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ANOTAÇÕES DO LUGAR DE UM TRADUTOR TEATRAL: EXPERIÊNCIAS, PROJETOS E DESAFIOS

NOTES FROM THE POSITION OF A THEATRE TRANSLATOR: EXPERIENCES, PROJECTS AND CHALLENGES

Resumo

Neste artigo são apresentadas cinco experiências de tradução teatral nas quais o autor participou, realizadas nos últimos 25 anos (entre 1997 e 2022), levando-se em conta os projetos nos quais a tradução estava inserida, a maneira como foi realizada, seus respectivos escopos, bem como o lugar do tradutor em cada um desses projetos. Em se tratando de área ainda pouco estudada, observando de perto processos de tradução teatral, é importante anotar algumas especificidades. Em primeiro lugar, a tradução teatral algumas vezes participa de projetos de encenação que não são publicados ou postados, de tal modo que se perde a história de processos de trabalho e resultados muito produtivos, sendo necessário anotar essas experiências – de cunho pessoal, mas visando diálogos. Em segundo lugar, mostrar a riqueza desta atividade, sua variedade e possibilidades de atuação. Em terceiro lugar, esses projetos também divulgam autores fundamentais do teatro ocidental, que recebem pouca atenção e pesquisa. Com isso, espera-se jogar luzes no espaço do tradutor teatral no âmbito dos estudos teatrais e, também, dos estudos literários.

Palavras-chave
tradução teatral; teatro alemão; teatro épico; teatro brasileiro

Abstract

This paper presents five theatrical translation experiences in which the author participated, carried out in the last 25 years (between 1997 and 2022), taking into account the projects in which the translation was inserted, the way it was carried out, their respective scopes, as well as the translator’s position in each of these projects. Since this is an area that has been little studied, closely observing the theatrical translation processes, it is important to note some specificities. Firstly, theatrical translation sometimes participates in staging projects that are not published or posted, in such a way that the history of working processes and very productive results is lost, and it is necessary to note these experiences - of a personal nature, but aiming at dialogues. Secondly, to show the richness of this activity, its variety and possibilities for action. Thirdly, these projects also publicize fundamental authors of Western theatre, who receive little attention and research. With this, we hope to shed light on the position of the theatrical translator within the scope of theatre studies and literary studies.

Keywords
theatre translation; German theatre; epic theatre; Brazilian theatre

Introdução

O tema do número especial, “Tradutores teatrais como agentes criativos, políticos e artísticos”, é dos mais pertinentes e relevantes para o caso brasileiro, em primeiro lugar por uma entrada negativa. No Brasil, o pouco reconhecimento do teatro no campo dos estudos literários dificulta muito a valorização da tradução e da publicação de peças teatrais. Além das dificuldades geradas por um mercado teatral fragilizado pela falta de políticas públicas e de inserção na vida cultural, sabe-se que as traduções terão pouco espaço para debate, mesmo na Universidade. Sendo assim, com exceção de alguns nomes consagrados como Shakespeare, e iniciativas pontuais de alguns projetos de editoras comerciais e universitárias, há uma lacuna quantitativa e qualitativa a ser discutida. E, como o gênero dramático estabelece uma relação muito produtiva e complexa com o épico e o lírico, a discussão muito limitada desse gênero causa um prejuízo significativo à nossa cultura e, também, à crítica literária, em geral, e teatral, em especial.

Basta ver que mesmo um autor como Brecht, reconhecido como um dos maiores dramaturgos do século XX, tem uma única tradução de seu teatro, com grande parte de sua produção dramatúrgica, pela Editora Paz e Terra, feito na década de 1980, mas sem as reescritas e sem muitos de seus textos fundamentais sobre teatro (Costa, 2012Costa, Iná Camargo. “Brecht e o teatro épico no Brasil”. In: Costa, Iná Camargo. Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética. São Paulo: Editora Expressão Popular; Nankin Editorial, 2012. p. 111-136., p. 111-112). E até autores que ganharam o Nobel de literatura em tempos recentes, e que são dramaturgos consagrados, foram pouco traduzidos para o Brasil, como Elfriede Jelinek e Peter Handke, como se lê em recente trabalho de TCC realizado na UFRJ (Paula, 2022Paula, Lucas Euclides Martins de. A presença da literatura austríaca na América Latina: uma pesquisa quantitativa analítica sobre os autores Peter Handke, Elfriede Jelinek, Ernst Jandl, Thomas Bernhard, Ingeborg Bachmann e Christine Nöstlinger. 2022. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras – Português/Alemão) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Rio de Janeiro, 2022., p. 43-44). Sendo assim, são muito válidos os esforços de tradução teatral feitos no Brasil, que lutam contra muitas dificuldades e, por vezes, nem mesmo chegam ao papel ou à cena – sem deixar de terem sido realizados, e por motivos os mais variados. No contexto atual, percebe-se uma atenção cada vez maior para esse campo, o que se materializa em iniciativas como a deste número especial e, também, o número especial publicado pela revista Urdimento, nº 35, v. 2, de 2019, intitulado “Sobre a tradução no teatro: abordagens histórico-culturais e experiências tradutórias”.

A questão da relação entre a língua, o texto e o contexto de origem e seus correlatos na chegada também são muito relevantes, dependendo do escopo da tradução, bem como a diferenciação tipológica como a proposta por Bohunovsky (2019)Bohunovsky, Ruth. “Traduções no teatro, feitas para publicar, encenar ou legendar: uma tipologia possível”. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 2(35), p. 129-148, 2019. DOI: https://doi.org/10.5965/1414573102352019129
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, entre uma tradução para ser publicada, encenada ou legendada. Sem tomar qualquer partido, interessa perceber a riqueza da discussão, além de sua pertinência para a consolidação de um espaço de diálogo crítico tanto para as traduções teatrais como para os processos tradutórios.

Outro aspecto digno de destaque é que este número especial está menos interessado em discussões técnicas sobre tradução, e mais sobre o lugar do tradutor – que se insere em um mercado, mas também pesquisa, divulga e tem diversos interesses quando traduz, sejam eles econômicos, políticos, ideológicos e/ou estéticos. A valorização da subjetividade do tradutor, como indivíduo em ação, em meio ao espaço social, político, ideológico e estético em que atua, faz com que os projetos e processos de tradução estejam em primeiro plano, de tal modo que parâmetros os mais variados que envolvem a dinâmica tradutória entrem em cena.

Há dois objetivos principais deste artigo: o primeiro deles, histórico, diz respeito a não deixar cair no esquecimento processos de trabalho muito produtivos, que podem ser compreendidos como parte de caminhos formativos de grande importância, que, pela própria natureza da atividade teatral, por vezes não se materializam numa publicação ou gravação que possa ser revista, discutida e avaliada. O segundo objetivo é discutir alguns projetos e processos de tradução nos quais estive envolvido nos últimos 25 anos, muito variados e que podem ser úteis para outros projetos.

Esses projetos são diferentes em muitas dimensões: suas intenções, seus processos de trabalho, a tipologia de tradução teatral com que tem mais afinidade, as diferenças estilísticas entre os textos, as interlocuções esperadas, os financiadores envolvidos. Imagino que esse percurso dê uma boa noção dos desafios e dificuldades, mas também da riqueza, da tradução teatral. Se o primeiro objetivo é o da revisitação histórica e pessoal, o segundo intenta mobilizar projetos abrangentes que articulam discussão teórica e crítica em torno de processos colaborativos, em graus diferentes, e situações materiais específicas – que fazem com que alguns projetos sejam interrompidos, outros se percam na fugacidade da atividade teatral, outros sejam publicados.

Pretendo apresentar um painel rápido de cinco traduções teatrais das quais participei, começando por me localizar como um tradutor bissexto, atuando como tradutor em situações específicas, sempre ligado à minha atuação na Universidade – primeiro como discente e, depois, como docente. Ou seja, não havia um projeto consistente e estruturado no campo dos estudos tradutórios – a não ser no último projeto, como se verá. Nesse sentido, já é possível dizer que, nesses casos que discutirei, não houve apoio financeiro de uma agência ou editora, ou mesmo da universidade, antes as traduções teatrais fizeram parte das minhas atividades no campo dos estudos de literatura alemã, em que sou formado, e em teatro, campo no qual também atuo faz 30 anos.

O casamento (1997-8) – Grupo de teatro alemão

A primeira das traduções aqui apresentadas é uma legenda feita para a encenação de O casamento, título pelo qual o grupo amador Companhia de Teatro Alemão encenou em 1997 e 1998, em vários teatros, a peça Die Hochzeit, escrita em 1919 por Bertolt Brecht. A peça era apresentada em alemão, em versão integral do texto. O grupo foi formado, inicialmente, para realizar leituras dramáticas de peças teatrais em alemão, entre pesquisadores ligados à área de língua e literatura alemã. Depois de um ano, resolvemos encenar uma das peças lidas e discutidas. A encenação em alemão trazia várias questões.

Em primeiro lugar, como apenas dois dos aproximadamente vinte e cinco integrantes do grupo tinham o alemão como língua materna, havia a dificuldade de tradução intersemiótica para a subida ao palco. Outra questão das mais importantes dizia respeito à recepção da peça, haja vista o estranhamento primeiro causado pela língua estrangeira.

Para viabilizar a encenação, foi feita uma tradução para legendagem, que era projetada no alto, logo acima da mesa de jantar que domina o palco. Trata-se, como subgênero, de uma baixa comédia, no bom sentido do termo; ou seja, aproxima-se da farsa e não da alta comédia burguesa. Esta última exigiria, com Alencar (2003, p. 28)Alencar, José de. “A comédia brasileira”. In: Alencar, José de. O Demônio Familiar: comédia em 4 atos. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 27-36., que se faça “rir, sem fazer corar”. Na peça brechtiana, pelo contrário, o tom coloquial e rebaixado não se furta de falar abertamente de sexo, traição, comportamentos vulgares, exageros em comida e bebida, demolição de todas as idealizações em torno do casamento e de uma sociedade pautada pela hipocrisia. Sendo assim, era preciso fazer com que a legenda mantivesse essa perspectiva que anima todo o texto. Os diálogos cortantes facilitavam o trabalho de legendagem, pois as frases já eram curtas e diretas.

A peça de Brecht tem apenas um ato, e começa com os noivos e mais sete convidados numa mesa, na casa dos recém-casados, para a comemoração. No início, todos se mantêm respeitosos e decentes, mas, com o tempo, tudo começa a ruir. A bebida atua sobre todos, e os móveis feitos pelo noivo se quebram, porque mal feitos, e os convidados perdem a compostura e expõem problemas de todos os tipos, num crescendo que chegará quase às vias de fato. Toda a dignidade é perdida, até que os noivos, sozinhos, se perguntam se valeu a pena se casar para esconder que a noiva estava grávida – o que todos sabiam.

A concepção desta encenação contribuiu com o trabalho de legendagem. Isso porque esta peça de um ato foi modificada pelo grupo, por conta do interesse em interromper a ação, o fluxo diegético, para que houvesse um refluxo crítico a partir dessa ruptura. A peça em um ato foi cortada em dois pontos, criando três blocos, e seria narrada a partir da memória da noiva, depois de alguns anos, vestida de preto, enlutada – personagem criada pelo grupo. Isso instaurava um contraponto com a noiva de branco, do presente da ação diegética.

A peça se iniciava pelo bloco do meio, justamente após um momento decisivo, quando o noivo, para interromper uma insinuação mordaz da amiga do casal, a convida para a primeira dança, o que enfurece sua noiva. Se até então tudo estava relativamente sob controle, dentro do esperado para um jantar comemorativo, o primeiro grande erro foi cometido. A encenação começava no momento dessa crise aguda da primeira dança, “para pôr em evidência um gestus”, nas palavras do diretor da peça (Bolle, 1998Bolle, Willi. “O casamento: uma montagem benjaminiana de Brecht”. In: Backes, Marcelo (Org.). Cadernos Ponto e Vírgula, 16, p. 59-68. Caderno temático Bertolt Brecht. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1998., p. 62). A partir desse momento, as falas dos nove personagens se cruzam, em ataques que vão se tornando cada vez menos polidos e mais ácidos, mostrando a falsidade sobre a qual todas as relações se estabeleciam. Em um crescendo, o amigo do noivo canta a “Balada da castidade”, as invectivas se acumulam até que a amiga da noiva a acusa de casar grávida. O marido dela arranca uma perna da mesa e atira na esposa, quando a cena é congelada e termina o primeiro bloco. Essa primeira parte da encenação tinha uma legenda ágil e com apenas uma linha em cada projeção, para dar conta da velocidade dos diálogos curtos e da potência dos enfrentamentos.

Quando se chegava ao momento de não-retorno, em que tudo viria abaixo, a personagem da noiva enlutada entrava em cena e reconstruía a mesa, arranjava os móveis e iniciava o bloco 1 da peça, com a chegada dos convidados e uma foto da entrada de cada um, com uma frase retirada de alguma parte da peça que dissesse respeito ao gestus daquele personagem – traduzido pela legenda com destaque, tempo para clique e congelamento de três segundos. A mesa era refeita: cadeiras, pratos, toalha. O ritmo se tornava mais lento, marcando uma diferença entre a moralidade burguesa e a crise que, agora, apenas se insinuava pelas frestas. A legenda, então, era mais extensa, acompanhando o movimento geral. Para essa parte era fundamental uma legenda também irônica, marcada por uma decência e um vocabulário estranhos ao que vínhamos acompanhando – tentando traduzir o gestus da falsa moral burguesa em forma resumida, para o que contribuía a tensão entre esse segundo quadro e o primeiro. A tradução da legenda se afastava do texto publicado para aprofundar a tensão constitutiva da peça, e desta encenação em específico.

A legenda era tão ou mais importante do que as falas ditas, dado que o público era brasileiro. Mesmo o ritmo de nossa encenação estava pautado pela projeção da tradução, instantes após as falas – o que tinha efeitos no palco, que precisava esperar pelo efeito das tiradas lidas! Isso trouxe um problema quando apresentamos para uma plateia formada majoritariamente por alemães, quando apresentamos por ocasião de um casamento de uma funcionária da embaixada alemã: a audiência ria quando ouvia a fala, como se pode imaginar. Isso se deve, imagino, ao fato de se tratar da encenação de uma comédia, cuja estrutura é inteiramente pontuada por passagens cômicas que valem por si. As histórias narradas pelo pai da noiva, longas, e que tratavam de temas impróprios para a circunstância, eram legendadas quase integralmente, em contraste com a linha até então adotada.

Quando se chegava no ponto em que começara o quadro 1 da encenação, saltava-se para o Quadro 3, retomando a mesa quebrada. Era o momento das despedidas, dos impropérios mais violentos, das acusações mais agudas até que Jacob e Maria ficavam sozinhos, brigando e rindo até que vão para o quarto consumar o casamento – e se ouve a cama quebrando. Essa é uma passagem relativamente longa, em que os dois estão sozinhos em cena, e a legenda procurava dar conta das contradições ali expostas, da dinâmica de um casal em crise, já na noite de núpcias.

A tradução projetada como legenda foi feita coletivamente pelo grupo, a partir das coordenadas acima apresentadas. A tentativa era a de criar no texto em português uma tensão correlata à da peça em alemão, além da concepção específica desta encenação, configurando-se como uma atividade decisiva do processo. Houve 12 apresentações desta encenação, ao longo de dois anos, em vários espaços. Não havia cobrança de qualquer valor, dado o caráter amador do projeto.

Água dividida (2013) – tradução de Die Ausnahme und die Regel

Em 1988, o TUM (Teatro Universitário de Maringá) iniciou suas atividades com a montagem de A exceção e a regra, encenação essa premiada no II Festival Universitário de Blumenau, no mesmo ano, por melhor montagem, direção e sonoplastia (Montagnari, 1999Montagnari, Eduardo. Teatro Universitário em cenas: referências e experiências. Maringá: Eduem, 1999., p. 94). Essa encenação primeira mantinha o texto integral da tradução publicada pela editora Paz e Terra, realizada por Geir Campos, como diz uma pesquisadora que a analisou: “Tem-se a impressão de que o grupo não ousou mexer no texto brechtiano, assim as referências locais mantêm-se no nível do figurino e cenografia” (Lisbôa, 1996Lisbôa, Eliane T. “Brecht: montagem de A exceção e a regra (Grupo TUM/UEM, 1987)”. In: Sartingen, Kathrin (Org.) Mosaicos de Brecht: estudos de recepção literária. São Paulo: Arte & Ciência, 1996. p. 116-139., p. 133).

Em 2013, quando o TUM completava 25 anos, o grupo decidiu realizar uma nova montagem da peça, comemorativa, mas em outra perspectiva, o que pedia uma nova tradução da peça Die Ausnahme und die Regel. Por causa disso entrei no projeto, ainda no final de 2012, já como professor efetivo do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias da UEM, para realizar essa tradução de modo gratuito. O projeto de encenação não envolvia financiamento interno ou externo, e dependia completamente do interesse formativo, didático e teatral dos integrantes do projeto, dirigido por Eduardo Montagnari (que também dirigira a peça em 1988). Nesses 25 anos, a obra de Brecht foi uma interlocutora produtiva e decisiva do TUM, com várias montagens e discussões de seus textos, contribuindo para o desenvolvimento de um teatro épico brasileiro.

A encenação de 2013 foi concebida como projeto coletivo, de muitas e variadas vozes. Por isso, o projeto objetivava encenar a peça com coros, tanto nas canções como em algumas passagens narrativas. Essa foi uma indicação que me foi trazida logo no início dos trabalhos de tradução, junto com o texto já estabelecido para algumas das canções, que deveriam servir de parâmetro para a tradução. Em primeiro lugar, fiz uma tradução do texto de Brecht que poderia caracterizar como para publicação, na acepção de Bohunovsky (2019)Bohunovsky, Ruth. “Traduções no teatro, feitas para publicar, encenar ou legendar: uma tipologia possível”. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 2(35), p. 129-148, 2019. DOI: https://doi.org/10.5965/1414573102352019129
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, que seria uma espécie de ponto de partida para os trabalhos realizados coletivamente. A partir de março de 2013, os integrantes do projeto faziam leituras cênicas do texto traduzido, quando propunham mudanças que tornassem o texto mais pronunciável, mais adequado ao ritmo prosódico. Nem tudo, evidentemente, era consensual; por minha parte, sem qualquer apego à letra traduzida, buscava com eles soluções que não perdessem de vista a tensão semântica exigida pelo texto, sua força dialética, que está incrustada em algumas expressões, em ambiguidades, na ironia e, sobretudo, em contradições gritantes que atravessam o texto brechtiano e se mantém produtivas no contexto brasileiro da época. Noutras palavras, não bastava caber na dicção dos atores, era preciso também criar desestabilizações e enfrentamentos que são centrais para a estética da peça e desta sua revisitação pelo TUM.

Outra questão complexa para a tradução era o fato de que ao menos metade da encenação se daria por vozes corais, muitas vezes como narradores da cena, e não como personagens diretamente envolvidos nela. Isso fazia com que houvesse um outro ritmo, cadência e prosódia, bem como diminuía as possibilidades de marcas psicológicas na dicção – ironia, desconfiança, exagero, comentário etc. –, que são fundamentais para a estrutura da peça. Explico-me: na relação entre o carregador e o patrão, marcada pelo abuso e pela violência, a voz sem força do explorado se insinua aos espectadores pelos vãos discursivos que chegam no nível da palavra e da frase, abafadas, cortadas. Este é o espaço de diálogo que cabe para que os expectadores ‘ouçam’ a sua ausência de voz; é uma marca subjetiva, individual, que a muito custo se pode levar para um coro, ou para uma instância narrativa. A expressão precisava carregar em suas potencialidades semânticas essa perspectiva dialética, quando era transferida para um coro narrador.

Outra questão com a qual precisamos lidar na discussão sobre a tradução era a necessidade de cortar algumas passagens. A solução foi manter, integralmente, algumas passagens que consideramos decisivas e representativas da peça, cortando outros trechos. A peça tem dois momentos bem marcados: no primeiro, um comerciante, um guia e um carregador formam uma caravana que busca ser o primeiro grupo a chegar numa área com poços de petróleo, e ganhar a concessão de alguns deles. Quando chegam próximos do deserto, o comerciante imagina que seus dois funcionários poderiam se unir contra ele, e despede o guia. O carregador se perde no deserto, e quando eles quase morriam de sede, ele leva um cantil extra ao patrão. Este pensa que se trata de um ataque e mata o carregador. A segunda parte é o julgamento deste assassinato, que gira em torno do juiz que ouve os lados, posiciona-se e julga, inocentando o comerciante por agir em legítima defesa, mesmo que se tratasse de um cantil, porque explorara tanto o carregador que seria aceitável que este tentasse matá-lo. Decidimos que as falas do juiz deveriam ser preservadas, destacadas e potencializadas, haja vista termos avaliado que o discurso do juiz era momento decisivo da exposição das contradições e da impossibilidade de superação dialética; ou seja, eram passagens explicitando que a justiça não é cega nem neutra, mas que tanto as leis quanto a sua aplicação defendem abertamente interesses de classe. A tentativa estava em fazer com que o juiz usasse um jargão que remetesse à suposta imparcialidade da justiça, entremeado por outras passagens que evidenciavam sua defesa do lado do comerciante, do poder econômico do capital.

Em suma, essa dinâmica tanto da tradução como da estrutura cênica tomou aproximadamente três meses e intenso trabalho de todos os envolvidos. A encenação, já próxima de finalizada, chegou a ser apresentada em um evento científico do curso de Letras, o Conali-2013, quando mais da metade da peça foi encenada diante do público do Congresso, entremeada com falas do diretor sobre as partes ainda inconclusas.

Infelizmente, como ocorre muitas vezes em projetos dessa natureza, sem apoio e dependendo integralmente da boa vontade e dedicação dos participantes, alguns destes saíram do projeto antes de sua realização, por motivos os mais variados – emprego, mudança de cidade, falta de perspectiva profissional – e a encenação não foi realizada. Assim o projeto Água dividida terminou, sem ter sido, sendo essas poucas linhas o único registro de um processo rico, complexo e formativo, mas restrito aos seus integrantes.

Projeto Carne Viva (2018)

Em 2018, Renato Forin Jr. me convidou para participar do projeto “Carne Viva – em busca de um teatro dialético contemporâneo”, projeto do grupo Agon Teatro, de Londrina, um dos grupos de maior destaque na cena local, atuando também como grupo de pesquisa permanente em artes cênicas. O projeto Carne Viva prevê um mínimo de 10 encenações de uma dramaturgia própria a partir de argumento de Glaube, Liebe, Hoffnung, de Ödön von Horváth, um dos dramaturgos austríacos mais importantes da primeira metade do século XX, pouco conhecido e encenado no Brasil. O projeto concorreu ao “Edital Seleção de Projetos Independentes – Londrina Cidade Criativa”, tendo sido aprovado e contemplado com o valor de R$ 40.000,00.1 1 Como se lê em: https://portal.londrina.pr.gov.br/menu-oculto-cultura/projetos-aprovados-em-2018?showall=1. Nas palavras do próprio projeto, que nortearam o processo de trabalho e a tradução:

Com música autoral [...] ao vivo e forte influência épica, o espetáculo concebe uma metáfora da crise institucional e social brasileira ao contar a história de uma mulher desempregada que, para aplacar a fome, na Alemanha Nazista, propõe vender o próprio corpo a um instituto de anatomia. É o início da via-crúcis de Elisabeth, que percorre as humilhações das engrenagens do poder e da tirania praticada em todos os níveis da sociedade.

(Forin Jr., 2018Forin Jr., Renato (Coord.). Projeto Carne Viva – em busca de um teatro dialético contemporâneo. Londrina, 2018. Disponível em: https://repositorio.londrina.pr.gov.br/index.php/menu-cultura/promic/2019/edital-de-independentes-005-2018/33124-pt-133-2018/file. Acesso em: 23 ago. 2022.
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, s/p).

A dramaturgia de Forin Jr. não se limita ao texto de Horváth, mas também se vale de outros materiais ligados à questão da “fome e desigualdade social em contextos de oportunismo político”. A peça tem como subtítulo “Ein kleiner Totentanz in fünf Bildern”, o que também foi importante para o projeto. Uma dança da morte em cinco quadros; não uma definitiva, trágica, universal, mas pequena, limitada, localizada, quase banal. Estamos no campo semântico das grandes desgraças sociais que nada têm da sina de um destino pré-traçado e inescapável, pelo contrário, são resultados de decisões políticas e econômicas, e que não precisariam ter ocorrido.

O caráter alegórico da peça escrita em 1932, que pode sem dificuldade ser atualizado para o Brasil de 2018, pode ser vislumbrado pelo trecho citado do projeto e pela carga metafórica do subtítulo, como também do título: o que dizer de Glaube Liebe Hoffnung (Fé Amor Esperança), em termos de abertura semântica, com toda a carga de idealização que contém? São conceitos abstratos que, na peça, são localizados em chave negativa como construção longa e gradual nas vivências de choque que marcam a pele e os afetos de Elisabeth e os que lhe cruzam o caminho, sem exceção. Paulatinamente, o plano material da decadência subjetiva e coletiva subjuga o plano abstrato universalista, e resta muito pouco, ou quase nada, de seus referentes metafísicos, vistos como falsos e ideológicos. Sem vírgulas ou conectivos, justapostos, os termos do título perdem sua força coesiva e, como blocos discursivos esvaziados de significado, amontoam-se como corpos vazios de marionetes sem vida: assim também o jogo desta pequena dança da morte, com seus fios sendo guiados impiedosamente pelo frio sopro da economia mercantil, pela razão da valorização irracional do capital.

Como tradutor, procurei construir um texto marcado pela força de metáforas fundantes, sem perder de vista a tração material dos fios destas vidas perdidas; a tensão entre o plano da conotação metafórica e o da aniquilação física e espiritual não pode se perder de vista. Faz todo sentido que a proposta de encenação envolva texto, música e dança.

Para esse projeto, fiz a tradução integral do primeiro quadro da peça de Horváth, seguido de um resumo comentado dos quatro quadros restantes, com tradução pontual de passagens que considerei representativas a partir dos interesses do projeto. Já nas primeiras reuniões com Forin Jr, ficou claro que não se tratava da encenação da peça toda, antes de passagens da peça, com atenção especial ao primeiro quadro, em torno da venda do corpo de Elisabeth para o Instituto de Anatomia, para fins de pesquisa, quando ela morresse.

Também nesse caso, houve alguma interlocução com o grupo do projeto para se pensar no escopo da tradução. A situação era completamente diversa daquela de 2013. O modo de trabalho era outro, a distância; o projeto seria apresentado à prefeitura de Londrina, não estando vinculado diretamente à universidade. De todo modo, o projeto estava ligado ao meu projeto de pesquisa acadêmico, sobre o campo do teatro dialético, e na articulação entre teatro brasileiro e teatro em língua alemã. No entanto, a maior diferença radicava no que se esperava como espetáculo e, também, na variedade entre os textos. Se Brecht tendia para o registro realista e para a interrupção do fluxo dramático por rupturas que propiciam o refluxo crítico sobre os materiais apresentados – como num jogo entre ‘pôr’ a fábula, para então a ‘contrapôr’, continuamente –, a peça de Horváth e o modo de sua apropriação pediam uma linguagem mais hiperbólica, simbólica, conotativa, que seria perspectivada e contraposta pelo contexto material.

Nos dois casos (Brecht e Horváth) lidamos com elaborações dialéticas, mas cada uma operava em um circuito próprio. A solução que encontrei foi a de escrever longos textos comentando a peça e as possibilidades de tradução de determinadas passagens, menos para que nos decidíssemos por uma escolha vocabular ou outra, e mais para marcar uma espécie de intenção alegórica, na acepção de Benjamin: um significante sem um significado já estabelecido e cristalizado, exigindo a participação ativa dos interlocutores para sua efetivação. Temas como fome, desigualdade social, especulação econômica até com o corpo humano, atomização social, entre outros, não se deixam abafar por elaborações estéticas refinadas e fechadas em sistemas autocentrados – essa a aposta da tradução, e tornar essa tensão produtiva era o objetivo primeiro. Nesse sentido, diferente de uma tradução preocupada em documentar valores de ordem mais filológica, fez-se necessário comentar as decisões e, também, suas imprecisões e aberturas. Isso vale para o primeiro quadro, traduzido por completo, mas sobretudo para os quatro quadros finais.

Essa perspectiva sai reforçada quando se percebe a potência do espaço cênico e das rubricas nesse texto. O quarto quadro se inicia com uma rubrica em que se constrói uma cena doméstica, sem falas, como o espaço idílico do amor. O policial Alfons cochila no sofá. Elizabeth coa café enquanto observa flores em um vaso, sob a luz de outono, com a cortina da sala semicerrada. De repente, longe da mera descrição do mobiliário ou do movimento dos atores, a rubrica afirma que esse quadro sem falas deve ser a representação cênica da plena felicidade, da paz de espírito e da união de dois corações que se amam. A rubrica termina assim, e sabemos se tratar de um clichê batido e gasto pelo que acompanhamos até aqui da relação meramente circunstancial e de necessidade entre os dois personagens, e também pelo desdobramento que vem a seguir: ao saber, por um outro policial, que Elisabeth esteve presa, Alfons a abandona imediatamente, por ser um perigo para a sua carreira.

Este idílio fora construído unicamente pela disposição dos objetos, das pessoas, dos olhares, das luzes, em um tempo suficiente para que a ficção do amor chegue ao leitor / espectador. Nos comentários que fiz após a tradução dessa passagem, anotei que a presença da voz autoral deveria irromper na cena, por algum meio. Afinal de contas, o comentário na rubrica nada tem de ingênuo ou bobo, antes localiza toda a cena, e no mesmo movimento em que instaura o belo e puro se distancia dele; belo e puro como a sociedade que acompanhamos não pode ser, não é. Como traduzir cenicamente essa disposição visual, sem perder de vista as contradições nela inscritas, essa a tarefa e a dificuldade, que procurei desenvolver nos comentários – inclusive por não haver texto a ser dito nessa passagem.

Embora contemplado, o projeto ainda não foi implementado, mas é possível que o seja ainda em 2022. Embora o projeto seja viável financeiramente, inclusive com um valor a ser pago para a tradução, não é esse o motivo pelo qual aceitei participar do projeto, e sim a relevância cultural e política do processo e de seus resultados.

Kriegsfibel, de Bertolt Brecht (2022)

No início de 2022, no âmbito de uma pesquisa continuada sobre a obra de Brecht, surgiu o interesse em trabalhar com o Kriegsfibel. Publicado originalmente em 1955, ele é composto por 69 fotos impressas, cada uma acompanhada de uma poesia (quadra) escrita por Brecht, que se relaciona com a foto. Ruth Berlau, em texto introdutório, afirma que este livro pretende ensinar a ler imagens. Ela equipara a dificuldade de se ler imagens a de se ler hieróglifos, porque é necessário compreender as relações sociais ali incrustadas. Seria preciso localizar historicamente as imagens, lutar contra o esforço de estabelecer as conexões que o sistema capitalista se esforça em apagar e neutralizar, segundo Berlau. Essa perspectiva lembra a do teatro documentário de Peter Weiss, que questiona a concepção de documento como um dado frio e neutro, como uma verdade absoluta, pedindo a contextualização dos interesses de quem divulga determinados documentos, de quem guarda, como e por que guarda, de quem os interpreta etc.

O Kriegsfibel opera como um livro que ensina a ler imagens e textos em uma situação específica, a Segunda Guerra Mundial, a partir do olhar de Brecht, ele mesmo refugiado político, envolvido com teatro dialético desde ao menos 1919, e que acompanhou de dentro as contradições da República de Weimar. A partir desse lugar, esse livro faz um painel amplo e dialético da Segunda Guerra, das mediações entre arte e sociedade, e do papel social da arte. Em tela estão soldados que não sabem por que e contra quem lutam, mães que perderam seus filhos, refugiados perdidos pelo continente, a destruição de cidades e campos, a fome, líderes políticos posando como heróis e as implicações econômicas do todo, num vaivém entre materiais comentados pelas quadras em tom e distância variados. Estamos no terreno fértil do que Benjamin chamou de imagens dialéticas. Nas palavras de Bolle (1994, s/p)Bolle, Willi. “Alegoria, imagens, tableau”. Artepensamento, 1, s.p., 1994. Disponível em: https://artepensamento.ims.com.br/item/alegoria-imagens-tableau/. Acesso em: 21 jan. 2022
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: “As imagens dialéticas, segundo Benjamin, não são categorias objetivas, mas se localizam em sujeitos históricos. [...] A imagem dialética é a imagem histórica em si, contanto que, ao apresentar o passado, ele contraste com o presente”. Cada fotografia, com sua quadra correspondente, cria um fragmento tensionado em que a história se precipita, abrindo-se para o presente. A mediação entre os fragmentos estabelece novas relações de sentido, construindo um quadro histórico complexo. O processo, como um todo, tem estreita relação com o princípio da alegoria benjaminiana.

Além do interesse pela obra, que dialoga com minhas pesquisas, a tradução destas 69 pranchas tinha um outro objetivo mais imediato. Uma disciplina na pós-graduação da UFRJ, ministrada por Priscila Matsunaga, tinha como um de seus tópicos o estudo de algumas pranchas do Kriegsfibel no contexto da relação entre texto, imagem e teatro dialético.

Embora não se trate de uma obra teatral, algumas das quadras foram usadas em peças de Brecht, como por exemplo o final da peça Der Aufstieg des Arturo Ui, que está publicado na última prancha. Didi-Hubermann vê a prancha 39 (“Singapore Lament”) como central para o projeto do Kriegsfibel: uma mãe lamenta, gritando, ajoelhada, a morte do filho pelo bombardeio. De acordo com ele, essa imagem está inscrita, no livro, numa rede de situações de Pietá. Mais adiante, diz: “Devemos nos surpreender que Brecht tenha construído um momento-chave de sua encenação de Mãe Coragem, sobre uma espécie de grito prolongado, sobre essa lamentação transformada em imprecação, com a qual Helene Weigel construiu tão bem o grande gestus patético?” (Didi-Huberman, 2017Didi-Huberman, Georges. Quando as imagens tomam posição. O olho da história, I. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017., p. 150-152). Este autor traz uma questão central que articula o teatro de Brecht ao Kriegsfibel: a discussão em torno do conceito e operação do gestus, imagem social decisiva para seu teatro épico e para o projeto ora comentado, no qual o gestus não se constitui apenas como imagem, mas na relação com o texto. Nas palavras de Bolle:

O gestus [...] é signo de interação social. Assim, por exemplo, um homem que vende um peixe manifesta o gestus de vender; um homem redigindo seu testamento [...] um policial batendo num homem, um homem pagando dez homens – em tudo isso está um gestus social. Outra característica do gestus é sua complexidade: seus elementos constitutivos podem ser gestos, expressões mímicas ou palavras, simultânea ou separadamente.

(Bolle, 1976Bolle, Willi. “A linguagem gestual no teatro de Brecht”. Língua e Literatura, 5, p. 393-410, 1976. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2594-5963.lilit.1976.113816
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, p. 394).

Uma questão fundamental que se colocava para a tradução dizia respeito à forma das quadras, com esquemas de rimas, ritmos e métricas variados. Não se trata de discutir qual seria uma tradução melhor do texto das quadras, mas explicitar que a tradução tinha como eixo central a relação texto/imagem. Importava, antes, discutir quais as necessidades e objetivos da tradução, definir um projeto, determinar o escopo da tradução. No caso em questão, já havia uma tradução publicada em inglês, pela editora Verso, realizada por John Willet, grande pesquisador de Brecht. Esta tradução se pauta, sobretudo, pela forma poética das quadras, e está menos preocupada em sua mediação com as imagens. O resultado é excelente, para o seu escopo. Mas o objetivo da tradução que realizei era outro. Queríamos privilegiar o enfrentamento, vamos chamar assim, entre a imagem da fotografia e o texto.

O objetivo não é a publicação da tradução, mas fazê-la útil como material de trabalho para pesquisas acadêmicas sobre Brecht. Havia uma demanda do próprio grupo de trabalho na universidade em verificar quais eram as decisões tomadas pelo tradutor para o inglês. Esta tradução para o inglês possibilitava a leitura pelos participantes, mas ela tinha esse duplo problema: colocar outra língua como mediadora – e tudo o que decorre daí – e as decisões que o tradutor tomou para manter a estrutura poética análoga ao original. A nossa tradução – feita em parceria com Gérson Luís Pomari, a quem agradeço – procurava destacar as possibilidades de tradução, as acepções possíveis de determinadas passagens, deixar evidente de quem eram as vozes que ouvíamos, explicitar as relações entre contexto, texto e imagem. Essas relações variavam muito: poderiam ser complementares, críticas, irônicas, antagônicas, referenciais (localização histórica), explicativas etc. Para dar conta desse processo, fizemos comentários à margem, discutindo possibilidades e os efeitos desta ou daquela escolha. Não chegou a ser uma tradução comentada, pois esse não era um princípio organizador ou algo que tenha ocorrido na maioria das vezes, mas é significativo para caracterizar nossa postura como tradutores. Interessava, sobretudo, fazer com que as fotografias pudessem ser vistas a partir da perspectiva do gestus do teatro brechtiano. A respeito do gestus em Kriegsfibel (traduzido abaixo como ABC da Guerra), anota Tolentino:

Em ABC da Guerra, o poeta parece interrogar, subvertendo esse livro primordial que é a cartilha, a capacidade de saber ver, na atualidade, os documentos sombrios da história – são imagens dialeticamente suspensas, em que o estranhamento se constrói através da superposição de imagens de crimes à textos líricos que retomam a forma epigramática, numa anamnese estilística que poderia ser vista como fotoepigramática. É clara a manipulação contrastante do material histórico, tornando visíveis as polaridades cuja lição política pode ser deduzida pela organização espacial da montagem: há lamento, mas há frieza, ironia, humor; há distanciamento sem excluir o caráter empático inerente ao horror, ao espanto; há uma tomada de posição por excelência; um gestus.

(Tolentino, 2020Tolentino, Thaís A. D. “O gestus social em Brecht: uma análise acerca de Histórias do Sr. Keuner”. Revista da Anpoll, 51(3), p. 44-53, 2020. DOI: https://doi.org/10.18309/anp.v51i3.1441
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, p. 46-47).

No teatro brechtiano, o gestus se constrói como interrupção, o que envolve um movimento anterior e uma cesura, que se mantém por algum tempo, numa espécie de fixação fugidia, questionando qualquer concepção cristalizada. Esse movimento, no caso do Kriegsfibel, pode ser visto pela perspectivação do texto em relação à imagem correspondente. Se as milhares de fotografias que se amontoam nas revistas (o que dizer da internet, então) se apresentam como verdadeiros hieróglifos, na certeira imagem de Ruth Berlau, marcados por um conceito equivocado de documento acabado, inequívoco e preciso, o texto brechtiano traz o movimento, a incerteza, o inacabamento, a atualidade, materializando a intenção alegórica que instaura um movimento crítico. Nossa tradução pretende, justamente, avivar e potencializar ao máximo essa instabilidade que leva à dialética entre arte e sociedade.

Hoppla, wir leben!, de Ernst Toller (2022)

Um quinto projeto é a tradução de Hoppla, wir leben!, de Ernst Toller, que realizo como projeto de pós-doutorado na UFPR, sob a supervisão de Maurício Mendonça Cardozo. Dos casos mencionados, esse já nasce como projeto acadêmico, ligado diretamente à minha linha de pesquisa em teatro dialético, e articula questões profissionais e pessoais. Em primeiro lugar, Toller é um autor muito pouco conhecido no Brasil, apesar de sua importância para se compreender o teatro na República de Weimar, contexto em que tanto o teatro expressionista como o teatro épico-dialético se desenvolveram, em íntima relação com a situação político-econômico-cultural da Alemanha. Além disso, a peça em questão foi encenada, em 1927, por Piscator na inauguração do Piscator Bühne, em Berlin, uma encenação que entrou para a história do teatro.

Isso é importante por vários motivos, dos quais apresentarei dois. No Brasil, o trabalho cênico de Piscator torna-se conhecido e discutido desde os anos 1960, sendo importante para o desenvolvimento do teatro brasileiro. Desde então, discute-se a direção e o palco de Piscator, mas sem se conhecer o texto e contexto da peça encenada. Em segundo lugar, algumas sugestões de Piscator foram introduzidas no texto publicado, de tal modo que a publicação resulta de uma dinâmica complexa entre o texto de Toller e a cena de Piscator, ambos marcados no texto – neste se vê as quebras com os intermezzos fílmicos, bem como a canção Hoppla, wir leben!, com letra de Walter Mehring, encomendada por Piscator para a encenação, e cujo título foi adotado por Toller para a peça. No livro Teatro político, Piscator diz: “Mas como sempre sucedia com Toller, o elemento documental e o elemento poético-lírico se interpenetravam. Todos os nossos esforços, no curso ulterior do trabalho, se orientaram no sentido de dar à peça a base realista” (Piscator, 1968Piscator, Erwin. Teatro político. Tradução de Aldo Della Nina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968., p. 173). Como se percebe pela leitura deste texto, o final em que Karl Thomas se suicida (e como foi publicado, ainda em 1927) se deve à sugestão de Piscator – e vale lembrar que, mais tarde, Toller retomou a sua primeira escrita para publicação, em que o personagem não se suicida. Em outra passagem, das mais relevantes para o projeto de tradução, diz:

A linguagem de Toller constituiu um pesado encargo para o material que eu pretendia analisar sensata, clara e distintamente na peça. Os seus anos de evolução estavam no período do expressionismo. Sei como é difícil livrar-se disso. [...] Toller não saía da minha casa. Instalado à minha escrivaninha, enchia, com incrível rapidez, folha após folha com a sua enorme letra.

(Piscator, 1968Piscator, Erwin. Teatro político. Tradução de Aldo Della Nina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968., p. 176).

É questão controversa em que medida que as alterações textuais foram profundas ou não, pois não temos acesso às primeiras versões. O próprio Toller (1978a, p. 146)Toller, Ernst. “Arbeiten”. In: Toller, Ernst. Gesammelte Werke Band 1 – Kritische Schriften, Reden und Reportagen. Spalek, John & Frühwald, Wolfgang. (Hgs). Gutenberg: Büchergilde Gutenberg, 1978a. p. 135-148. diz que Piscator não tinha nenhum motivo para reclamar dele ou de seu estilo, e indica que algumas passagens usadas na cena e, mesmo, na publicação de 1927, vinham da cena e não de sua pena (Toller, 1978aToller, Ernst. “Arbeiten”. In: Toller, Ernst. Gesammelte Werke Band 1 – Kritische Schriften, Reden und Reportagen. Spalek, John & Frühwald, Wolfgang. (Hgs). Gutenberg: Büchergilde Gutenberg, 1978a. p. 135-148., p. 147). Para o que nos importa, trata-se de uma publicação que tem marcas do processo de criação cênica, sem perder de vista o texto de Toller.

A tradução que estou realizando procura atentar para essas duas matrizes. Em primeiro lugar, faço uma tradução para publicação, na esteira da tipologia de Bohunovsky (2019)Bohunovsky, Ruth. “Traduções no teatro, feitas para publicar, encenar ou legendar: uma tipologia possível”. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, 2(35), p. 129-148, 2019. DOI: https://doi.org/10.5965/1414573102352019129
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. Essa tradução pretende se ater às tensões internas ao texto de partida, à dialética complexa da República de Weimar, vista sincronicamente a partir de 1927, mas também diacronicamente, entre 1919 e 1927 – recorte que é da peça. Há diversas vozes discursivas: os militares, a aristocracia, os revolucionários de 1919 e seu modo de ser e agir em 1927, a extrema-direita, a burocracia estatal, a classe médica, os pequenos empregados (telefonista, garçom), os grandes banqueiros, entre outros. Cada um tem não apenas um vocabulário e dicção próprios, como mudam ao longo do tempo, e se configuram de modo diverso dependendo de quem é o interlocutor. O médico psiquiatra, que no início da peça se mostra de modo relativamente objetivo, ao final, quando Thomas volta ao hospício, se revela um reacionário perigoso, a ponto de Thomas – o paciente – se assustar com a normalização e banalização da barbárie defendidas pelo médico.

Esse primeiro momento da tradução tem como objetivo não apenas identificar, mas potencializar essas diferenças, para que sejam perceptíveis e funcionem didaticamente. Afinal de contas, o que era o dia-a-dia dos alemães em 1927 de modo algum é conhecido pelo leitor / espectador brasileiro. Em paralelo à tradução, um estudo sobre o teatro na República de Weimar é necessário para situar o leitor brasileiro. Concordo com Renaux (2010, p. 55)Renaux, Marcos. “Traduttore traditore”. Número especial “O trabalho da tradução no teatro”. Revista Olhares, 2, p. 55, 2010. quando diz: “Mas será mesmo que devo traduzir Luftwaffe por FAB num texto de Brecht ou Heiner Müller? Penso que não. Este não deve nem pode ser o norte do tradutor dramático.” A questão não diz respeito à fidelidade ao texto de partida, tema dos mais controversos – afinal, o que seria essa fidelidade, se o autor não é dono do texto nem das interpretações que se podem fazer dele? – mas, sim, às questões e atores sociais que se articulam em determinado contexto, e que não podem ser transplantados para outros contextos sem perder seu sentido e potência. Em outras palavras, a burocracia alemã, ou a importância do militarismo na Alemanha pós-Primeira Guerra, bem como a revolução conselhista alemã de 1918-9 e as tensões até 1923, tudo isso faz parte da peça traduzida. O fato dela se prestar a projeções em momentos de crise política neoliberal não a faz redutível a outros contextos, antes a faz atualizável, o que é outra coisa.

Após esse primeiro momento da tradução, ocorrerão ciclos de leitura cênica programadas com grupos de pesquisa em teatro e, também, com grupos de teatro, com o objetivo explícito de fazer a peça performável, em trazê-la para uma dicção que não fira os ouvidos nem a língua dos atores. Essa etapa inclui uma discussão sobre o teatro na República de Weimar, sobre Ernst Toller, e sobre a encenação de Piscator, como ponto de partida para a busca de uma encenação que também tenha em vista uma ação social nos tempos que correm. Ou seja, a tradução se pauta pela discussão sobre a função social da arte, do questionamento da arte entendida unicamente como mercadoria, em um campo social isolado e fechado em si mesmo. A arte, e o teatro, precisam contribuir com a formação social e crítica. O projeto inclui, portanto, muitas mediações até chegar ao seu final, que é tanto a publicação da peça, como a sua circulação por espaços onde possa ser ativada na atualidade.

Considerações Finais

O artigo tratou de especificidades de cinco casos de minha atuação no campo da tradução teatral, mas, também, tem um plano comum que as articula: a divulgação, a encenação e a discussão de autores fundamentais para o teatro ocidental e para o teatro brasileiro (também por conta da história da recepção de alguns dos autores mencionados), em especial ligados à apropriação do teatro épico-dialético no Brasil, tanto na cena, como na dramaturgia, crítica e teoria do teatro. O tradutor se coloca, neste cenário, não apenas como um elo distante do processo de apropriação, encenação e discussão, mas integrado e interagindo com os demais momentos dos projetos, o que se faz fundamental em situações como a de hoje, marcada, cada vez mais, pelo isolamento e atomização do trabalho, além da necessidade de articulação com a cultura e a conjuntura (política, econômica, cultural) do país e língua de origem, tarefas para as quais o tradutor pode ter um papel decisivo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    11 Nov 2022
  • Publicado
    Mar 2023
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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