benedictus. Ética. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009.). Ainda no prefácio à tradução, Llansol escreve:

Hoje, à volta de alguém Éluard que fazia um corpo novo de intensidade com alguém Dominique [...] Ele escrevendo ia sabendo. Era, entre outras, uma das razões porque escrevia, e não podia deixar de manifestar, na escrita, o sentido da sua vida e do seu corpo [...]. Descobrira, nele próprio, que vida e corpo são indissociáveis e que estar sobre alguém que se ama é manifestar que o corpo é parte intrínseca da vida.

(LlansolLlansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994., Últimos poemas de amor, 16).

Podemos pensar a tradução a partir dessa frase: estar sobre alguém que se ama é manifestar que o corpo é parte intrínseca da vida. Gesto de sobrevivência das línguas, sobrevivência dos corpos que inaugura uma comunidade de tradução ao acolher os corpos, as línguas e os afetos.

Entretanto, parece que, em Spinoza há uma diferença entre desejo de eternidade e experiência do eterno. O primeiro ponto é a introdução da palavra experiência, que deve ser pensada como movimento em contato com o objeto, com os movimentos do objeto. Diferente de uma experiência como vivência, experiência vivida. Marcado por uma duração, que não se limita ao espaço definido pelo tempo histórico, o eterno seria esse movimento de dobra no infinito. Como numa espécie de superfície que se prolonga, a experiência de eterno, produzida no enlaçamento da legência/tradução/escrita, estaria justamente nesse ponto fulgurante, produzido por uma espécie de dobra na língua. A suspensão do tempo histórico retira as figuras dos limites definidos, lançando-as para novos abertos. Aqui, o que vive é justamente esse corpo acordado, destacado dos poemas, e que tem numa causa exterior o seu movimento.

MARINE Je te regarde et le soleil grandit Il va bientôt couvrir notre journée Éveille-toi coeur et couleur en tête Pour dissiper les malheurs de la nuit Je te regarde tout est nu Dehors les barques ont peu d`eau Il faut tout dire em peu de mots La mer est froide sans amour C´est le commencement du monde Les vagues vont bercer le ciel Toi tu te barces dans tes draps Tu tires le sommeil à toi Éveille-toi que je suive tes traces J´ai um corps pour t´attendre pour te suivre Des portes de l ´aube aux portes de l´ombre Um corps pour passer ma vie à t´aimer Um coeur pour rever hors de ton sommeil. (Éluard 292Éluard, Paul. Últimos poemas de amor. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.) MARINHA MARINHEIRA MARESIA Eu olho para ti e o sol torna-se maior Vai em breve cobrir-nos o dia Desperta com o coração e a coloração em mente Para dissipar o mal da noite Eu olho para ti tudo está reduzido à sua expressão mais simples Lá fora a fundura não é muita para os barcos É preciso dizer tudo em poucas palavras Quando não há o amor o mar dá frio É o começo do mundo As vagas vão embalar o céu E tu embalas-te nos teus lençóis Puxas o sono para o teu lado Acorda para que eu possa seguir-te os passos Tenho um corpo para t´esperar p´ra ir atrás de ti Das portas da aurora às portas da sombra Um corpo para passar a vida a fazer-te amor Um coração para sonhar do lado de fora do teu sono. (Éluard 293Éluard, Paul. Últimos poemas de amor. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.)

Nesse poema encontramos uma tradução que altera o tecido do poema traduzido. Às vezes por uma fidelidade imensa à literalidade, operando no rés da língua estrangeira, lendo no chão das palavras, outras vezes por uma mobilização do sentido causada pelo encontro com outros textos e poemas de Éluard, mas, sobretudo, pelo desejo de traduzir de uma vez só, num único golpe, “sem recorrer a dicionários, primeiras e segundas versões, intermediários, meios hábeis” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994., Últimos poemas de amor, 17). Llansol via-se “invadida pelo sentimento de que, traduzindo o poema, ia de novo recriar-lhe a dor, a Éluard” (Llansol, Últimos poemas de amor, 17). E parece que ao propor o desdobramento de alguns versos, inclusive no título, introduzindo nele o que nele não existia, Llansol faz do poema traduzido um transporte do corpo, da dor e do amor. E ao tocar o corpo do poema faz da tradução um ato para tocar no sentido.

“Marinha Marinheira Maresia”. Maresia: rocio do mar, transporte pelo vento das gotas formadas no encontro das águas – na curva das vagas – com o ar.“As vagas vão embalar o céu”, ela traduz na literalidade da palavra. “Eu olho para ti tudo está reduzido à sua expressão mais simples/Lá fora a fundura não é muita para os barcos”, ela desdobra para trazer para o poema a fundura do amor. “Um corpo para passar a vida a fazer-te o amor”, afinal o amor não está pronto desde o início. E será preciso um corpo para recriá-lo a cada vez, a cada encontro, na marca de cada ausência. “É o começo do mundo”.

Nessas traduções, o tempo das coisas persiste, ainda. Perdura. Os tempos do amor persistem no corpo feminino aberto às variações.

4. Sem poema não há destino verdadeiro

No seminário O Ato psicanalítico, Lacan opera com três modalidades do ato: o ato analítico, o ato poético, o ato sexual. Extraindo desses campos aquilo que os aproxima e os afasta, podemos dizer que o ato poético inaugura um tempo, inscrevendo um antes e um depois, devido à ruptura e à transformação que efetua. Sendo sustentado por um sujeito, ele não é, entretanto, ato intencional desse sujeito. O poema lhe acontece e o ato é o do poema. Há no ato poético algo de intransitivo e neutro, que ultrapassa o sujeito, realizando uma abertura, um traço de luz inundante que não voltará a se fechar por muito tempo. A sua verdade é aquela do acontecimento que se inaugura no momento do ato e se conjuga com o saber em fracasso. Afinal, do ato, nada se sabe no momento em que ele acontece. Ele é o desconhecido em relação ao qual há sempre uma defasagem do saber, nele não há saber, apenas fruição. Nesse lugar da fruição do corpo atravessado pelo ato, algo de um puro sentido faz emergência no ponto exato em que nada de um sentido possa ser tocado. Deslocado do saber, atravessado pelo poema que passa, o sujeito é resíduo de uma verdade trazida para a superfície da folha.

O ato constitui um verdadeiro começo, especificamente onde há a necessidade de se fazer um porque não existe. Ele está sempre em relação a um começo, pois é um efeito que se inscreve com uma ponta significante, abrindo um espaço no contínuo de um movimento. Entretanto, o significante não é capaz de inscrever todo o ato, uma vez que o que se produz a posteriori não elimina o registro do que ali surgiu. O significante inscreve, faz e refaz os sentidos e significados, mas, ainda que possa atenuar, disfarçar e ressignificar o ato, esse persiste com seu aspecto que não se deixa absorver. Por isso, cada começo se abre a um devir pela impossibilidade de dar continuidade significante àquilo que caiu, rompeu, fez corte numa dada estrutura. Podemos extrair essa formulação lacaniana em duas passagens. A primeira é apresentada por Lacan nesse mesmo seminário. Trata-se de um poema de Rimbaud – “À une raison” –, retomado pelo autor para mostrar a relação do ato com o começo.

À une raison Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie. Un pas de toi, c´est la levée des nouveaux hommes et leur en-marche. Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne, le nouvel amour! ‘Change nos lots, crible les fléaux, à commencer par le temps’, te chatent ces enfants. ‘Élève n´importe où la substance de nos fortunes et de nos voeux’ on t´en prie. Arrivée de toujours, qui t´en iras partout. (RimbaudRimbaud, Arthur. O rapaz raro. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D’Água, 1998., O rapaz raro, 57) A um fundamento Um golpe do teu dedo sobre o tambor desencadeia todos os sons, e dá início à nova harmonia. Um passo teu é o levantar dos novos homens que se põem em marcha. Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça – o novo amor! ‘Muda as nossas sortes, esvazia os males, a começar pelo tempo’, cantam-te essas crianças. ‘Ergue, não importa onde, a substância das nossas fortunas e dos nossos votos’, eis o que te pedem. Chegada de sempre, tua partida para toda parte. (RimbaudRimbaud, Arthur. “Carta a Georges Izambard”. Alea, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, [1871] (2006): 154-163. Scielo. 02/05/20. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2006000100011. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2006000100011&lng=en&nrm=iso . access on 30 Mar. 2021.
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, O rapaz raro, 58)

O poema se dirige a uma razão. Para Lacan, esse poema é “a fórmula do ato” (Lacan 81Lacan, Jacques. O seminário, Livro 15 – O ato psicanalítico (1967-1968). Publicação interna da Associação Freudiana Internacional. Espaço Moebius – Projeto Traduzir. Salvador: s/d.). Não é sem razão que Llansol traduz “razão” por “fundamento”. Lembremos que, no livro Onde vais, Drama-Poesia?, o fundamento do poema é passar, sua conjectura é encontrar um corpo que o suporte. No prefácio à tradução dos poemas de Rimbaud, Llansol escreve “que fará as rendas e deitar-se-á tal ele lhe pede porque ele lho pede, e que sairá do poema como entrou, só e com o mistério que trazia” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994., “Introdução: uma página do diário de M.G.Llansol”, 8). Rimbaud era, para Llansol, o mais nu e existente de todos os poetas. Seus poemas deixavam no espaço da escrita o traço de um “corpo iluminado pela sombra que ocultava” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. “O curso natural”. Últimos poemas de amor. Trad. Maria Gabriela Llansol, Éluard, Paul. Lisboa: Relógio d´Água: 2002., “Introdução: uma página do diário de M.G.Llansol”, 9), e o desejo de Llansol na tradução era o de encontrar, pela inversão dos ritmos, a pulsão da escuridão localmente iluminada, para que, ao se objetivar a luz, não se perdesse o espaço e não morresse nele, poeta, “a jovem que escrevia poemas” (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Edições Rolim, 1994., “Introdução: uma página do diário de M.G.Llansol”, 9). A tradução faria nascer, a cada vez, o poeta no seu poema, a partir da legência que encontra no corpo de Llansol o seu suporte.

Retornemos ao poema de Rimbaud com os ecos desse prefácio llansoliano, o seu gesto de tradução, para pensarmos essa “fórmula do ato”. O poema se dirige a uma razão, uma que certamente não é “A razão”. Não há aqui nenhum louvor à racionalidade. Em carta a Izambard, de 13 de maio de 1871, o poeta escreve: “É errado dizer: Eu penso. Deveríamos dizer: Pensam-me”. O poeta é pensado pelo poema, criado pelo ato do poema. Consentindo com isso, o seu projeto era o de ser poeta e trabalhar para se tornar vidente. “Trata-se”, ele explica a Georges Izambard, “de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos” (Rimbaud, “Carta a Georges Izambard”, 249). O seu desejo era o de encontrar uma língua para fazer com que sintam, apalpem, ouçam suas invenções. Desejando ser poeta e trabalhando para se tornar vidente, Rimbaud escreve:

[...] eu me reconheci poeta. Não é absolutamente minha culpa. Está errado dizer: Eu penso. Deveríamos dizer: Pensam-me. Perdão pelo jogo de palavras.

EU é um outro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscientes que discutem sobre o que ignoram completamente!

(RimbaudRimbaud, Arthur. “Carta a Georges Izambard”. Alea, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, [1871] (2006): 154-163. Scielo. 02/05/20. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2006000100011. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2006000100011&lng=en&nrm=iso . access on 30 Mar. 2021.
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, “Carta a Georges Izambard”, 249)

É possível destacar dois traços antinômicos presentes nos textos de Rimbaud. Por um lado, o desregramento e a ruptura com as velhas formas. Por outro, o imenso e cuidadoso trabalho com a língua, ao mesmo tempo em que rompia com as regras clássicas da poesia versificada. Seus poemas não dispensam a lógica e a sintaxe, mas, ao subvertê-las, abrem caminho para o novo. A razão poética, como o saber em ato em qualquer criação artística, não é o saber do eu. “Se o cobre desperta clarim, não é por sua causa”, escreve o poeta em carta a Paul Demeny, em 15 de maio de 1871(RimbaudRimbaud, Arthur. O rapaz raro. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D’Água, 1998., “Carta a Georges Izambard”, 249).

No poema, vimos que um gesto do corpo – o golpe do dedo, um passo – pode abrir o novo, esvaziar os males do tempo, fazendo existir, no contínuo de um espaço, um corte que marca uma chegada que é desde sempre e por toda parte. Talvez possamos dizer, com esse poema, que um ato pode ser, às vezes, apenas um gesto e, apesar da sua singeleza, ele guarda a amplidão das suas consequências: abrir o novo e nesse aberto esperar o devir. Nesse ato, não há sujeito, é “uma sinfonia que faz seu movimento no abismo” (RimbaudRimbaud, Arthur. O rapaz raro. Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D’Água, 1998., “Carta a Georges Izambard”, 249), no aberto dos corpos sem garantia do eu. Há a disseminação do ato depois de instaurado um começo, que se desfaz como marco, para dar lugar a outra temporalidade marcada pelo espaço do tempo suspenso.

A segunda passagem, que apresenta a “fórmula do ato”, é mostrada no filme Rendez vous chez Lacan, de Gérard Miller. Nele, temos o seguinte relato de uma analisante de Lacan:

Suzanne Hommel: Sou da Alemanha e nasci em 1938. Portanto, vivi os anos da guerra com todos os horrores, as angústias, o pós-guerra, a fome, as mentiras. Sempre quis deixar a Alemanha por causa disso. E, desde o início das primeiras sessões, eu perguntei a Lacan: ‘Posso me curar desse sofrimento?’. E, dizendo isso, entendi que não. Eu havia pensado que podia arrancar essa dor de mim com a análise. Não, havia uma maneira de me olhar que me fez perceber: ‘Não. Será preciso fazer isso a vida toda’. Um dia, numa sessão, contei a Lacan um sonho que tive. Eu disse: ‘Acordo todo dia às 5h’, e acrescentei: ‘Era às 5h que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas’. Nesse momento, Lacan se levantou como uma flecha de sua poltrona, veio na minha direção e me fez um carinho muito doce no rosto. Eu entendi: ‘geste à peau’, o gesto…’ Gérard Miller: ‘Ele transformou a ‘Gestapo’ em ‘geste à peau’.’ Suzanne Hommel: ‘Em um gesto carinhoso. Um gesto extremamente carinhoso’. E essa surpresa não diminuiu a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, 40 anos depois, é que eu ainda conto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto também… é um apelo à humanidade, qualquer coisa assim3 3 Transcrição da fala presente no filme Rendez vous chez Lacan, de Gérard Miller. .

O gesto de Lacan, ao cortar a palavra de dor de Suzanne Hommel, com o movimento do seu corpo, retira o significante ‘gestapo’ da sua significação, abrindo-o a novos sentidos. Há um corte no significado da palavra, no momento em que Lacan lhe toca a pele – geste a peau –, movido por algo que ultrapassa o saber ou o querer de um sujeito. Lacan lê a palavra na sua composição literal e faz com que ela opere na mesma literalidade. Esse gesto é o começo de uma narrativa que se sobrepõe à primeira, sem eliminá-la. Ele não diminui a dor, mas cura/apura um sofrimento guardado em sonho, inaugurando um novo tempo na palavra. Esse ato afirma uma verdade: “será preciso fazer isso a vida toda”. A potência do ato está no instante do gesto, mas também na leitura que se faz dele, quer dizer, na leitura superposta ao ato, no momento em que ele é reduzido ao seu valor mínimo de letra a ser transposta. Isso significa que, para Lacan, a plenitude do ato só se realiza a posteriori, depois que uma leitura possa ser colocada em causa. Como ato analítico, o gesto de Lacan nos aproxima do ato poético, pela sua potência de mexer nas línguas, alterar o seu valor significante e abrir, no oco da palavra, a força evocativa de todo começo.

A marca do autor do gesto está, justamente, na singularidade da sua ausência. É porque o sujeito – tanto o que suporta o ato quanto aquele que o recebe – não sabe nada dele, que um gesto tem valor de ato. Entretanto, esse mesmo sujeito, ausente no gesto, desfeito nele, ganha uma nova escritura pelo ato que o atravessa. É apenas após o ato que o sujeito reaparece com sua presença modificada. Isso nos permite dizer que o ato é o do poema. É o poema que faz ato, ao passar rápido, lançando o legente para fora, no mesmo instante em que o percebe. Esse ato forma a condição do aberto, nesse lugar onde o mundo assume o seu sentido infinito pela perda trazida no poema que o abre. Este é o risco do ato – o risco que tudo arrisca –, que compreende tanto o perigo quanto aquilo que salva.

O gesto de tradução em Llansol é a do corpo marcado pela experiência do vivo, no seu infinito movimento. Esse corpo deseja a escrita, dobra-se a ela, dissolve-se nos seus liames, tornando transparentes os seus contornos. É essa, talvez, a única responsabilidade do poeta: fazer passar à escritura a irrealidade do real, retendo em seu corpo as imagens fortes que desejam fazer corpo com o poema.

Essas experiências simultâneas – legência, tradução, escrita – e sua tentativa de encontrar um poema que responda à poesia, ao mesmo tempo em que persegue a sua própria pergunta fazem a escrita. Nela, vida e corpo são indissociáveis e, deslocado do barulho ensurdecedor, ali onde o silêncio é negado, o poema buscará um corpo, outro mundo. Entretanto, como esse mundo não é um dado de princípio, como o corpo que procura o poema não tem uma essência que abone a sua existência, o que Llansol faz é um ato inaugural, que começa no sim de uma leitura tornada amor, alegria pura, discernimento de uma vontade que habita os corpos.

5. A escrita não imagina

“Não há poema sem acidente”, escreve Derrida em seu pequeno e precioso ensaio Che cos’è la poesia? (DerridaDerrida, Jacques. Che cos’è la poesia?. Tradução Osvaldo Manuel Silvestre. Coimbra: Angelus Novus, 2003., cos’è la poesia?, 9). Talvez possamos dizer, em eco, não há tradução sem acidente. Afinal, não há poema que não se abra como ferida e que, aberto, não abra e promova uma ferida em outro lugar. O poema é, nesse des-astre, uma encantação silenciosa que, vinda de fora, convoca a um acolhimento, uma aprendizagem feita de cor (apprendre par coeur), na pulsação do órgão que lhe fornece o ritmo, a cadência, a sua vibração mínima: sístole e diástole. Como ouriço caído no meio da estrada, ou estrela cadente que risca o céu para deitar-se no infinito da terra, o poema é corpo-coração que irrompe ou desvia o saber, pois o seu dom, o dom do poema, sobrevém sem que possamos esperá-lo. Sem fôlego, acolhemos a queda e deixamos que se faça no corpo de quem traduz a assinatura que repete a dispersão e a ausência guardadas no coração do poema. É preciso dizer que se trata aqui de uma experiência de leitura e tradução, de uma incursão por um trajeto que não se dá de início, que realiza voltas, dobras, como tentativa de retornar à casa, à língua conhecida, mas que, num tempo preciso, sem que se possa precisá-lo de antemão, o acidente reconduz não ao mesmo, mas a um lugar aberto da paisagem.

  • 1
    Figura da obra llansoliana que sustenta, para a autora, o deslocamento da narratividade – controlada por uma função de verdade, a verossimilhança, e da racionalidade que modula –, para a textualidade – descentrando-se do humano consumidor de social e poder – que permitiria um acesso ao novo, ao vivo e ao fulgor. Nela, os corpos não são compactados, não são repelidos em seu movimento de expansão, não são submetidos a sistemas e chaves de leitura. (LlansolLlansol, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000., Lisboaleipzig 1o encontro inesperado do diverso,120-21)
  • 2
    Para Llansol legente é o que lê sabendo que existe outro modo de ler – mais próximo do texto – que penetra o texto e o torna, por sua vez, escrevente.
  • 3
    Transcrição da fala presente no filme Rendez vous chez Lacan, de Gérard Miller.

Referências

  • Blanchot, Maurice. A parte do fogo Tradução Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
  • Blanchot, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar Tradução Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
  • Derrida, Jacques. Memórias de cego – o auto-retrato e outras ruínas Tradução Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
  • Derrida, Jacques. Che cos’è la poesia? Tradução Osvaldo Manuel Silvestre. Coimbra: Angelus Novus, 2003.
  • Éluard, Paul. Últimos poemas de amor Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.
  • Helder, Herberto. Photomaton & Voz Rio de Janeiro: Tinta da China, 2017.
  • Lacan, Jacques. O seminário, Livro 15 – O ato psicanalítico (1967-1968). Publicação interna da Associação Freudiana Internacional. Espaço Moebius – Projeto Traduzir. Salvador: s/d.
  • Llansol, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso Lisboa: Edições Rolim, 1994.
  • Llansol, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000.
  • Llansol, Maria Gabriela. Entrevistas Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  • Llansol, Maria Gabriela. “O curso natural”. Últimos poemas de amor Trad. Maria Gabriela Llansol, Éluard, Paul. Lisboa: Relógio d´Água: 2002.
  • Llansol, Maria Gabriela. “Introdução: uma página do diário de M.G.Llansol”. O rapaz raro Tradução Maria Gabriela Llansol, Rimbaud, Arthur. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.
  • Lopes, Silvina Rodrigues. A legitimação em literatura Lisboa: Edições Cosmos, 1994.
  • Rimbaud, Arthur. O rapaz raro Tradução Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.
  • Rimbaud, Arthur. “Carta a Georges Izambard”. Alea, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, [1871] (2006): 154-163. Scielo. 02/05/20. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2006000100011. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2006000100011&lng=en&nrm=iso . access on 30 Mar. 2021.
    » https://doi.org/10.1590/S1517-106X2006000100011» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2006000100011&lng=en&nrm=iso
  • Spinoza, Benedictus. Ética Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2020
  • Aceito
    10 Fev 2021
  • Publicado
    Maio 2021
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