Acessibilidade / Reportar erro

REDESCOBRINDO A AMAZÔNIA: COMENTÁRIO DA TRADUÇÃO PARCIAL DE A DESCRIPTION OF BRITISH GUIANA GEOGRAPHICAL AND STATISTICAL, DE ROBERT SCHOMBURGK

REDISCOVERING THE AMAZON: COMMENTARY ON THE PARTIAL TRANSLATION OF A DESCRIPTION OF BRITISH GUIANA GEOGRAPHICAL AND STATISTICAL, BY ROBERT SCHOMBURGK

Resumo

O presente artigo consiste nos comentários da tradução de A description of British Guiana, de Robert Schomburgk, explorador prussiano do século XIX. De maneira geral, o relato se volta para uma descrição estatística e geográfica da Guiana Inglesa. Neste primeiro contato com a obra, procedemos uma tradução parcial, considerando trechos relacionados aos habitantes, religião e instrução pública das colônias de Demerara e Essequibo. Apesar do caráter eminentemente descritivo, o documento também registra várias críticas sociais ao modelo de ocupação europeu, sobretudo no que diz respeito ao extermínio dos nativos e à escravatura. Metodologicamente, observamos os princípios da ecotradução (TORRES, 2021Torres, Marie Hélène Catherine. “Tradução e ética: a problemática da retroconversão. Cadernos de Tradução, v 41, p. 174-184, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/84952.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
), buscando valorizar o contexto cultural, a ética na tradução de textos históricos e o impacto da ação humana no meio ambiente.

Palavras-chave
Estudos da Tradução; Amazônia; Texto Histórico

Abstract

This article consists of comments on the translation of A description of British Guiana, by Robert Schomburgk, a Prussian explorer in the 19th century. In general, the report turns into a statistical and geographical description of British Guiana. In this first contact with the work, we proceeded with a partial translation, considering excerpts related to the inhabitants, religion, and public instruction of the colonies of Demerara and Essequibo. Despite its eminently descriptive nature, the document also registers several social criticisms of the European occupation model, especially regarding the extermination of the natives and slavery. Methodologically, we observe the principles of eco-translation (TORRES, 2021Torres, Marie Hélène Catherine. “Tradução e ética: a problemática da retroconversão. Cadernos de Tradução, v 41, p. 174-184, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/84952.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
) seeking to value the cultural context, ethics in translation of historical texts and the impact of human actions in the environment.

Keywords
Translation Studies; Amazon; Historical Text

Redescobertas

Sobre o título do nosso texto, antes que nosso leitor possa ficar incomodado com a presença do verbo “descobrir”, já em desuso e bastante contestado para se referir à chegada de exploradores em terras estrangeiras, quero explicar que não é a Cabral, Vespúcio ou a outro navegador que nos reportamos, mas a nós mesmos: somos nascidos e criados da região amazônica, ambos coordenadores de projetos de pesquisa e tradução de autores conterrâneos e temos hoje a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a formação de nosso cenário social contemporâneo pelos olhos de Schomburgk, o que certamente enriquece sobremaneira não apenas a nossa formação acadêmica, como também de nossa própria identidade.

Robert SchomburgkSchomburgk, Robert-H. A description of British Guiana, Geographical and Statistical. London: Simpkin, Marshall, and Co, 1840. p. 42-57. foi um explorador e naturalista prussiano que serviu à Inglaterra no século XIX, produziu trabalhos cartográficos, artigos e livros, tais como The interior of British Guiana e A description of British Guiana Geographical and Statistical, obra da qual propomos traduzir e comentar inicialmente dois itens do primeiro capítulo que aparecem em sequência, a saber, “Inhabitants” e “Religious and Public Instruction”, por considerarmos aspectos de maior relevância dentro que o autor denomina Geographical Description. Em momento oportuno, a tradução e análise de outros trechos da mesma obra deverão ser realizadas.

De acordo com Frank (2007)Frank, Erwin. “Beleza e Vício: o olhar etnográfico dos irmãos Schomburgk (1835-1844)”. Anthropologicas, ano 11, v 18(1): 95-136, 2007., em “Beleza e Vício: o olhar etnográfico dos irmãos Schomburgk”, Robert Hermann Schomburgk nasceu na cidade de Freyburg an der Unstrut, em 1804, na Prússia, e muito provavelmente foi educado em casa, assim como seu irmão Richard. Sua primeira ocupação foi ajudante de jardineiro, depois foi sócio de uma manufatura e trabalhou como coletor de amostras para museus e colecionadores no Caribe, mas somente após um serviço de mapeamento de uma região costeira britânica foi convidado pela Real Sociedade Geográfica de Londres para uma expedição à Guiana Britânica em um contexto de ocupações das então colônias holandesas, posterior integração ao império britânico e abolição da escravatura na Inglaterra. Os resultados da exploração renderam-lhe nacionalidade britânica e o título de cavaleiro, bem como várias ocupações oficiais.

A description of British Guiana Geographical and Statistical foi escrito em 1840 e Robert Schomburgk o inicia fornecendo dados sobre a composição da população das colônias de Demerara e Essequibo em 1829, ressaltando que neste ano fora feito o último censo no local. Destacamos inicialmente nossa opção por “Guiana Britânica”, no lugar de “Guiana Inglesa”, pela maior transparência dos adjetivos. A forma escolhida é a menos comum no Brasil, onde normalmente utilizamos “Guiana” em mapas e materiais didáticos como referência à República Cooperativa da Guiana.

Outro caso importante que surge logo no início do capítulo em análise é a tradução da palavra negroes, que pode ser considerada ofensiva em alguns contextos. Apesar de ser cognata, o mesmo não acontece com a palavra “negro” em língua portuguesa, comumente utilizada inclusive como forma de buscar neutralidade, conforme recomenda Costa (2020)Costa, Heloíse. “É preto ou negro?”. Instituto Identidades do Brasil. Disponível em https://simaigualdaderacial.com.br/site/e-preto-ou-negro, acessado em 15/03/2022.
https://simaigualdaderacial.com.br/site/...
, mestra em Relações Étnico-Raciais, em “É preto ou negro?”. Seguindo os mesmos princípios, traduzimos a expressão “coloured”, presente principalmente nas tabelas, por “pardo”.

Desde o começo do texto de Schomburgk notamos sua preocupação em registrar a reduzida presença de nativos americanos na composição demográfica da época e de como são negligenciados pelos países europeus. Aliás, a maior parte das informações sobre eles não está nas muitas tabelas apresentadas no capítulo que traduzimos e são fornecidas de maneira complementar a elas. É na primeira tabela que aparece pela primeira vez o termo slave, o qual substituiremos ao longo do texto por “escravizado”, considerando o caráter impositivo dessa condição.

É importante ressaltar que buscamos orientar nosso trabalho pelos ideais da ecotradução, termo utilizado pela primeira vez em um texto escrito em Língua Portuguesa por Marie Helene Catherine Torres em “Tradução e Ética: a problemática da retroconversão”. De maneira geral, a ecotradução trata de práticas tradutórias e pensamentos que estão relacionados aos desafios da mudança do meio ambiente por ação humana, a contextos culturais e à ética na preservação de narrativas históricas e de exploração.

Apesar do caráter predominantemente descritivo, como sugere, inclusive, o próprio título e as tabelas presentes em A description of British Guiana Geographical and Statistical, encontramos também vários trechos em que Robert Schomburgk tece críticas enfáticas ao modelo de ocupação europeu, mormente em dois aspectos: o extermínio dos povos locais e a visão preconceituosa acerca do potencial de desenvolvimento cognitivo dos nativos americanos. Aliás, os dados estatísticos por todo o texto estão a serviço da visão de Schomburgk sobre os danos causados pela exploração europeia.

Em mais de um momento o explorador alemão trata da aniquilação de povos inteiros como prática sistemática como em “É um fato melancólico, mas muito bem fundamentado, que onde quer que os Europeus tivessem se instalado, o extermínio das tribos nativas sucedeu à sua chegada”1 1 It is a melancholy fact, but too well founded, that wherever Europeans have settled, the termination of the native tribes has succeeded their arrival. (p. 48), parece já preocupado com fatores culturais e trata dos povos nativos americanos considerando diversos aspectos, inclusive linguísticos.

Seguindo com a leitura e tradução, confirmamos que já existe em Schomburgk a preocupação com a ideia de genocídio, conceito que só viria a ser estabelecido no século seguinte, em frases como “uma raça inteira de homens está a definhar”2 2 a whole race of men is wasting away. (p. 51). O explorador fala sobre a necessidade de empatia e de sua experiência com os povos nativos americanos, contestando o preconceito amplamente difundido de que não teriam capacidade intelectual equivalente aos europeus.

Aliás, a esta altura, um ponto curioso, e talvez mesmo contraditório, na argumentação: se por um lado Schomburgk se compadece com os nativos americanos afirmando que “sua história atual é o final de um drama trágico” (p.51), por outro vê como positiva a imposição cultural e religiosa, inclusive as compreendendo enquanto sinônimo de civilização. Vejamos dois destes trechos, em que destacamos a tradução da palavra “indian” por “indígena”, conforme recomendam Ferreira e Lacerda (2021)Ferreira, Lenne e Lacerda, Victor. “Resistência indígena: entenda porquê o termo ‘índio’ é considerado pejorativo”. Alma preta. Disponível em Resistência Indígena: Entenda porquê o termo “índio” é considerado pejorativo (almapreta.com) acessado em 17/03/2022..

A description of British Guiana Geographical and Statistical Uma descrição geográfica e estatística da Guiana Britânica The Indian alone, the owner of the soil which Europeans have usurped, and peopled with the descendants of Africa, he alone is comparatively neglected, and but little care has been evinced to impart to him Christian knowledge, and the adoption of the habits of civilized life (p.55). Somente o indígena, o proprietário do solo que os europeus usurparam, e povoaram com os descendentes da África, ele é comparativamente negligenciado, e pouco cuidado foi evidenciado para transmitir-lhe o conhecimento cristão, e a adoção dos hábitos da vida civilizada. Their example may serve as another proof of the anxious desire manifested by the Indian to participate in the advantages of civilized life and religious instruction (p.56). Seu exemplo pode servir como mais uma prova do desejo ansioso manifestado pelo indígena de participar das vantagens da vida civilizada e da instrução religiosa.

Vemos que Schomburgk denuncia o descaso para com os nativos americanos no primeiro trecho, mas ao mesmo tempo considera que os assistir seria transmitir a eles os moldes da mesma civilização que os havia usurpado sua antiga condição. No segundo excerto, o explorador se reporta à prática da catequese em Essequibo, que resultou na construção de uma capela por cerca de setenta nativos Arawaak convertidos. Em vários outros momentos de seu relato, os poucos pontos avaliados como positivos são referentes à instrução, sobretudo no que diz respeito ao ensino religioso, à estrutura e aos investimentos financeiros e humanos para este fim.

Ainda outro ponto que despertou nosso interesse para este item particularmente foi a menção às línguas nativas. Apesar de fazer a ressalva de que seu relato não trata exatamente “de seus modos e costumes”, Schomburgk acaba fornecendo, além de dados estatísticos, muitas informações culturais. Sobre as tribos relata que, mesmo vivendo muito próximas, se comunicam por meio de línguas distintas e que estudar a relação entre elas demandaria muito mais tempo do que o que teve em sua expedição. Ainda assim, chega a agrupar as línguas em pelo menos dois blocos e, inclusive, a identificar uma variação dialetal, afirma ainda que apesar de serem essencialmente diferentes, não há dúvidas de partilham a mesma origem. Sem esquecer que documentos históricos como o que ora estudamos refletem o ponto de vista do colonizador e de seus mais variados propósitos, o comportamento retratado por Schomburgk a respeito da inclinação dos nativos à catequese é muito semelhante ao descrito por Pero Vaz de Caminha em sua célebre carta escrita por ocasião da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. Essa postura favorável dos nativos americanos seria não apenas em relação ao aprendizado religioso, como também ao idioma estrangeiro.

Somadas informações de natureza objetiva e culturais, percebe-se a preocupação em registrar dados que não estão nas tabelas oficiais. Sua inquietação com essa ausência é materializada na pergunta “O que foi então feito dos milhões de aborígenes que outrora habitaram estas regiões?” (p.48) em uma espécie de mea culpa se reportando aos indígenas como os donos daquele lugar no qual viviam como se fossem estrangeiros.

Mais de uma vez encontramos no texto referências ao Brasil, todas elas descrevem abordagens violentas de escravização dos nativos americanos. A primeira vem inclusive destacada em um metadado lateral3 3 As notas laterais no texto fonte serão reproduzidas e traduzidas entre colchetes imediatamente antes dos parágrafos que acompanham, alinhadas à direita. As notas de rodapé virão entre colchetes logo após o asterisco ou das tabelas, se for o caso. como “Slavery expeditions of the Brazilians Against the Indians” ao lado do parágrafo que inicia falando das atrocidades deste sistema, no qual as expedições atacavam os nativos assim que dormiam. Schomburgk testemunhou um destes ataques em que quarenta indígenas foram capturados e ressalta que o processo ocorria com a anuência das autoridades distritais. Em outro momento, relata que uma missão religiosa foi interrompida por conta da interferência de milícias brasileiras e ainda que o promissor trabalho havia se perdido uma vez que os nativos americanos se dispersaram por medo de serem capturados pelos brasileiros. Estas ações eram também chamadas “descimentos” e nos relatos de Schomburgk aconteciam normalmente em regiões nas quais havia contestação fronteiriça.

Deixamos agora o leitor com a nossa tradução de “A description of British Guiana Geographical and Statistical”. Por sua natureza e elementos, não foi possível apresentá-lo sempre em colunas: sobretudo na parte inicial do capítulo, Schomburgk se utilizou de várias tabelas. Assim, optamos por dispor lado a lado os parágrafos do texto e sequenciar as tabelas, retornando ao formato em colunas logo após cada figura. Marcamos a numeração das páginas entre colchetes apenas no texto fonte, com referência à publicação que utilizamos.

Como último destaque, o lamento de Robert Schomburgk pelo descaso das autoridades não apenas para com os nativos americanos como também em relação aos africanos escravizados e encerra este item de seu livro com a frase “eles são descendentes de nossos pais comuns e têm o mesmo direito sobre nossa piedade e proteção”4 4 they are the descendants of our common parent, and have the same claim upon our pity and protection. . Sob o risco de encerrar nosso comentário com um clichê, faz-se necessário ressaltar a atualidade dos problemas apontados há tanto tempo pelo explorador. Seu apelo é finalmente traduzido para o português quase dois séculos depois. Resta saber quantos mais serão necessários até que seja atendido.

  • 1
    It is a melancholy fact, but too well founded, that wherever Europeans have settled, the termination of the native tribes has succeeded their arrival.
  • 2
    a whole race of men is wasting away.
  • 3
    As notas laterais no texto fonte serão reproduzidas e traduzidas entre colchetes imediatamente antes dos parágrafos que acompanham, alinhadas à direita. As notas de rodapé virão entre colchetes logo após o asterisco ou das tabelas, se for o caso.
  • 4
    they are the descendants of our common parent, and have the same claim upon our pity and protection.

Referências

  • Costa, Heloíse. “É preto ou negro?”. Instituto Identidades do Brasil. Disponível em https://simaigualdaderacial.com.br/site/e-preto-ou-negro, acessado em 15/03/2022.
    » https://simaigualdaderacial.com.br/site/e-preto-ou-negro
  • Ferreira, Lenne e Lacerda, Victor. “Resistência indígena: entenda porquê o termo ‘índio’ é considerado pejorativo”. Alma preta. Disponível em Resistência Indígena: Entenda porquê o termo “índio” é considerado pejorativo (almapreta.com) acessado em 17/03/2022.
  • Frank, Erwin. “Beleza e Vício: o olhar etnográfico dos irmãos Schomburgk (1835-1844)”. Anthropologicas, ano 11, v 18(1): 95-136, 2007.
  • Schomburgk, Robert-H. A description of British Guiana, Geographical and Statistical London: Simpkin, Marshall, and Co, 1840. p. 42-57.
  • Torres, Marie Hélène Catherine. “Tradução e ética: a problemática da retroconversão. Cadernos de Tradução, v 41, p. 174-184, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/84952
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/84952

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2022
  • Aceito
    22 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br