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REPRESENTAÇÃO SONORA ENTRE LITERATURA E CINEMA: a questão do ponto de escuta nas adaptações de Persuasão de Jane Austen

SOUND REPRESENTATION BETWEEN LITERATURE AND FILM: the matter of point of audition in adaptations of Jane Austen 's Persuasion

Resumos

Explorar a representação sonora pela literatura e em adaptações de obras literárias para o cinema. Analisar a representação de ambientes sonoros, da relação dos personagens com tais ambientes e os processos de identificação entre espectador e personagem, especialmente pelas nuances possíveis do ponto de escuta. Entendemos neste artigo que analisar a identificação entre espectador e personagem através da construção do ponto de escuta é tratar de um procedimento narrativo pouco analisado tanto no campo dos estudos literários quanto na teoria cinematográfica. Para tanto, a análise das adaptações cinematográficas dos romances de Jane Austen terá papel central, embora haja no decorrer do texto exemplos outros.

Som; Cinema; Ponto de Escuta


This arcticle aims to investigate sound representation through literature and cinematographic adaptation. Therefore, it analyses the representation of sound space in its relation with characters' moods, as well as the construction of identification processes between character and spectator, especially achieved through point of audition procedures. The main goal here is to declare that analysing point of audition procedures means working on a scarcely analyzed (Acima, está grafado com s) narrative tool both in literature and cinema studies. Jane Austen's cinematographic adaptations will play a central part in this analysis, even though other examples will help establishing the dialogue between sound representation, literature and film.

Sound; Cinema; Point of Audition.


Introdução

Este artigo tem por objetivo explorar determinadas possibilidades de representação sonora pela literatura e pelo cinema. No início, a representação sonora pela literatura em si será analisada, para que, paulatinamente, possamos passar a pensar em uma triangulação entre a representação dos sons e a adaptação literária para o cinema. Em uma primeira parte, o texto delineará a fundamentação teórica advinda dos estudos de música, da forma como tem sido transplantada para os estudos de som no cinema, para em seguida expor uma aplicação de tais pressupostos na própria análise do romance e da poesia. De início, há uma diversificação dos exemplos, enquanto na segunda metade o texto se concentrará no estudo de uma autora, Jane Austen, e de uma questão mais específica: a questão da construção do ponto de escuta como escolha narrativa central para a estrutura do romance e para suas adaptações cinematográficas.

O interesse deste artigo em unir os estudos de som, a teoria do cinema e a literatura encontra um ponto de inflexão nos textos, de resto bastante citados recentemente nos estudos sobre som no cinema, de Raymond Murray SchaferSCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Unesp, 2001.. É sabido que a obra do canadense, escrita entre as décadas de 1970 e 1980, e traduzida em parte para o Brasil entre a segunda metade da década de 1990 e o início dos anos 2000, tem como conceito central o que em língua portuguesa se traduziu como "paisagem sonora", a partir do neologismo soundscape. Ou seja, explicando de forma simples e direta, trata-se de entender que assim como há uma paisagem visual representável, a landscape em língua inglesa, da qual a fotografia, a pintura e demais artes visuais procuraram dar conta nos últimos séculos, há também a sonoridade mensurável e representável específica de cada lugar, a soundscape.

A partir do uso de um conceito que não tinha o cinema ou a literatura como bases de pesquisa, o que nos interessa é pensar como exatamente o cinema e a literatura podem, a partir de seus códigos distintos, representar os ambientes sonoros específicos de cada lugar em que determinada cena se passa, como seria possível para ambos representar paisagens sonoras, se aceitarmos o termo de Schafer. Na verdade, o que nos interessa desta vez nos estudos de Schafer é a relação que ele faz com a literatura dos séculos XVIII e XIX. Como dissemos, não são exatamente os estudos literários o seu foco de análise, mas ele se ancora na literatura para desenvolver parte de seu método de mapeamento de sons, especialmente na busca por representações de sons anteriores ao advento da gravação sonora. Se as gravações sonoras tem uma história que se inicia, até onde se sabe atualmente, entre a década de 1850 na França, com os experimentos de Edouard-Leon Scott de Martinville,e as patentes de fonógrafo de Thomas Edison no fim da década de 1870 nos EUA, como fazer para pensar como soavam as cidades e os campos antes disso? Schafer entende como válidas as representações de sonoridades nos romances, e a partir de descrições do que entende como paisagens sonoras, por exemplo em Thomas Mann, em Tolstoi, em Thomas Hardy, procura ter pistas de como determinados ambientes soavam antes que se pudesse gravar suas sonoridades. É o que ele define como "testemunho auditivo". (SCHAFER, 2001SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Unesp, 2001., p. 24-25)

Evidentemente, para se dar crédito ao método de Schafer, não se pode perder de vista que se trata de uma representação literária dos sons, ou seja, de uma clara mediação entre o que se poderia perceber como a sonoridade de determinado ambiente e a criação literária referenciada nele. O historiador do cinema Rick Altman comenta, dentro de um estudo sobre a pluralidade de tentativas de sonorização concernentes ao chamado período mudo, que enquanto o cinema buscava, em suas primeiras décadas, não apenas uma homogeneização de seu aparato técnico mas também uma padronização de seus códigos narrativos, tornava-se claro o problema da representação da realidade por códigos cinematográficos. Altman chama atenção para a necessidade de referenciar qualquer modelo de representação no próprio jogo de criação dos códigos representacionais que vão se estabelecendo em seu meio e em seu tempo. Assim, Altman atesta que nem mesmo se poderia falar em uma representação direta do real pelo cinema, pois uma filmagem seria sempre uma representação da representação cinematográfica do real, ou seja, referenciada nos próprios modos do cinema representar o mundo antes de alcançar um suposto contato com o mundo em si, com o perdão da fenomenologia. De certa forma, haveria sempre uma "representação da representação" (ALTMAN, 2004ALTMAN, Rick. Silent film sound. New York: Columbia University Press, 2004., p. 17). A questão da representação é grave em Schafer, e, no nosso entender, passível de crítica, pois em primeiro lugar há a fé, por parte do autor canadense, em que se posicionando um determinado microfone, com determinadas especificações técnicas e ângulos de captação previamente determinados, é possível captar o que pode ser entendido como a especificidade sonora de cada lugar; em segundo lugar pela fé na representação de sonoridades passadas por parte da literatura. Feita essa ponderação, os exemplos que citaremos de representação sonora por textos literários procuram atestar que sim, de alguma forma tal representação pode ser válida como objeto de estudo, como aqui o é.

2. Representação sonora e literatura

Uma aplicação do conceito de paisagem sonora à análise literária encontra-se no artigo de Anne Lovering Rounds sobre Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. A centralidade do conceito para Rounds é aferível até mesmo pela presença da expressão no título do artigo: Dissolves in Mrs. Dalloway: The soundscape of a novel. Para ela, por exemplo, as várias descrições dos sons dos sinos do Big Ben são fundamentais para marcar, na paisagem sonora do centro de Londres como descrita por Woolf no dia único dentro do qual transcorre a trama, uma fusão entre o tempo objetivo, o tempo mensurado pelos relógios, e o tempo interior, o tempo da mente dos personagens, a distinção colocada por Rounds entre clock time e mind time. (ROUNDS, 2011ROUNDS, Anne Lovering. Dissolves in Mrs. Dalloway: The soundscape of a novel. Literary Imagination. V. 13. N 1. Oxford: Oxford University Press, 2011., p. 59) Para Rounds, é importante demarcar que no romance de Woolf a representação do tempo objetivo é auditiva. Os personagens reconheceriam o tempo que passa na cidade essencialmente porque o ouvem, representado, em várias passagens, pelos sinos do relógio que simboliza uma cidade. Rounds nota na representação das sonoridades londrinas a transitoriedade do sem número de sons que se misturam, que desaparecem após fundirem-se com outros, que se dissolvem no ar. Rounds lembra que essa transitoriedade é ao mesmo tempo característica dos sons e da representação deles na metrópole. Entendidas em primeiro lugar no âmbito sonoro, tais ideias de fusão, dissolução, retorno seriam centrais para o romance em si. (ibidemROUNDS, Anne Lovering. Dissolves in Mrs. Dalloway: The soundscape of a novel. Literary Imagination. V. 13. N 1. Oxford: Oxford University Press, 2011., p. 70)

Ainda sobre a representação sonora da cidade, Rounds comenta que, para Woolf, os sons de Londres nunca silenciam; que a cidade é o espaço de sons que circundam os personagens perpetuamente; que o centro da cidade teria com marca sonora um ruído que paradoxalmente parece sempre ser crescente, um murmúrio que sempre parece aumentar em intensidade, um uproar (ibidemROUNDS, Anne Lovering. Dissolves in Mrs. Dalloway: The soundscape of a novel. Literary Imagination. V. 13. N 1. Oxford: Oxford University Press, 2011., p. 61). Rounds estabelece ainda uma relação possível entre a representação sonora urbana em prosa de Woolf e a representação sonora rural presente na poesia de Keats, além de não deixar de prestar atenção às cadências do texto de Woolf, aos padrões rítmicos sugeridos, por exemplo, pela repetição de palavras chave para o romance, como twelve, ou time.

Seguindo com o raciocínio de procurar romances que coloquem as sugestões de sonoridades como centrais para suas narrativas, podemos citar o canônico No coração das trevas, de Joseph Conrad. Como se sabe, o romance de Conrad, publicado na virada do século XIX para o século XX, é a base literária de um filme que se destaca comumente na história da sonorização para cinema: Apocalypse Now, dirigido por Francis Ford Coppola, lançado em 1979. É conhecida a revolução que o processo de realização do filme propôs para a finalização de som: mais de uma centena de pistas de som consecutivas para criar a representação do ambiente sonoro da guerra dentro de uma floresta; a auto-denominação de Walter Murch como sound designer e não apenas editor de som, dando início à função que pressupõe um individuo no controle do planejamento sonoro como um todo, por todas as etapas da produção, hoje comum no mercado cinematográfico. Para quem conheceu antes o filme, como espectador, do que o livro, como leitor, a leitura do livro de Conrad propõe uma questão, que aqui se transforma em uma modesta hipótese: a base para a revolução sonora sempre comentada em Apocalypse Now estaria na centralidade, para a estrutura do romance, do fato de descrever sonoridades, sejam elas advindas da floresta do centro do continente africano dentro da qual os colonizadores ingleses se meteram, seja, por exemplo, no cuidado em descrever a potência da voz do coronel Kurtz. Resumindo, o filme seria tão relevante em termos de som em parte porque sua base é um romance que investe profundamente na descrição de sonoridades.

O lugar onde se passa a maior parte da ação de No coração das trevas justifica a ampla descrição de sonoridades que perpassa o romance. Somos levados a crer que na densa floresta africana dentro da qual se encontram os navegadores ingleses os sons produzidos por tudo o que não se enxerga causam uma sensação de risco ininterrupto. Marlow, o narrador, descreve assim a floresta, no momento em que a expedição se encontra, acreditam eles, a treze quilômetros do posto de Kurtz, o objetivo da navegação:

As árvores, amarradas umas às outras pelos cipós e pelos arbustos da vegetação rasteira, pareciam transformadas em pedras, até o mais fino dos galhos, a mais leve das folhas. Não era sono... tinham um aspecto artificioso, como se estivessem em transe. Não se ouvia o menor ruído. Contemplávamos aquilo com perplexidade e achávamos que tínhamos ficado surdos... então, a noite caiu de repente, e ficamos cegos também. Por volta das três horas da madrugada, um peixe grande saltou, e o barulho da pancada na água me fez dar um pulo, como se uma arma tivesse sido disparada. Quando o sol nasceu, surgiu uma névoa branca, morna e pegajosa, e mais cegante do que a noite. Não se mexia nem levantava; apenas pairava ali à nossa volta, como algo sólido. (CONRAD, 2008CONRAD, Joseph. No coração das trevas. São Paulo: Hedra, 2008.. p. 78-79)1 Transcrevemos o romance a partir da tradução para o português de José Roberto O'Shea para edição de 2008.

Além do fato de colocar os personagens em uma situação de ouvir mais do que veem, nos interessa a descrição do limiar entre sons ambientes rarefeitos e a impressão de silêncio. Voltaremos, no decorrer deste texto, a descrições análogas.2 A situação de ouvir um determinado som sem que seja possível ver sua fonte sonora é descrita, no campo dos estudos de som para cinema, por Michel Chion, amparado na música concreta de Pierre Schaefer, como acusmatismo. Um som acusmático seria qualquer som que ouvimos sem saber de onde vem. (CHION, 1999, p. 17-19) Transplantando tal nossa para o espaço da ação do romance de Conrad, poderíamos dizer que os personagens estão envoltos por sons que, para eles próprios, são acusmáticos. Como dissemos, além das inúmeras descrições das sonoridades da floresta ou das impressões de silêncio que ela consegue emanar, também são muitas as passagens nas quais é descrito o impacto causado pela voz de Kurtz sobre quem a ouve, o que denota a importância da caracterização dessa própria voz para a construção do personagem. É o que está em jogo quando Marlow recebe a notícia da provável morte de Kurtz:

Minha frustração não poderia ser maior, uma vez que eu viajara até ali com o único propósito de falar com o Sr. Kurtz. Falar com...atirei um dos sapatos no rio e me dei conta de que era exatamente aquela a minha expectativa... falar com Kurtz. Cheguei à estranha sensação de que nunca o imaginara fazendo qualquer coisa, os senhores sabem, exceto falando. Não dizia comigo mesmo, "agora jamais vou vê-lo", nem "agora jamais apertarei a mão dele"; mas dizia "agora jamais vou ouvi-lo". O homem se apresentava como uma voz. (ibidem, p.90-91)

A voz de Kurtz transforma-se ainda no tema da conversa que Marlow tem com a viúva, já de volta a Londres, ao fim do romance. Em determinado momento, Marlow descreve a experiência de ouvir a voz feminina com a qual dialoga de forma que beira a alucinação e que, de certa forma, resume em torno de uma voz a caracterização sonora que tanto marcara o decorrer da narrativa:

Olhou-me com intensidade. "É o dom dos grandes", prosseguiu, e o som de sua voz baixa parecia acompanhado de todos os outros sons cheios de mistério, desolação e tristeza que eu já conhecia... o murmurar do rio, o farfalhar das árvores balançadas pelo vento, o burburinho da multidão, o eco fraco de palavras incompreensíveis gritadas à distância. O sussurro de uma voz que emana do limiar das trevas eternas. "Mas o senhor o ouviu. O senhor sabe", ela exclamou. (ibidem, p.135)

Assim, como numa dobra, Conrad descreve a impressão que uma voz causa em determinado personagem, enquanto eles próprios discutem outro personagem marcado pela potência exatamente de sua voz. O que nos leva a pensar que o romance de Conrad alude a determinadas sonoridades de um modo particularmente complexo, ao tomar como central para a trama tanto sons ambientes de lugares em que sons preponderam ao que se vê quanto as próprias vozes de quem fala.

Para passar a um exemplo contemporâneo, uma representação sonora da confusão mental de uma personagem é o que se encontra em Serena, de Ian McEwanMcEWAN, Ian. Serena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.. Próximo do fim do romance, Tom Healy, um escritor promissor, descobre pela imprensa que Serena, sua namorada, é na verdade uma agente de um dos tentáculos do serviço secreto britânico, sendo que o órgão financia sua produção enquanto ela o monitora. Tendo seu segredo sido descoberto, Serena narra assim seu caminho para a casa do namorado, em Brighton, litoral sul da Inglaterra, na medida em que percebe no canto das gaivotas características musicais que sublinhariam seu estado de espírito:

Enquanto subia o morro atrás da estação, eu achava que o grasnar sofrido das gaivotas tinha uma nota enfaticamente descendente, uma cadência terminal muito mais forte que o normal, como as previsíveis notas finais de um hino. O ar, com seu gosto de sal, fumaça de escapamento e fritura, me deixava com saudade dos fins de semana tão leves. Era provável que eu nunca mais fosse voltar. Diminuí o passo quando virei para a Clifton Street, esperando ver jornalistas diante do prédio onde Tom morava. Mas as calçadas estavam vazias. Abri a porta e comecei a subir as escadas até o apartamento do sótão. Passei pelo som de música pop e pelo cheiro de um café da manhã sendo preparado no segundo andar. Hesitei na frente da porta dele, bati firme e inocentemente para espantar os demônios, esperei, e aí me atrapalhei com a chave, girei primeiro para o lado errado, xinguei baixinho, e abri a porta de um golpe. (McEWAN, 2012, p.356)3

Tom Paulin, no artigo The despotism of the eye, faz uma defesa da necessária atenção, pela crítica literária, às características sonoras da poesia em sua análise. Para Paulin, a ideia geral de que um poema deve ser analisado em termos das imagens que evoca oblitera as múltiplas relações possíveis entre som e poesia. Em texto que foi construído a partir de uma palestra dada na School of Sound britânica em 2000, Paulin, inglês criado na Irlanda do Norte, descreve um som que, lembrado a partir de sua infância, passou a simbolizar para ele "a essência de Belfast", o som tardiamente identificado como do vento que deslizava pelos longos corrimões de um determinado parque. (PAULIN, 2003PAULIN, Tom. The despotism of the eye. SIDER, Larry et al (org). Soundscape - The school of sound lectures 1998-2001. London: Wallflower, 2003., p. 49-50) São muitos os exemplos dados por Paulin de poemas que claramente evocam sons e que têm a descrição de sons e das sensações que eles podem provocar como centrais para suas construções. As citações vão desde poetas ingleses do século XIX como G. M. Hopkins e John Clare até Elizabeth Bishop, quando essa descreve o som do trovão, Auden, quando traduz sons praianos, ou o irlandês contemporâneo, ganhador do Prêmio Nobel, Seamus Heaney, cujas descrições sonoras da agressividade presente em uma partida de futebol ou do ato de transformar leite em manteiga funcionam, para Paulin, como metáforas dos conflitos entre as Irlandas e o Reino Unido.

Poderíamos dizer que exemplos de evocações sonoras em poesia não são em absoluto raras na poesia brasileira, como, de resto, não seriam difíceis de encontrar na poesia em geral, para além de um recorte nacionalista, que aqui não nos interessa. Para dar poucos exemplos, podemos nos ater aos óbvios casos de Ferreira Gullar e de Manoel de Barros.

Dentro do interesse já citado pelas descrições possíveis de diferentes experiências ligadas à impressão de silêncio, ou à situação limítrofe entre ruídos de pouca intensidade e o que seria percebido como silêncio, prestemos atenção em dois poemas de Ferreira Gullar, o primeiro da virada do século XX para XXI, inserido em Muitas Vozes; o segundo da década de 1970, em Dentro da noite veloz. Em Infinito silêncio, Gullar diz:

houve (há) um enorme silêncio anterior ao nascimento das estrelas antes da luz a matéria da matéria de onde tudo vem incessante e onde tudo se apaga eternamente esse silêncio grita sobre nossa vida e de ponta a ponta a atravessa estridente (GULLAR, 1999)

Para além de tal suposição de um silêncio original, a relação entre silêncio e ruído é central para a descrição dos últimos momentos de Che Guevara antes de sua captura na Bolívia, como representados no poema de Gullar:

Na quebrada do rio Yuro a claridade da hora mostrava seu lado escuro: as águas limpas batiam seu passado e seu futuro. Estalo de mato, pio de ave, brisa nas folhas era silêncio o barulho. (GULLAR, 2009)

Manoel de Barros, no sexto poema da segunda parte do Livro sobre nada, descreve a relação da primeira infância com a fala, com o elogio, costumeiro em sua obra, da condição da criança que permite a criação com as palavras anterior ao regramento gramático que virá em seguida através da alfabetização. Diz ele:

Carrego meus primórdios num andor. Minha voz tem um vício de fontes. Eu queria avançar para o começo. Chegar ao criançamento das palavras. Lá onde elas ainda urinam na perna. Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos. Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem. Pegar no estame do som. Ser a voz de um lagarto escurecido. Abrir um descortínio para o arcano. (BARROS, 1996, p. 47).

O que chocava este leitor em algum momento dos anos 1990, quando aconteceu a leitura do poema, era a possibilidade de pensar, a partir da poesia, o estame do som como silêncio, anterior até à garatuja do verbo pela criança. Silêncio como estame do som sendo uma condição geral, como entenderam Eni Orlandi, no campo da Análise do Discurso, ou José Miguel Wisnik, na interdisciplinaridade entre os campos da música, das ciências sociais, da própria literatura.4 Cf ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: UNICAMP, 1992 e WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Outro choque, se este texto pode ser em parte memorialista na sua lida com as fontes, foi a clareza com que, no célebre conto A biblioteca de babel, de Jorge Luis BorgesBORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., o que começa com a não menos famosa sentença "o universo (que outros chamam a biblioteca)", os espaços, o ponto, a vírgula são entendidos como unidades tão produtoras de sentido quanto as letras do alfabeto, sem que haja, inclusive, alguma hierarquização entre eles. Borges, ao explicar o funcionamento geral e a estrutura da biblioteca sem começo ou fim, comenta que ali "todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto" (BORGES, 2007BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 73). A simplicidade sobrenatural da descrição das unidades produtoras de sentido de toda uma biblioteca sem fim nos pareceu, em determinado momento da trajetória acadêmica, fazer relação com o que sempre quisemos demonstrar para o campo do cinema: que podemos entender que não há hierarquização possível entre sons e pausas na construção do discurso sonoro cinematográfico. Mas passemos agora, após esta série de exemplos, para a análise mais detida de um objeto específico.

3. Jane Austen e o ponto de escuta

Assim como algumas de suas heroínas - Anne Elliot, de Persuasão ou Fanny Price, de Mansfield Park - o texto de Jane Austen é comedido. Raramente encontraremos a descrição detalhada do tamanho de um cômodo, das roupas utilizadas pelos personagens, dos móveis que compõem uma sala ou dos espaços que separam grupos em eventos sociais. "Tão inteiramente dramática, e tão pouco descritiva, é a genialidade de Austen, que ela parece depender do que suas personagens falam e fazem para o efeito que elas produzem nas nossas imaginações" (LEWES, 2002, p. 172, nossa tradução).

A respeito das dificuldades que essas características poderiam causar no processo de adaptação cinematográfica5 Pensaremos nas adaptações a partir da definição estabelecida por Hopkins: "Adaptações consistem em pegar uma obra de arte que foi originalmente concebida para uma mídia e a traduzir para caber em outra" (HOPKINS, 2009, p. 1). das obras, a crítica sugere que as melhores soluções, em adaptações recentes dão-se através do som. Priorizando o ponto de escuta6 Consideramos aqui o ponto de escuta como entendido por Michel Chion, ou seja, como o correlato para o som para o ponto de vista. (CHION, 2009) Pelo procedimento do ponto de escuta, o espectador identifica-se com o personagem a partir do ato de compartilhar o que ele ouve. No Brasil, o conceito tem sido aplicado à análise do som no cinema,por exemplo na obra de pesquisadores como Suzana Reck Miranda e Leonardo Vidigal. , ao invés do ponto de vista, a mise-en-scène 7 Utilizaremos mise-en-scène assim como definido por Hudelet: "a organização temporal e espacial de elementos visuais, humanos ou não, em uma imagem" (HUDELET, 2009, p. 58) dessas adaptações resolve espacialmente a relação da escuta furtiva e não intencional. (HUDELET, 2009HUDELET, Ariane. Beyond words, Beyond Images: Jane Austen's Novels and Films. In: HUDELET, Ariane MONAGHAN, David; WILTSHIRE, John.The cinematic Jane Austen. NC: McFarland & Company, 2009.)

Nos romances de Austen é possível encontrar duas instâncias de escuta: overhear e eavesdrop. A diferença entre estes dois conceitos pode ser descrita através da presença ou ausência de intenção no processo de escuta. Quando o sujeito ouve algo e sua presença não é percebida ou está próximo daquele que fala, mas não está incluído na conversa, ele pratica a ação de overhear. Quando o sujeito se coloca espacialmente de modo a ouvir o que está sendo dito, se há intenção e interesse na escuta (algo que se aproxima em português da "fofoca"), essa é a ação de eavesdrop.

Para overhear devemos estar nas redondezas daquele que fala. A ação de overhear é um fenômeno característico dos momentos em grupo que Jane Austen se tornou bastante adepta de representar: as saídas, os piqueniques, as salas de estar, salas de festas e (em Persuasão) as caminhadas e lugares públicos em que uma grande quantidade de pessoas está reunida mas que consiste de poucos universos diferentes, seja de afetos ou de conversas. Para caracterizar a ação de overhear, então, é necessário indicar ou planos narrativos diferentes ou uma noção espacial. (WILTSHIRE, 2009, p. 29-30)

Momentos importantes de narrativa encaminhados através do artifício de overhearing são comuns nos romances da autora, principalmente quando ela retrata eventos com grandes grupos de pessoas. Um dos principais exemplos desta descrição auditiva dá-se no início de Orgulho e Preconceito.

Elizabeth Bennet ouve Mr. Darcy falando a seu amigo Mr. Bingley que não a acha interessante, ela é: "tolerável, mas não bonita o suficiente para me tentar"8 Todas as citações de obras de Jane Austen apresentadas ao longo deste artigo são retiradas do texto original da autora e traduzidos livremente. (AUSTEN, 2001AUSTEN, Jane. Pride and Prejudice.London: Chancellor Press, 2001. , p. 18) Quando Mr. Darcy inicia sua crítica, Elizabeth o ouve sem que ele a perceba. Durante sua fala, entretanto, ele a olha e nota que está mais perto do que pensava. Ainda assim, termina seu comentário. Isso ocorre durante a apresentação deste personagem e será um dos únicos demonstrativos da sua personalidade que teremos durante grande parte do livro. Em Orgulho e Preconceito os leitores são expostos às informações juntamente com Elizabeth e, este momento específico, faz com que tanto ela quanto nós o odiemos.

No romance não fica evidente se Mr. Darcy sabe que Elizabeth pode ouvi-lo, e cada adaptação resolve essa questão de maneiras diferentes. Na mais recente, de 2005, Elizabeth está escondida atrás de uma arquibancada vazada, enquanto Mr. Darcy está na frente da arquibancada. Não seria possível vê-la, o que lhe inocenta da intenção de magoá-la. Já na série da BBC de 1995, Elizabeth está sentada a poucos metros de Mr. Darcy, a mise-en-scène e o tratamento espacial conferido a cena evidenciam que seria perfeitamente plausível que ela o ouvisse. A montagem paralela, nesse momento, mostra-nos a fala de Mr. Darcy e a reação de Elizabeth, permitindo ao espectador a participação simultânea dos dois eventos. Ele continua tecendo comentários negativos a seu respeito e, apesar da possibilidade de estar sendo ouvido não ficar evidente, a cena nos faz questionar sua índole e aproxima o julgamento do espectador daquele de Elizabeth.

O que diferencia os momentos de overhearing em Persuasão daqueles presentes em outros romances é a presença deste artifício na estrutura da narrativa, e não somente em momentos específicos do texto. O interesse de Austen pela psicologia da atenção é desenvolvido com mais intensidade, e o uso do ovehearing para desenvolver a narrativa ou fornecer alívio cômico, se torna parte vital da estrutura artística da obra."Neste romance, as instâncias de overhearing também geram uma noção de relação espacial, indicando o aspecto de visualidade." (WILTSHIRE, 2009WILTSHIRE, John. Jane Austen: Sight and Sound.In:, HUDELET, Ariane; MONAGHAN, David. WILTSHIRE, John. The cinematic Jane Austen NC: McFarland & Company, 2009. , p. 29)

Podemos considerar, então, que a principal questão pendente de resolução por parte do adaptador é a construção espacial dos eventos descritos. A mise-en-scène deve viabilizar, espacialmente, o desenrolar de diálogos e ocasiões de escuta - sejam elas intencionais ou não - para permitir a visualização verossímil da narrativa de Austen.

4. A questão auditiva em Persuasão

Em seu menor e último livro, Austen conta a história de Anne Elliot, uma heroína sensata, humilde e gentil de uma família de nobres orgulhosos que vivem em Kellynch Hall, Somerset. Seu pai, Sir Walter Elliot, um viúvo extremamente fútil e orgulhoso, trata Anne com descaso por ela não ser bonita como sua irmã mais velha Elizabeth e por não ter se casado com alguém rico, como sua irmã mais nova Mary, esposa de Charles Musgrove. Sir Walter está falido, devido aos seus gastos desmedidos desde a morte de sua esposa, e precisa aceitar inquilinos em Kellynch Hall para pagar suas dívidas, enquanto aluga uma casa menos dispendiosa em Bath.

Anne foi persuadida a abrir mão de um noivado que seu pai e sua madrinha, Lady Russel, achavam imprudente. O romance se passa oito anos após o noivado ser desmanchado, quando seu antigo namorado, Captain Wentworth, fez sua fortuna na Marinha Britânica e retorna à vida de Anne através dos novos inquilinos de Kellynch: sua irmã Sra. Croft e seu marido, o Admiral Croft.

Quando o pai e a irmã se mudam para Bath, Anne permanece na vizinhança cuidando da irmã Mary, e tem de presenciar um amargo e rancoroso Wentworth cortejar as jovens e elegantes Luisa e Henrietta Musgrove, irmãs de Charles Musgrove. Anne se martiriza constantemente por não ter sido forte o suficiente para casar-se com ele quando teve a oportunidade, considerando-se, hoje, velha demais para casar.

Persuasão é a continuação de uma história que Austen nunca escreveu, sobre o amor entre um jovem marinheiro passando suas férias de 1806 em Somerset e uma jovem solitária, ignorada pela família. Esse livro explicaria o início da relação entre os dois, e as circunstâncias que levaram Anne a terminar o noivado, fazendo Wentworth voltar para a Marinha Britânica ressentido e magoado. (AUSTEN; SHAPARD, 2010AUSTEN, Jane; SHAPARD, David M. The Annotated Persuasion. New York: Anchor, 2010.) É uma obra sobre oportunidade, perdão, ressentimento e é, principalmente, uma crítica veemente a uma nobreza orgulhosa e falida, que Austen ridiculariza.

Este romance se diferencia dos outros por uma série de razões: é o mais curto, a maioria de seus personagens não é desenvolvido em detalhe, há poucos personagens que fornecem alívio pela comicidade e há, comparativamente, uma quantidade significativa menor de diálogos. A principal diferença, entretanto, é que, em Persuasão, a trama se inicia após o rompimento entre os personagens principais: eles não se conhecem diante do leitor. Então, ao invés de superarem uma série de dificuldades e mal-entendidos para ficarem juntos, Anne Elliot e o Capitão Wentworth precisam superar seu passado.

Anne é, portanto, a mais velha das protagonistas de Austen: ela tem 27 anos. É madura, principalmente pelas dificuldades e infelicidades que sofreu quando mais jovem, e é mais sensata e crítica até que outras heroínas de Austen conhecidas por suas capacidades intelectuais, como Elizabeth Bennet de Orgulho e Preconceito e Elinor Dashwood de Razão e Sensibilidade. Austen sempre conta suas histórias sob a perspectiva da heroína, fazendo apenas algumas intromissões nos eventuais momentos em que a heroína está equivocada ou o narrador sabe mais àquele respeito que ela. Entretanto, no caso de Persuasão, como Anne é madura e sensata, a responsabilidade sob o ponto de vista da história lhe pertence mais do que nos outros romances, havendo menos intromissões. (MARTIN, 2007MARTIN, Lydia. Les adaptations à l'écran des romans de Jane Austen.Paris: L'Harmattan, 2007.)

Essa perspectiva se repete no que diz respeito às informações fornecidas ao leitor sobre o herói. Nos outros romances, apenas uma parte da história é detalhada, já que a vemos pelo ponto de vista da heroína, permitindo-nos pouca informação sobre o que de fato passa pela mente do herói. Apenas no grande momento da revelação final, recorrente em todos os romances, somos apresentados à linha de raciocínio e de sentimentos seguida por ele. No caso de Persuasão, entretanto, como Anne já teve uma relação íntima com Wentworth, as informações que ela nos dá são constantemente corretas, por ela já ter um profundo conhecimento da mente e do coração do herói. "Não poderiam haver dois corações tão abertos, gostos tão similares, sentimentos tão em uníssono" (AUSTEN; SHAPARD, 2012AUSTEN, Jane; SHAPARD, David M. The Annotated Persuasion. New York: Anchor, 2010., p. 120)

Por ser mais velha e, portanto, desinteressante, Anne recebe pouca atenção nos círculos sociais. Ela se torna enfermeira dos doentes e conselheira para os mais novos, raramente opina sobre as questões discutidas e está quase sempre calada. Anne ouve: ela observa o que acontece a sua volta. "O papel de Anne é o de ouvinte, conselheira, observadora silenciosa. Entretanto, a grande questão para o desenvolvimento do romance é que ela overhears mais que simplesmente escuta." (HUDELET, 2009HUDELET, Ariane. Beyond words, Beyond Images: Jane Austen's Novels and Films. In: HUDELET, Ariane MONAGHAN, David; WILTSHIRE, John.The cinematic Jane Austen. NC: McFarland & Company, 2009.)

A possibilidade do direcionamento da atenção através da escuta, no caso de Anne, se torna uma realidade pungente. Por ser ignorada pela maior parte das pessoas de seu convívio íntimo e desconsiderada como mulher desejável, Anne tem ao seu dispor o poder de estar ciente dos acontecimentos, sem que isso lhe confira uma imagem negativa perante seus conhecidos.

Na adaptação de 1995, há uma montagem de vários eventos que se dão assim que Anne chega a Uppercross9 Propriedade dos Musgroves, sogros da irmã mais nova de Anne. . Dois minutos de cenas intercaladas são dedicados a demonstrar como a vinda de Anne inicia uma série de queixas, pedidos e confissões secretas. Ela é somente ouvinte, permanece calada por toda a extensão do período, e podemos perceber sua opinião sobre as várias informações truncadas e inverossímeis apenas por uma delicada expressão de confusão em seu rosto. Seus familiares e amigos não a procuram para ouvir seus conselhos e sim para se livrarem de suas opiniões em uma pessoa que está ali para os ouvir.

A questão da espacialidade de grupos, das conversas, do que se ouve furtiva ou inocentemente é de extrema importância para a construção da narrativa de Persuasão. (WILTSHIRE, 2009WILTSHIRE, John. Jane Austen: Sight and Sound.In:, HUDELET, Ariane; MONAGHAN, David. WILTSHIRE, John. The cinematic Jane Austen NC: McFarland & Company, 2009. ) Quando Wentworth retorna para o círculo social de Anne Elliot, oito anos após sua separação, Anne está arrependida e envergonhada. Wentworth, entretanto, a ressente e não a perdoou. Não haverá contato íntimo entre os dois por grande parte do romance: eles se evitam mutuamente, cada qual por seus motivos. Mas não há como ignorar completamente ambas as suas presenças, então Wentworth se utilizará das oportunidades em grupo para magoar Anne a distância, através de suas atitudes e, principalmente, da sua fala.

A escuta é, portanto, um importante propulsor da narrativa em Persuasão. Anne está ainda mais atenta ao que acontece com seu mundo após o retorno de Wentworth, e todas as informações que adquire são através de conversas ouvidas, seja em público ou por acaso. Wentworth decide se vingar da rejeição prévia demonstrando interesse e intimidade por sua prima. O que resta a Anne é ouvir suas conversas procurando indícios que demonstrem que ele ainda não a esqueceu completamente.

5. Análise das abordagens das adaptações

Quatro momentos de overhearing e "ponto de escuta" são cruciais para o desenvolvimento da trama em Persuasão. A posição de cada personagem, a espacialidade da cena, a construção da miseen-scène e da narrativa dependem da escuta muito mais do que da visão. Esses são exemplos de trechos em que Austen deu especial atenção ao desenvolvimento da trama através do que a personagem, Anne, ouve, mais do que o que ela vê. E nós, os leitores, visualizamos a partir da construção espacial que imaginamos dar conta desse ponto de escuta. Cada um deles é abordado de diferentes maneiras nas adaptações mais recentes do romance.

Uma das cenas que define o quanto Austen achava que o que se ouve é psicológico - que o que escutamos é dirigido mais por uma questão emocional do que física, dependendo menos do espaço e mais do interesse - é a cena do primeiro reencontro de Wentworth com Anne. A descrição de Austen é tão curta que frustra o leitor - esperamos por essa cena desde o início do romance -, mas demonstra claramente o que acontece dentro da cabeça de Anne. Ela não ouve. Ele a cumprimenta, conversa com sua irmã, se despede. Mas Anne está tão nervosa e confusa quenão é capaz de discernir as vozes e os sons. "Seus olhos quase encontraram os de Captain Wentworth; um cumprimento, uma cortesia; ela ouviu sua voz - ele falou com a Mary; disse que tudo estava bem; disse algo as Miss Musgroves, o suficiente para demonstrar estar íntimo: o cômodo parecia cheio - cheio de pessoas e vozes - mas alguns minutos deram fim ao encontro." (AUSTEN; SHAPARD, 2012AUSTEN, Jane; SHAPARD, David M. The Annotated Persuasion. New York: Anchor, 2010., p. 112) A sensação fornecida pela cena é de falta de foco auditivo: sabemos que ele fala, que há conversa, mas não tomamos consciência, assim como Anne, do que se desenrola.

Essa cena é adaptada em 1995 sem muita atenção às descrições de Austen: Wentworth entra, conversa, e Anne demonstra nervosismo, mas não a mesma perturbação que é possível perceber no romance. Um simples plano-contra plano da conversa de Wentworth com Mary e uma sutil troca de olhares com Anne e Wentworth se retira. Em 2007, entretanto, sentimos a atmosfera que Austen descreve. Com o plano fechado no rosto de Anne e no rosto de Wentworth toda a conversa desagradável se desenrola. Há muito movimento, muitas vozes, pessoas que passam e riem, mas nada fica audivelmente nítido. E enquanto essa bagunça acontece fora de quadro, vemos nos rostos de Anne e Wentworth o nervosismo que esse reencontro causa.

Apesar de no romance Anne ser relegada a um papel secundário, muito mais de escuta do que de fala, nesta adaptação de 2007, Anne está sempre em primeiro plano. A câmera age como sua confidente, permitindo que somente nós, os espectadores, percebamos como ela realmente está se sentindo. Este filme resolve a questão da voz do narrador e dos monólogos interiores de Anne através dessa câmera e de voz over, quando Anne escreve em seu diário. Sentimo-nos interlocutores de Anne: ela interpela a câmera que lhe acompanha, olhares de personagem e espectador se encontram, resultando em uma empatia instantânea.

O segundo momento de escuta que devemos ressaltar é a conversa que acontece na primeira festa em que Wentworth e Anne são convidados. Essa cena é transformada em um jantar em ambas as adaptações, a de 1995 e a de 2007, mas é crucial a manutenção da configuração da sala de estar, na qual alguns personagens estão em pé, outros sentados, o que permite a sensação espacial da coexistência vários pequenos grupos de relações e conversas. Neste sentido, a proximidade entre estes vários núcleos sociais permite que parte de conversas alheias sejam ouvidas. Principalmente se a atenção auditiva de algum personagem está direcionada para isso. Se há intenção. E isso se torna menos plausível em uma mesa de jantar.

Wentworth está entretendo os presentes com contos de suas viagens, da guerra, e Anne está ouvindo discretamente. Austen não deixa clara a espacialidade da cena, o que dificulta a adaptação, e o que temos aqui é um exemplo de como a adaptação desta cena, o que pode ser transferido para este romance quase como um todo, é que a mise-en-scène que Austen construiu está baseada no que se ouve e não no que se vê. Portanto o roteiro e a adaptação têm de ser feitos baseados em pontos-de-escuta, mais do que em pontos-de-vista.

E por mais dificuldade que o adaptador possa encontrar em construir essa cena espacialmente, o foco tem que ser a possibilidade de Anne ouvir o "sussurro" da Mrs. Musgrove, que a desperta dos contos de Wentworth. O que demonstra uma proximidade espacial, e, mais importante, a posição que Anne tem nesta cena permite que ela esteja atenta aos dois discursos ao mesmo tempo, alternando sua atenção dependendo do que ouve.

O terceiro exemplo se dá quando Anne ouve Wentworth conversar com sua prima a seu respeito. Este momento é de extrema importância para Anne, pois esse passeio será o primeiro momento em que ela reconhece o interesse de Wentworth por sua prima. No romance, Anne está cansada da longa caminhada e se senta em um tronco. As pessoas caminham em volta, sem muita definição espacial de onde estão. Anne está sentada sozinha e começa a ouvir uma conversa, que percebe ser a seu respeito. Wentworth pergunta a Louisa porque Anne não se casou com Charles, homem que hoje é seu cunhado. Louisa não sabe ao certo, mas imagina que seja porque Anne tenha sido convencida de que Charles não teria o status social necessário para casar com ela.

Anne é magoada profundamente pela conversa: a maneira que seu antigo namorado e sua prima criam suposições sobre seu caráter e seus sentimentos, além do fato de que ele possa achar que a recusa foi similar a dele. Principalmente, Anne sofre com os elogios que ele oferece a Louisa, que demonstram grande intimidade entre os dois. Tais elogios, proferidos intimamente, indicariam que uma relação se estabelecia entre os dois. Ela percebe que ele ainda sofre com as suas decisões, mas agora está se envolvendo com outra mulher.

Na adaptação de 2007, a câmera se coloca atrás dos arbustos, como se estivéssemos participando da conversa sem sermos convidados, ouvindo algo que não seria permitido. O problema criado por esta escolha é que, sem a informação anterior de que Anne estava cansada, caiu e se sentou onde achou confortável, sem intenção de ouvir a conversa, não saberíamos que ela a ouve inocentemente. Somos surpreendidos pela presença de Anne atrás dos arbustos, tanto quanto Wentworth seria se a visse ali.

As falas de Wentworth, entretanto, provocam-lhe tamanho sofrimento que, mesmo se estivesse direcionando sua atenção intencionalmente para aquela conversa, Anne não teria interesse em permanecer na posição de escuta. Ela não se move devido ao seu medo de ser descoberta, fato que acresceria ao constrangimento que já sente.

Na adaptação de 1995, o adaptador resolveu a questão com uma diferença de altura: Wentworth e Louisa estão andando em um nível mais alto de onde Anne está sentada. Mas, diferentemente do arbusto, se eles olhassem para baixo, seria possível ver onde Anne está e perceber que ela os ouve. A reação de Anne ao ouvir sua intimidade debatida pelos dois personagens é de profunda tristeza e vergonha. Torna-se óbvio, pela sua expressão, o quanto ela não gostaria de overhear aquela conversa.

O quarto e último exemplo é a cena da declaração de Wentworth para Anne - a mais importante do romance - que também conta com poucas discrições visuais. A partir das informações do romance, Anne está em uma pequena sala de estar esperando suas primas. Nesta sala estão Mrs. Musgrove e Mrs. Croft sentadas em uma mesa conversando sobre noivados imprudentes, Wentworth escrevendo uma carta e Harville sozinho, pensativo, próximo a uma janela. O leitor não sabe exatamente a distância entre os personagens neste momento e tampouco o tamanho da sala, mas, aos poucos, devido ao que se diz e ao que se ouve, é possível entender a disposição espacial do lugar.

Harville chama Anne para a janela e os dois iniciam um diálogo sobre a inconstância do sujeito apaixonado, discordando sobre a capacidade que homens e mulheres tem de continuar apaixonados, mesmo quando toda esperança é perdida. Quando ela está argumentando sobre a superioridade da paciência feminina, Wentworth sabe que ela fala dele, mesmo sem que ela mencione seu nome. Ele ouve, em um primeiro momento, o que ela está dizendo a respeito do amor perdido dos dois, apesar de não ser intenção de Anne - ela sussurra. Após esse primeiro momento toda inocência se perde: Wentworth, que já se descobriu apaixonado por Anne novamente, quer saber o que ela está dizendo.

Ele se inclina em sua direção de tal forma que a caneta com a qual deveria estar escrevendo uma carta cai da mesa, surpreendendo Anne. Somente neste momento, após vários minutos de discussão, Anne se dá conta da proximidade de Wentworth. Ela se constrange com a possibilidade de ele ter ouvido o que ela dizia, e fala ainda mais baixo a partir desse momento.

Wentworth se emociona com as palavras de Anne e, já apaixonado por ela novamente, começa a lhe escrever uma carta. Quando o chamam para sair do cômodo, ele a deixa em cima da mesa, fazendo um delicado movimento para Anne, mostrando sua declaração. Wentworth escreve: "você diminui a sua voz, mas eu consigo discernir os tons dessa voz, tons esses que mais ninguém seria capaz de ouvir." (AUSTEN; SHAPARD, 2012AUSTEN, Jane; SHAPARD, David M. The Annotated Persuasion. New York: Anchor, 2010. p. 452)

A adaptação de 1995 constrói uma pequena sala e coloca uma escrivaninha em primeiro plano, onde Wentworth está sentado. Ao fundo está Anne conversando com Harville. Com essa configuração espacial, vemos enquanto Wentworth escreve e ouvimos Anne. Quando ele se levanta e deixa a carta para ela, ela chega à frente do plano e se senta na escrivaninha. Enquanto há uma grande movimentação ao fundo, com burburinho e sons não nítidos, ouvimos as palavras de Wentworth que Anne lê.

A adaptação de 2007 resolveu a questão espacial diferentemente. Várias cenas são fundidas em uma: a percepção de Anne que Wentworth acha que ela se casará com outro homem, o recebimento da carta de declaração, a confissão que uma amiga de Anne faz a respeito de seu primo e vários outros acontecimentos se dão em um enorme plano-sequência que tem início na casa de Anne e termina quando os amantes se encontram na rua. Anne corre pelas ruas de Bath procurando Wentworth enquanto várias pessoas a abordam para resolver pendências narrativas, deixadas para o fim da adaptação, tornando as resoluções extremamente corridas.

6. Considerações finais

O que procuramos demonstrar é a possibilidade de analisar determinadas relações entre literatura e cinema não por pressupostos visuais, pelo ponto de vista, por exemplo, como é mais usual, mas pelo som, na representação de ambientes sonoros pela palavra escrita e pelo audiovisual. O ponto de escuta, representado pela literatura ou pelo cinema, cria identificações entre leitor ou espectador e personagem ainda pouco exploradas. Se os exemplos literários sobre os quais nos detivemos, como o da obra de Conrad na prosa, ou o de Ferreira Gullar e Manoel de Barros na poesia, estabelecem relações concretas entre a palavra escrita e a representação sonora de ambientes ou sensações, as adaptações de Austen para o cinema completam a triangulação entre som, literatura e cinema que desejávamos concretizar.

Os autores gostariam de agradecer e dedicar o texto a Maurício de Bragança, professor do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense.

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  • Transcrevemos o romance a partir da tradução para o português de José Roberto O'Shea para edição de 2008.
  • A situação de ouvir um determinado som sem que seja possível ver sua fonte sonora é descrita, no campo dos estudos de som para cinema, por Michel Chion, amparado na música concreta de Pierre Schaefer, como acusmatismo. Um som acusmático seria qualquer som que ouvimos sem saber de onde vem. (CHION, 1999, p. 17-19) Transplantando tal nossa para o espaço da ação do romance de Conrad, poderíamos dizer que os personagens estão envoltos por sons que, para eles próprios, são acusmáticos.
  • Citado a partir da tradução para o português feita por Caetano W. Galindo.
  • Cf ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: UNICAMP, 1992 e WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • Pensaremos nas adaptações a partir da definição estabelecida por Hopkins: "Adaptações consistem em pegar uma obra de arte que foi originalmente concebida para uma mídia e a traduzir para caber em outra" (HOPKINS, 2009, p. 1).
  • Consideramos aqui o ponto de escuta como entendido por Michel Chion, ou seja, como o correlato para o som para o ponto de vista. (CHION, 2009) Pelo procedimento do ponto de escuta, o espectador identifica-se com o personagem a partir do ato de compartilhar o que ele ouve. No Brasil, o conceito tem sido aplicado à análise do som no cinema,por exemplo na obra de pesquisadores como Suzana Reck Miranda e Leonardo Vidigal.
  • Utilizaremos mise-en-scène assim como definido por Hudelet: "a organização temporal e espacial de elementos visuais, humanos ou não, em uma imagem" (HUDELET, 2009, p. 58)
  • Todas as citações de obras de Jane Austen apresentadas ao longo deste artigo são retiradas do texto original da autora e traduzidos livremente.
  • Propriedade dos Musgroves, sogros da irmã mais nova de Anne.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2013
  • Aceito
    17 Ago 2013
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