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HIPOTIPOSE E DESLUMBRAMENTO

HYPOTYPOSIS AND WONDER

Resumo

O artigo abaixo tem como objetivo comentar a tradução proposta de fragmentos de The Sea and the Jungle, de Henry Major Tomlinson, lançado em 1912, bem como as estratégias de tradução propostas. O texto de Tomlinson foi escolhido pelo seu caráter poético, sobretudo pelo emprego de figuras de linguagem, tais como, a metáfora, a aliteração e a hipotipose. Escolhemos para o comentário que se segue apresentar três fragmentos com exemplos representativos de hipotipose, as traduções que propusemos e uma breve análise a respeito da descrição como pintura, colocações inusitadas e apelo sensorial, características do processo de formação da hipotipose empregadas pelo autor.

Palavras-chave
The Sea and the Jungle ; Literatura de viagem; Tradução comentada; Hipotipose

Abstract

The purpose of the following article is to comment on the proposed translation of fragments of The Sea and the Jungle by Henry Major Tomlinson, published in 1912, as well as the proposed translation strategies. Tomlinson’s text was chosen because of its poetic nature, especially its use of figures of speech such as metaphor, alliteration, and hypotyposis. For the following commentary, we have chosen to present three fragments with representative examples of hypotyposis, the translations we have proposed, and a brief analysis of description as painting, unusual collocations, and sensory appeal, characteristics of the hypotyposis formation process employed by the author.

Keywords
The Sea and the Jungle ; Translation with commentaries; Hypotyposis

Estas coisas, que não vistes com os olhos

podeis perceber com a alma.1 1 Cícero apud Rodolpho (2010, p. 92).

Para este terceiro volume da coleção Traduzindo a Amazônia2 2 Para conferir o volume I de Traduzindo a Amazônia, ver Guerini, Torres e Fernandes (2021) e, para o volume II, Guerini, Torres e Fernandes (2022). , escolhemos fazer a tradução comentada de The Sea and the Jungle, de Henry Major Tomlinson, lançado em 1912. Tomlinson era um jornalista inglês que escreveu 38 textos entre ensaios e livros entre os quais, além de literatura de viagem, escreveu também ficção. Escolhemos um fragmento, da página 99 à página 113, do capítulo II, que se deu pelas descrições vívidas que Tomlinson faz da Amazônia, desde a sua chegada. A edição escolhida foi a de 1982, da Time-Life Books, por causa de dois dos seus paratextos: um prefácio dos editores, sem menção aos seus nomes, e uma introdução de V. S. Pritchett.

O prefácio assinado pelos editores trata do autor, da viagem e da narrativa em si. Fica claro que foi feita uma leitura cuidadosa do texto, pois chamam a atenção para aspectos estilísticos da escrita de Tomlinson, tais como, o fato de o autor só registrar o que o agrada e o que o desagrada, seus preconceitos explícitos e suas descrições, objeto deste comentário.

A introdução assinada por Pritchett é bastante pessoal, uma vez que era conhecido do autor. Além de vários detalhes da vida de Tomlinson, o texto apresenta o contexto que levou o autor à viagem para a Amazônia, o trajeto e cita a influência do escritor Joseph Conrad e do explorador William Bates na sua prosa. Pritchett passa então a tratar da narrativa de viagem em si: paisagens, pessoas, vegetação, rios, animais, doenças, sobretudo da febre amarela.

Quando pensamos em literatura de viagem na Amazônia até o século XIX, início do XX, uma das questões que vêm à mente são as versões subjetivas e fantasiosas da região, desde os relatos da expedição de Orellana3 3 Francisco de Orellana e Frei Gaspar de Carvajal forma os primeiros a descer o rio Amazonas, do Peru ao Pará, em 1542. em que o contraponto com uma Europa civilizada fica evidente. No nosso caso e ponto de vista, um dos aspectos mais interessantes quando se traduz um viajante europeu de séculos passados é ver como o autor “inventou” uma Amazônia para o seu leitor. Gondim em A invenção da Amazônia pergunta:

Então, de que maneira o olhar do habitante do Velho Mundo veria o Novo se entre os dois ainda persistia a crença na inabitabilidade da zona tórrida, da inexistência de uma raça única com suas variáveis culturais e étnicas, fauna não embarcada na Arca de Noé, flora não alagada no dilúvio, rios jamais citados na Bíblia?

(Gondim, 2007Gondim, Neide. A invenção da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2007., p. 37).

E mais adiante diz: “O novo é filtrado pelo antigo assegurando a este sua supremacia. A prática de comparar as novidades vistas pela primeira vez com algo pretensamente conhecido, sendo domesticado, fortalecerá e documentará a estabilidade do antigo” (Gondim, 2007Gondim, Neide. A invenção da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2007., p. 38).

Tomlinson não foge à regra: seu relato compara vegetação, população, paisagem, costumes. Cabe acrescentar que suas observações sobre a população local e os costumes não têm nenhum compromisso antropológico e são carregadas com o mesmo preconceito4 4 Por exemplo: “The evident pride and hauteur, too, of these Latins, was a surprise to one of a stronger race” (Tomlinson, 1982, p. 105). que vimos nos dois textos traduzidos nos números anteriores (Freitas & Nascimento, 2021Freitas, Luana Ferreira de & Nascimento, Kelvis Santiago do. “Notas à tradução de A Voyage up the River Amazon Including a Residence in Pará”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), p. 142-148, 2021. DOI: https://10.5007/2175-7968.2021.e84947
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; Freitas & François, 2022Freitas, Luana Ferreira de & François, Michel Emmanuel Félix. “Impressions of a nineteenth century traveller of Amazonia”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), p. 166-175, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90742
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). Contudo, há duas questões que chamam a atenção no texto se comparadas às traduções anteriores: a representação perversa da mulher, ora sexualizando a mulher mestiça, ora a desprezando, e a acusação de roubo como um costume comum no Pará. Alguns exemplos ilustram o que queremos demonstrar:

Mas as mulheres eram, frequentemente, criaturas muito vistosas, certamente com movimentos cadenciados, porém não apáticas, e bem-feitas com suas curvas admiráveis. Geralmente eram de uma cor mais rica do que a de seus companheiros, e moviam-se como se seu sangue fosse de um temperamento mais agitado. Tinham olhos lentos e atrevidos. Do indígena herdaram o cabelo preto e a pele morena, do negro a silhueta e do português a fisionomia e os olhos5 5 Em inglês: “But the women often were very showy creatures, certainly indolent in movement, but not listless, and built in notable curves. They were usually of a richer colour than their mates, and moved as though their blood were of a quicker temper. They had slow and insolent eyes. The Indian has given them the black hair and brown skin, the negro the figure, and Portugal their features and eyes” (Tomlinson, 1982, p. 104). .

(Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 104).

Nesse caso desprezando as mulheres negras “Havia uma negra enorme, com as mãos na cintura, um monumento disforme de látex natural negro coberta por uma estampa de algodão, que falava bem alto, com sua boca vermelha desdentada6 6 Em inglês: “There was a huge negress, arms akimbo, a shapeless monument in black indiarubber draped in cotton print, who talked loudly with a red boneless mouth” (Tomlinson, 1982, p. 106). ” (Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 106).

E, finalmente, a acusação de roubo associada à astúcia:

E o oficial, encarregado de inspecionar o “Capella” enquanto ali permanecêssemos, era um latino alto e majestoso, com olhos escuros de tal nobreza e inquietante melancolia que nunca me ocorreu que nosso médico, que era viajado, não passasse de uma pessoa com uma mente anglo-saxônica obtusa, quando levou alguns pertences para sua cabine e trancou a porta antes de desembarcar. Então deixei meu binóculo em cima da caixa de gelo; e foi essa a última vez que o vi7 7 Em inglês: “The official who was left in charge to overlook the ‘Capella’ while we remained was a tall and majestic Latin with dark eyes of such nobility and brooding melancholy that it never occurred to me that our doctor, who has travelled much, was other than a fellow with a dull Anglo-Saxon mind when he removed some loose property to his cabin and locked his door, before he went ashore. So I left my field glasses on the ice-chest; and that was the last I saw of them” (Tomlinson, 1982, p. 102). .

(Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 102).

Infelizmente, como se pode ver nos trechos acima, esses viajantes não inventaram apenas a Amazônia, inventaram os brasileiros também. Cabe citar que Tomlinson não menciona ter visto quem pegou o binóculo, apenas afirma ter sido o cidadão brasileiro.

Tradução e Hipotipose

Figura 1
Crepúsculo num rio brasileiro (1876), de Giuseppe Leone Righini

Os desafios enfrentados para traduzir os fragmentos de The Sea and the Jungle foram muitos. Contrariamente aos textos traduzidos nos anos anteriores, nos quais os desafios foram da ordem da distância temporal, do preconceito exacerbado e do vocabulário científico; neste texto, lidamos também com a predominância de figuras de linguagem e do estranhamento, como teorizado por Chklovsky.

The Sea and the Jungle é um livro de viagem; contudo, não se pode dizer que seja apenas isso. De acordo com Pritchett (1982, p. xv)Pritchett, Victor S. “Introduction”. In: Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., “Tomlinson’s manner is a mixture of the poetic, the Biblical and the scientific; he is all metaphor, yet he is all event and fact”. Além da metáfora citada por Pritchett, o texto de Tomlinson é rico, entre outros, em hipotipose.

A hipotipose, figura de pensamento que produz uma descrição vívida, como se o objeto da narrativa estivesse diante dos olhos, é o traço mais marcante do texto de Tomlinson e foi nosso maior desafio dada a riqueza de detalhe com que o autor caracterizava suas descrições, além do forte apelo do texto aos estímulos sensoriais do leitor, como veremos nos exemplos a seguir:

Passamos a algumas breves análises de procedimentos empregados pelo autor nas hipotiposes dos três trecho selecionados acima. O primeiro fragmento em destaque corresponde ao segundo parágrafo do primeiro contato com a floresta e com o Pará. O autor fica entre o deslumbramento e a apreensão diante das proporções da natureza do lugar. A descrição do céu, da luminosidade, da vegetação, das sombras, entre outros, é pormenorizada e delicada, seguindo um zelo e uma dedicação que se seguirá ao longo de toda a narrativa.

Como vimos nos trechos acima, um procedimento bastante comum no texto de Tomlinson é o autor fazer referência a sombras, nuances de luminosidade e de cor, como quem busca o tom certo, como quem está pintando um quadro, como em, “glowing saffron” [açafrão luzente]; “a parapet of black filigree” [um parapeito de filigrana negra] e “in rigid patterns of ebony” [em estampas rígidas de ébano]. Outras vezes as descrições são formadas por colocações inusitadas, tais como, “under the impulse of the pouring light” [sob sob o impulso da luz que se derramava], “The morning light brimmed at the forest top” [A luz do amanhecer transbordava a copa das árvores] [solo em fontes de esmeralda].

O terceiro e último aspecto que vale tratar é o apelo sensorial do texto. Veremos alguns exemplos nos fragmentos acima: “It was heated and humid, and bore a curious odour, at once foreign and familiar, the smell of damp earth” [Estava quente e úmido, e exalava um odor curioso, ao mesmo tempo estranho e familiar, o cheiro de terra úmida]; “In the northern cliff I could see even the boughs and trunks; they were veins of silver in a mass of solid chrysolite.” [Nos penhascos da costa norte, eu podia ver os galhos e troncos; eram como veios prateados numa densa massa de crisólito] e “we could see the texture of the forest surface” [podíamos ver a textura da superfície da floresta].

Conclusão

Na nossa tradução, buscamos manter a hipotipose empregada pelo autor por meio das características abordadas acima, a saber, a descrição como pintura, colocações inusitadas e apelo sensorial, resistindo à tentação de corrigir o texto ou torná-lo mais palatável ao leitor.

O relato de Tomlinson, apesar do preconceito, apresenta uma nova versão da Amazônia, uma versão literária, poética, razão pela qual foi escolhido para esta tradução comentada.

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    Cícero apud Rodolpho (2010, p. 92)Rodolpho, Melina. Ékfrase e evidência nas letras latinas: doutrina e práxis. São Paulo: USP, 2010..
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    Para conferir o volume I de Traduzindo a Amazônia, ver Guerini, Torres e Fernandes (2021)Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia I”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
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    e, para o volume II, Guerini, Torres e Fernandes (2022)Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia II”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
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    Por exemplo: “The evident pride and hauteur, too, of these Latins, was a surprise to one of a stronger race” (Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 105).
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    Em inglês: “But the women often were very showy creatures, certainly indolent in movement, but not listless, and built in notable curves. They were usually of a richer colour than their mates, and moved as though their blood were of a quicker temper. They had slow and insolent eyes. The Indian has given them the black hair and brown skin, the negro the figure, and Portugal their features and eyes” (Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 104).
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    Em inglês: “There was a huge negress, arms akimbo, a shapeless monument in black indiarubber draped in cotton print, who talked loudly with a red boneless mouth” (Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 106).
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    Em inglês: “The official who was left in charge to overlook the ‘Capella’ while we remained was a tall and majestic Latin with dark eyes of such nobility and brooding melancholy that it never occurred to me that our doctor, who has travelled much, was other than a fellow with a dull Anglo-Saxon mind when he removed some loose property to his cabin and locked his door, before he went ashore. So I left my field glasses on the ice-chest; and that was the last I saw of them” (Tomlinson, 1982Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle. Chicago: Time-Life Books, 1982., p. 102).

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Referências

  • Freitas, Luana Ferreira de & Nascimento, Kelvis Santiago do. “Notas à tradução de A Voyage up the River Amazon Including a Residence in Pará”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), p. 142-148, 2021. DOI: https://10.5007/2175-7968.2021.e84947
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84947
  • Freitas, Luana Ferreira de & François, Michel Emmanuel Félix. “Impressions of a nineteenth century traveller of Amazonia”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), p. 166-175, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90742
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e90742
  • Gondim, Neide. A invenção da Amazônia Manaus: Editora Valer, 2007.
  • Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia I”. Cadernos de Tradução, 41(esp.1), 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84962
  • Guerini, Andréia; Torres, Marie Helene Catherine & Fernandes, José Guilherme. “Traduzindo a Amazônia II”. Cadernos de Tradução, 42(esp.1), 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e91851
  • Pritchett, Victor S. “Introduction”. In: Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle Chicago: Time-Life Books, 1982.
  • Rodolpho, Melina. Ékfrase e evidência nas letras latinas: doutrina e práxis. São Paulo: USP, 2010.
  • Tomlinson, Henry M. The Sea and the Jungle Chicago: Time-Life Books, 1982.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
  • Publicado
    Out 2023
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